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A arte como refúgio
Como a expressão artística transformou a forma como o homem lida com as marcas da vida
por: Ketlyn Victoria
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Gabriel dança, fotografa e atua. Alana também se encontrou nos palcos do teatro. Já Brenner e Fugazzy acharam nas rimas da poesia e do rap uma forma de se expressar. Todos artistas, cada um de sua maneira. Mas o ponto que os une é um só: a arte como refúgio. Isso quer dizer que, em algum momento de suas histórias, eles encontraram na expressão artística uma forma de escapar de seus traumas e problemas.
De acordo com estudo realizado pela Universidade de Drexel (USA), a arte pode reduzir significativamente os hormônios relacionados ao estresse no corpo humano. Já a pesquisa da University College London aponta que ver uma obra de arte desencadeia um aumento súbito de dopamina, substância química do bem estar, no córtex orbitofrontal do cérebro. Essa região do cérebro humano envolve os desejos e afetos que na presença de dopamina evocam sentimentos agradáveis.
Devido aos seus inúmeros benefí cios, a arte não é mais apenas um produto de contemplação, mas também objeto utilizado em tratamentos psicológicos, como na arteterapia. Nessa modalidade, o profissional especializado utiliza recursos artísticos e visuais como elemento terapêutico.
Regiane Rocha é formada em Artes Plásticas pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes e cursou Psicotera pia Corporal no Core East Institute, de Nova Iorque. A fim de unir os potenciais da arte e da cura, resolveu apostar em uma especialização em arteterapia após enxergar que a demanda de seus alunos no ateliê ia além de desenvolver técnicas artísticas, mas que precisavam lidar com questões emocionais e existenciais.
“Não somos regidos apenas por aquilo de que temos consciência. Para lidar com a mudança de padrões negativos que se repetem em nossa vida é necessária alguma forma de acesso ao inconsciente. Como o inconsciente se expressa através de símbolos e imagens, da mesma forma que nos sonhos, a arte se torna uma das formas mais eficazes de lidar com esses conteúdos. Cabe ao terapeuta ajudar o cliente a decodificar
essas mensagens, através de perguntas, sabendo que há conteúdos universais (arquetípicos) e conteúdos que são bem particulares de cada indivíduo”, afirma a psicoterapeuta.
Regiane conta ainda que a arte foi um refúgio não só na vida dos clientes, mas também em sua própria história. Para ela, a dança é uma ótima forma de aliviar tensões e, a pintura, uma maneira de trazer à tona os sonhos ou expressar o que sente. A arteterapeuta ainda revela que possui cadernos de escrita intuitiva, e que há coisas que só consegue expressar por meio da poesia. “Gosto muito da poetisa Viviane Mosé, quando diz: ‘a maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos’. Então eu me refugio na arte, para libertar meus poemas e aquilo que considero verdadeiro em mim”, finaliza.
Após uma depressão, o fotógrafo Gabriel de Souza encontrou na dança um refúgio para seus problemas
Depressão e ansiedade são consi deradas o mal do século. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 300 milhões de pessoas sofrem com depressão em todo o mundo, o equivalente a cerca de 4,4% da população. Quando se trata de ansiedade, o Brasil encontra-se em primeiro lugar mundial, com 9,3% da sociedade sofrendo com esse distúrbio. Nos consultórios tradicionais de psicologia, esses são assuntos recorrentes. E é lá também que a arte é utilizada como recurso de tratamento psicoterapêutico, por possuir um papel único na expressão emocional do paciente.
“Quando o paciente está num nível de sofrimento muito grande, como em uma depressão mais forte, um transtorno de pânico, etc, há dificuldades de colocar em palavras o que está sentindo. A arte é um meio de expressão”, afirma a psicóloga Adriana Marques Lôbo. Em seus anos de trabalho, Adriana conta que a arte tem se mostrado como um meio muito eficaz no tratamento de pacientes das mais diversas faixas etárias. Do preconceito à arte Mais um dia normal na escola. A aula já havia começado, mas Gabriel ainda não estava por lá. Porém, ao pisar em sala, descobriu que um relógio havia sido roubado. Com a chegada da professora no local, alguns alunos disseram que Gabriel, que nem estava presente no momento do incidente, era o responsável por ele. A educadora chamou os pais do aluno e tentou, ao máximo, culpá-lo por algo que não havia feito. O motivo? A cor da pele.
