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Sem crianças
Cada vez mais mulheres desistem de ser mães por conta da profissão ou de realizações pessoais; para muitas delas a maternidade já não tem sido obrigação social ou imposição biológica
por: Giovana Ribeiro
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Há um número crescente de brasileiras dizendo não à maternidade. De acordo com a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada em 2014, essas mulheres correspondem a 14% da população brasileira; em 2010, na pesquisa anterior, a porcentagem era de 10%. Além disso, o estudo mostra que as mulheres com mais instrução (mais de 7 anos de estudo) estão sendo mães mais tarde, depois dos 30 anos, e a média de filhos por mulher diminuiu drasticamente – de 6,1 para 1,9 nos últimos 50 anos.
Atualmente, ganharam voz as mulheres que não eram representadas, aquelas que decidiram não ter filhos, e que ainda são julgadas pela sociedade como egoístas e sujeitas a um possível arrependimento.
É o caso da servidora pública Jacira Alves, 25 anos, que não pretende ter filhos e destaca que essa categoria de mulheres sofre preconceito por conta dessa decisão: “Acham que a gente é anormal, que não gostamos de crianças. Nos julgam falando que nós não conheceremos o verdadeiro amor e que não vai ter ninguém para cuidar de nós na velhice. Só sei que se fosse para ter alguém para cuidar de mim na velhice eu contrataria uma cuidadora. Filhos não são garantia de nada”, diz.
O que pode ser egoísmo para alguns, para Jacira é opção de vida. Solteira, ela acredita que a maternidade atrapalharia a sua vida atual, pois a autonomia de poder viajar e ter seu estilo de vida seriam inter rompidos. Afirma ainda que há outros motivos para não querer ser mãe como a superpopulação, a degradação do meio ambiente e os gastos excessivos: “Acredito que não é ético ter filhos biológicos. Se um dia eu me arrepender poderei adotar. As pessoas só pensam em adoção quando a mulher possui problemas de fertilidade, mas deveríamos pensar primeiramente em adoção, sempre”, comenta.
Segundo dados do Sistema Único de Saúde (SUS), o número de laqueaduras
realizadas em 2018 no Brasil totalizou 67.056. Jacira ainda busca sua laqueadura mesmo após negativas de médicos que argumentam sobre um possível arrependimento. É o mesmo argumento dado a outras brasileiras que estão à procura da cirurgia que liga as tubas uterinas, impedindo a gravidez. Direito, na teoria O advogado Alan da Silva diz que segundo a Lei 9.263 de 1996, Lei do Planejamento Familiar, podem ser submetidos à esterilização voluntária homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 anos ou com pelo menos dois filhos vivos, desde cônjuge, que pode ser suprido judicialmente em alguns casos.
É um direito previsto em lei, mas na prática há empecilhos para ser assegurado, mesmo quando cumpridas as exigências. Em alguns casos, as mulheres não conseguem a autorização e são desencorajadas. O presidente do Sindmédico-DF, Gutemberg Fialho, médico ginecologista e obstetra explica: “Quando a paciente é jovem, a conduta tem sido oferecer outros métodos contraceptivos, outros métodos que evitam a gravidez, mas que não são definitivos, como anticoncepcional e uso de preservativo. Isso acontece por conta do número de arrependimentos por diversas causas, após a cirurgia, dentre elas a realização de um novo matrimônio”, conta.
No aspecto jurídico, Alan Silva conta que em tese o médico não pode se negar a realizar o procedimento mesmo a paciente atendendo aos critérios da lei. Caberia ao médico recomendar ao paciente o que deve ou não ser feito: “Por dever legal, o médico deve submeter o paciente ao procedimento excetuando-se situ ações que ele entenda não ser feito por causar risco à saúde do paciente”, afirma o advogado. “Acham que a gente é anormal, que não gostamos de crianças.
Nos julgam falando que nós não conheceremos o verdadeiro amor e que não vai ter ninguém para cuidar de nós na velhice” Jacira Alves, servidora pública
Jacira Alves, solteira, acredita que a maternidade atrapalharia a sua vida atual
que observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação de vontade e a efetiva submissão ao procedimento, período em que a interessada será instruída e acompanhada por equipe multidisciplinar. Se for casada é necessário o consentimento do
Problema social Luiza Rodrigues, autodeclarada ativista pela laqueadura, casada e com filhos, não defende só a cirurgia, mas sim a liberdade para qualquer pessoa que tenha filhos ou não decidir pela esterilização voluntária: “Sou liberal do ponto de vista ideológico, ou seja, defendo uma maior liberdade de escolha pelo indivíduo. Quanto mais importante a escolha, maior o prejuízo se essa escolha for cerceada pelo Estado. Ora, ter filhos ou não é uma decisão que muda radicalmente a vida de qualquer pessoa. Nada mais natural que essa escolha seja livre”, reclama a ativista.
Ela defende que o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem condições de fazer a cesárea ou o parto normal e, depois de 60 dias (prazo para a manifestação de vontade e a efetiva submissão ao procedimento cirúrgico), receber a mulher para a laqueadura: “O custo passa a ser menor para o serviço de saúde, por aproveitar a equipe médica no momento do parto cesárea, a internação e a ocupação de um leito aproveitando aquele momento de inter nação”, argumenta Luiza.
