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RESISTÊNCIA CULTURAL NA PERIFERIA

OPÇÃO CULTURAL oferecida gratuitamente no Espaço Imaginário Cultural em Samambaia

Comunidades se organizam para criar espaços cênicos e fomentar a produção teatral nas Regiões Administrativas do DF

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LARISSA SARMENTO

Domingo, cinco da tarde. Cerca de 50 pessoas, entre elas muitas crianças, assistiam ao espetáculo teatral dos palhaços do Circo Teatro Artetude, no espaço Imaginário Cultural. O local funciona como centro cultural desde 2013 na QS 103 de Samambaia Sul e oferece à comunidade espetáculos, oficinas, shows e saraus.

Entre os espectadores, estava a servidora pública Liliana Vieira de Andrade, 42 anos, que levou o filho João Gabriel Vieira dos Santos, de 6 anos, e a irmã Marta Andrade. Liliana frequenta o local há mais de cinco anos e faz os cursos que são oferecidos, como de técnica vocal e de teatro. “É uma oportunidade porque são oficinas gratuitas, é um momento pra comunidade mostrar seu talento”, conta a servidora, que se descobriu poeta frequentando os saraus de Samambaia.

Para Liliana, que mora a poucos metros do Imaginário, é uma ótima opção de cultura e lazer para levar o filho. “Quando a criança tem acesso à arte desde pequena, fica com a mente aberta, passa a respeitar mais as pessoas, e aprende a lidar com as diferenças.”

Espaços culturais como o Imaginário são escassos no Distrito Federal.

Os aparelhos culturais públicos voltados para apresentações cênicas na capital estão, em sua maioria, concentrados no Plano Piloto. De acordo com a plataforma de georreferenciamento de agentes, espaços e ações culturais da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, Mapa nas Nuvens, há 32 teatros entre públicos e privados cadastrados. Destes, 19, mais da metade, estão localizados no Plano Piloto.

Ao se distanciar desse centro, que concentra a maior parte das opções culturais de Brasília, têm-se a impressão que são escassas as possibilidades de entretenimento e arte. Contudo, as chamadas Regiões Administrativas, mais conhecidas como cidades-satélites, estão fervendo de movimentos culturais e coletivos de artistas. Porém, não é fácil encontrar um local para apresentações cênicas na periferia. Nesse contexto, alguns grupos de teatro sentiram a necessidade de ter um espaço devido à falta de lugar para ensaiar, oferecer cursos e fazer apresentações, de aglutinar grupos e movimentos artísticos.

Assim nasceu o espaço Imaginário Cultural, além de outros, como o Galpão do Riso e Semente Cia de Teatro, que reformaram e revitalizaram áreas públicas anteriormente ociosas, por meio de cessão de uso. Também na tentativa de suprir essa carência, surge em Planaltina, dentro de uma área residencial, o miniteatro Lieta de Ló.

No espaço do Imaginário Cultural, por exemplo, funcionava um centro comunitário desativado, que só contava com um vigilante. Segundo a coordenadora do espaço, Marília Abreu, esse patrimônio ficava vazio. “Quando chegamos aqui, transformamos o lugar, no sentido de trazer vida. Samambaia não tinha equipamento público cultural.”

O grupo já funcionava desde 2011 em outra quadra de Samambaia, mas viu ali um potencial. Então fecharam com a Administração Regional uma ocupação por meio de cessão de uso do espaço.

Espaço Imaginário Cultural QS 103 Conjunto 5 Lote 5 Samambaia Sul Capacidade para 100 pessoas

Galpão do Riso QS 405, Área Especial 2 Samambaia Norte Capacidade para 160 pessoas

Miniteatro Lieta de Ló Rua Hugo Lobo, Quadra 46, Lote 3A, nº790, Setor Tradicional 40 lugares

Plano Piloto Teatro Goldoni, Teatro Ocina Perdiz, Espaço Cena, Teatro Mapati, Teatro Bar, Teatro Goldoni, Casa dos 4, Coletivo Janela

Espaço Semente Cia de Teatro Quadra 52/54, AE, S/N, Projeção 2, Setor central 90 lugares

“O objetivo da maioria dos grupos de teatro é ter um lugar pra chamar de seu, onde a gente possa fazer nossos ensaios, apresentações, receber artistas, realizar essas trocas e trabalhar com a formação”, completa.

Marília fala que sentiu a necessidade de ter um equipamento público na cidade para reunir os movimentos artísticos. “A gente sempre funcionou como um aglutinador.” O espaço oferece oficinas, quase sempre gratuitas, de teatro, técnica vocal, hip hop, ginástica, capoeira, danças populares, teatro de bonecos, iluminação e cinema.

