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Mulheres ainda lutam por “lugar ao sol” na diplomacia
O Itamaraty foi o primeiro órgão da administração pública federal a receber uma mulher em seu quadro. Mas apesar deste pioneirismo, as mulheres ainda têm pouco espaço na diplomacia brasileira
por: Carolina Vasconcelos
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O Itamaraty foi o primeiro órgão público brasileiro a receber uma mulher através de concurso público. Ela se chama Maria José Rabelo e no ano de 2018 fez cem anos de sua inserção na carreira diplomática. Baiana, nascida no ano de 1891, Maria falava mais de quatro idiomas, e ficou sabendo do concurso através de um primo.
Após estudo e dedicação, Maria José foi recusada na inscrição para o concurso da carreira diplomática pelo Ministério da Relações Exteriores (MRE). Não satisfeita com o resultado, foi atrás do polímata brasileiro Rui Barbosa, para que ele examinasse juridicamente a recusa.
Após muita pressão o ministro Nilo Peçanha concedeu a ela o direito de participar do concurso, e deu a seguinte declaração: “Não sei se as mulheres desempenhariam com proveito a diplomacia, vide tantos atributos de discrição e competência que são exigidos, o que não posso é restringir ou negar o seu direito… Melhor seria, certamente, para o seu prestígio que continuassem a direção do lar, tais são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração, desde que fiquem provadas suas aptidões”.
No ano de 1918, Maria José passou em primeiro lugar no concurso de admissão à carreira diplomática. Em 1922, a diplomata se casou com outro diplomata que participou de sua banca de avaliação. Mas sua carreira não durou muito. Em 1934 ela se aposentou devido ao seu marido ter sido nomeado para o cargo de conselheiro na Bélgica.
O Ministério que foi revolucionário ao receber a primeira mulher como um de seus funcionários não continuou seu progresso em causas femininas. Atualmente, apenas 23% dos funcionários do quadro do Itamaraty são mulheres e, dentre elas, poucas se destacam e alcançam postos
de liderança no meio de tantos homens que comandam a política externa brasileira.
O ingresso na carreira Guiada por querer ser representante da nossa nação perante os outros países, por ser um agente político responsá vel por implementar as diretrizes da política externa e acompanhar o dinamismo do mundo, a millennial Maria Clara Villasboas, 22 anos, estudante de Direito, decidiu se dedicar para passar no concurso do Instituto Rio Branco (IRBr), que promove a seleção dos novos integrantes da carreira diplomática.
A oficial de chancelaria Vidya Moreira afirma que mulheres precisam trabalhar duas vezes mais que homens, além de se preocupar com aparência
A rotina desgastante de uma mulher no Itamaraty As autoridades brasileiras recebem o presidente da Argentina. Nenhuma mulher participa da ocasião
Segundo pesquisa da American Sociological Review, os millennials acreditam que ambos os sexos tendem a acreditar em responsabilidades equivalentes para homens ou mulheres, a despeito de papeis de gênero, independentemente de nível educacional ou de renda. Maria defende que ao entrar no Itamaraty mudará a realidade feminina por lá: “Minha expectativa é representar a carreira da mulher na diplomacia brasileira, assim como aumentar gradualmente a presença feminina em papéis de liderança na representação do país no exterior, mediante a promoção do Brasil para o mundo e a atuação em diversos campos profissionais.”
Para chegar no seu objetivo, Maria terá que passar por um dos concursos mais difíceis do Brasil. O CACD, Concurso de Admissão à Carreira Diplomática, é composto por três fases onde são testados conhecimentos sobre História do Brasil, História Mundial, Política Internacional, Geografia, Noções de Economia e Noções de Direito e Direito Internacional Público, Língua Portuguesa, Língua Espanhola e Língua Francesa.
A primeira fase é objetiva. Na segunda, o candidato fará provas escritas, uma redação e dois exercícios de interpretação. E a última fase é composta por uma prova escrita. Além da avaliação, os inscritos à vaga têm que lidar com a concorrência. No ano 2017 foram 5.939 inscritos para 22 vagas.
A primeira secretária do Itamaraty Ana Paula Kobe, que já tem 15 anos na carreira diplomática, afirma que a profissão é extremamente desafiadora. Ela relata que a falta de representatividade feminina é vista desde o momento em que se começa a ter aulas no Rio Branco. “Cerca de um terço da minha turma era composta por mulheres”. Mas relata ter memórias muito positivas de suas colegas: “Eu via mulheres extremamente competentes, inteligentes, com o espírito de aventura bastante presente”.
