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Mini/Micro-Guia de Sobrevivência Hospitalar

Micro-Hospital Survival Guide

João Brasil1

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1. Serviço Anestesiologia - Hospital Particular do Algarve

jbrasil@gmail.com

Em 1978 Samuel Shem publicou “A Casa dos Deuses”, uma obra que retrata, numa perspectiva satírica, as peripécias de seis estudantes de medicina acabados de sair da faculdade ávidos por desafios na sua luta pela sobrevivência e sanidade mental durante o primeiro ano de internato.

Ao longo dos anos “A Casa dos Deuses”1 converteu-se num verdadeiro livro de culto, lido por médicos, estudantes de medicina, doentes hipocondríacos e demais a quem passou pelas mãos.

Desta obra ficaram célebres os ensinamentos ministrados por uma das personagens, um médico interno mais velho conhecido pela alcunha de “Gordo”. Ao longo do livro o Gordo ensina aos jovens internos as suas regras de conduta para manter os pacientes saudáveis e sobreviver psicologicamente ao dia-a-dia hospitalar. Estes ensinamentos totalizam treze leis no final da obra que ficaram conhecidas como As Leis da Casa dos Deuses.

Neste pequeno texto pretende-se, à semelhança do que foi feito na obra de Samuel Shem e com as devidas adaptações aos nossos tempos, descrever alguns dos “ensinamentos” assimilados ao longo dos anos, numa perspectiva pessoal e despretensiosa, sem o intuito de ser moralista e que não intenta ofender nem ferir susceptibilidades. É esta a forma como deve ser lido este texto, que encerra também em si mesmo um carácter de auto-crítica. In 1978 Samuel Shem published “The House of God”, a work that portrays, in a satirical perspective, the adventures of six students just out of college and eager for challenges in their struggle for survival and sanity during the first year of internship.

Over the years “The House of God”1 has become a true cult book, read by doctors, medical students, patients, hypochondriacs and others who have gotten their hands on it.

From this work, lessons have become famous through one of the characters, a Doctor known by the nickname “Fatty.” Throughout the book Fatty teaches young people their internal rules of conduct to keep patients healthy and psychologically survive day to day in the hospital. These teachings total thirteen laws at the end of the book become known as The Laws of the House of Lords.

In this short paper we intend to do, as done in the work of Samuel Shem, the necessary adaptations to our times, describe some of the “lessons” we have learned over the years, in a personal and unpretentious perspective, of being moralist but with no intention of offending. This is how this text should be read.

1. Dentro de um hospital nunca estamos sós, podemos é estar mal acompanhados.

Esta lei aplica-se a doentes, a profissionais e às diversas relações entre estes.

2. Um médico tem de saber para o que nasceu, nem que seja para placebo.

Historicamente sempre foi questionada a vocação de alguns médicos para o exercício da profissão, para o exercício da sua especialidade, etc. É regra, e neste caso sem excepção, que todo o individuo é possuidor de virtudes e de defeitos. Ora é importante, no exercício da medicina, que o médico saiba quais as suas principais qualidades e como as aplicar.

3. O internamento só acaba quando o doente tem alta ou morre, mesmo que demore dias.

É vulgar no quotidiano hospitalar depararmo-nos com situações em que pacientes e familiares apresentam grandes expectativas relativamente a tratamentos e intervenções cirúrgicas. No entanto as situações clínicas podem modificar-se subitamente e das tarefas agendadas alterar-se rapidamente. Sendo frequente os internamentos prolongarem-se, mais do que seria espectável pelos pacientes e familiares. E por vezes a o final da linha é mesmo a morte.

4. Alguns médicos têm “sempre razão”, mesmo quando estão errados.

São relativamente frequentes as discussões entre médicos e entre médicos e outros profissionais, sendo também conhecida a teimosia de alguns profissionais e os conflitos entre classes profissionais.

5. Quanto maior o currículo do médico, menos doentes vê.

Depois do licenciado em medicina, há o interno geral, há o médico generalista, há o interno da especialidade, há o especialista (aqui ainda se incluem vários graus), há o sub-especialista. A estes degraus da carreira podem ainda adicionar-se um percurso académico com cursos, pós-graduações, mestrados e doutoramentos. Mas normalmente quanto maior o percurso profissional e académicos menos doentes são consultados e normalmente são avaliados na perspectiva da super-diferenciação, deixando muitas vezes o doente de ser visto como um todo. 1. Within a hospital we are never alone, but sometimes we have bad company.

This law applies to patients, professionals and the various relationships between them.

2. A doctor has to know what he was born for, even if only a placebo.

The vocation of some doctors has always been historically questioned in the profession, to practice their specialty, etc.. It’s a rule, and in this case without exception, that every individual possesses virtues and defects. It is important in the practice of medicine, that doctors know what their main qualities are and how to apply them.

3. Hospitalization is only over when the patient has been discharged or dies, even if it takes days.

It is common in the hospital that everyday we come across situations where patients and family members have high expectations for treatments and surgeries. However, the clinical conditions can change suddenly and scheduled tasks change rapidly. Being frequent that hospitalizations may be longer than expected by the patient and relatives, sometimes the end of line is death.

4. Some doctors are “always right” even when they are wrong.

Discussions are relatively frequent between doctors and other professionals, and the stubbornness of some professionals and conflicts amongst professional classes is expected.

