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Transexuais no Exército

por: Ana Maria da Silva

Obrigatoriedade de homens trans se alistarem após mudança no registro civil e transição de gênero ainda é controversa, mas pode implicar em sanções no caso de ser descumprida

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por: Ana Maria da Silva

A reação do estudante Lucca de Oliveira Alencar, 21 anos, frente à descoberta de que precisaria se alistar após ter conquis tado a alteração de nome e sexo no registro civil foi de medo. “Foi a parte mais complicada de toda a minha transição: passar por esse processo e não saber o que poderia ocorrer”, afirma ele, que fez a transição de gênero aos 19 anos. Desde março do ano passado, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu a mudança para pessoas travestis, mulheres e homens transexuais, eles passaram a ser obrigados a se apresentar à Justiça Militar sob pena de multa e de ficarem impedidos de tirar passaporte, assumir função pública, receber prêmios tais como mega-sena e retirar carteira profissional de trabalho.

Temor de preconceito, de ficar nu na frente de outras pessoas, de precisar “explicar o corpo” são comuns não só a Lucca, mas a todos os que passam pela situação. Na fase da seleção, critérios como a combinação de vigor físico e capacidade analítica são determinantes. Mas o jovem só fica sabendo pelo que irá passar quando sai o resultado do alistamento. Entre uma e outra fase, Lucca enfrentou três meses de angústia. “Eu verificava o site quase todo dia”, conta.

A ansiedade relatada por ele é um dos sintomas comuns neste tipo de situação, como explica a psicóloga Meg Gomes Martins de Ávila, o que pode até evoluir para a depressão. “O ambiente militar ainda é pouco acolhedor e pode trazer consequências, principalmente em indivíduos que não gostariam de se alistar, mas são obrigados a ir para este espaço”. Muitos omitem a condição de transexual ou preferem receber as sanções a enfrentar o processo. Lucca, por exemplo, lembra que o medo o levou a não contar os motivos de se alistar fora da idade usual. ”Em nenhum momento me perguntaram e eu também não falei. Só entreguei minha certidão”, lembra.

Atualmente, segundo o Ministério da Defesa, não há nenhum transexual

Lucca está em tratamento hormonal desde 2017

“Foi a parte mais complicada de toda a minha transição: passar por esse processo e não saber o que poderia ocorrer”

Lucca Alencar, transexual

Gustavo conta que sempre teve interesse no serviço militar

servindo às Forças Armadas. Em nota, a entidade lembra que o alistamento é obrigatório para o jovem do sexo masculino e que, “caso uma mulher geneticamente se transforme em homem socialmente, ele, a partir de então, terá que regularizar sua situação militar”.

Apesar de obrigatória, a recusa em se apresentar à Justiça Militar pode ser uma escolha, garante o advogado Maximiliano Telesca, especialista em direito homoafetivo. “Existe um histórico de conservadorismo nas Forças Armadas, que pode inferir um juiz a dar uma liminar de não alistamento obrigatório em virtude dos constrangimentos que uma pessoa transexual possa sofrer”. Apesar de ainda não haver legislação específica para crimes de homofobia, o cidadão pode alegar constrangimento e recorrer aos direitos fundamentais, que garantem respeito à dignidade humana. O caminho, contudo, não é dos mais fáceis. Telesca observa que pode ser até mesmo necessário um mandado de segurança.

Exigência No Brasil, o serviço militar obrigatório se divide em três etapas: o alistamento militar, no qual o jovem se apresenta ao completar 18 anos de idade; a seleção geral, que além de critérios físicos e cognitivos leva em consideração a representação de todas as classes sociais e regiões do país, aspectos culturais, psicológicos e morais. Por fim, é feita a incorporação ou matrícula, que é a inclusão em uma Organização Militar das Ativas Forças Armadas e fica à disposição por um ano.

A ideia de que a lei é igual para todos é um dos argumentos para que a pessoa que fez transição para o gênero masculino tenha o serviço militar entre suas obrigações. Mas, no caso das pessoas que nascem no sexo masculino, a isenção só ocorre se a mudança de nome e sexo para o feminino acontecer antes dos 18 anos. Em 2015, o caso da estudante Marianna Lively ficou conhecido em todo o Brasil depois de ela se alistar. Na época, apesar da transição de gênero, a mudança no registro civil ainda não tinha ocorrido. A jovem foi fotografada dentro do quartel e teve a imagem espalhada em redes sociais com dados como ficha de inscrição e documento, no qual ainda constava o nome anterior. “A violência que a população LGBTQ+ sofre na família, nas escolas e a segregação nas oportunidades de emprego são evidentes e escancaradas, mas não são mensuráveis”, comenta a psicóloga.

