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SENHORA DO MAR

Jo O David Marques

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CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS

Comprimento 66,67 Mts fora a fora

Comprimento 61,78 Mts

Boca 11,03 Mts

Pontal 4,83 Mts

TAB 1 177,56 Tons

TAL 658,43 Tons

Porto de Registo Lisboa, Porto (em 20-11-1952),

Aveiro (em 24-11-1969),

VianadoCastelo(em9-6-1987)e

Panamá (em Janeiro de 1990)

N º Oficial LX-36-N (em 16-05-1952)

P-782-N (em 20-11-1952),

A-2036-N (em 24-11-1969),

A-2972-N (em 4-1-1980),

A-3107-N (em 9-9-1981),

V-11-N (em 9-6-1987)

IIC C S A S

Motor propulsor MAK 750 BHP e MAK 1 380 BHP (em 1962)

Motor do molinete LLOYD DINAMOWORK20 HP

Emissor S A I T

Receptor S A I T

Iluminação Eléctrica

Aquecimento Central

Capacidade de Carga 17 557 Qts

Capacidade Frigorífica 100 m3

N º Tripulantes 24

N º Pescadores 74

N º Botes 74

Navio gémeo do “Capitão João Vilarinho”, cujo projecto foi da autoria do Eng João Farrajota Rocheta

Navio-motor em aço, construção n.º 147 dos Estaleiros da Administração do Porto de Lisboa, de que era arrendatária a Companhia União Fabril (CUF), na Rocha do Conde de Óbidos, em 1952, construído em três meses, por conta e ordem da firma Mariano & Silva, Lda , com sede na Murraceira, Figueira da Foz e escritórios no Porto, na Avenida dos Aliados, pela quantia de 7 750 000$00

A firma proprietária forneceu todo o material instalado do navio, procedeu à montagem dos motores e equipou-o com todos os aprestos necessários à sua laboração de pesca, pelo que lhe atribuiu o valor de 13 000 000$00

O aparelho propulsor era constituído por um motor Diesel, marca MAK, tipo MSV 581, de 6 cilindros, a 4 tempos, da potência de 750 BHP a 300 r.p.m., construído em 1951, em Kiel, na Alemanha, que movia 1 hélice de 3 pás e que lhe imprimia a velocidade de 10 nós, com um consumo médio de 170 gramas de gasoil por cavalo/hora

O bota-abaixo aconteceu no dia 28 de Fevereiro de 1952

No mês de Abril, o Capitão Jara de Carvalho orientou as experiências de mar, sendo acompanhado pelo director do estaleiro, D Vasco de Mello, Marquês de Sabugosa, e pelo director da construção, Almir Machado Martins

Por vistoria passada pela Capitania do Porto de Lisboa, em 21 de Abril de 1952, foi julgado em condições de poder registar para ser empregado no serviço da pesca longínqua

Em 16 de Maio de 1952 registou, na Capitania do Porto de Lisboa, sob o número LX-36-N, com a denominação de “Senhora do Mar” e foi autorizado a registar na Capitania do Porto do Douro, em 20 de Novembro do mesmo ano, por despacho da Direcção da Marinha Mercante, com a mesma denominação e com o número oficial P-782-N

Em 1958, o Dr António Martinho do Rosário (Bernardo Santareno) fez a campanha a bordo do “Senhora do Mar” para prestar assistência médica às tripulações dos navios da frota da pesca à linha

Em Janeiro de 1962, devido às fortes cheias do rio Douro, o navio garrou do seu ancoradouro de Santo António do Vale da Piedade e encalhou Ficou encostado à prancha-cais do antigo Frigorífico do Peixe, em Massarelos, com a proa perto da linha do eléctrico Este acidente levou a que o navio, a partir de então, e até ao seu desmantelamento, em 1994, ficasse com a alcunha de “ O Carro Eléctrico”

Foi desencalhado e sofreu grandes reparações, devido às avarias sofridas, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Ainda em reparação e por despacho do Ministro da Marinha, de 26 de Junho de 1962, foi autorizado a transformar de navio de pesca à linha para arrastão clássico. Foi equipado com um novo motor propulsor da marca MAK, tipo MSC 5852 AK, n º 10811, de 6 cilindros, a 4 tempos, da potência de 1.380 BHP a 300 r.p.m. e 1 hélice, construído na Alemanha, em 1961, que lhe imprimia a velocidade de 12 nós Sofreu novas arqueações, obtendo-se os seguintes resultados: TAB: 1.161,23 Tons. e

TAL: 629,29 Tons A transformação ficou pelo valor de 10 900 000$00 e fez a primeira campanha, como arrastão, em 1963.

