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ESTE LUGAR TAMBÉM É MEU

Negros precisam enfrentar a discriminação ao ocupar espaços na escalada para as camadas mais altas da pirâmide social. Produto do nosso legado histórico, um dos obstáculos para resolver o problema do racismo é a negação por muitos de que ele existe

ADELAIR ALMEIDA

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Ela vai ao restaurante, senta-se sozinha e pega o cardápio. Após decidir o que pedir, chama o garçom. Então veio a pergunta: “você já viu o preço desse prato?”. Andréa Santos é negra, mora em Salvador (BA) e costuma questionar este tipo de abordagem, mas resolveu apenas responder que sim. Ela entendeu que o garçom, também negro, apenas reproduziu o que aprendeu ao longo da vida: “a imagem do belo, de quem tem condições financeiras, de quem tem condições de consumo e conhecimento, no imaginário, é branco. Preto é pobre”.

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”. O artigo 5º da Constituição

pressupõe o princípio da isonomia: todos têm os mesmos direitos. Mas a realidade e os números mostram que isto ainda está longe de ser experimentado pela população negra. Negros são maioria entre os mais pobres e também na população em geral, mas minoria entre as classes mais altas. E os que ascendem socialmente sofrem preconceito e são vistos com estranheza em locais de elite, ainda hegemonicamente branca. Contudo, apesar de haver uma longa caminhada adiante, as políticas públicas e outras ações afirmativas permitem vislumbrar um futuro favorável.

Há uma crença em grande parte dos brasileiros de que vivemos em um país racialmente democrático. Kelly Quirino, doutora em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), diz que isto se deve à forma como Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala, explicou as relações entre brancos e negros durante a nossa colonização. “Ele interpretou de uma forma como se não tivesse tido violência. Interpretou de uma forma como se as relações fossem harmônicas, entendeu? Como se o português fosse benevolente porque o português estava disposto a transar, benevolente porque o português estava disposto a ter os negros de casa, tratava os negros de casa como, entre aspas, parte da família”, afirma Kelly. É uma fala repetida ainda hoje, quando ter o negro empregado doméstico comendo na mesma mesa é argumento utilizado para justificar ausência de racismo.

Democracia racial?

Mário Theodoro, doutor em economia pela Universidade de Sorbonne, na França, diz que, para Gilberto Freyre, “aqui era uma sociedade multirracial, em que todo mundo convivia bem, era o paraíso das raças, e no futuro a gente ia ter uma mistura tão grande que seria uma raça superior porque teria o que tivesse de melhor de cada uma das três raças”.

Isto não impediu o surgimento de teorias racialistas, que declaravam que negros eram degenerados. "(Havia) as teorias de Lombroso, que os negros são mais propensos a cometer criminalidades por causa da sua morfologia. E isso é muito forte. Com Nina Rodrigues, por exemplo, que era um professor de medicina em Salvador, ele vai atestar que o branco se misturar com o negro, os descendentes são degene - rados”, relata Kelly. Para ela, que atuou como tutora do Curso de Especialização em Políticas Públicas de Gênero e Raça na Faculdade de Educação da UnB, o que há de positivo em Casa Grande e Senzala é o rompimento com a radicalização de degeneração “por que ele escolhe o mestiço e fala: o mestiço tem valor, o mestiço é muito importante”.

O problema é que esta valorização gerou para o mundo a falsa imagem de que no Brasil todas as raças são iguais, pois aqui não houve um apartheid institucionalizado. Kelly conta que, quando a ONU foi criada em 1945, os outros países não queriam reproduzir as atrocidades do nazi-fascismo e nos viram como modelo. “Onde não tem racismo? Brasil! Porque a gente exportou pro mundo o modelo da democracia racial”.

O fim da escravidão não deu ao negro a possibilidade de ocupar seu espaço na sociedade. Além de não ter acesso à educação, ele não teve direito à terra. Theodoro, coautor do livro “As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição”, afirma que o discurso oficial do rei de Portugal para os senhores proprietários de terras era o seguinte: "Dê para os homens bons, mas que não sejam homens negros”. E o crescimento das cidades e das indústrias também não colaborou. “A ideologia do branqueamento fez com que você trouxesse de fora os imigrantes pra ocupar os espaços nas indústrias, e o negro que era escravo passou a ser informal”.