No entanto, a tão falada igualdade ainda é sonho de muitos. O policial civil Gustavo Henrique Moita, 21, sempre quis atuar no serviço militar. “Um dos maiores sonhos da minha vida era servir no Exército”. Em tratamento hormonal há quatro anos, ele conquistou a alteração dos documentos há dois meses. “Eu sempre soube que após mudar meus documentos teria que me alistar, mas não tive medo. Sempre gostei do Exército, então quero servir”, comenta. Ele já se apresentou à Justiça Militar e agora aguarda o resultado da primeira fase.

Preconceito A inclusão dos transexuais no meio militar ainda é vista com desconfiança. O ex-aluno da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR), Bruno Fontanive, afirma que a sociedade ainda não está preparada para esse tipo de situação.

Lucca conta que enfrentou três meses de angústia na espera do resultado do alistamento

VOCÊ SABIA?

A retirada do transexualismo como doença mental da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), que classificava a transexualidade como “transtorno de identidade de gênero”, ocorreu em 17 de maio.

A data se transformou no Dia Internacional contra Homofobia e Transfobia, e teve fundamental importância na quebra de paradigmas do mundo trans.

“Os alojamentos são divididos entre masculino e feminino e, dessa forma, o transexual habitaria no que ele se iden tificasse. Mas se um homem se identifica como mulher e vai para o alojamento feminino, poderia causar constrangimentos”, exemplifica.

O conservadorismo é considerado uma prática recorrente no meio. “É esse histórico que pode inferir um juiz a dar uma liminar de não alistamento obrigatório em função do constrangi mento que um transexual pode sofrer”, diz Bruno. A preocupação com a situação levou a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos a lançar o Guia de Orientação sobre o Alistamento Militar. No documento, consta um resumo do que essas pessoas precisam fazer em função da orientação sexual e identidade de gênero. Prazos, sanções e possíveis dúvidas como o que fazer no caso de mulheres trans ou de alteração no registro civil após os 45 anos fazem parte do material.

Enquanto para Bruno a sociedade ainda não oferece espaço para este tipo de diversidade, o tenente Otávio Maia destaca que todos são igual perante a

Fonte: Relatório do Grupo Gay da Bahia 2018

Eu entendo a legislação

O QUE DIZ A LEI?

Todo cidadão brasileiro é obrigado a prestar serviço militar conforme artigo 143 da Constituição

PERÍODO

Inicia-se em 1º de janeiro do ano em que completar 18 anos e vai até o dia 31 de dezembro em que completar 45 anos

EXCEÇÕES

Crença religiosa, convicção filosófica ou política, pessoas do sexo feminino

COMO ME ALISTAR?

Preencher o formulário de alistamento e se apresentr a uma junta de serviço militar com documentos

MULHERES TRANS

Se a alteração do documento ocorrer antes dos 18 anos, não precisará se apresentar. Após se alistar ou servir, o documento tornase dispensável

HOMENS TRANS

Entre 19 e 45 anos deverá se apresentar em até 30 dias após a mudança e fica de reservista. Após 45 anos não é obrigatório o alistamento e nem será chamado em caso de guerra

Fonte: Guia de Orientações sobre Alistamento Militar da ABGLT

lei, independentemente da orientação ou condição sexual. Ele afirma que o movimento LGBTQ+ alcançou representatividade e a isonomia nas mais diferentes situações já é uma realidade. “No quartel onde presto serviço militar, vivencio igualdade de tratamento. É possível ver um jovem cujo pai tem lojas nos Estados Unidos (EUA) recebendo as mesmas ordens que um originário do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro (RJ). Mulheres e homens recebem as mesmas missões”, declara.