Segundo o conselheiro Heitor Granafei, as mulheres de nada se diferenciam dos homens na hora de ingressar na carreira: “Há menos mulheres do que homens no MRE, e as turmas do IRBr são majoritariamente masculinas. Mas
Turma de 26 alunos do IRBr 2019 conta com apenas 4 mulheres
deve-se lembrar que há um concurso público aberto a homens e mulheres, com provas escritas e não identificadas”.
Maybi Mota, terceira secretária da turma de 2018 do IRBr, que é comandado por uma mulher, a Ministra de Primeira Classe Gisela Padovan, conta que fez parte da turma com uma representatividade feminina muito grande, com 40% de mulheres. O oposto da turma de 2019, que contou com apenas 4 mulheres dentre os 26 novos terceiros secretários.
Além da falta de representatividade feminina, as dificuldades de convivência nessa carreira podem ser sentidas pelos egos inflamados e posições hierárquicas. “No Ministério você vê uma briga de egos muito grande. Você vê que não só a sua capacidade e o seu trabalho são suficientes para você ocupar um lugar no Itamaraty”, afirma a cientista política que fez estágio no Ministério das Relações Exteriores por cerca de dois anos, Liliane Santos.
A autoridade feminina Maybi Mota decidiu entrar na carreira pelo seu interesse em buscar o melhor para seu povo e seu país. Sentia que estaria realizada fazendo isso no âmbito internacional. O desejo dela para o futuro na profissão é progredir na carreira e servir em postos em diversos continentes.
Com esse desejo de servir ao Brasil, a diplomata Odete de Carvalho e Souza, no ano de 1956, se tornou a primeira embaixadora de carreira que se tem notícia no mundo. Porém, o papel das mulheres em cargos de chefia e liderança é algo escasso, já que apenas 8% das Embaixadas são geridas por mulheres, 26% das chefias de Missões junto a Organismos Internacionais e 29% das chefias de Consulados.
Nenhuma das embaixadas nas Américas e na Oceania têm ou já tiveram o comando feminino. Nas 27 maiores representações diplomáticas do Brasil no exterior que contam com equipe de dez ou mais diplomatas somente uma
é atualmente chefiada por mulher (em Genebra, na Suíça).
A oficial de chancelaria Vidya Moreira afirma que um dos desafios para uma mulher se destacar é o fato dela ter que trabalhar duas vezes mais que um homem, além de se preocupar com a aparência, pois ela é julgada por isso. E lidar com o peso familiar que é muito grande pois não existem políticas adequadas para mulheres com filhos, em relação a flexibilidade de horário e meios de trabalho voltados à maternidade.
Vidya afirma que o patriarcado é um dos piores rivais na luta feminina pela chefia: “Têm algumas que acabam se masculinizando muito, e tentam ficar cada vez mais agressivas para caber nesse mundo patriarcal. Mas existem outras que não, que têm uma visão diferente, que se destacam pelo seu lado humano, firme, cooperativo. Outro fator importante na chefia feminina são mulheres que se dispõem a ajudar outras mulheres”.
A primeira secretária Ana Paula Kobe relata que, geralmente na primeira metade da carreira, o preconceito é velado. As dificuldades maiores são sentidas a partir do momento em que diplomatas começam a ser nomeados para cargos grandes. E é nessa hora que a maioria das portas são abertas exclusivamente para homens.
“Nunca passei, até agora, por situ ações onde fui preterida por ser mulher. Isso não é aberto, e com isso quero dizer que podem, sim, ter existido diversas situações em que as dificuldades para as mulheres foram veladas, e tão veladas, que muitas vezes até nós não percebemos”.
A cientista política Liliane revelou que no seu setor toda a chefia era mascu lina. “Já ouvi falar de cenas de preconceito que aconteceram dentro do Itamaraty,
Em todos os ambientes do Itamaraty, as mulheres são minoria
onde mulheres não eram reconhecidas pela sua autoridade, não tinham seu trabalho valorizado pelos chefes e colegas”.
Família
Durante uma entrevista de emprego, a cientista política Lays Santos foi perguntada se possuía filhos. A partir desse questionamento ela passou a refletir sobre o papel da mulher na política em geral, e na diplomacia, que é a política exterior. “Cerca de 95% dos diplomatas que conheço são homens. Vejo a diplomacia como um lugar voraz e de sub-representação feminina”.