Luiza Rodrigues, autodeclarada ativista pela laqueadura, defende que essa escolha seja livre, sem que haja tanta burocracia do estado
O médico ginecologista Gutemberg Fialho já mostra outro viés, para ele o mais importante: “O termo de consentimento formado em relação à laqueadura, para quando a paciente está grávida, tem que ser feito no mínimo com 60 dias de ante cedência porque o momento psicológico da mulher é outro. A mulher terminou de estar grávida e deseja laquear por uma série de razões. A capacidade cognitiva, a lucidez está comprometida por essas questões”, conta o doutor. Ele afirma que neste período a mulher terá de participar de curso multidisciplinar para que a vontade de laquear seja pensada com
Luiza Rodrigues, autodeclarada ativista pela laqueadura
mais lucidez para evitar lá na frente um possível arrependimento, por se tratar de um procedimento irreversível.
Além da dificuldade no cumprimento, há uma pressão social para que as mulheres tenham filhos, afirma a ativista Luiza Rodrigues: “Essa pressão existe, mas varia muito dependendo da sociedade, da religião e até da classe social da mulher. A causa parece ser a cultura de que a felici dade e a realização estão ligadas a ter filhos. Existe também a visão de que é necessário ter filhos para ter alguém para te apoiar na velhice”, conta.
Posição da Igreja Em algumas religiões, as convicções religiosas para mulheres ou casais que não desejam ter filhos manifestam um fechamento de si mesmo e da graça da criação de Deus, é o que explica o Frei Mayko Ataliba Cruz de Andrade, da Casa de Formação São Francisco (Seminário da Teologia): “Hoje, a Igreja entende que a unidade matrimonial consiste em duas finalidades: procriação e o bem do casal, entendido como santificação e alegria evangélica dos mesmos. Agora, quando o casal percebe que após uma quantidade boa de filhos não tem mais condições de possibilitar a educação cristã, além dos subsídios básicos da vida, a Igreja aceita tal situação de regular a fecundidade dos esposos, seguindo os métodos naturais de controle de natalidade indicada por ela”, diz.
A Igreja Católica defende como método a Ovulação Billings, reconhe cida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com a eficácia acima de 98% de controle natal.
Além disso, para a Igreja, é indevido o uso de medicamentos anticoncepcionais e preservativos: “O problema dos anticoncepcionais vai muito além do não engravidar. O primeiro aspecto, além do bíblico de ‘Crescei-vos e multiplicai-vos’, é que os anticoncepcionais, exceto os preservativos, são abortivos, violando o princípio da vida. Sabemos que o fundamento do matrimônio, segundo o Evangelho de Mateus, é a unidade e indissolubilidade. E o preservativo fere naturalmente a unidade do casal, haja vista que há um material que impossibilita o contato total do casal. Isso afeta também psicologicamente os dois, pois estão juntos e ao mesmo tempo separados. Esse é o principal motivo também de não utilizar o preservativo”, conta o Frei Mayko Andrade.
Ginecologista e presidente do Sindmédico-DF, Gutemberg Fialho explica que quando a paciente é jovem, a conduta tem sido oferecer outros métodos contraceptivos que evitam a gravidez
Garben Silva, 51 anos, assistente intermediária de saúde com uma união estável há 23 anos, utiliza o método tabelinha por ser espírita kardecista. Conta que sua religião, de forma direta, diz que os casais têm que ter filhos os quais são espíritos que têm débito e que vêm ao mundo exatamente para pagar essa dívida. Mas mesmo diante desse fato, ela não deseja
Garben Silva acredita que cumpre a maternidade de outra forma, com o seu envolvimento em projetos sociais
filhos: “A minha religião também prega isso, só que eu não levo isso em consideração. Eu acho que há outras formas de você cumprir a maternidade, por isso também o meu envolvimento em vários projetos sociais. Porque o lema do kardecismo é ‘fora da caridade não há salvação’”, declara Garben.
Marta Antunes, vice-presidente da Federação Espírita Brasileira explica o lema do kardecismo: “Após um período variável, define-se um planejamento reencarnatório para o Espírito retornar à reencarnação, que tem duplo objetivo: reparar possíveis equívocos cometidos em existências anteriores e tornar-se pessoa melhor, evoluindo-se intelectual e moralmente. O renascimento de Espíritos deve ser submetido a um planejamento familiar”, explica. Preconceito Para Garben Silva, a maternidade atrapalharia a sua vida atual e diz que há outras maneiras de exercê-la. Apesar de receber o respeito da família e o apoio do marido, já ouviu frases desagradáveis: “Uma vez, uma colega disse que eu estava equivocada, que a mulher só se realizava através da maternidade. Eu falei que eu não sou só útero, eu não tenho que ser mãe para garantir a minha feminilidade. Minhas realizações estão em outras esferas, como profissionais, viagens, esportes, além de uma série de coisas. Eu não tenho obri gação de ser mãe, as pessoas não têm esse direito de ficar me cobrando uma coisa. Se é bom para ela ótimo, mas não é bom para mim”, afirma.
