CÁRITAS MINAS GERAIS NO CUIDADO DA CASA COMUM Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
Ficha técnica Esta é uma publicação do Projeto de Incidência na Pauta da Mineração (PIPAM) da Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais. Expediente: Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais | Rua Fornaciari, 129, bairro Pedro II - Belo Horizonte/MG | Contato: (31) 3412-8743 | E-mail: caritasmg@caritas. org.br | Coordenação colegiada: Rodrigo Pires (secretário regional), Jaqueline Mata, Samuel da Silva | Coordenação PIPAM: Letícia Aleixo | Textos: equipe Cáritas MG | Edição e revisão: Ellen Barros, Francielle de Oliveira, Letícia Aleixo, Lívia Bacelete | Imagens: Jornal A Sirene e Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais | Diagramação e ilustração: Silmara Filgueiras | Foto de capa: Larissa Pinto / Jornal A Sirene. Ano: Novembro de 2019.
Apresentação Para nós da Cáritas, que nos propomos a estar junto aos excluídos e excluídas, atuando em defesa da vida e na construção solidária de uma sociedade justa, igualitária e plural, que promova o Bem Viver, é inevitável nos colocarmos contra o atual modelo de desenvolvimento. Este modelo é contra o chamado da nossa missão: sermos discípulos missionários de Cristo. É um modelo que destrói nossa Casa Comum, devora os bens finitos do planeta, cria ciclos de violência e injustiça, expulsa as pessoas de seus territórios e lares, afastando-os dos seus meios de subsistência, agredindo seus modos de vida e promovendo uma cultura materialista e descartável. Nossas ações vêm sendo dirigidas em busca da construção de resistências. Este tem sido um trabalho duro, já que estamos em um território, o estado de Minas Gerais, que traz as minas em seu próprio nome e conta com o apoio total do Estado para continuar executando um projeto de morte. Apesar disso, persistimos, fortalecidos na fé e na luta contra as violações de direitos dos atingidos, que sofrem com o avanço devastador dos projetos de mineração. Também temos atuado na construção de outro modelo de desenvolvimento nas regiões atingidas pela mineração, a partir do talento das pessoas, do respeito ao meio ambiente, da valorização da cultura e do empoderamento político dos coletivos. Temos feito isso, principalmente, através do fomento à Economia Popular Solidária, que busca o aquecimento dos mercados e apoio às produções locais. Toda a crueldade imposta pelo atual modelo de exploração minerária ameaça e compromete o presente e o futuro de todas as criaturas, nos chamando a exercer nossa missão de guardiões da Casa Comum a serviço do Reino anunciado por Jesus, que veio para que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10). Que este material, produzido para compartilhar as experiências que integram nosso Projeto de Incidência na Pauta da Mineração (PIPAM), contribua para o aprofundamento no tema, auxilie na resistência e fortaleça a luta pela Vida. Rodrigo Pires Secretário Regional da Cáritas Brasileira Minas Gerais.
Sumário Cáritas no Brasil e no mundo --------------------------------------------------------------- 06 Cáritas na defesa dos direitos humanos ------------------------------------------------- 08 Mineração: um modelo de desenvolvimento insustentável ------------------------ 09 Violações de direitos pela mineração ----------------------------------------------------- 10 MAGRE e o enfrentamento ao modelo de mineração -------------------------------- 12 Conflito socioambiental na Região Central de Minas Gerais ------------------------14 Cáritas em Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim e Alvorada de Minas ------- 15 Vidas atingidas -----------------------------------------------------------------------------------16 Conflito socioambiental em Paracatu -----------------------------------------------------18 Cáritas em Paracatu --------------------------------------------------------------------------- 20 Vidas atingidas ---------------------------------------------------------------------------------- 20 Conflito socioambiental em Mariana ----------------------------------------------------- 22 Cáritas em Mariana ---------------------------------------------------------------------------- 24 Pioneirismo da Assessoria Técnica --------------------------------------------------------- 24 Vidas atingidas---------------------------------------------------------------------------------- 25 Conflito socioambiental em Brumadinho -----------------------------------------------26 Cáritas em Brumadinho -----------------------------------------------------------------------28 Vidas atingidas---------------------------------------------------------------------------------- 29 Igrejas e Mineração ----------------------------------------------------------------------------30 Reparação integral -----------------------------------------------------------------------------32