A presença dos transexuais no serviço militar, segundo a psicóloga Meg Gomes Martins de Ávila, pode causar reflexões da sociedade sobre a capacidade do transexual abarcar todas as áreas profissionais, mesmo as militares. “Traz reflexões sobre o papel enquanto pessoa e humano, além de ajudar a ressignificar papéis dados aos gêneros que não precisam mais serem reproduzidos. Estamos falando de pessoas que estão defendendo a nação, tendo treinamento para tal. Esse não deveria ser o maior foco?”, questiona.

“O ambiente militar ainda é pouco acolhedor”

Meg Gomes Martins de Ávila, psicóloga

Pelo mundo As políticas relacionadas à orientação sexual e serviço militar variam ao redor do mundo. Enquanto alguns países permitem que gays, transexuais e lésbicas sirvam abertamente, outros não apoiam que a comunidade LGBTQ+ seja inserida no meio. Dos 26 países que participam da Organização do Tratado do Alântico Norte (Otan), mais de 20 permitem que pessoas abertamente gays, lésbicas e bissexuais prestem serviço militar. Já a Rússia, exclui todos os gays e lésbicas em tempo de paz, mas permite a apresentação em tempo de guerra.

A velha polêmica do ingresso da comunidade LGBTQ+ nas forças armadas americanas já existe há algum tempo, e, recentemente, o Pentágono anunciou uma nova política que impede o alistamento de pessoas transgêneros no serviço militar, com exceção daquelas que já se apresentaram, desde que aceitem “servir de acordo com seu sexo biológico”.

Segundo a psicóloga, não há o que ser julgado, apenas analisado objetivamente: “Não é uma questão de bom ou mau,

Ao completar 18 anos, jovem deve ser apresentar à Junta Militar mais próxima

politicamente correto ou não. Somos um somatório de 500 anos de violência e de misoginia, de sexismo e de preconceito retratados nas sociedades latinas”.

Homofobia O alistamento é apenas um dos direitos no longo caminho da cidadania das pessoas trans. Algumas propostas que são antigas bandeiras da comunidade LGBTQ+ ainda estão longe de serem conquistadas, como é o caso da criminalização da homofobia e transfobia, que hoje não tem respaldo na legislação penal brasileira. A própria mudança no registro civil foi fruto de uma Ação Direta de Inconstitu cionalidade (Adin 4.275) sobre o direito à alteração de nome, gênero, ou ambos, sem a necessidade de qualquer autoriza ção judicial.

A busca pela criminalização do preconceito não é em vão. Segundo o relatório “Mortes Violentas de LGBTQ+ no Brasil” de 2018, produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 420 brasileiros que integravam a comunidade morreram naquele ano, vítimas de homelesbotransfobia, que engloba homofobia, lesbofobia e transfobia (vide box). Deste quantitativo, as pessoas trans representam a categoria mais vulnerável a mortes violentas. A mudança na sociedade é lenta, como observa Meg Martins de Ávila. “Cabe às instituições proverem espaços para o gozo dos direitos”, conclui.

GLOSSÁRIO: ENTENDA OS TERMOS DO MUNDO LGBTQ+ Homofobia: medo, aversão ou ódio irracional aos homossexuais e, também, aos que manifestem orientação sexual ou identidade de gênero diferente dos padrões ditos normais;

Lesbofobia: inclui várias formas de negatividade em relação às mulheres lésbicas, como indivíduos, casal ou grupo social. Além da violência e hostilidade, é considerada também como medo que as mulheres têm de amar outras mulheres;

Transfobia: refere-se à aversão ou discriminação contra pessoas trans (transexuais, transgêneros ou travestis), baseada na expressão de sua identidade de gênero;

Homolesbotransfobia: unificação das três fobias (homofobia, lesbofobia e transfobia);

Trânsgeneros: são todos os indivíduos cuja identidade de gênero não corresponde ao seu sexo biológico;

Transexual: segunda a OMS, o transexualismo é o desejo de viver e se aceito enquanto pessoa do sexo oposto, acompanhado pelo desejo de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado;

Travesti: o conceito ainda causa divergência, mas para grande parte da comunidade LGBTQ+, a travesti, ainda que invista em roupas e hormônios femininos, tal qual as mulheres transexuais, não sentem desconforto com sua genitália, e de maneira geral, não tem a necessidade de fazer cirurgia de redesignação sexual.

Fonte: Silvestre, Carolina. Sexo, identidade e orientação sexual

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