A dificuldade de o negro ascender socialmente e o fato de ser discriminado nos espaços ocupados por maioria branca são frutos dessa desvantagem histórica. Marilaura Ferreira é professora de história e trabalha na Secretaria de Educação do Distrito Federal. Filha de médico negro, morou alguns anos em Minas Gerais, onde relata que foi vítima de preconceito quando alguém chamava uma pessoa da casa na porta e ela ia atender. “Uma vez aconteceu isso e aí eu gritei minha mãe. Meu pai estava chegando de carro do hospital. Ele saiu do carro todo de branco, a pessoa levou um susto, né? Uma casa enorme, de dois andares, uma casa bem grande, meu pai entrando todo de branco e com a maleta”. “A gente não vai conseguir romper o racismo se não fizer com que as pessoas brancas tenham consciência dos seus privilégios”

Kelly Quirino, doutora em comunicação redemoinho . ano 09 . número 14

MÁRIO THEODORO acredita em um futuro melhor para a população negra

MESMO EM Salvador, uma cidade de maioria negra, Andréa Santos sofre racismo

KELLY QUIRINO diz que a autoestima da pessoa negra deve ser trabalhada desde a infância

Situações

A engenheira de alimentos Raquel Vilharva é negra e a filha dela é branca. A pergunta “você é babá?” é frequente quando está com a criança. “Quando eu tava de licença-maternidade com a Marina a gente ia muito ao parque de Águas Claras e as pessoas nunca confirmavam assim: ‘poxa sua filha...’. Não. ‘Ah! Você cuida dela? Você é babá dela?’. Eu falava assim: ‘não... é minha filha’. Isso já aconteceu aqui no meu prédio, em vários lugares”.

Por causa do seu emprego na Agência de Promoção das Exportações Brasileiras e Investimentos (APEX), ela faz muitas viagens a serviço e conta que por diversas vezes foi parada em aeroportos e ouviu questionamentos que não foram feitos a outros passageiros. “Nós viajá

vamos de executiva e aí, numa dessas viagens, a gente estava na fila e veio um rapaz da companhia aérea e me perguntou pelos meus bilhetes e perguntando: ‘a senhora vai viajar por qual categoria?’ Eu falei ‘Executiva’. E ele pegou o bilhete, ficou lendo, e ele olhava pra mim, ele olhava pra o bilhete, sem acreditar. E aí o meu colega pegou o bilhete e disse ‘rapaz’ e botou o dedinho em cima da palavra ‘Business. Business’”. Raquel foi a única pessoa questionada na fila. O colega ficou mais indignado que ela, que já está “acostumada” com este tipo de situação. “Sempre acontece alguma coisa comigo de me pararem... E eu já observei muitas vezes que se o meu cabelo tá solto aí é que pode acontecer mais”.

Os números demonstram a grande diferença de ganho salarial entre brancos e negros. O IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - realizou um estudo chamado “O Retrato das desigualdades de gênero e raça”, no qual disponibiliza informações sobre as desigualdades de gênero e raça no Brasil de 1995 a 2015. Os indicadores são do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, fornecidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O gráfico de rendimento médio mensal mostra a renda de brancos e negros, de 1995 a 2015.

Mesmo o rendimento das mulheres negras sendo o que mais cresceu, é possível notar a manutenção da mesma ordem por todo o período, do maior para o menor: homens brancos, mulheres brancas, homens negros, mulheres negras.

A falta de negros em ambientes de trabalho melhor remunerados é constatada por Marilaura. Com cerca de 300 funcionários, “no andar onde eu trabalho, se tiver três ou quatro negros, tem muito”. E dentro das organizações, quanto maior o nível hierárquico, menor a proporção de negros. Em 2016, o Institu- “Tem gente com discurso idiota: ‘se eu for atendido por um médico cotista eu não quero ser atendido’. Como se a cota fosse para sair. Ninguém sai por cotas” Mário Theodoro, doutor em economia

GABRIEL SAMPAIO foi o primeiro negro a assumir o posto de ministro da Justiça

MARILAURA FERREIRA já foi questionada pelo gerente do banco por estar na fila de conta especial

RAQUEL VILHARVA faz muitas viagens a serviço e é parada em aeroportos com frequência

to Ethos de Empresas e Responsabilidade Social publicou o estudo “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas”. A pesquisa mostra que os negros ocupam penosos 6,3% das gerências, 4,7% do quadro executivo e 4,9% do conselho de administração. A informação ainda mais é assustadora, quando comparamos com os dados do IBGE da mesma época, quando negros somam 54% da população do país.

Para Theodoro, as corporações vão refletir o racismo da sociedade. “Uma sociedade secularmente racista ela forja instituições racistas. As instituições pra funcionarem numa sociedade racista têm que ser racistas porque senão elas vão de encontro ao estabelecido”.

Marilaura já sofreu discriminação em uma instituição bancária. “Eu cheguei ao banco e entrei na fila. A fila era conta especial e aí o gerente saiu de lá da cadeira dele e veio direto falando comigo o que eu queria, o quê que eu estava fazendo, eu fiz: ‘eu vim fazer serviço de banco pro meu pai'. E ele: ‘quem é seu pai?’ Eu: meu pai é o dr. Adir. Aí ele mudou: ‘Ah! Você é filha do dr. Adir? Você quer que eu faça pra você, quer que adiante?’”, conta. Theodoro reforça que as organizações não funcionam de forma igual para todos, e “a polícia é uma pra o negro outra pra o branco. O banco é um pra o negro outro pro branco. O Judiciário é um pra o negro outro pro branco. O Senado é um pra o negro outro pro branco”.

