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MEIO NERD É DESAFIO PARA MENINAS

À mulher, durante muito tempo, foi reservado o papel de interesse amoroso dos heróis, a gostosa dos games ou a esquisita da escola. O machismo refletido no meio nerd não é falácia, é real e atual

DÁVINI RIBEIRO

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Nerd. O que vem à cabeça quando você pensa nesta palavra? O menino inteligente, porém, bobo, de óculos e camisa xadrez? E se, com muito esforço, conseguir pensar em uma mulher: é a ingênua, imatura, fora de todo e qualquer padrão de beleza?

Esse estereótipo causa efeitos na vida real de quem vive no meio. Na realidade, o nerd está em qualquer lugar, pode se vestir como quiser, não necessariamente tem a resposta para todas as perguntas e, pasmem, pode ser uma mulher. Indo além, a representação do feminino nas histórias em quadrinhos, games e filmes, em geral, tinha dois objetivos: sexualização e submissão — ou um “belo” combo dos dois.

De acordo com a professora doutora em história cultural e pesquisadora da área de quadrinhos, Selma Regina Nunes, durante muito tempo, até meados dos anos 90, as mulheres nos quadrinhos eram sempre, apenas, interesses amorosos dos reais protagonistas, os heróis.

“Nos anos 60, com X-Men e Quarteto Fantástico, os papéis começam a ser diferenciados, mais interessantes. Sai daquela função de ser namorada do herói ou do vilão e passam a ter papéis mais relevantes. Nos anos 80 e 90, nós vemos a explosão de personagens com protagonismo mais acentuado nas histórias.”

Provar que sabe

Maria Eduarda Derquian, a Duda, 19 anos, nasceu e cresceu rodeada pela cultura nerd. Por influência de três irmãos (sim, homens), a menina se apaixonou por vídeo game e anime. Hoje, Duda é funcionária da Ludoteca BGC, em Brasília (DF). Ela faz parte da equipe que é responsável por atender os jogadores e ensinar o funcionamento dos board games (jogos de tabuleiro) — sendo quatro homens e, ela, a única mulher.

Duda é exemplo de uma reclamação unânime: todas as entrevistadas foram categóricas em dizer que o mais comum entre as situações ruins já vividas é a desconfiança por parte

“Os caras realmente têm uma dificuldade enorme em lidar com mulheres dizendo para eles o que é certo ou errado”

Natália Picarelli, jornalista

Ela destaca o papel do feminismo na jornada das personagens do gênero. Segundo as pesquisas feitas por Selma, com cada onda feminista (confira box na página 41) personagens com mais relevância nos roteiros das histórias eram criadas. dos meninos sobre sua competência. Deixam na cara o que estão pensando: “Garota, você sabe do que tá falando ou ao menos gosta, de verdade, do que tá fazendo?”. Para os machistas, o universo nerd pertence ao mundo exclusivo dos garotos.

“Sempre preciso provar que sei das coisas”, diz a jovem. Certa vez, em um evento em que a BGC participava, mas Duda não estava a serviço, e ninguém sabia que ela trabalhava com isso, ela chamou a galera para ir ao estande da loja e “uns meninos viraram pra mim e falaram ‘desde quando você entende de board game?’ O bom foi falar: eu entendo tanto de board game que eu trabalho lá’”, lembra.

Atuando na área, ela presencia situações desagradáveis com outras mulheres. “Uma vez tinham três homens e uma mulher jogando e eles disseram ‘ela é a cota da mesa, mas ela vai perder’”. Outra vez ao perguntar para um cliente o que achou do jogo foi obrigada a ouvir: “‘Achei de menina, muito fraco.’ E eles tão falando isso para uma menina. É muito sem noção”.

MARIA EDUARDA Derquian, a Duda, explica o funcionamento dos board games (jogos de tabuleiro) na ludoteca BGC. De cinco funcionários, ela é a única mulher

Outra que sabe, e muito bem, o que está fazendo é Natália Picarelli, 25 anos. Jogadora de RPG desde muito nova — aos três anos já acompanhava a tia nas mesas. No Role-Playing Game, em tradução livre Jogo de Interpretação de Personagens, cada pessoa (player) assume um papel e decide quais passos esse personagem irá tomar na história narrada pelo mestre.

Natália é casada com um também jogador. Segundo a jornalista, os dois são experientes, porém, ela é mais criativa — o que para ser o mestre é fundamental. Por isso, ela mestra e o esposo fica como jogador auxiliando os players menos experientes.

É normal que jogadores novos tenham certas dificuldades com as regras. Mas, para infelicidade e revolta, Natália relata que diversas vezes ao dizer algo sobre o jogo, a desconfiança é nitidamente demonstrada por ela ser uma mulher ditando as regras.