5. The greater the medical curriculum, the fewer the patients seen.

After the medical license, there is a general internship, general practitioner, specialist residency, specialist (this also includes various levels) an there is the sub-specialist. To the steps to medical career, academic courses, postgraduate courses, masters and doctorates. But, the higher the professional and academic career, the fewer the patients that are consulted and they are usually evaluated in the view of the super-differentiation, often not seeing the patient to be seen as a whole.

Figura 1. Composição internos sob “Ansião dos Dias”, pintura de Willian Blake, 1794. Figure 1. Composition residents under “The Anciente of Days”, painting by Willian Blake, 1794.

6. Todo o doente é um doente, até prova em contrário.

Nem todo o utente que recorre a um serviço de saúde é um doente, mas em muitas situações o juízo precoce e a aplicação de rótulos são altamente prejudiciais, podendo mesmo em algumas situações custar uma vida.

7. Há médicos que “nada” sabem, mas a quem todos os outros pedem ajuda.

É frequente assistirmos a criticas e comentários menos abonatórios entre pares, quer dentro da sua especialidade, quer entre especialidades, mas continua a ser muito interessante verificar como estas opiniões podem passar tão rapidamente para segundo plano e ser esquecidas em alguns “momentos de aflição”.

8. A grávida, apesar de normalmente não estar doente, é por rotina a utente mais importante do hospital.

Os cuidados materno-infantis tiveram uma grande melhoria ao longo das últimas décadas, culminando com uma diminuição 6. Every patient is a patient until proven otherwise.

Not every health user who uses a health service is a patient, but in many situations, the court applies labels that are very harmful and may even, in some cases, cost a life.

7. There are doctors that know “nothing”, but whom everyone asks for help.

We have often seen less favorable criticism and comments among peers, both within their specialty, and between specialties, but it can still be very interesting to see how these views can pass so quickly into the background and be forgotten in a few “moments of distress.”

8. The pregnant woman, though usually not sick, is routinely, the most important user of the hospital.

The care for mother and child has seen a great improvement over the past decades, culminating in a very significant reduction of morbidity and maternal and infant mortality. These results

bastante significativa da morbilidade e mortalidade maternoinfantil. Estes resultados só foram possíveis à custa de uma mudança comportamental, que por vezes chega a parecer “excessiva”, mas que provavelmente deveria ser adoptada em outras áreas de medicina.

9. Normalmente a “Melhor Mãe do Mundo” só atrapalha.

As intenções de cuidar, proteger, estar sempre presente, ajudar são em algumas situações contra-producentes – especialmente quando levadas ao extremo. Gerando muitas vezes uma adicional e desnecessária ao profissional de saúde.

10. Em Medicina quem procura, encontra.

É uma verdade de La Palice que em medicina para se fazerem diagnósticos é necessário investigar, mas é também verdade que muitas situações de “fácil” diagnóstico continuam por descobrir e tratar, por falta de atitudes básicas.

11. A “ferramenta” mais importante na medicina moderna é o “rato”.

A informatização hospitalar e a introdução dos registos clínicos electrónicos, digitalização de exames complementares e prescrições terapêuticas online fizeram com que qualquer médico sem conhecimentos mínimos de informática se torne um ser offline, ou em algumas situações um bug (erro informático). Num futuro próximo o médico ficará ainda mais dependente do “sistema” e terá de fazer cada vez mais upgrades (actualizações).

12. Os exames auxiliares de diagnóstico têm o potencial de criar novos problemas.

É relativamente frequente termos achados imprevistos e não desejados quando se solicitam exames complementares de diagnóstico.

13. A Medicina Pré-Hospitalar só transporta para o hospital doentes que lá chegariam, vivos ou mortos, mas num transporte menos ruidoso.

A cordialidade entre pares é demasiadas vezes esquecida. Cada qual deve fazer o seu trabalho, assumir os seus doentes e tomar as suas decisões de forma livre. A decisão de um médico não implica a concordância de outro, excepto quando em causa está o incumprimento das legis artis. were possible only at the expense of a behavioral change, which sometimes seems “excessive”, but that should probably have been adopted in other areas of medicine.

9. Normally the “Best Mother of the World” is a bother.

The intention to care, protect, always be present, help are some of the situations that are counter-productive - especially when taken to extremes. It often creats additional and unnecessary pressure to the health professional.

10. In medicine, he who seeks, finds.

It goes without saying that in medicine to diagnose, investigation is needed, but it is also true that many cases of an “easy” diagnosis it continues lack discovery and treatment due to the lack of basic attitudes.

11. The most important “tool” in modern medicine is the rat.

The hospital computerization and the introduction of electronic health records, with scanning of exams and therapeutic prescriptions online done without any conputer knowledge, make doctors an offline entity, or in some cases a bug. In the near future the doctor will be even more dependent on the “system” and must will have to do even more upgrades.

12. Diagnostic tools have the potential to create new problems.

It is relatively common to find unwanted and unexpected terms when soliciting the diagnostic tests.

13. Prehospital medicine carries to hospital only patients who arrive, alive or dead, but in a less noisy transport.

Cordiality between peers is too often forgotten. Everyone must do their work, assume their patients and make their decisions freely. The decision of a doctor does not imply the concurrence of another, except when in question is the failure to obey the legis artis.

Referências:

1. Shem S. The House of God. Richard Marek Publishers, 1978

Texto pleno de ironia publicado préviamento no Barlavento Médico e retomado nesta época de pandemia, como elemento de reflexão, onde muito do que conhecíamos está metido em causa. Full text of irony published beforehand in the Barlavento Médico and resumed in this pandemic era, as an element of reflection, where much of what we knew is involved

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