Cáritas no Brasil e no mundo A Cáritas Brasileira é um organismo de pastoral social vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fundado em 1956 e organizado em uma rede com 183 entidades-membros em todo o país. Essa rede solidária com mais de 15 mil agentes, a maioria voluntária, vem contribuindo para a transformação da vida de milhares de famílias. O regional da Cáritas em Minas Gerais foi criado em 1989, ampliando sua presença solidária junto às pessoas em situação de vulnerabilidade e exclusão social no estado. A Cáritas Internacional, sediada em Roma, é uma confederação de mais de 160 organizações humanitárias que atua em quase todos os países do mundo, coordenando operações de emergência, formulando políticas de desenvolvimento e advogando por um mundo melhor para todos. Inspirada na fé católica, a Cáritas está no coração da Igreja, no serviço com os pobres, vulneráveis e excluídos, independentemente de raça ou religião, para construir um mundo baseado na justiça e no amor fraterno. 6
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As marcações mostram a presença da Cáritas no mundo. Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
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Cáritas na defesa dos direitos humanos Todas as ações da rede Cáritas no Brasil e no mundo perpassam a temática dos direitos humanos. A busca pela garantia de uma vida digna para todas as pessoas é o que norteia as esferas do trabalho da Cáritas nos mais diversos níveis de atuação, sejam locais, regionais, nacionais ou internacionais. Com o intuito de incidir de forma ainda mais efetiva sobre a questão dos direitos fundamentais, a Cáritas Internacional ocupa um assento no Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) e lá participa como entidade observadora com direito a fala. O Conselho é um órgão subsidiário da Assembleia Geral da ONU que reúne 47 países para discutir e monitorar a situação dos direitos humanos no mundo, sendo importante a participação de organizações da sociedade civil, como a Cáritas, que leva denúncias e preocupações sobre violações de direitos a que o órgão deve se atentar. 8
Ato público em frente ao Memorial da Vale, em Belo Horizonte, marca 1 mês do rompimento da barragem em Brumadinho, em fevereiro de 2019.
Mobilização no Tribunal de Justiça de Minas Gerais para a manutenção da garantia financeira do processo de reparação dos atingidos de Mariana, em 2017.
Ato público em frente ao Memorial da Vale, em Belo Horizonte, marca 1 mês do rompimento da barragem em Brumadinho, em fevereiro de 2019.
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Mineração: um modelo de desenvolvimento insustentável Cresce cada vez mais a compreensão de que as atividades extrativas de recursos naturais, especialmente em larga escala, causam riscos de violações de direitos humanos. Infelizmente, na maior parte dos casos, os danos causados permanecem impunes. Isso porque a atual estrutura legal e política favorece a operação de grandes empresas com poucos contrapesos e mecanismos de controle. Afinal, as indústrias extrativas se estruturam hoje em um mundo globalizado, que favorece o fluxo de capital, ao mesmo tempo em que têm alta penetração nas esferas de poder dos países onde atuam. Quem nunca ouviu o discurso de que somos dependentes dessas indústrias que favorecem o “desenvolvimento”? Com esse suporte ideológico, os Estados têm flexibilizado sua legislação ambiental e falhado no dever de fiscalizar a atividade extrativista e de fazer respeitar os direitos humanos. No Brasil, o crescente desmonte dos órgãos ambientais e a criminalização das lutas sociais agravam esse contexto. Em nome do crescimento econômico que, muitas vezes, ignora outras dimensões do desenvolvimento humano, como a cultural, ambiental e social, a expansão das atividades extrativas, como a mineração, é tratada como de “interesse público”. No entanto, os direitos e a participação daqueles que são mais atingidos pela atuação desenfreada e predatória desse setor não são efetivamente considerados. Afinal, a relação de poder já é bastante assimétrica entre grandes empresas e indivíduos. Essa realidade é agravada ao considerar-se que aqueles que sofrem de maneira desproporcional os impactos negativos dessas atividades são os grupos sociais e étnicos em situação de maior vulnerabilidade social. Assim, populações do Sul global e, em especial, mulheres, crianças, idosos, populações negras, tradicionais e indígenas são geralmente as mais afetadas pelos impactos da mineração. Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
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VIOLAÇÕES DE DIREITOS PELA MINERAÇÃO Apesar das indústrias extrativas também terem o dever de respeitar os direitos humanos, a prática predatória da mineração tem naturalizado seus custos socioambientais. Já os Estados, além do dever de respeitar direitos, têm o dever de proteger as pessoas contra violações dos direitos humanos, de fiscalizar a atuação das empresas e de garantir o maior acesso a mecanismos de denúncia e reparação às vítimas. Os danos causados pela atividade minerária e predatória são irreparáveis para a coletividade em geral, inclusive para as gerações futuras. Diante desse contexto de abusos e violações de direitos, os movimentos e pastorais sociais, grupos comunitários locais, ONGs e defensores têm atuado, em todo o mundo, para que as grandes empresas e os Estados observem e façam cumprir os direitos humanos e da natureza. 10
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Paracatu de Baixo, Mariana.