O grupo tem conseguido sobreviver por meio de editais de fomento, mas para a coordenadora o maior desafio não é a manutenção do local. O desafio é conseguir uma efetiva participação da comunidade. “Hoje, a nossa maior luta não é a captação de recursos, mas, sim, o engajamento do público de Samambaia”, ressalta Marília.

Em Samambaia Norte a história não foi muito diferente. Com a mesma dificuldade de ter um espaço para ensaiar, o grupo Nutra Teatro buscou um local para estabelecer sede e desenvolver o trabalho de laboratório de palhaços. Com esse propósito, solicitaram a cessão de uso de outro centro comunitário ocioso na região.

Esse processo deu forma ao Galpão do Riso, em 2011. Além desse apoio, o grupo contou com recursos

do projeto Pontos de Cultura do governo federal. Dessa forma, conseguiram revitalizar a área que, segundo Nilton José de Oliveira, 60 anos – morador da casa em frente –, era infestada de ratos.

O vizinho relata que a ocupação foi positiva por causa da limpeza e por trazer opções para a comunidade, principalmente para as crianças. “É bom porque o circo deu outra cara para vizinhança. Áreas abandonadas acabam sendo ocupadas por usuário de drogas”, completa.

Hoje o espaço serve não só para apresentações do grupo, mas também para ensaios e oficinas, além de oferecer um Projeto de Extensão de Ação Contínua – vinculado ao Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília.

O fundador do Galpão do Riso, João Porto Dias, comenta que o local não serve apenas para o grupo residente. Ao promover as oficinas, acaba gerando vínculo com outros artistas, que passam também a utilizar o espaço para ensaios e montagens de espetáculo. “O Galpão promove isso, gera uma economia solidária de sobrevivência do trabalho artístico. Se forma uma rede de artistas.”

Para Paula Sallas, integrante do grupo, a ideia é promover o intercâmbio e a troca. A atriz relata que um dos problemas do espaço é a questão do público local. “Ainda há uma dificuldade de encher uma plateia nessas regiões administrativas porque não existe o hábito de frequentar o teatro”, destaca.

Público cativo em Planaltina

Lieta de Ló é um miniteatro em Planaltina que não passa por esse problema de público. Localizado a 44 quilômetros da rodoviária do Plano Piloto, existe há seis anos e conta com audiência cativa. Preto Rezende, professor de teatro e fundador do espaço, fala que o teatro de 40 lugares sempre fica cheio quando tem espetáculo. “A gente quase não divulga porque lota”, comemora.

Segundo o professor, basta acionar os frequentadores, por meio de grupos de WhatsApp e redes sociais. Muitos moradores vão assistir aos espetáculos sem saber o enredo, pois confiam na curadoria do espaço.

Para Preto Rezende, esse trabalho de formação de plateia é anterior à inauguração. Antes de o miniteatro ser construído por seu pai no terreno da família, Preto ensaiava com o grupo Senta Que o Leão É Manso em garagens e embaixo de pés de manga. A companhia – que existe desde os anos 80 e conta com mais de 20 integrantes e quatro diretores – usava uma área da administração para se apresentar e, assim, foi criando um hábito na comunidade de assistir às peças.

Para o advogado Wálteno Marques da Silva, 65 anos, vizinho do miniteatro que fica a menos de um quilometro de sua casa, o local traz a oportunidade da oxigenação cultural na cidade. Ele diz que é um privilégio ter um teatro na porta de casa. “Sempre que as peças estão em cartaz, eu e minha esposa assistimos.”

Formação de plateia no Gama

A fila na porta do teatro Semente no Gama, em pleno domingo à tarde, chamava atenção pela quantidade de jovens. Essa é apenas a primeira sessão do espetáculo Maré Cheia. O espaço adaptado para receber apresentações teatrais conta com 90 lugares acolchoados, refletores e equipamento de som. Tudo isso é fruto do trabalho do professor de artes Valdeci Moreira.

O espaço público estava há 16 anos abandonado. Ele transformou o ambiente, reformou e levou seu grupo Semente Cia de Teatro, que deu nome ao lugar. Proporcionou também oficinas teatrais e espetáculos para a comunidade.

“Esse espaço, que era invisível para comunidade do Gama, se tornou visível depois que ocupamos com arte. Era um local de prostituição, tráfico de drogas, e virou um local artístico”, conta Valdeci.