Por escritura lavrada a 30 de Maio de 1964, no 10 º Cartório Notarial de Lisboa, a sociedade por cotas Mariano & Silva, Lda foi transformada em Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada, sob a denominação de Pesca e Secagem de Bacalhau, SOLSECA, S A R L No início da campanha de 1964, durante a viagem de Lisboa para os Bancos da Terra Nova, foi encontrado um clandestino de 16 anos de idade, residente em Cacilhas e natural de Lisboa Este jovem foi entregue ao “Gil Eannes” com o fim de ser repatriado

No dia 22 de Janeiro de 1966, quando saía a Barra de Lisboa, com destino aos mares da Terra Nova e Groenlândia, aconteceu um incêndio na casa das máquinas A tripulação conseguiu extinguir as chamas, mas o navio ficou impossibilitado de continuar viagem Regressou ao Tejo, tendo ido atracar à ponte cais do Ginjal, da Sociedade de Reparações de Navios, Lda., para ser reparado e seguir viagem para a próxima campanha à pesca do bacalhau

Em 13 de Novembro de 1969, foi comprado pela Empresa de Pesca Ribau, Lda., com sede e secadouros na Gafanha da Nazaré e gerência de José Ribau, pela quantia de

CIMA: Navio-motor "Senhora do Mar"

Foto: Fotomar-Matosinhos.

BAIXO: Navio-motor "Senhora do Mar", encalhado em Massarelos Foto: Autor desconhecido, Colecção de Reinaldo Delgado.

20 000 000$00 Estava hipotecado ao Fundo de Renovação e de Apetrechamento da Indústria das Pescas (FRAIP) por 5.318.648$80. Foi levantada a hipoteca e registou, em 24 do mesmo mês e ano, na Capitania do Porto de Aveiro, a favor da Empresa de Pesca Ribau, Lda com a mesma denominação e o número oficial

A-2036-N

Encontrava-se, mais uma vez, hipotecado pelo valor de 7 800 000$00, mas a hipoteca foi levantada e por escritura lavrada em 18 de Outubro de 1979 foi comprado pela Empresa de Pesca de Lavadores, Lda com sede e secadouros em Ílhavo, na praia da Barra, e gerência de Amílcar José de Oliveira Madaíl e António José Mónica Lopes Conde, por 51 000 000$00, sendo registado em 4 de Janeiro de 1980, com o número oficial A-2972-N

Em 9 de Setembro de 1981, foi adquirido pela Sociedade de Pesca Luso-Brasileira, Lda., de que eram sócios Adalcino Sabino, António José Mónica Lopes Conde, Ilídio José Pomar Peixoto e Manuel Alves Mendes, por 57 000 000$00 e registado na mesma data, na Capitania do Porto de Aveiro, com a mesma denominação e com o número oficial A-3107-N

Em Fevereiro de 1987, foi adquirido pela Empresa de Pesca de Viana, Lda. e registado na Capitania do Porto de Viana do Castelo, em 9 de Junho do mesmo ano, com o número oficial V-11-N

Só fez duas campanhas à Terra Nova, tendo entrado em Viana do Castelo a 13 de Setembro de 1988 pela última vez

Em Janeiro de 1990, foi registado a favor da Naviera Ocean Wolf S A , no Panamá, empresa subsidiária da Empresa de Pesca de Viana, com o nome de “Leone IV”

Permaneceu atracado no porto de Viana do Castelo, até que em 30 de Abril de 1994 foi para Gijón, Espanha, a reboque do rebocador “Facal 14” para ser desmantelado.

Foram seus comandantes os Capitães

Joaquim Agonia da Silva (em 1952), João José da Silva Costa (de 1953 a 1965), António Manuel Papão Chinita (em 1966), Joaquim Octávio Barbosa Sá Dias (de 1967 a 1970), José Manuel Martins Condeço (de 1971 a 1979), Manuel Ângelo Nunes Correia (de 1980 a 1982) e António Manuel da Silva Camacho (em 1987 e 1988)

Biografia

João David Batel Marques nasceu em Ílhavo, no dia 31 de Agosto de 1953. Em 1972, terminou o Curso Geral de Pilotagem da Escola Náutica e embarcou para a pesca do bacalhau como piloto do arrastão popa “Santa Mafalda” Seguiu-se um ano na marinha de comércio, na Companhia Nacional de Navegação, e regressou à pesca do bacalhau como piloto e imediato do arrastão popa “Lutador” Em 1981, concluiu o Curso Complementar de Pilotagem, tendo assumido o comando do arrastão clássico salgador “Bissaya Barreto”