“Não importa o quanto eu diga que algo é feito de tal maneira, a discussão só acaba de duas formas: ou eu preciso provar a regra, mostrando no livro, ou meu marido precisa afirmar que eu estou certa. Mesmo que quem esteja mestrando seja eu!”, diz.

Ela relata ainda que, no começo, achava que era paranoia ou militância excessiva, mas ao colocar outra mulher na mesa viu que ela não contestava suas ações. “Foi impressionante como a reação dela às minhas instruções era completamente diferente. Em momento algum precisei provar nada”, lembra, impressionada. “Ou seja, não era paranoia. Os caras realmente têm uma dificuldade enorme em lidar com mulheres dizendo para eles o que é certo ou errado”.

Para Selma Regina, pior que a discriminação é a naturalização dos preconceitos. ”Constatei na minha pesquisa que há mudança, mas muito pouca. Tem muita coisa que ainda está arraigada. E os meninos mais novos continuam repetindo como os avós faziam. É uma briga a cada dia”, diz.

E assédio? Tem também

A história da jornalista Franciele Bessa, 24 anos, transcende a inferiorização. Ela é gamer (jogadora de jogos online) e cosplayer (faz e usa roupas como personagens da cultura pop).

Há algum tempo, usando o nick feminino (apelido utilizado para entrar no jogo), assim que a partida começou, homens que faziam parte do time dela começaram a destratá- -la. “Falaram que a gente ia perder, que não tinha jeito porque tinha uma garota no time. Eles não me deram a oportunidade de jogar e tentar mostrar.” Após os insultos, os “parceiros de time” se deixaram morrer repetidas vezes para atrapalhar o andamento da partida.

Em outra rodada, descobriram ocasionalmente que ela era mulher. Após isso, falaram que ela merecia ser estuprada por jogar mal. “É muito recorrente. Fico com muita raiva porque é um jogo que só precisa da minha habilidade. E isso é igual em competitivo para homens e mulheres. Fico revoltada porque é muito injusto as pessoas agirem dessa forma”, lamenta.

Como cosplayer a coisa foi ainda pior. Em um evento, um rapaz pediu para tirar uma foto com ela, porém, junto veio o assédio. Ao se posicionar para a foto, ele colocou a mão na bunda de Franciele. Outra vez, a amiga flagrou um homem fazendo uma série de fotografias por trás.

Apesar desses episódios lamentáveis, Franciele diz não deixar de fazer o que gosta por medo do preconceito. Ainda assim, admite que não gosta de jogar com pessoas desconhecidas ou ir para eventos desacompanhada.

Problemas de identificação

A falta de representatividade é tanta que Ludimila Pereira, 23 anos, diz não conseguir se auto intitular porque não consegue se sentir incluída na figura do que é ser nerd.

Que fique claro: ela é totalmente inserida no meio e encontrou um grupo que sempre a tratou muito bem. A questão de não identificação tem total influência da forma como o nerd é representado. “As pessoas definem o que é ser nerd e eu fico pensando: ‘eu não me encaixo aqui’. Só conheci há pouco tempo páginas que são comandadas por meninas. A minha imagem de nerd é o menino com a blusa de super-herói, camisa

DICAS! #GRLPWR

Locais legais pras minas no DF Taverna BGC Ludo Girls D30 RPG Sites de nerdices comandados por elas garotasnerds.com www.garotasgeeks.com

xadrez e óculos. E aí eu não consigo me ver. Isso é muito ruim”, reclama a estudante de serviço social.

Ou seja, apesar de andar com nerds, a moça não se sente “digna” para se definir como uma deles. “Quando eu fui pra Comic Con Experience, em 2015, cheguei a pensar se seria legal estar lá. Fiquei com medo deles serem os fodões, que falam várias línguas e são antissociais. Mas foi super legal. São gente como a gente. Tem criança que já é nerd”.

Mãe de um bebê de oito meses, Ludimila tem mais um desafio a cumprir: criar um menino que não reproduza tais comportamentos machistas, nem no meio nerd, nem fora dele. Por influência dela, do pai e de amigos próximos, a criança já tem várias roupinhas de personagens da cultura pop e o móbile do berço faz referência à série de TV norte-americana Game of Thrones. Porém, ela relata a dificuldade de achar bodys com personagens femininos e utensílios (colher, mamadeiras, etc.) que não sejam, necessariamente, rosas ou azuis. “Eu não gosto de rosa, me vejo obrigada a comprar o azul. Não porque não quero que ele use rosa, porque eu que não gosto mesmo”.

