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UMA REALIDADE QUE PODE SER MUDADA

O Censo Escolar do DF mostra que, em 2017, dos 179.170 alunos matriculados 4.656 abandonaram a escola. A evasão ou abandono escolar tem tomado espaço nos debates entre Estado e sociedade, mas algumas iniciativas bem sucedidas têm ajudado a mudar este cenário

Antônio Martins Bento procurou o Instituto Aprender, seguindo orientações médicas, pois os filhos apresentavam dificuldades no aprendizado

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Ocenário educacional brasileiro tem se mostrado preocupante, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Existem 1,3 milhão de jovens entre 15 e 17 anos que deixaram a escola sem concluir os estudos, dos quais 52% não concluíram sequer o ensino fundamental. A evasão escolar na educação de base faz com que seja menor o número de brasileiros a atingir níveis mais significativos de escolaridade. Esse índice aumenta para 55% se o estudante for negro e de situação social vulnerável.

Estes dados nacionais não estão distantes da realidade do ensino no Distrito Federal. Na rede pública, de acordo com o último Censo de 2017, disponível no portal da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal, dos 179.170 alunos matriculados no ensino fundamental 1 e 2, nas 12 Regionais de Ensino, 2,2% (4.021 alunos) são considerados Sem Avanço. “São os alunos do Programa para Avanço das Aprendizagens Escolares, anteriormente denominado “Aceleração”, e que não progrediram de ano dentro deste programa”, explica Dinamar Rodrigues da Silva Carneiro, chefe da UNIPLAT (Unidade Regional de Planejamento Educacional e de Tecnologia na Educação), da regional de ensino de Planaltina-DF.

Dos que se matricularam, 22% (39.583 alunos) foram reprovados no processo de aprendizagem. Outro dado é o índice de abandono escolar. Do total de alunos matriculados na rede pública 2,6% (4.656 estudantes) abandonaram a escola ainda no nível fundamental, seja 1 ou 2. No Distrito Federal, o termo evasão escolar não é usado pela Secretaria de Educação. Usa-se abandono escolar, principalmente, no ensino fundamental, pois entende-se que em algum momento a criança retornará para a escola. Somando todos estes números, são 48.260 alunos que não conseguiram avanço na escolaridade.

A legislação nacional preconiza em seu segundo artigo que é responsabilidade da família e do Estado a jornada socioeducacional. Como está citada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (1997:2), o ensino pleno, como se pede, não tem sido uma realidade no Brasil e no Distrito Federal em todos os níveis de escolaridade.

Ao invés disso, a evasão ou abandono escolar, assim como a reprovação, tem tomado espaço nos debates entre Estado e sociedade. Organizações e movimentos são criados para entender e combater os altos índices educacionais negativos.

Para a mestranda em letras pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Educação e Inclusão Escolar, professora Gina Vieira, o desempenho acadêmico dos estudantes brasileiros está abaixo do esperado.

Para ela, um dos primeiros pontos é o modelo educacional. “É uma escola muito orientada como um processo de mera transmissão de conhecimento. Nessa concepção, o aluno acaba ficando muito mais na posição de objeto no processo de aprendizagem do que de sujeito. Além disso, dentro dessa concepção passa a acreditar que o conteúdo é mais importante que o sujeito”.

Ainda de acordo com a profissional, esse processo gera a existência de práticas pedagógicas muito tradicionais e conservadoras. “Paulo Freire chama isso de educação bancária. Eu, professor, sou detentor desse capital cultural, desses saberes e eu preciso transmitir esses saberes para o aluno. Em algum momento, o aluno vai depositar aqueles conhecimentos em uma prova, uma avaliação, para evidenciar que houve conhecimento ou que houve aprendizagem e aquisição daqueles conhecimentos”, cita a professora.

ALUNOS DO Instituto Aprender, no Paranoá, a caminho da aula de hip-hop

Gina conta que presenciou casos de evasão motivados por questões econômicas. Segundo ela, alunos abandonam os estudos porque têm urgência em se inserir no mercado de trabalho para garantir a própria sobrevivência e a da família. Além do fato da própria não ser atrativa. “Eles se veem obrigados a abandonar a escola e não têm como ter uma formação mais arrojada ou uma formação de profissionalização mesmo. O problema é que muitos saem da escola para trabalhar em subempregos”, diz a professora.