De seguida, passou a comandar o arrastão clássico congelador “Praia do Restelo” e os arrastões popa congeladores “Almourol”, “Ilhavense” e “Nova Fé”

Em 1989, como não se avistava grande futuro para a pesca longínqua, regressou a marinha de comércio. Foi imediato do graneleiro “Secil Congo” e comandou o navio de carga geral “Secil Bengo”, os navios de carga geral e contentores “Secil Dande” e “Secil Namíbia”, o navio de transporte de carga frigorífica “Cuíto Cuanavale” e o navio porta contentores “Dina”

Por último, dedicou-se a formação profissional, tendo dado aulas de construção naval em madeira, componente teórica, tendo-se reformado quando atingiu a idade legal de o poder fazer.

BIBLIOGRAFIA:

AMARO, Rui Picarote, A BARRA DA MORTE a foz do Rio Douro O Progresso da Foz

CIEMar (Centro de Investigação e Empreendorismo do Mar, do Município de Ílhavo): CRCB (Comissão Reguladora do Comércio de Bacalhau) – Diversas pastas de arquivo

CIEMar: CRCB – Fichas dos navios por viagem Jornais “O Ilhavense” de 20 de Abril, 1 de Maio e 1 de Junho de 1955

Jornal do Pescador de Maio de 1952 pp 45 a 47

Livro de Registos da Pesca Longínqua (N-1) da Capitania do Porto de Lisboa, fls 21

Livro de Registos n º 9KK da Capitania do Porto do Douro, fls 52

Livro de Registos n º 5 da Capitania do Porto de Aveiro, fls 100, 127 e 133

MARQUES, João David Batel, A PESCA DO

BACALHAU-História, Gentes e Navios, Tomo III - Os Navios-motor da Pesca à Linha - Edição Fundação Gil Eannes, Jan 2019, Viana do Castelo

MARQUES, João David Batel, OS NAVIOS DE ASSISTÊNCIA À FROTA BACALHOEIRA – Tomo II –O “Gil Eannes” de 1955 – Fundação Gil Eannes, Setembro 2021, Viana do Castelo

MARTINS, Manuel de Oliveira, Viana e a Pesca do Bacalhau, Colecções CER SEIVA, Viana do Castelo1 ª Edição 2013

Relatório da viagem n º 17 (1964) do Comte do “Gil Eannes”, Capt Mário da Costa Fernandes Esteves

Neste novo elenco da Direccção do C O M M , coube ao Hélder Martins e a mim próprio, o assunto “Biblioteca” Como éramos ambos novatos neste assunto, começámos por efectuar visitas acompanhados pelo Alberto Fontes, à Biblioteca da Escola Náutica Infante D Henrique e à Biblioteca Central de Marinha, onde fomos recebidos pelos respectivos Directores, que nos facultaram as primeiras “luzes” sobre o assunto

Definido o plano de actuação, verificámos o conteúdo de todos os armários / prateleiras da Biblioteca do C O M M , tendo apurado um total de 3 273 livros, 34 caixas e 17 dossiers Destes livros, cerca de 55% foram herança das extintas Companhia Nacional de Navegação e Sociedade Geral

Seguir-se-á a fase da elaboração duma base de dados, onde conste os títulos das obras, os autores, a localização e demais observações, que se afigurem pertinentes.

Durante o levantamento da nossa Biblioteca, vieram-me parar às mãos alguns livros sobre a Soponata

Não foi sem um pouco de emoção que ao folheá-los me lembrei da 1 ª vez que pisei a sede da Soponata na Rua do Açucar, em Lisboa

Acabado o Curso Geral de Pilotagem, em 1967 e ao pesquisar Companhias de Navegação para 1 º embarque, eu e o companheiro do mesmo curso, Abreu Freire, fomos à Soponata Claro que a possibilidade para embarcar, naqueles tempos, era imediata A mim foi destinado o N/T “INAGO” e ao meu amigo o N/T “FOGO”. Ambos matriculados de 3 º Piloto O “INAGO”, que tinha sido “apanhado” pela Guerra dos 6 Dias no Canal do Suez, na ida para o Pérsico, fez a viagem de volta já pelo Cabo A tripulação vinha um pouco “transtornada”, pareceu-me Apresentado ao Comandante Luís Reis pelo Imediato Correia Vicente, sou recebido com a pergunta: “Sabe onde se vem meter?” Foram 3 anos neste navio, uma autêntica Escola e com um “ núcleo duro” como segue: Imediato Silva Afonso, 1º Piloto Joaquim Coelho, Chefe Vitor Reis, 3º Maquinista Gomes Lopes (do meu curso da Náutica), e muitos outros onde a camaradagem imperava De notar que só do Curso 1965/1967, embarcaram no N/T “INAGO”, 15 Oficiais Mas passados estes 3 anos, com muitas viagens principalmente, para Khor-al-Amaya (Iraque), ida e volta pelo Cabo, havia que conhecer novas paragens/navios e foi o que fiz, mas voltei.