Por falar em rotulação do que é de menino e menina, a estudante escancara ainda outra questão que várias

Amplamente, pode-se dizer que o objetivo do feminismo é uma sociedade sem hierarquia de gênero, ou seja, não sendo utilizado para conceder privilégios ou legitimar a opressão. O termo “onda feminista” é usado academicamente para evidenciar um momento histórico relevante de efervescência militante aonde determinadas pautas e reivindicações surgiram e dominaram o debate. No Brasil, o feminismo como movimento organizado em grupo surge em meados do século 19. À época é atribuída a primeira onda: marcada pelas reivindicações de direito ao voto. A segunda onda é marcada pelas discussões acerca da sexualidade e reprodução. Lutou pela valorização do trabalho da mulher, contra a violência sexual e pelo direito ao prazer. Além disso, também lutou contra a ditadura militar. A terceira onda é das garotas rebeldes. Contra o corporativismo, tratavam de assuntos como estupro, o patriarcado, a sexualidade e o empoderamento feminino. Há ainda a tentativa de ressignificar termos tidos como pejorativos. Exemplos: vadia, usado para discriminar, foi pego pelo movimento para ser usado como uma coisa boa: uma mulher que tem noção da própria sexualidade e não vai se importar com o que dizem dela. O desafio nesta fase do feminismo é pensar, simultaneamente, a igualdade e a diferença na constituição das subjetividades entre o masculino e feminino. De acordo com a professora doutora em história cultural e pesquisadora da área de quadrinhos, Selma Regina Nunes, hoje, temos uma divergência entre teóricos se vivemos em uma quarta onda feminista ou ainda estamos na anterior. Além de lutar pelos ideais principais do feminismo, a característica que diferiria uma da outra é a união de bandeiras: contra a discriminação com base na raça, etnia, nacionalidade ou religião.

meninas no meio passam: hoje, a indústria têxtil começa a demonstrar avanço. Até conseguimos achar roupas feitas para público feminino — coisa que há uns cinco anos era possível apenas na internet —, mas, muitas vezes, as estampas da parte destinada aos homens são mais atraentes. “Parece que as de mulher têm obrigatoriamente que ter um rosinha, um gliter”, observa.

Ela cita ainda personagens como a Viúva Negra, integrante dos Vingadores, da Marvel, que tem uma história interessante, mas nunca foi bem explorada nos filmes. Feminista que é, Ludimila lança uma pergunta aos homens: “Por que quando eu falo que quero ser bem tratada, vocês imaginam que eu quero ser tratada como vocês? Por que a imagem do bom é masculina?”.

De acordo com a pesquisadora Selma, isso tem relação com o machismo dentro e fora do meio. “Uma menina se vê representada em um personagem masculino, mas o menino não vê. O outro do homem não é uma mulher. O outro do homem é um homem. O correspondente do herói seria o vilão e não uma super-heroína. Isso vale para a vida”, constata. “A mulher é uma coisa à parte. Os meninos gostaram da Mulher- -Maravilha no filme, mas não vestem uma blusa, não usam uma bicicleta com adereços dela, por exemplo”, completa.

Juntas somos fortes

Com o intuito de deixar as minas em um local livre da possibilidade de assédio e inferiorização, três amigas criaram o Ludo Girls. O evento proporciona o ambiente para que só gurias possam entreter-se com jogos de tabuleiro.

Segundo Carla Osytek, uma das organizadoras, o processo de criar o evento foi intrigante porque elas puderam ver que havia muito mais por trás de uma simples ideia de criar um evento para meninas. “Fomos conhecendo relatos de meninas que gostavam de jogar, mas não tinham amigas pra compor mesa, até outras que pararam de ir a eventos por motivo de assédio”, lembra.

Aconteceram duas edições até o momento e o balanço que Carla faz é: mulher para jogar tem. No primeiro evento conseguiram vender todos os ingressos que colocaram à venda — 75 mulheres compareceram. No segundo, aumentaram para 90 e, novamente, esgotaram. “Pensamos em proporcionar um ambiente onde elas se sentissem à vontade. Foi lindo! Acho que deu certo”, comemora.

As organizadoras estão programando o próximo evento. A previsão é para agosto ou setembro deste ano e o local ainda não foi definido. Para deixar todo mundo por dentro, as meninas mantêm a página no Facebook (homônima ao evento) sempre atualizada. A BGC, que emprega a Duda, é parceira da iniciativa e incentiva a participação das mulheres.

Como elas enfrentam

Cada uma tem seu modo de lidar com as situações demonstradas. Absorver, bater de frente, gritar ou se calar. Duda rebate com objetividade mostrando o conhecimento que possui e tenta não dar importância. Ludimila procura quebrar preconceitos na família e amigos. Já Natália diz que ser mulher é se posicionar, e lamenta ter que usar a ferramenta do grito nas mesas de RPG. “Foram incontáveis vezes em que eu tive que berrar ou xingar numa mesa, para que os jogadores olhassem para mim. Mas funcionou”, salienta.

Claro, a meta é que, um dia, nem discutir ou fingir que não é com você e, muito menos, eventos específicos para as mulheres sejam necessários e homens e mulheres possam conviver pacificamente. Esse é o objetivo. “As mudanças acontecem, mas aos pouquinhos e a gente tem que lutar por elas’’, motiva Selma.

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