São muitos os “Gabrieis” do Brasil. De acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha em 2018, 55% dos participantes negros entrevistados para o estudo afirmaram já ter sofrido preconceito por cor ou raça. Além disso, a pesquisa aponta que 30% dos brasileiros já foram vítimas de discriminação por causa da classe social.
“Sempre vivi à margem de todos os preconceitos. Principalmente o social, porque minha família não tinha condição de me proporcionar muita coisa. Então, além de negro, eu sempre fui o pobrinho, o feio da turma, o estranho. O alvo de todas as piadas era eu”, afirma o atual fotógrafo Gabriel de Souza.
Devido a paixão do pai pela arte circense, A fotografia é, ainda hoje, a profissão de Gabriel de Souza e uma forma de contar sua história “‘A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos’.
Brenner Saboia, além de coordenar as competições na Batalha do Relógio, é responsável por divulgar o evento nas mídias digitais
Gabriel teve, aos 12 anos, o seu primeiro contato com a arte em uma companhia de teatro voltada para o circo. Porém, mesmo praticando as aulas e sendo elogiado pelo professor, não conseguia acreditar que era engraçado e apto para a carreira. O segundo contato com o meio artístico ocorreu após alguns anos, quando o pai, que trabalhava como arte finalista, ganhou uma câmera fotográfica em um sorteio, que acabou se tornando um novo hobby para o filho que adorava tecnologia. “Eu tinha uma dificuldade muito grande de olhar e enxergar coisas belas porque eu cresci sabendo que tudo era feio ao meu redor, já que as pessoas me viam assim”.
Gabriel encontrou nos palcos um escape para se liber tar de todo o preconceito que sofreu durante a vida. Em seu terceiro contato com a arte, a dança o retirou de uma depressão durante a qual emagreceu 27kg e o levou a se envolver com drogas. “Eu tive que romper barreiras para me impor, mostrar o que eu queria mostrar, pra mostrar minha arte. A arte me tirou de fato do obscuro, do buraco em que eu vivia. A arte me trouxe de volta”, finaliza o fotógrafo.
O coordenador da Batalha, Brenner Saboia, conta que conhece semanalmente histórias inspiradoras de pessoas que tiveram sua vida transformada pela arte criada ali no local.
A sua trajetória na Batalha do Relógio começou pela curiosidade que tinha sobre o repente do Nordeste e, chegando lá, se surpreendeu com uma cultura muito mais abrangente. Após dois anos como espectador, passou por um problema que mudaria sua vida para sempre: a morte de sua mãe. Sem encontrar nenhum apoio familiar, Brenner foi acolhido pelos amigos da batalha e se tornou coordenador de um dos maiores movimentos culturais de rua do Brasil.
“A cultura da Batalha do Relógio me ensinou a ser um homem de verdade. Antes eu era um menino mimado, racista, homofóbico, que achava que as minhas opiniões eram certas e a dos outros não”, recorda.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em 2016 o tráfico de drogas era o crime mais frequente entre os jovens. Em 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou estudo que estima que o consumo de drogas é responsável por cerca de meio milhão de mortes a cada ano. Fugazzy (nome artístico) poderia hoje ser estatística. Mas, o seu contato com a arte abriu as portas para que ela pudesse sair do crime.
Na periferia Quinta-feira, 19 horas. Um encontro marcado toda semana em frente ao grande relógio da praça de Taguatinga. Por lá se reúnem cerca de 400 pessoas para competir na Batalha do Relógio. De acordo com levantamento feito pela consultoria JLeiva Cultura e Esporte, em parceria com o Datafolha, quase um terço da população brasileira depende do acesso gratuito para ir a eventos culturais. É ali, no movimento de periferia, que essas pessoas que não possuem voz conseguem gritar por uma vida melhor.