As mulheres sem filhos ou as que admitem não querer tê-los são frequentemente estigmatizadas. A psicóloga Miriam Pondaag explica o porquê dos preconceitos geralmente provocarem sentimentos de exclusão e anormalidades: “As mulheres se sentem estigmatizadas porque a gente ainda tem uma construção do dispositivo materno, uma construção que solidifica muito o mito da maternidade. É estrutural para a identidade feminina ser mãe. Aquela mulher que não quer ser é quase um monstro social e ela denuncia uma possibilidade de mudança que vai afetar as relações de poder. Logo, ela é ameaçadora”.
A psicóloga ressalta que as mulheres que decidem não ter filhos vivem se explicando para a sociedade: “A gente ainda tem como norma a maternidade e as próprias mulheres começam a se perceber como exceção. À medida que elas se justificam, elas estão querendo convencer a elas mesmas da própria decisão. Todo mundo paga o preço por quebrar o padrão social, a norma social, a mudar o mundo. O preço de ser exceção”, aponta a psicóloga.
De acordo com o antropólogo, Claudio Ferreira, a ideia do feminino ligada à maternidade foi construída durante a Idade Média, com a mãe enquanto a figura
“Minhas realizações estão em outras esferas, como profissionais, viagens, esportes, além de uma série de coisas” Garben Silva, assistente intermediária de saúde
da própria imagem de virgem Maria, com o comprometimento com seus rebentos, com seus filhos, dentro de uma dada tradição. “A mulher teve que sempre aceitar de forma passiva, não emocional, a relação da maternidade”, diz.
O antropólogo explica seu ponto de vista nos dias atuais: “A transformação cultural do papel do que é ser mulher está trazendo uma forma diferente das pessoas de lidar com a sua realidade tangível, com o seu mundo e estar permitindo para algumas mulheres poderem manifestar essa insatisfação. Talvez, as mulheres sempre sentiram isso só que elas não tinham como verbalizar. Se hoje verbalizar culturalmente é condenável imagina isso há cem anos? Seria uma coisa muito difícil”, afirma. Liberdade Apesar da tendência de mulheres optarem por não serem mães ser crescente e delas enfrentarem o estereótipo de egoístas, as mulheres já não têm tanto receio de demonstrar que não nasceram para desempenhar o papel da maternidade.
Vanessa Xavier, 34 anos, servidora pública, apesar de receber a cobrança da família, principalmente por ser a filha mais velha, e o julgamento da sociedade por não seguir o padrão esperado, não teme por se arrepender e se isso acontecer buscaria a possibilidade de adoção.
Mas enquanto isso, a vida corrida de Vanessa por conta das viagens a trabalho entre outras razões justificam a não pensar em filhos: “São vários os motivos que justificam eu não ter filhos, como, por exemplo, o esgotamento dos recursos naturais no planeta, perda/inversão de valores da sociedade ocidental atual, entre outros”, afirma a servidora.
A psicóloga Miriam Pondaag aponta que há outros caminhos de realização das mulheres, e se ela vai para o lado de não ter filhos é legítimo da mesma forma que alguma mulher que queira: “Nessa discussão ela não está questionando o valor da maternidade ou contra a gravidez. Não é isso. É que se a mulher vai para esse caminho, ela vai porque é uma escolha dela, é o direito da liberdade e a autonomia das mulheres”.
A* Pinheiro (que preferiu não se identificar), 34 anos, servidora pública, FEMINISTA DO SÉCULO 20 Simone de Beauvoir foi uma importante feminista da metade do século 20. Em 1949, Simone de Beauvoir, escritora e filósofa francesa, revolucionou com o seu livro “O segundo sexo”, em que originou o feminismo contemporâneo. Com isso, as mulheres se percebem desafiadas a contestar o determinismo biológico que reservava a elas a função materna. A obra retrata a condição da mulher nos planos social, político, psicológico e sexual, lutando não mais apenas para combater as desigualdades sociais, mas as raízes culturais dessa desigualdade. Beauvoir não teve filhos e nunca se casou com o seu companheiro, Sartre. Ela acreditava que para estabelecer uma relação de amor não era necessário o casamento. A psicóloga Miriam Pondaag aponta que há outros caminhos de realização das mulheres, além da maternidade tinha o objetivo, quando criança, de ter de 3 a 4 filhos. Com o passar do tempo e as responsabilidades adquiridas aos 18 anos, após ter saído de casa para estudar, o desejo de ser mãe foi abolido. Pelo empoderamento feminino, descobriu que não precisa ser mãe para ser mulher.
A* Pinheiro já parou para pensar se mudaria de opinião. “Às vezes me pego pensando se me arrependeria em ter uma velhice mais solitária. Mas aí penso que filhos não são para a gente, são para o mundo”. Além disso, pensa nas sobrinhas: “Se nasce mulher, todo assédio que passaria em sua vida. Eu sofri abuso infantil na casa de uma amiguinha quando tinha uns quatro anos”, relata.