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EDUCAÇÃO x APRENDIZAGEM

O ensino necessário à nova geração dá seus primeiros passos e Brasília é pioneira com a primeira Comunidade de Aprendizagem baseada no paradigma da comunicação

ALINE AGUIAR

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Uma ponte só é verdadeiramente uma ponte, se alguém a atravessa. A frase, do escritor argentino Julio Cortázar, ilustra o que é a alfabetização, ao menos no Brasil. Atualmente, há aproximadamente 58 milhões de analfabetos funcionais no país. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dois milhões de crianças, ou 5% da população com faixa etária para estarem na escola (4 a 17 anos), não estão.

Em setembro de 2017, uma pesquisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável por fazer um panorama mundial da expectativa X realidade da educação, mostrou que no Brasil, apesar de um aumento entre 2010 e 2015, apenas 65% da população têm acesso ao Ensino Médio. Entretanto, em idades avançadas (25 a 34 anos).

Independente da porcentagem de pessoas com acesso à escola, a pergunta desta reportagem é outra: Que tipo de escola o país oferece à população? Qual o ensino dado a crianças e adolescentes?

Cinco anos depois, a proposta sai do papel. Em maio de 2018 foi inaugurado o Centro de Aprendizagem do Paranoá (CAP), destinado à crianças até o 5º ano do ensino fundamental. Mais 12 unidades já estão em processo de criação. Trata-se de um novo conceito de escola, embasado no paradigma da comunicação. “Onde aprendemos uns com os outros, mediatizados pelo mundo. Aprendemos na intersubjetividade, mediatizados por um objeto, no contexto de uma comunidade”, diz José Pacheco.

Para o mais conhecido educador brasileiro, Paulo Freire (1921-1997), a instituição escolar é um lugar onde os professores carregam a responsabilidade de depositar conhecimento em um aluno que tem o dever de se colocar passivo e dócil para receber o aprendizado. A isso ele dá o nome de “educação bancária”. No clássico Pedadogia do Oprimido, lançado em 1974, Freire sentencia: a escola mata a curiosidade dos estudantes. O ideal, constata, é o contrário: inquietá-los.

Na Comunidade de Aprendizagem, defendida por Pacheco, o conhecimento nasce da comunidade na qual está inserido o aluno, o que também exige adaptação dos educadores. Para aprender, é preciso desaprender. “Para se tornar professor, há três razões: Necessidade de um emprego, amor ou vingança. Eu me tornei por vingança, pois meus momentos na escola foram horríveis, cheios de histórias de frustrações, medos e bullying”, conta José Pacheco.

Ele enfatiza a importância do interesse no processo. Como exemplo, cita o caso de uma mulher que achava estar sendo traída pelo marido, mas que não conseguia ler os bilhetes encontrados em bolsos de calças. Ela aprendeu a ler com Pacheco, confirmou a suspeita e pediu o divórcio. Ainda assim, o professor avisa que o interesse não vem da criança. “A criança não estuda sobre o que tem interesse; ela tem interesse pelo que estuda”. Cabe aos professores ou tutores, como são chamados em algumas dessas “novas escolas”, instigar esse interesse.

A Escola da Árvore, localizada no Núcleo Rural do Córrego do Urubu, em Brasília (DF), também foge ao padrão clássico. Como nas Comunidades de Aprendizagem, os alunos são colocados juntos, mesmo com diferentes idades. O trabalho em sala é feito por projetos, a partir do nível de desenvolvimento dos estudantes.

Um dos projetos, contam Nathália Campos e Letícia Araújo, sócias na Escola, surgiu de um borboletário. Para fazê-lo, as crianças teriam que passar por todas as etapas, partindo da fisiologia da borboleta. Para isto, decidiram ir “De tanto fazermos a experiência da desigualdade e o aprendizado da dependência, acabamos por perder nossa capacidade de trabalhar, de criar, de viver em comunidade” Trecho do livro Cuidado, Escola! Vários autores, 1980

Em 2017, uma escola com mensalidade de R$ 8 mil e taxa anual de mais R$ 6 mil foi aberta em São Paulo. Havia fila de espera com 2 mil pessoas para o processo seletivo. Claramente, a filha do motorista de ônibus não estava nessa lista. E a criança que frequentar essa escola dificilmente chegará nela em um transporte coletivo. Mas o que isso tem a ver com educação?

Em 1980, os escritores Babette Harper, Claudius Ceccon, Miguel Darcy de Oliveira e Rosiska Darcy de Oliveira, sob apresentação de Paulo Freire, lançaram o livro: “Cuidado, Escola!”. Nele, os autores expõem críticas ao modelo de ensino vigente, que após poucas mudanças no decorrer dos anos, reproduz muitos problemas já conhecidos, até os dias de hoje.