A rapper brasiliense conta de sorriso no rosto que chegou à Batalha do Relógio em 2016, quando ainda não tinha a proporção que tem hoje. Foi amor à primeira vista. Porém, antes de conhecer esse movimento que mudaria sua história, Fugazzy era traficante de drogas com apenas 16 anos. “Se eu “Eu tava fazendo arte e minha mãe não ia chorar porque eu tava sendo presa”, conta Fugazzi sobre a entrada no rap
não estivesse no rap já estaria morta. Entrei para esse movimento cultural quando estava saindo de depressão. Eu não estudei durante 2 anos da minha vida porque ficava trancada dentro do quarto escrevendo poesia. O meu tipo de poesia era aquele que incentivava alguém a tirar sua vida, e eu não quis mais isso para mim. Então eu mudei. Quando conheci a batalha, eu não pensava mais em ir pra boca traficar. Eu tava fazendo arte e minha mãe não ia chorar porque eu tava sendo presa”, relata.
Além do rap, Fugazzy conta que já grafitou, fez dj e aulas de dança. Mas foi a escrita que ganhou o seu coração e transformou quem era. Foi com o rap, também, que pode ajudar a cuidar do irmão. “Teve uma vez que o aluguel da minha casa tava atrasado, meu irmão não tinha fralda, leite, nada. Eu tinha R$1,50 no bolso e fui convidada pra uma batalha valendo mil reais. Fui pra essa batalha na Via Estádio e ganhei. Foi uma reviravolta. Não tinha nada dentro de casa e voltei com mil reais. Isso pra mim foi uma conquista”, ela conta com orgulho.
Fugazzy, rapper
A artista, que trabalha atualmente em assistência social, ainda não tem a arte como profissão. “Você nunca vai se sentir vazio por sair da sua casa pra fazer arte. As pessoas têm que entender que a música veio pra sarar a dor, e nenhum poeta existe sem a dor. A dor é essencial pra gente escrever, pra gente sobreviver, pra gente aprender, pra gente percorrer, pra gente ser feliz. Agradeça à dor”, finaliza.
Uma troca São inúmeras as maneiras de inserir a arte no nosso dia a dia. Mas, infelizmente, nem todos podem escolher entre essas opções no Brasil. Segundo relatório “Panorama Setorial da Cultura Brasileira”, realizado pelo Ibope em 2014, 42% dos brasileiros não praticam atividades culturais com frequência. Mas, graças à algumas iniciativas, esse quadro vem se transformando. Como o projeto Troca de Experiências Artísticas e Reinserção (Tear), realizado pelo grupo de teatro Estupenda Trupe. Nessa iniciativa, atores e professores de teatro doam seu talento e experiência em aulas de teatro para adolescentes em conflito com a lei.
O projeto nasceu de um dos pilares de desenvolvimento do trabalho da Estupenda Trupe: a democratização do acesso à cultura proporcionando experiências artísticas para os mais diversos públicos. “Acreditamos no Teatro do Oprimido e na sua força para transformar a realidade do indivíduo, e acredi tamos que a arte é fundamental para ser agente de revolução pessoal na vida dos adolescentes que se encontram nessa situação”, afirma Alana Ferrigno, integrante do grupo e parceira no projeto.
As aulas ocorrem simultaneamente na Unidade de Internação de São Sebastião (UISS) e na comunidade no IFB em São Sebastião. Os professores abordam temas como preconceito, exclusão, injustiças e outros como amor, diálogo, família. Por se tratar de um público muito sensível, Alana aponta como maior dificuldade do projeto a distância de realidade entre os professores e os alunos. É aí que entra o Teatro do Oprimido para quebrar essa barreira.
“Mais do que o relato [dos alunos] é bacana ver a evolução nas ações de cada participante. Por exemplo, um adolescente participante que com sua habilidade no grafite entendeu que ele pode se tornar um desenhista”, relata.