A professora defende um modelo de educação integral que revele os alunos como sujeitos que precisam construir saberes decisivos para o exercício da cidadania. “Se a gente tem uma proposta pedagógica onde o professor compreende o seu papel como agente de mudança haverá menos chance que esse aluno evada da escola”, complementa a professora.

O QUE PENSAM AS ESPECIALISTAS SOBRE O USO DA TECNOLOGIA NA EDUCAÇÃO

“Esta é uma geração impactada pelas novas tecnologias. Em função disso, adquiriu outras formas de lidar com o conhecimento. Por outro lado, a escola continua insistindo numa forma de ensinar e numa forma de aprender que reportam ao século passado e essa escola causa estranhamento a juventude porque é uma escola onde não há espaço para as novas tecnologias, não há espaço para a voz do estudante, não há espaço para falar sobre questões que que são relevantes pra eles”. Gina Vieira, criadora do projeto Mulheres Inspiradoras. “Não acho que a metodologia atual seja arcaica, eu acho que é falta de procedimentos do professor. Ele tem que entender da linguagem usada, ser atualizado. Não é a internet que vai fazer um bom profissional, o que vai fazer um bom profissional é ele ler, estudar e ver em que ele pode melhorar. E é uma equipe, não é só o professor, tem que ter o psicólogo, o assistente social, o fonoaudiólogo. As escolas não tem [estes profissionais], tá muito jogado. Nós não temos procedimentos no Brasil”. Marina Beust, fundadora do Instituto Aprender.

O projeto Mulheres Inspiradoras

A primeira edição do projeto criado pela professora Gina Vieira aconteceu em 2014, no Centro de Ensino Fundamental 12, de Ceilândia. Em sua criação foram trabalhadas 5 turmas e, em 2015, com 7 turmas do nono ano do ensino fundamental, cada turma com 40 alunos. Nessa fase, o projeto chegou a cerca de 480 alunos. Já em 2017, ele se tornou programa de governo, chegando a 17 escolas e engajando cerca de 3.000 estudantes. Até o momento 3.480 alunos foram atendidos pelo Mulheres Inspiradoras.

Como reconhecimento, o Mulheres Inspiradoras recebeu três prêmios dentro do Brasil, dentre eles o oitavo Prêmio Professores do Brasil, 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, o quarto prêmio Nacional de Educação em direitos humanos, e o prêmio Internacional Ibero-Americano de Educação em Direitos Humanos.

O projeto surgiu no dia a dia da rotina escolar. Após uma década atuando como professora, Gina se deparou com uma sala de aula com problemas disciplinares e com índices de abandono escolar. Na ocasião, Gina criou uma conta numa rede social para tentar se aproximar de seus alunos, mas percebeu que era recorrente os meninos reproduzirem o referencial da mulher objetificada. Isso preocupou a professora.

“O projeto [Mulheres Inspiradoras] me deu muita base para o pensamento crítico, social e para a escrita. É uma forma diferente da educação que geralmente temos na escola” Joyce Barbosa Pereira, 18 anos, aluna da Universidade de Brasília

“Criei o Mulheres Inspiradoras porque eu queria que as minhas alunas entendessem que podem ser bonitas, mas elas são muito maiores do que a beleza que elas têm”, conta. Ela propôs o estudo da biografia de dez grandes mulheres, com perfis bem diversificados: jovens como Anne Frank; mulheres idosas, como Cora Coralina; mulheres com pouca escolaridade, como Carolina Maria de Jesus; grandes pesquisadores da academia, como Nise da Silveira.

Durante o ano letivo eram propostas redações, atividades de interpretação de textos, construções de frases, análises gramaticais, debates sobre diversos temas atuais e os abordados pelas obras literárias. Após a leitura aprofundada de seis obras e realização de atividades, os alunos foram convidados a observar as mulheres inspiradoras de suas unidades para descobrirem a mulher inspiradora de suas vidas.