Pensadores como Jean Piaget (1896 – 1980), Humberto Maturana (1928 -), Maria Montessori (1870 – 1952), Emmi Pikler (1902 – 1984), Vygotsky (1896 – 1934) e Frenet (1816 – 1900) estudaram a partir de suas áreas de conhecimento, o ensino. Não a pedagogia em si, mas a forma como uma criança é capaz de absorver conhecimento. Descobriram que não o fariam sentados em uma cadeira dura, olhando para a nuca de seus colegas e sendo obrigados a decorar a tabuada ou a gramática. Entretanto, desde seus momentos de pesquisa (vide suas datas de nascimento e morte), os métodos educacionais pouco mudaram.

São esses pensadores que despertaram a curiosidade e a necessidade de alguns para fazer diferente, somados à insatisfação de mães e pais com a sala de aula convencional.

Parte dos educadores interessados nesse novo fazer na escola se reuniu em 2013 na Conferência de Novas Alternativas de Educação (Conane). A partir do evento, alguns professores da Secretaria de Educação do Distrito Federal iniciaram um projeto e chamaram o educador português José Pacheco (criador da Escola da Ponte, localizada no Porto, e do Projeto Ancora, em São Paulo) para ajudá-los a tentar algo diferente para os estudantes de Brasília. JOSÉ PACHECO defende: “A escola são pessoas e as pessoas são seus valores. O que se deve exigir é o direito à educação”

ao zoológico e fizeram um bazar para custear a visita. No processo, aprendem matemática, fracasso e conquista. E valores maiores do que os monetários, acima de tudo.

Se o lugar do professor é o de transmitir conhecimento e o do aluno de absorver, a questão do interesse é prejudicada. Preocupados com o modelo escolar, Guilherme e Luiza Menezes resolveram educar as filhas em casa. “Crianças que são criadas com raiva de estudar, vão se transformar em pessoas que não querem adquirir conhecimento”, diz Guilherme. Eles são pais de Helena, 4 anos, e de Ana Beatriz, com apenas 5 meses.

Segundo eles, quando Helena está nas aulas complementares de equitação, inglês ou natação, a diferença entre ela e uma criança escolarizada é nítida. Não por ser mais inteligente, mas por prestar mais atenção. “Ela está sendo criada para exercer sua criatividade, sua inventividade”, diz Luiza. Eles acrescentam que veem a escola como uma empresa que serve às grandes corporações, direta ou indiretamente. As empresas têm interesse nas crianças e as escolas, por sua vez, têm interesse nas empresas. Neste triângulo, o estudante ganha o papel de ser treinado para servir ao corporativismo.

O aluno e a pedagogia

Para o psicólogo Léo Fraiman, as crianças passam hoje pela Síndrome do Imperador, gerada pelo narcisismo, medo e insegurança. Dos pais. Para Fraiman, os pais têm medo da frustração dos filhos e transferem à escola o dever de educá-los. Léo diz que os pais veem os filhos como seres que devem ser felizes “a qualquer custo”. Ou seja, seres que não podem se frustrar. “Tem dois erros. 1) Eu, pai, vou fazer você, criança, feliz, o que é impossível; 2) eu, pai, não sei o que é felicidade; e aí, o pai ou a mãe humilham a criança. Porque enquanto eles não estão deixando a criança crescer, eles estão imputando, estão colocando essa criança no papel de babaca, de fraco. Porque o oposto de autonomia é a apatia”.

Para a pedagoga Juliana Garcez, o psicólogo tem certa razão. Ela vê, como mãe e professora, que a educação se dá na interação social, que começa em casa e não na escola. “Um dos grandes problemas é que os pais não conhecem os filhos, hoje. Eles querem uma escola que faça o papel de pais. Cada qual tem sua responsabilidade”. Ela dá aula na escola Terra Brasil, em Atibaia (SP).

Segundo Juliana, sua sala de aula tem crianças com as mais diversas características e não é fácil educar. “Na minha sala ninguém senta olhando pra nuca de ninguém. A relação que eles têm é de aprendizado. Inclusive os problemas pelos quais passam. Eles são incentivados por mim a resolverem suas insatisfações e desentendimentos. Isso também faz parte da alfabetização”.

Alice Gwerk tem 10 anos e frequentava escolas tradicionais. Entretanto, sua mãe, Karina Gwerk, percebia que a criança não estava desenvolvendo suas potencialidades da forma ideal. Escolheu a Escola da Árvore e desde que foi matriculada lá, considera que a filha é outra pessoa. “Ela tem mais energia, adora vir pra cá e percebo que ela está abrindo a mente para coisas que não conhecia. Ela tem um professor passando pela transição da transexualidade. E levou isso numa boa”.

Educação aos olhos da lei

A CAP teve respaldo da Coordenação Regional do Paranoá e de seu coordenador, Isac Castro. Isac garante que não há divergência entre o que a Comunidade de Aprendizagem propõe e a Lei de Diretrizes e Bases 9394 (LDB), que regulamenta o sistema educacional público e privado.

Os três primeiros tópicos do Art 3º desta lei dizem que deve haver igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Sendo assim, o professor tem o dever e o direito, a partir da vivência dentro do espaço de aprendizado, de propor novas possibilidades, contanto que o nível de desenvolvimento do indivíduo esteja sendo alcançado.