Desde os oito anos de idade Alana Ferrigno traça sua relação com o mundo artístico. Ela, que começou praticando balé e outras modalidades de dança, encontrou no teatro sua vocação e também um refúgio. “Depois que minha mãe morreu, me vi despedaçada e fui convidada a fazer uma peça com os contos de Tenesse Williams, [dramaturgo estaduni dense]. Eu me aprofundei em uma das personagens que tinha um humor ácido e surreal. Através dela expurguei as sombras daquele momento difícil e me diverti muito”, relembra a atriz.
Projeto Tear leva arte para jovens em conflito com a lei
As primeiras expressões artísticas se mostra vam, muitas vezes, como tentativa de cópia do que era enxergado, como no naturalismo pré-histórico e grego. Porém, ao longo da história essa característica vai sendo transformada e dá ao homem o poder de se expressar por meio da arte. “A arte é o que nos transforma em seres humanos criadores. Apesar das primeiras manifestações serem mimetizadas, ela tenta dar para o homem o sentido de elaborar uma construção de uma realidade que não necessariamente seja a da natureza”, afirma o antropólogo Cláudio Ferreira. A HISTÓRIA CONTA
A valorização do indivíduo como ser singular se iniciou na Grécia Antiga, com artistas com Apeles, Zêuxis e Parrásio. No Renascimento, historiadores passam a estudar mais sobre a biografia dos criadores de arte para entender as suas obras, visto que na época surgiam personalidades complexas como Donatello, Michelangelo e Pontormo. “Ainda que as singularidades pudessem influenciar suas obras, estas refletiam, em sua maior parte, o sistema de valores iconográficos de suas épocas”, afirma o historiador Guilherme Gonzaga.
A obra como produto direto de uma experiência particular só surgiu, de fato, no final do século XIX com o Romantismo. Nesse momento, os artistas passam a trabalhar uma questão de imaginário altamente pessoal. “Vejo o pintor alemão Caspar David Friedrich como exemplo do artista romântico modelo, que externou abertamente sua profunda visão religiosa, melancólica e elegíaca como resposta às vicissitudes do mundo moderno”, relata Guilherme. Após esse período, outros artistas marcaram a história com obras extremamente pessoais, que serviram, muitas vezes, como um canal para extravasar suas dores e angústias.
A obra A Cama Voadora retrata Frida Kahlo após o acidente que custou seus movimentos
FRIDA KAHLO
Símbolo de resistência, a artista mexicana Frida Kahlo é considerada um dos maiores ícones da pintura mundial com obras que expressam fielmente a sua vida pessoal. Foi na arte que ela encontrou refúgio para os seus traumas, como a poliomielite que teve aos seis anos de idade e o acidente que sofreu aos 18 anos que causou diversas sequelas em seu corpo e levou Frida a 35 cirurgias. VAN GOGH
Auto-Retrato, 1889
Embora tenha ganhado reconhecimento apenas depois de sua morte, em 1890, o holandês Vincent Van Gogh marcou a história da arte com suas técnicas únicas e, claro, com sua biografia. O artista, que foi diagnosticado com depressão e internado em um hospital após cortar parte de sua própria orelha, trouxe para seus quadros o retrato de sua realidade dentro do manicômio.
ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO EMILY DICKINSON
O brasileiro Arthur Bispo do Rosário foi taxado como louco após anunciar que era um enviado de Deus. Bispo foi internado em um manicômio e produziu diversas obras durante seu período de internação, que durou 50 anos com tratamento bastante violento. O artista criou obras que dialogavam com diversos movimentos como o dadaísmo, a arte conceitual, a arte pop e as assemblagens. A arte se expressou por meio de palavras no caso de Emily Dickinson. A artista de Massachusetts (EUA) só teve suas obras reconhecidas após a morte. Muito solitária e reclusa devido, principalmente, à sua educação rígida, Emily traduziu em poesias seus sentimentos, utilizando-as como refúgio.
Obra de Arthur Bispo do Rosário Retrato de Emily Dickinson