O professor afirma que vem gente do Plano Piloto, Ceilândia, Taguatinga, de todas as regiões de Brasília. Para ele, “Ainda há uma dificuldade de público nessas

Regiões Administrativas porque não há o hábito de frequentar o teatro”

Paula Sallas, atriz do grupo Nutra Teatro ALUNOS E ex-alunos do diretor Valdeci Moreira frequentam o Teatro Semente no Gama

MINITEATRO LIETA de Ló, construído no terreno de casa, tem público cativo em Planaltina

está havendo uma inversão de fluxo. “O espaço Semente está fazendo uma coisa diferente: eu não tenho que ir para o Plano apresentar minhas peças, as pessoas vêm de lá assistir.”

No entanto, constata que poucos moradores do Gama vão assistir às apresentações. Segundo ele, o trabalho de sensibilização artística nas escolas é de suma importância. Por isso trabalha há cinco anos na Secretaria de Educação como professor de teatro e sempre leva o universo das artes cênicas para seus alunos.

Além do trabalho nas salas de aula, Valdeci também ministra uma oficina livre de teatro há mais de 10 anos. Hoje, esse curso acontece no Espaço Semente e conta com 100 inscritos.

Com adaptações teatrais de obras da literatura brasileira, Valdeci sensibiliza muitos jovens e acaba transformando vidas. Ele conta que 13 de seus alunos estão na Universidade de Brasília, sete deles fazendo Artes Cênicas. “Os estudantes se tornam o público que vai consumir arte amanhã.”

Manutenção dos espaços

Entre as políticas públicas que ajudam a fomentar esses espaços, o Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria de Cultura, criado em 1991, oferece apoio financeiro a projetos como filmes, peças de teatro, CDs, DVDs, livros, exposições, oficinas e inúmeras circulações artísticas. O GDF destina 0,3% da receita corrente líquida para o fundo.

Anualmente, o FAC lança os editais de fomento de acordo com áreas de atuação. Para espaços culturais, existem os editais de manutenção de grupo e manutenção de espaços, de acordo com o subsecretário de Fomento e Incentivo Cultural, da Secretaria de Cultura, Thiago Rocha.

Segundo o subsecretário, o edital passou por algumas transformações nesta gestão. Para ele, a de maior ganho é a regionalização, que consiste em contemplar projetos e artistas de acordo com a região onde vivem. Ele fala que essas alterações no fundo de apoio são fruto de debates com a comunidade artística local.

O subsecretário explica que a ideia é fazer com que haja um rodízio maior entre as pessoas que são contempladas, que não sejam sem“No mundo capitalista em que estamos inseridos, uma grande ferramenta de desenvolvimento humano é a arte” maestro Rênio Quintas

pre os produtores culturais do Plano Piloto a aprovarem os projetos que serão levados para as Regiões Administrativas. “A ideia é empoderar os agentes artísticos do local.”

Produtora cultural há 10 anos, Ana Paula Martins já montou espetáculos na maioria desses teatros. Ela diz que quando vai apresentar nesses espaços percebe que o público geralmente é de pessoas que já são envolvidas com arte. “Para garantir público, nós convidamos os estudantes das escolas públicas para assistir aos espetáculos, mas infelizmente a maioria nunca teve contato com teatro.”

Na visão da produtora, os fomentos culturais do governo acabam sustentando os lugares, mas ainda faltam espaços públicos culturais ou incentivos para os independentes. “Pagar um dia de apresentação num teatro é muito caro. Tem teatro em Brasília que custa R$ 6 mil a diária.”

Luta por políticas públicas

Participando das lutas por direitos artísticos na capital desde 1999, um dos coordenadores do Fórum de Cultura do DF, o maestro Rênio Quintas, avalia que esses espaços são fundamentais para a ampliação do acesso à cultura. “Cada espacinho desse é uma centelha de inteligência”, completa.

Na visão do maestro, ainda falta muito da parte do governo, como políticas públicas específicas de formação de plateia e a construção de espaços públicos culturais nessas regiões.

Rênio acredita que Brasília esteja vivendo um momento cultural “catastrófico”. Palcos importantíssimos e icônicos para cidade, como o Teatro Nacional Cláudio Santoro e o Espaço Cultural Renato Russo, estão fechados para reformas. O maestro acredita que, para os governos, não existe uma prioridade em relação às questões culturais e reafirma a importância do teatro. “Se você tem teatro, você tem fruição cultural, você tem troca, diversidade, você pode apresentar para o público uma coisa nova. No mundo capitalista em que estamos inseridos, uma grande ferramenta de desenvolvimento humano é a arte.”

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