Representatividade

Contar com pessoas negras em postos de poder é primordial para o combate ao racismo. “É importante a gente ter representatividade. A nossa autoestima é tão deteriorada, tão violentada, tão alijada, que a gente acha que não pode fazer nada”, diz Kelly. Ocupar estes espaços mostra a outros que é possível. Ela ressalta que o preconceito não é uma questão exclusiva do capitalismo e usa como exemplo Cuba, onde “os negros, de pele escura, ainda têm os piores indicadores econômicos, mesmo num governo socialista. Eles têm acesso à educação, eles têm acesso à moradia, à alimentação, mas eles sofrem o racismo”. Ou seja, mesmo com a questão da condição social muito relacionada ao racismo, devido à prevalência de negros nas classes mais baixas aqui no Brasil, ela não pode ser considerada o único problema. “A questão é você ser negro. Porque, num lugar socialista, que as pessoas, em tese, têm as mesmas condições de educação, de saúde, etc. você é alijado dos postos de poder por você ser preto. O alto escalão cubano poderia ser majoritariamente preto, e não é”, afirma a doutora em comunicação.

Gabriel Sampaio é advogado e foi ministro da Justiça interino em 2015, assumindo o posto em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Ele concorda com Kelly sobre como as características físicas pesam quando uma posição como esta é ocupada por um negro. “O que fica mais evidente quando a gente começa a acessar espaços onde tradicionalmente nós não ocupávamos é notar que, do ponto de vista do fenótipo, as pessoas não se identificam com aquilo que você representa. Em geral as pessoas não estão acostumadas a lidar com pessoas negras nesses espaços”, constata. E para ele a chance de

NO MERCADO DE TRABALHO

ocupar este espaço deve carregar o comprometimento de ser um agente de transformação. “Acho muito importante ter tido essa oportunidade e ocupado esse espaço. E mais do que isso, é ocupar o espaço trazendo uma mensagem. Ocupar o espaço carregando compromissos com essa mudança da estrutura da sociedade que a gente vive. Estar no espaço e reproduzir essa estrutura, refuso como não tão válido”.

Um novo tempo

“É importante que a luta do racismo não seja só dos negros; tem que ser de toda a sociedade. A gente não vai conseguir romper o racismo se a gente não conseguir fazer com que as pessoas brancas tenham consciência dos seus privilégios”, declara Kelly. Outro ponto a ser trabalhado é a autoestima da pessoa negra desde criança. Conforme Kelly, “mostrar pra ela que ela tem condições, porque isso que nos é negado”. Esta foi a preocupação da mãe de Andréa durante a educação dela e de seus irmãos. “Minha mãe sempre fez um trabalho grande de estar dizendo que a gente tinha valor, que a gente era bonito, de trabalhar sempre nossa autoestima”. Isto foi muito significativo na sua formação e ela foi a primeira da família, tanto materna quanto paterna, a ingressar na universidade.

A aplicação de políticas públicas afirmativas também é necessária para um futuro menos desigual e com mais negros no topo da pirâmide social. Com experiência como conferencista em temáticas de direitos humanos, Gabriel afirma: “Se você não investe numa forma de lidar com essa problemática que envolva desde a integração econômica, políticas de cotas, políticas de incentivo, até o empreendedorismo negro como formas de reverter estereótipos que são construídos pelo Estado, você não vai atingir o objetivo de maior integração e maior diversidade nos espaços”.

Examinando os dados da educação revelados no estudo do Ipea, é gritante a distorção que o sistema de cotas almeja diminuir. O percentual de negros no ensino superior passou de 5,5% para 12,5% entre 2005 e 2015. Porém, o patamar alcançado em 2015 pelos negros ainda é inferior ao dos brancos em 2005, que era 17,2%. E o da população branca nestes dez anos aumentou para 25%.

O sistema de cotas provoca muitas discordâncias por conceder um privilégio a quem antes não tinha acesso à universidade. Theodoro prevê que haverá uma briga muito grande ”porque você vê, por exemplo, tem gente com discurso idiota: ‘se eu for atendido por um médico cotista eu não quero ser atendido’, como se a cota fosse pra sair. Ninguém sai por cotas. Ninguém vai receber nota melhor por ser cotista. Ao contrário: os professores até perseguem mais”. Mesmo assim, ele acredita que estes novos profissionais vão superar os obstáculos e vencer. “Eles vão se impor como grandes profissionais que são. E a sociedade vai ter que aceitar. Não tem jeito”.

NA ESCOLA

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