Em seguida, os alunos iam a campo realizar entrevistas com essas mulheres. O material coletado oferecia todos os elementos que uma obra literária precisava: a história da mãe, da avó e da bisavó. “Eu fiquei tão encantada com a beleza das histórias dos meus alunos que a gente transformou isso num livro”, comenta.

Uma aluna inspiradora

A estudante do primeiro semestre de Artes Visuais, da Universidade de Brasília, Joyce Barbosa Pereira, 18 anos, é moradora da Ceilândia Norte. Conheceu o Projeto Mulheres Inspiradoras em 2014, quando cursava o 9° ano do ensino fundamental, através das aulas ministradas pela professora Gina Vieira. “Eu sempre tive a vontade de cursar o ensino superior e o projeto me deu mais confiança para escrever textos melhores. Então, enfrentar uma redação de um vestibular não seria o mais difícil”, disse a estudante.

Para a estudante, passar na Universidade de Brasília foi a realização de um sonho e os frutos do seu próprio esforço. “O projeto me deu muita base para o pensamento crítico, social e para a escrita. É uma forma diferente da educação que temos na escola. É mais lúdico, tivemos muitos trabalhos em grupo, podíamos pesquisar, debater e produzir bastante, nos acrescentando como estudantes e como cidadãos também”, conta Joyce.

Iniciativas que transformam

Doutora pela Universidade Museo Argentino-Buenos Aires e criadora do Instituto Aprender, Marina Beust acredita que a causa da evasão ou abandono escolar é a falta de profissionais capacitados para lidar com o processo de aprendizagem e as dificuldades dos alunos. De acordo com a especialista, o profissional de educação precisa se especializar. “As crianças ficam muito em redes sociais e televisão porque os pais precisam trabalhar. A solução seriam muitas creches com estimulação, algo semelhante ao que o instituto proporciona hoje”, diz Marina.

“Pela neuropsicologia, neuropedagogia, nós sabemos que quem trabalha na aprendizagem, trabalha o desenvolvimento do cérebro” Marina Beust, fundadora do Instituto Aprender

Marina criou o Instituto Aprender em 1983, com uma unidade no Paranoá, e em Planaltina desde 1999. Segundo ela, é preciso um passo a passo para trabalhar as habilidades e o desenvolvimento dos sujeitos que são as crianças. “Colocam pessoas despreparadas para tomar as decisões em relação aos modelos adotados em educação. O Ministro da Educação, quem é? É um político e não um cientista do saber, nós não temos técnicos”.

Marina Beust e sua equipe acolheram, entre os anos de 1999 e 2016, 4.182 crianças e jovens. Neste período, realizaram 2.480.940 atividades. A profissional enfatiza que não se trata de um grupo de mulheres realizando assistencialismo. “Existe um por quê e o que fazer. Desde 1999, escolhi trazer para o Paranoá, porque eu colaborava para a melhoria do meio vulnerável que me cercava”, diz a estudiosa que conta ter lido 330 livros e que após terminar o doutorado entrou em depressão e viajou para Buenos Aires para conversar com seus orientadores, os quais sugeriram que ela entrasse no pós-doutorado, mas que aplicasse a tese no Brasil.

A maior realização da Marina é expor o fortalecimento de seu projeto, surgido de uma tese, com uma mulher à frente, hoje sendo uma ONG estruturada, com profissionais capacitados que podem colaborar para o avanço no aprendizado de todas as crianças assistidas pelo projeto. “Era seguir todos os passos da tese. Eu só sei fazer isso, recuperar as pessoas. Realizo treinamento com os profissionais para perceberem os fatores que interferem na aprendizagem”.

As crianças têm aula de dança, hip hop, capoeira, natação e assistência em fonoaudiologia, psicologia, psicopedagodia, psicometricidade. “Nós temos tudo que pedia a tese. É por isso que aqui eu trabalho de acordo com um aprendizado que tive, estagiando na Alemanha, de acordo com os três verbos: andar, falar e pensar. Para falar bem, tem que andar bem, para andar bem e falar bem, tem um pensamento que é a cognição“, diz a doutora.