A careira tem um agravante que é a instabilidade de moradia, já que muitos dos cargos ofertados são no exterior. “O complicador da diplomacia é o deslocamento constante. A cada 3 ou 4 anos você está em um país diferente. Isso pode ser extremamente desafiador. Se você vai ter um companheiro que não é da carreira ele vai se deslocar com você. Mas, se você tem uma família que exige que seus filhos estejam perto, isso vai ser uma fonte de conflito”, afirma a secretaria, Ana Paula.
Os problemas das mulheres diplo matas vão além de questões de cuidado direto com a família. Vidya relata que um dos problemas para sua carreira não ser alavancada é a falta de tempo extra disponível para o trabalho: “Eu trabalho apenas a minha carga horária, e isso me impede de ser promovida. Gasto o resto do meu tempo cuidando dos meus filhos.”
O Conselheiro Heitor Granafei, que almeja o cargo de Ministro de Segunda Classe, relata que sua carga horária é bastante elevada: “Em média, trabalho mais do que 8 horas por dia. Minha mulher, que também é diplomata, também trabalha mais do que as 8 horas regulamentares. Isso afeta um pouco nossa vida familiar”.
Esse cuidado familiar e esse lado maternal são fatores que criam nas mulheres o estigma de que elas são designadas ao cuidado e não a cargos de política e negociação. Porém segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 14% das mulheres não têm planos de engravidar. O Itamaraty expõe que nas negociações relativas à paz, quando são feitas por mulheres, têm 35% de chances de o acordo ter êxito e durar mais de 15 anos.
Incentivos 366 mulheres formam o quadro de mulheres diplomatas no Itamaraty em 2019, 23% do quadro geral. No exterior, as mulheres têm suas dificuldades na profissão, mas alguns países implementaram a política de cota para mulheres, onde 50% do total de vagas da carreira diplomática são voltadas para o público feminino, dando a elas, voz e espaço na política exterior.
“Tem diversos países como a Franca ou países escandinavos que têm cerca de 50% do ingresso de mulheres. A quantidade é importante? Por um lado, sim! E importante pois você tem mais pessoas pensando a condição de ser mulher na diplomacia e pensando criticamente o que isso pode representar e impactar na vida de todo mundo”, afirma a diplomata Ana Paula Kobe.
Na França, a primeira diplomata assumiu o cargo em 1920. Lá, as mulheres trabalhavam com Relações Exteriores, mas sempre desempenhavam funções de secretaria, datilografa ou redatora, nunca estavam ligadas a tomada de decisões.
Um dos fatores que alavancou a carreira feminina na diplomacia na Europa foi a Primeira Guerra Mundial. Após a criação do movimento feminista, das Organizações Internacionais, muitos homens estavam na guerra e elas ficaram com a função de fazer seus lares e países funcionarem, apesar de todo o conflito.
No Brasil, o Itamaraty tem um projeto que incentiva mulheres a entrarem na carreira diplomática. A iniciativa se chama “Mais Mulheres Diplomatas”. Com esse projeto, o Ministério das Relações Exteriores produziu uma série de conteúdos audiovisuais, contando a história de grandes mulheres que atualmente seguem essa carreira.
Os vídeos podem ser acessados no Instagram e no YouTube do Itamaraty. O conteúdo apresenta mulheres de diferentes cargos, raças e divisões do Ministério. Desde terceiras secretárias, como a Graziela Streit, que conta um pouco da sua trajetória até sua entranha no Instituo Rio Branco a cargos de chefia, como o da Ministra de primeira classe Gisela Pado van. Em seu vídeo a diplomata relata um pouco de suas dificuldades como mãe na carreira. Mas a mensagem principal de todos os vídeos é a mesma: chamar mais mulheres para entrar na profissão.
CARREIRA DIPLOMÁTICA
A carreira diplomática começa quando se entra no Instituto Rio Branco como Terceiro secretário. Após no mínimo três anos, torna-se segundo secretário automaticamente. O próximo passo é se tornar primeiro secretário, onde já se pode ocupar a função de chefe. Após nove anos na função pode-se tornar conselheiro, onde já existe a possibilidade de chefiar uma divisão ou um posto D. Seguindo, tem o cargo de ministro de segunda classe, e em seguida embaixador, cargo que permite-se chegar a secretário-geral.