Hoje os livros já me fizeram viajar até às memórias, o que tem acontecido sempre que mergulho neste arquivo tão especial e repleto de vida de mar.

António Sena

Nota:

Em baixo, fotos dos Livros sobre a Soponata, embora nem todos existam na Biblioteca do C O M M : Soponata 1947/1957, Soponata 25 anos, Soponata 40 anos, e Soponata 1947/1997

Senos Da Fonseca

Em meados do século anterior, fizesse o tempo que fizesse – arrenegada transmontana bravia, ou de cariz bem disposto, solarengo –, o Victor «Barateiro» palmilhava, quilometro a quilómetro, freguesia a freguesia, rua a ruela esconsa, com a traquitana de madeira assente em duas rodas de bicicleta, na qual transportava a mercadoria, percorrendo com o seu “estabelecimento comercial” todos os cantos da vila e arredores. Antecipação do hipermercado de hoje, com tratamento personalizado do freguês, servido porta a porta Em passo ligeiro, fazendo lembrar os antigos almocreves, anunciava em foghorn improvisado, a sua chegada e a dos seus produtos, hiperbolizando as virtudes da mercadoria, de um modo galhofeiro e atrevido

Era o «Barateiro», o que vendia melhor e mais barato, as mercancias No seu singular anúncio, muito antes da globalização de que nem sequer ouviu falar, dizia serem importadas da China – ou até da Cochinchina – Índia, e outras que tais, a preços de arrasar.

O Victor era uma figura de uma simpatia tal(!), que lhe permitia com a maior facilidade o contacto, e do mesmo, a aproximação capaz de facilitar a venda dos produtos com que porfiadamente ganhava a sua vida E tratou dela muito bem, pois clientes não lhe faltaram Nunca.

«O Barateiro» era um homem baixo – um Charlot andante –, nariz saliente num rosto de onde emergiam umas arredondadas maçãs que lhe moldavam um sorriso permanente, conferindo-lhe ar de pessoa benquista De chapéu com aba levantada – à patetive –, enterrado no cima da cabeça, vestia invariavelmente fatiota de ir «a ver o Senhor», caísse chuva ou fizesse canícula abrasadora Tinha, naturalmente, tez muito morena, consequência da vida de andarilho das estradas e caminhos, batidos pelo Sol Quem atentasse no desempenho da sua missão mercantil, logo lhe descortinava a qualidade inata de um “vendedor de feira”, sabendo como poucos enliçar a clientela com conversa «fiada», acompanhada por farta gesticulação com que apresentava o produto, sabendo atribuir-lhe inesperadas vantagens, ou desconhecidas qualidades.

O Victor Malha «O Barateiro» padecia de uma certa gaguez Mas tal empecilho não lhe complicava a tarefa Antes pelo contrário, ajudava-o e de que maneira! Sabia utilizar bem esse pequeno problema em seu favor, exprimindo-se de uma maneira muito castiça onde não faltava forte dose de picardia e malandrice, utilizadas para criar uma proximidade facilitadora do negócio Vinha ao longe, e de lá gritava, anunciando-se:

Po po Povo! oh oh! po Povo«estúpido»!

Ve venham a a aqui, que bom e e ba barato, só no no «ba» «ba» «Barateiro»

E continuava, no seu gaguejo

- Me meias da ca cá casa baiona que que vão dos pés à borda da co co comprem minhas senhoras – alardeava sorridente o Victor, agarrando um par de meias tiradas da carreta, esticando-as para cima e para baixo, e para os lados, para mostrar a qualidade Em passe de prestidigitação, fazia passar o gume da navalha por entre as meias, que pareciam ser rasgadas, para logo serem mostradas, impecáveis, sem mácula, perante o mulherio espantado, interessado na sua compra perante tal milagre

– Olhai !.. Povo. Na…não é a ga…galinha,é…é o Barateiro com soutiens Ma Martelo os q’a q’aguentam, todo e qualquer, mar mar marmelo

O Victor era um malandéu, gozador. E apreciador de boas moçoilas

Na Costa Nova, em Outubro, época da clientela vinda lá das vindimas bairradinas – os Matolas – com dinheiro fresco no bolso, era zona predileta para o Victor exercer o seu mister