Frequentemente, nos conflitos socioambientais há violação continuada dos seguintes direitos:
Direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal;
Direito à privacidade; Direito à alimentação, à saúde, à água e a um ambiente limpo e saudável;
Direito a não ser torturado, nem detido arbitrariamente;
Direito ao trabalho digno e seguro;
Direito à igualdade, em especial nas suas dimensões de gênero, raça e classe;
Direito à moradia;
Direitos dos povos indígenas, incluindo os direitos à autodeterminação, à consulta livre, prévia e informada, à participação e ao uso, gestão e conservação dos recursos naturais de suas terras;
Liberdade de associação;
Liberdade de expressão e acesso à informação.
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MAGRE E O ENFRENTAMENTO AO MODELO DE MINERAÇÃO A área de atuação Meio Ambiente Gestão de Riscos e Emergências (MAGRE) está essencialmente vinculada a identidade da Cáritas. Isso porque, graças à solidariedade de diversas pessoas que contribuem com as campanhas emergenciais promovidas pela instituição, é possível executar, tanto nacional quanto internacionalmente, o atendimento às comunidades atingidas por desastres socioambientais e/ou em situação de vulnerabilidades em áreas de risco. A ação do MAGRE está sustentada no tripé prevenção, preparação e respostas em situação de emergências. Assim, atuamos concretamente em temáticas ligadas à prevenção de desastres, ao atendimento emergencial e à reconstrução de comunidades resilientes, com ações coletivas e tecnologias sociais, que favoreçam espaços de diálogo, comunicação e articulação com as organizações sociais, poder público e a defesa civil. Em Minas Gerais, estado que leva no nome a herança do modelo de exploração das riquezas da terra e carrega o saldo negativo dessa atividade extrativista, a Cáritas, por meio do MAGRE, atua em diversas frentes na defesa dos direitos das pessoas atingidas pela mineração em prol da reparação integral. Este trabalho se intensificou, especialmente, a partir da segunda década dos anos 2000, em que os dois maiores desastres envolvendo barragem de mineração mataram mais de 300 pessoas e devastaram parte do ecossistema. Conheça a seguir exemplos da atuação da Cáritas no enfrentamento ao modelo predatório de mineração no estado. 12
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Semana de Formação e Intercâmbio Nacional, em Leopoldina, em junho de 2017.
Seminário Nacional do MAGRE, em Mariana, em novembro de 2017. Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
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CONFLITO SOCIOAMBIENTAL NA REGIÃO CENTRAL DE MINAS GERAIS O conflito socioambiental na Região Central de Minas Gerais se acirrou desde 2006 com a implementação do projeto mineral Minas-Rio, uma parceria entre o governo do Estado e as grandes empresas do setor, como MMX e Anglo American. O projeto é composto por três estruturas: mina e usina de beneficiamento, o maior mineroduto do mundo e porto. Em 2018, o mineroduto já consumia mais de 2.500 metros cúbicos de água por hora, capaz de sustentar uma cidade de 220 mil habitantes. Mesmo sem cumprir as diversas condicionantes ambientais e sociais previstas em processos anteriores, em janeiro de 2018 foi aprovada a ampliação da área de extração de minério. O Minas-Rio gerou tensões com as comunidades que vivem das atividades econômicas ligadas ao uso tradicional do território e, especialmente, aquelas ligadas ao uso turístico. A pressão do setor extrativo foi tanta que o projeto de turismo e os esforços conservacionistas encabeçados pela prefeitura de Conceição do Mato Dentro e a sociedade civil local sucumbiram ao poder da mineração, deixando de lado as negociações para promover o desenvolvimento ambiental e turístico da região. Existem pelo menos 22 comunidades rurais, em sua maioria quilombolas e tradicionais, convivendo com os impactos do projeto MinasRio, que vão desde o trânsito intenso de máquinas; aumento do fluxo de veículos, pessoas, barulhos, poeira e lama; secamento de nascentes e contaminação de cursos d’água; mortandade de peixes; tremores causados pelo mineroduto; sensação de insegurança; rompimento das relações de trabalho; intervenções em territórios tradicionais; desterritorialização; além dos danos na saúde física e psíquica da população local. 14
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Cáritas em Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim e Alvorada de Minas
No Projeto Arpilheiras, na comunidade Água Quente, em Conceição do Mato Dentro, as mulheres expressam seus sentimentos e denunciam os abusos da mineração por meio do bordado.
