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DO ZERO AO SONHO

EMANOEL VIROU estudante da UnB depois de cursar o Galt, preparatório gratuito para vestibular

Cursinhos pré-vestibulares gratuitos alavancam aprovação de estudantes de baixa renda nas universidades

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BRUNO TREZENA

Em 2014, no calor tropical da pequena e paradisíaca cidade de Fortim, a 200 quilômetros de Fortaleza (CE), o estudante Emanoel Ferreira, então com 22 anos, havia tomado uma decisão que mudaria sua vida pra sempre. Pegou suas coisas – um bocado de roupas simples e sapatos velhos – para rumar em direção à Brasília, a capital do Brasil e dos sonhos eternizados nas canções de Renato Russo.

Emanoel só tinha em mente o pequeno foguete artesanal que ainda guardava na pequenina casa de tijolos à mostra. Via naquele brinquedo seu novo objetivo: cursar engenharia aeroespacial na Universidade de Brasília (UnB). As dificuldades? Todas aquelas reservadas a um jovem pobre do interior do Nordeste que deixava tudo pra trás em direção a um grande centro urbano.

“Foi bem triste. Minha mãe era um choro só na soleira de casa”, recorda o jovem sob o sol escaldante da

cidade candanga. “A gente não tinha nada. Não tinha condições de tentar um vestibular porque nem vestibular eu sabia exatamente o que era. O professor da escola havia falado do Enem, mas só fez menção por alto. Havia estudado minha vida inteira em colégio público, mas não sabia como chegar onde eu queria.”

Após o desembarque em Brasília, o inferno começaria logo em seguida. Durante dois anos, Emanoel viveu na pele o bordão popular do "comer o pão que o diabo amassou". Sem dinheiro e vivendo de favor numa casa em Samambaia, o garoto precisou trabalhar fazendo bicos como ajudante de pedreiro, carregador de carne em açougue e lavador de louça em restaurantes. O esforço feito num dos ofícios chegou a machucar a coluna, o que o deixou sem poder trabalhar por um tempo. “Eu tinha que estudar para o vestibular e ao mesmo tempo ganhar um dinheiro. Mas era muito pouco, cerca de R$ 200 por mês. Ao trabalhar no açougue tive uma queda e o pedaço de carne caiu em cima de mim, me machucando. Dali em diante tudo piorou na questão financeira. Então tentava estudar ao máximo no tempo livre. Fiz isso por um ano, mas em vão. Não passei.”

A tristeza logo bateu e a vontade de desistir também, mas o deslumbre do sucesso veio no conselho de uma amiga que havia conhecido em Brasília. “Ela havia me falado do curso pré-vestibular Galt, que dava aulas preparatórias para alunos carentes e estava em fase de processo seletivo.” Emanoel foi, fez a prova para entrar no cursinho e passou. E foi ali que, definitivamente, tudo mudou.

Primeiro Emanoel conheceu Rubenilson Cerqueira, o idealizador do Galt, e logo se tornaram amigos. “O Emanoel era um grande rapaz nas nossas fileiras de estudo. Trabalhador, persistente, tinha passado por tudo que poderia arremessá-lo para longe de seu sonho, mas conseguiu chegar lá. É essa realidade que a gente tenta construir no curso. É dar a possibilidade da pessoa que não tem condições de custear um curso pré-vestibular privado se preparar tão bem quanto”, conta Rubenilson.

O fundador do Galt acabou apadrinhando o jovem de Fortim. “Teve um dia que ele quase desmaiou no curso. Estava com fome, cansado, virava noites estudando e sem dormir. Foi aí que nos chamou a atenção do quanto ele precisava de ajuda mais direta, personalizada. Alguns professores passaram a custear suas passagens de ônibus e outras coisas para que pudesse se manter no curso”, lembra.

E deu certo. Emanoel hoje ocupa uma das 40 cadeiras do curso de engenharia aeroespacial da UnB, e recebe uma bolsa-permanência no valor de R$ 900. O dinheiro é usado para pagar o quarto que divide numa república, no Gama, a passagem de ônibus e alimentação diária.

“Eu olho pros meus colegas de curso, vejo os prédios da UnB e fico meio bobo. É realizador, né? Depois de três anos e toda a ajuda do Galt, eu finalmente alcancei o sonho daquele garotinho do interior do Ceará que tinha um foguete de plástico.”

Realidade dura e horizonte em risco

A vitória do jovem cearense é exceção diante da atual situação do Brasil no campo educacional, em que pelo menos 10 milhões de jovens estão sem estudar (principalmente os de curso superior), de acordo com os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Em Brasília, o estudo Perfil da Juventude do Governo de Brasília, divulgado em 2017, revelou que 130 mil jovens estão nessas condições.