As crianças que frequentam o instituto são encaminhadas de hospitais, centros de saúde, escolas, Conselhos Tutelares, em sua maioria em estado de vulnerabilidade social, situação de risco e outras vulnerabilidades que interferem no desenvolvimento da aprendizagem. “Nós fazemos, primeiro, a avaliação social, avaliação psicológica. Após isso, vemos se a criança possui alguma patologia que interfere no aprendizado, como dislexia, e até mesmo algum trauma psicológico. Do produto desse estudo é que eu vou saber quais as habilidades cognitivas e sociais. Depois vem a avaliação fo-

noaudiológica, para saber o que ele está trocando na leitura e na escrita. Faço avaliação psicopedagógica e também a avaliação psicomotora. Com todo esse estudo eu traço o perfil deles”, diz Marina.

O procedimento se repete de seis em seis meses, para avaliar se as crianças podem trocar de turma ou podem regredir. De acordo com a especialista, às vezes, os alunos podem precisar dessa maturação psicológica. “É dessa forma que nós vamos desenvolvendo eles, começam a partir daí a melhorar na escola. Porque no Brasil essa coisa de ter que passar de série mesmo sem ter condições é um atraso na aprendizagem”, diz Marina.

Para a assistente social, Josenílcea Rosa Cruz, que está à frente do Instituto Aprender na unidade de Planaltina, o trabalho realizado vai muito além de reforço escolar, como muitos acreditam. Na unidade Planaltina o projeto atende 80 crianças.

As crianças permanecem três horas diárias nas unidades, onde participam de atividades pedagógicas de recreação e de reforço escolar, fora o acompanhamento com especialistas não somente para os alunos como para os familiares.

Apresentando resultados

O profissional de construção civil, no momento desempregado, Antônio Martins Bento, 50 anos, morador de Planaltina, tem dois filhos assistidos pelo Instituto Aprender, M.M e M.C. A menina chegou primeiro.

Filhos de pais separados, as crianças eram vítimas de violências e abusos diversos, mas o pai não sabia. Os irmãos foram encaminhados ao Conselho Tutelar após diversas denúncias. O conselho localizou o pai no Ceará que chegou em meio a um turbilhão de acontecimentos e providências a tomar.

As crianças estavam há mais de 60 dias sem ir à escola, que orientou o pai, a essa altura o responsável legal pelos irmãos, para que não faltassem mais. “No que depender de mim agora o negócio vai mudar e eu comecei. Levei eles na psicóloga do hospital e lá elas disseram que iam mandar a M.C para o Aprender”, diz o senhor Antônio.

ASSISTENTE SOCIAL, Josenílcea Rosa Cruz, em atividade pedagógica com alunos do Instituto Aprender Planaltina DF

Segundo o pai, as crianças deram muito trabalho. Todos em volta diziam que ele não aguentaria. A menina era agressiva demais e não falava, o menino furtava. “Depois que vieram pra cá muita coisa mudou. Ela fala e está conseguindo ler algumas coisas. Ele já escreve algumas coisas e lê quase tudo. Um pai tem que lutar pelos seus filhos, até a última chance. Eu vou onde precisar, onde me mandarem pelo melhor pros meus filhos. A minha parte eu ‘tô’ fazendo”, relata Antônio.

O desempenho escolar dos irmãos era refletido em suas notas. Segundo o pai era “nota zero”. Em suas primeiras semanas com as crianças, o pai revela que passaram quase uma semana de suspensão em casa. Os professores não conseguiam lidar com os irmãos. Ao ser questionado em relação às mudanças nas crianças, inclusive no desempenho escolar, o pai se manifesta. “Melhorou e muito. Tiram nota boa, todo mundo fica admirado, quem viu o M.M. [filho] antigo não acredita no que vê hoje”, diz.

Ainda segundo o pai os irmãos gostam de ir à escola, levantam, tomam banho sozinhos, se arrumam e vão tranquilos. Preferem o instituto e se precisarem faltar por algum motivo ficam descontentes. O pai acredita que é por ser mais divertido. O senhor Antônio diz que sempre é questionado a respeito do que possa ter acontecido com os filhos e que levou a essa mudança positiva. Ele responde: “foi um milagre”, sorri.

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