O Victor inventava muitos truques com que chamava as clientes que circundavam o carroço do estendal, inquirindo dos produtos que o «Barateiro» tinha para oferecer: cuecas, pijamas, camisas de dormir, lençóis, edredões, toalhas e lenços, etc , etc A que não faltava as «camisinhas sem mangas», um produto ao tempo difícil de encontrar nas lojas da zona E para as habituais clientes, aqueles «pozas» do «Manelzinho» (da farmácia) para verter no café do «cara-metade», capazes de fazer fervilhar os humores aos mais aquietados e o levar às performances há muito esquecidas Entrevistei, conjuntamente com o Manuel Teles, no VIP-VIP de boa memória, o Victor Foi impagável no desfilar de histórias que deliciaram uma sala apinhada, vertida em delírio com a graça portentosa de um inimitável contador de «estórias» A ponto de merecer referência no Diário de Lisboa, de então, que realçou o acontecimento.

Entre outras, recordo a estória das cuecas untadas com vaselina, quando apregoava:

– Olhai povo!...po…po…povo!... povo in… in… incréu: as cuecas «Amor» q’a q’a q’aguentam com com todo o ardor, e e até, qualquer odor

E rapando do isqueiro, chegava-lhes fogo

A vaselina ardia expelindo larga fumaça que o Victor logo apagava, mostrando à clientela, as cuecas, impunes às chamas

Po po podeis ter a pa a pa a pa passarinha a arder. Com as calcinhas «Amor», é um frescor

Desfilou um cardápio das suas adiantadas técnicas de marketing Por exemplo, quando anunciava:

Cu cu cuecas a cinco escudos o o par A quem mas deixar vestir, q’u q’u quatro pares, grátis! – atirava, ao tempo que lançava um sorriso maroto a uma ou outra moçoila, mais vistosa, potencial interessada na transacção Ora um certo dia, palavra puxa palavra, gracejo puxa gracejo, uma bairradina mais atrevidota, de boas carnes e tempero ajustado nas mesmas, dá de o desquitar:

Èh Ti Victor É mesmo a sério? hóme!

Se se se é – responde mais gago do que o habitual, o Victor E rapando das calcinhas, franqueada a porta do palheiro, ali mesmo, atrás da porta, preparou-se para as nadegar na Bernarda da Mamarrosa, que atrevidota e ladina, foi gozando :

Eh Ti Victor! vossemecê perdeu a fala ?

Q? antas p per perder a a fala,q’a a ser cego – responde o Victor mais entaramelado do que o habitual Nisto ouve-se grande restolhada Era o pai da moçoila que de porrete em punho, veio lá de dentro disposto a pôr cobro ao descoro Valeu contou-nos o Victor – a calma da Bernarda, a demonstrar estar à altura (seria o hábito ?!) dos acontecimentos:

– Q’é lá isso meu Pai ?! O senhor Victor é bom homem, está apenas a tratar da greta do meu pé, para ver se o tamanco me calça

– É…po…po…pois …então .Ó… Ó .. Ti Zé,c’olhe que que a a gre gre greta da sua ra rapariga, pre pre precisa de de trato Está muito aberta Vou vou dar-lhe um pó pó pozinho do Ma… Ma… Manelzinho da botica, que que lha fecha E lá se livrou de boa, o atrevido Victor

Com os calcanhares molestando o dito, num ápice, desceu a correr a viela do Pardal, e dessa vez sem fala – daquela vez a sério! – foi direitinho à Mota, onde o Ti Ameixa o ajudou a carregar a carrinha das vestimentas “Toca a largar” , teria implorado o Victor ao arrais Ameixa, antes que o Ti Zé percebesse a conversa fiada, e viesse por aí, com a cachamorra empunhada

Era um bom homem, o Victor. Gozando da simpatia das clientes que lhe ofereciam um copito em dia solarengo, ou um caldito em dia friorento À porta do tasco ou do café, tinha sempre fiéis amigos, com quem se pelava para uma charla, desfiando o rol de nobidades, colhidas nas suas deambulações Assim era o Victor Um excelente e virtuoso contador de histórias, uma figura típica, arquétipo de figura popular benquista, um esperto e bonacheirão vendedor ambulante, deliciosamente astuto, sagaz, pleno de matreirice A calcorrear os caminhos lodacentos, ou a ouvir o chilrear da passarada. A lançar um olhar penetrante aos rústicos que lhe saltavam ao carroço, ofegante no afã de uma vida suada de peregrinação junto das gentes de quem não gostava menos, mesmo que os apelidando, ternamente, de «povo estúpido” Talvez por saber que nele acreditavam piamente

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