A Escola da Árvore funciona há cinco anos e tenta cumprir todas essas normas em um novo formato, mas não tem sido fácil. O projeto entregue à Secretaria de Educação do DF não foi aprovado. “A LDB é clara e muito progressista. Nós estamos em sintonia com ela, mas quando chega na secretaria, eles querem exigir um esquema quadradinho, que é exatamente do que estamos fugindo. Para começar, o projeto que enviamos tem caráter político-pedagógico. Só isso já é barrado pela secretaria, pois escolas particulares não podem ter projeto político”, lamenta Nathália.

Em resposta, a Secretaria de Educação do Distrito Federal diz que apoia e incentiva propostas inovadoras que visem e favoreçam as aprendizagens dos estudantes, bem como o seu desenvolvimento como sujeito integral e, a exemplo, cita a Escola Classe Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (CAP). Sobre a Escola da Árvore, a Secretaria de Educação não se pronunciou.

Para Marina Teotonio, professora e uma das idealizadoras da CAP, está na hora de reformar a educação, para realmente permitir um novo modelo de construção do conhecimento. “Se sabemos que os alunos estão saindo da escola sem aprendizado e temos capacidade, como professores, de mudar isso, amparados pela lei, é isso que deve ser feito”, cobra.

As crianças do amanhã

Para José Pacheco, embora o mundo evolua para a cryptomoeda e inteligência artificial, os reguladores da educação, como ministérios e secretarias, estão parados no tempo. “Estão a preparar jovens para o século XIX, com um discurso do século XX, vivendo no século XXI. Este é o drama. Resultado? Homeschooling, baixas taxas de sucesso... Índice de proficiência abaixo de 10%. No Maranhão, a cada 100 jovens que saem do Ensino Médio, apenas 1 tem conhecimentos de português e matemática”.

Os novos modelos de educação buscam exatamente formar seres humanos para o mundo, o que passa também por cultivar uma horta ou mesmo meditar na escola. Ajudar os meninos e as meninas a entender que é no convívio e na relação que o aprendizado acontece. Ao dividirem o espaço escolar com indivíduos de diferentes classes sociais, culturas, credos, é possível abrir a visão para o mundo que os rodeia. Ao dividirem o lápis, estarão aprendendo a empatia, além da matemática. Ao serem ensinados a organizar e limpar o espaço onde convivem, se tornarão adultos conscientes do seu papel e da interdependência em tudo que os rodeia.

O que a reforma educacional desses pedagogos, professores e entusiastas da educação pretende é tirar a palavra “grade” do currículo. Substituir a palavra “ensino” por “aprendizado”, entender o indivíduo como parte do todo e não como ser individual. Esse é o princípio. E entre escola e governo, deveria haver um fim comum: formar seres humanos para continuar o progresso de si mesmos e das comunidades onde vivem.

HOMESCHOOLING, UM TEMA CONTROVERSO

Homeschooling ou educação escolar em casa, em tradução livre, é uma modalidade na qual os pais também são os tutores educacionais de seus filhos, mas a grade curricular permanece igual a uma sala de aula. Para cumprir as exigências da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), as crianças são matriculadas em supletivos, para conseguirem certificados ou em instituições a distância, como a Clonlara School, que presta apoio e acompanhamento às famílias e está em diversos países, como Estados Unidos, Bélgica, Canadá, Chile e Brasil, através do Programa de Aprendizagem Individual, que analisa o desenvolvimento das crianças a distância, inclusive com aplicação de provas. O Procurador do Banco Central, Alexandre Magno, entrou em contato com o homeschooling pela primeira vez quando ainda não tinha filhos e escreveu um artigo de nove páginas a partir de uma história de uma família que estava sendo processada pelo Estado, no interior de Minas Gerais, em 2008, por ter tirado seus filhos do colégio. No final de 2010, descobriu existir em Minas Gerais a Associação Nacional de Educação Domiciliar, da qual é Diretor Jurídico até hoje. A associação tinha uma estimativa de que em dez anos, 800 famílias aderissem ao ensino domiciliar. Atualmente, são aproximadamente 40 milhões de alunos na educação básica. Para Alexandre, no longo prazo é possível considerar que aproximadamente 400 mil crianças sejam educadas em casa. Isto é 1% do total de estudantes. “É relativamente pouco, mas em proporções absolutas isso é muito importante”, argumenta. De acordo com famílias entrevistadas, o principal motivo para tirar seus filhos de dentro do ambiente escolar é a forma como estes espaços lidam com a individualidade. Para os pais/tutores, seus filhos não estavam sendo vistos dentro da sala de aula e os ensinamentos dos pais dentro de casa estavam sendo confrontados com o que as escolas estavam oferecendo. A regularização para esse tipo de ensino é mais controversa e está sendo estudada pelo governo. Reuniões na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acontecem frequentemente para garantir as autorizações necessárias para a educação domiciliar.

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