O doutor em sociologia pela Universidade Federal do Ceará e mestre em Ciência Política da UnB,

O IMPACTO SOCIAL DE TER CURSO SUPERIOR

As mudanças na desigualdade social com o ensino são gigantescas. Um relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) aponta que, se todas as crianças tivessem acesso igualitário à educação, nos próximos 40 anos, a renda per capita do país aumentaria em torno de 23%. O estudo vai adiante: se todas as mulheres tivessem acesso à educação básica, os casamentos precoces e a mortalidade infantil poderiam diminuir em um sexto, e a mortalidade materna em dois terços. Quanto ao curso superior, há impacto direto na busca por soluções para os problemas ambientais, por exemplo. Pessoas com maior nível de escolaridade têm maior probabilidade de usar energia e água de formas mais eficientes e reciclar o lixo doméstico. Segundo a Unesco, em 29 países desenvolvidos, 25% das pessoas com nível educacional menor do que o secundário expressaram preocupação com o meio ambiente, em comparação aos 37% das pessoas com ensino secundário e 46% com ensino superior. Políticas públicas de incentivo são caminho O Mapa do Ensino Superior no Brasil de 2017, divulgado pelo Sindicato das Universidades Privadas de São Paulo, mostra que aumentou a proporção de alunos concluintes no ensino superior privado nas faixas de renda inferiores a três salários mínimos e de jovens pertencentes as classes C e D na comparação com o estudo anterior. Uma das causas é o Fies e o crescimento econômico que houve na última década (até 2015). A gestora do curso Galt, Bruna Lisboa, enfatiza a necessidade do trabalho voluntário no acesso ao curso superior. “Infelizmente, a educação pública, de forma geral, não se compara com a educação privada, em termos de preparação para as provas de ingresso ao ensino superior, refletindo no acesso desses alunos a faculdades e universidades. Por isso que é importante o trabalho voluntário de cursos, como o nosso.”

Erle Cavalcante Mesquita, aponta que esse segmento social está mais vulnerável ao "canto da sereia" sobre sensação de poder e do “ganho fácil” do mundo do crime. “Apesar de não poder fazer uma correlação direta dos que estão fora das salas de aula e a criminalidade, não é difícil fazer essa análise de que há um risco, sim.”

Ainda segundo Erle, esse cenário pode piorar com as atuais políticas reformistas do governo Temer. “O Teto de Gastos constitucional impede maiores investimentos em educação, por exemplo, por 20 anos. Como chegar até esses jovens sem políticas de inclusão ou de incentivo ao curso superior?”

A posição do professor é corroborada com a do coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara. “A diminuição de investimentos na educação pública é um problema porque o Estado também precisa garantir o acesso à educação. Se não for no preparatório pela escola pública, ao menos na manutenção dos programas sociais de incentivo à permanência desses alunos no ensino superior privado, como Fies e ProUni.”

As regiões administrativas de Fercal (29%), Itapoã (27%) e Recanto das Emas (27%) lideram o ranking das cidades-satélite com maior número de jovens que nem estudam e nem trabalham. Segundo o Perfil da Juventude, a maioria dos chamados “nem-nem” é negra (23%) e possuem entre 18 e 24. O mesmo ocorre no Centro-Oeste, tendo pelo menos 19% da população sem acesso ao estudo de uma forma geral. No Brasil, o número ganha uma dimensão assombrosa: 10 milhões de jovens.

“Este é o fantasma recorrente da evasão e do abandono escolar rondando as periferias, fatores já comprovados de estímulo à violência e à criminalidade. Precisamos retomar a capacidade de fazer com que os nossos jovens sonhem com uma vida melhor. Onde há sonhos, há esperança. E onde há esperança a vida sempre terá a última palavra”, finaliza Erle.

O cabelo loiro escorrido entre os ombros balança ao vento da W3 norte como um balé. O corpo escultural chama a atenção dos motoristas e revela logo a bela Melissa Massayuri, de 28 anos, uma amazonense que reside em Brasília há dois. A jovem transexual chegou na cidade certa de que queria mudar seu destino, talhado na dor do preconceito e das escolhas feitas nos últimos tempos. “Saí de casa muito nova para viver minha transexualidade sem conflito direto com minha família, o que foi muito difícil para mim. Mas no meio do caminho acabei fazendo programas sexuais e levando isso como meio de vida, porque meus contatos mais íntimos, as amizades, eram no mundo da prostituição. E como estava longe de casa e frágil emocionalmente, aconteceu. Um tempo atrás isso bateu na minha cabeça que uma hora tudo ia acabar. Eu não podia continuar me prostituindo, sem uma faculdade, sem um trabalho fixo e uma renda que me atendesse na velhice.”

Foi aí que Melissa resolveu ingressar em uma universidade. “O jeito foi recorrer aos estudos em apostilas on-line e cursos gratuitos que a gente encontra na internet, mas tive grande ajuda voluntária de uma professora de matemática, mãe de uma amiga. Passava meus dias estudando entre um cliente e outro, fazendo exercícios ligados ao

“É essa realidade que a gente tenta construir no curso. É dar a possibilidade da pessoa que não tem condições de custear um curso pré-vestibular privado se preparar tão bem quanto" Rubenilson Cerqueira, criador do Galt Vestibular”

Enem. Sempre focada.” O alvo da jovem era Direito, um dos cursos mais concorridos do país em qualquer universidade pública. “Era tudo ou nada”, recorda.

O resultado brilhou na tela do computador meses depois, quando chegou o resultado do Enem. Ela optou por uma faculdade particular da cidade, onde possui bolsa de 50% pelo Fies. Foi aí que Melissa havia percebido que a vida começava a mudar drasticamente. “Ao entrar no curso superior, vi que tinha muitos direitos que não conhecia e comecei a aplicá-los no meu dia a dia.” Assim veio o primeiro uso de nome social na faculdade. “A universidade não tinha a prática de adequar a identificação de uma trans ao nome social. Comigo as coisas começaram a mudar. Expliquei as legislações e fiz os pedidos formais para o uso dele. E deu certo! Não houve resistência. É como se a minha entrada na faculdade também transformasse o espaço. É enriquecedor.”

Melissa fez o primeiro trabalho na área advocatícia como estagiária no escritório da ONU para Direitos Humanos. Foi ali que ela se aproximou da militância política. “Eu me apaixonei pelo mundo de conhecimento e informação que se abriu para mim. Na ONU pude entender que há muito o que se fazer neste campo, principalmente com a população LGBT no que tange seus direitos mais simples.”

BRUNA, GESTORA do Galt Vestibular, aponta que a iniciativa é importante para a desigualdade nas universidades

Do estacionamento para a UnB

Se você passasse por José Mário Silva dos Santos, de 54 anos, num dos estacionamentos do Plano Piloto, provavelmente acharia que o maranhense era apenas um flanelinha a tentar ganhar alguns trocados. Mas olhando mais a fundo sua trajetória de vida, José Mário impressiona qualquer biografia famosa.

Depois de décadas sem estudar e passar pelas cidades de Recife e Rio de Janeiro tentando sobreviver e ganhar a

GDF TAMBÉM TEM PREPARATÓRIO GRATUITO PARA VESTIBULAR

Há três anos, os estudantes carentes de Brasília também podem contar com a ajuda do programa #BoraVencer, com “aulões” gratuitos focando o Enem e o vestibular. A criação do projeto veio a partir de uma demanda da Conferência Distrital de Juventude de 2015 para o Governo de Brasília, que diagnosticou a falta de políticas públicas locais para essa demanda. Desde então, ao menos 700 alunos já conseguiram aprovação em faculdades públicas do DF e mais de 10 mil estudantes tiveram essa ajudinha extra com aula intensiva. Só em 2017, o programa representou 8% dos aprovados na UnB. Os encontros são feitos geralmente em locais de grande aporte de público, como o Centro de Convenções Ulisses Guimarães, no Plano Piloto.

A ESTUDANTE transexual, que se prostituía, virou militante de Direitos Humanos depois de ingressar no curso de Direito

vida, o vigia de estacionamento cumpre hoje jornada acadêmica na UnB, no curso de Gestão Ambiental. “É uma felicidade imensa olhar pra trás, ver tudo que passei, e me ver na UnB.”

Vivendo há 9 anos numa casa de Planaltina emprestada por um amigo, José conta que resolveu provar a si mesmo que poderia voltar a estudar. “Via livros e cadernos jogados por aí, às vezes no lixo, e pegava pra ler. Tinha curiosidade. Tinha vontade de voltar a me desenvolver intelectualmente.” O jeito foi tomar coragem e pedir uma vaga num cursinho da cidade, o MFE. “Cheguei e disse que queria estudar para passar na UnB. Óbvio que não me levaram a sério, mas acabaram me dando pouco mais de um mês de bolsa.”

O primeiro resultado foi uma boa classificação para o curso de Geografia numa universidade do Goiás. Os professores notaram logo o esforço do maranhense e decidiram estender a bolsa de estudos. O resultado veio em 2014, quando se classificou entre os 4 mil aprovados no vestibular da UnB. “O trabalho do cursinho foi fundamental para que eu conseguisse. Eu queria me reintegrar ou por meio do vestibular ou por meio de um concurso público. Tenho a sensação de dever cumprido.”

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