O trabalho da Cáritas na Região Central de Minas nasce a partir da parceria com o Ministério Público de Minas Gerais, através da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (Cimos) e da Promotoria da Comarca de Conceição do Mato Dentro. O projeto foi realizado junto às comunidades rurais atingidas pela mineração dos municípios de Alvorada de Minas, Conceição do Mato Dentro e Dom Joaquim, com foco em ações socioambientais e tendo como eixos principais a Economia Popular Solidária e a Agroecologia. Ele teve início a partir da constituição de um Fundo de Apoio a Projetos com o objetivo de apoiar iniciativas coletivas, sejam produtivas ou culturais, sempre com a participação efetiva das comunidades e parceiros. Entre 2016 e 2018, foram apoiados mais de 140 projetos de pequenas agroindústrias, turismo de base comunitária, pastagem rotativa, melhoria das queijarias, apoio aos grupos culturais, produção de quitandas, apoio à comercialização e outros. O projeto contou com grande participação das mulheres e jovens e forte incidência política junto aos executivos municipais, câmaras e órgãos estaduais, na perspectiva do debate da sustentabilidade das iniciativas através de políticas públicas vigentes e outras a serem criadas. Soma-se a isso, as atividades de formação, intercâmbios, estudos desenvolvidos, capacitações, seminários, portanto uma gama de ações que apontam que um outro modelo de desenvolvimento é possível e necessário, partindo daquilo que as comunidades querem, valorizando o trabalho cooperado e autogestionário e com profundo respeito à natureza. Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
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Vidas atingidas
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A Cáritas ajudou bastante na construção da luta, na organização das pessoas, ajudou a gente ir às reuniões, teve a parceria com o MAM [Movimento pela Soberania Popular na Mineração] que ajudou na mobilização das comunidades e no trabalho de base para o fortalecimento. Ela também ajudou com os projetos que fortaleceram a comunidade aqui dentro, para gerar renda a algumas pessoas que não tinham condições (...). A Cáritas chegou como um ânimo para a gente, porque a mineração também gera a desorganização da comunidade, ficamos sem forças para lutar. Quando chegaram as pessoas da Cáritas, isso gerou mais animação para o povo lutar, ir para a rua, ir às reuniões. Por exemplo, a gente não tinha transporte, era muito difícil conseguir e, às vezes, nem conseguia. A Cáritas ajudou a gente também com o transporte e ficou mais fácil as pessoas participarem”. Elizete Pires de Sena, moradora da comunidade Passa Sete, em Conceição do Mato Dentro.
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Tudo desassossegou depois da mineração. Não é como a vida que a gente tinha antes, que podíamos andar tranquilos. A estrada ficou muito perigosa, ocorre acidentes e a gente tem medo de repente acontecer algo muito ruim. Acabou tudo para nós que estamos aqui, abaixo dessa barragem. É muito assustador, pois como aconteceu em Mariana, em Brumadinho e em outros mais lugares, temos medo que isso também possa acontecer aqui. A cada dia a gente se sente assim, cada dia pior. Muitas pessoas plantavam horta e hoje não tem condições de plantar mais, porque quem é abastecido pelo caminhão pipa não pode plantar como antes. Complicou muito até a vida das pessoas de viverem felizes com suas plantações. A água, além de ser pouca, está poluída. A gente não pode utilizar para nada. As criações estão tomando, mas nem para elas faz bem. Nem os peixes resistiram”. Darcilia Pires de Sena, moradora da comunidade Passa Sete, em Conceição do Mato Dentro, localizada a 1km da barragem de rejeitos da mineração.
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CONFLITO SOCIOAMBIENTAL EM PARACATU O município de Paracatu, no noroeste de Minas Gerais, possui a maior mina de ouro do Brasil, em volume e em área de extração. Nos anos 1980, a empresa canadense Rio Paracatu Mineração, depois rebatizada de Kinross, conseguiu a concessão da mina Morro do Ouro, onde pequenos garimpeiros tiravam ouro em bateias. A mineradora cercou a área, colocou homens armados para vigiar a mina e começou a comprar lotes e sítios de antigos moradores, a maioria quilombolas e descendentes de negros que viviam na região desde o Império. Existem várias denúncias de violações de direitos humanos em Paracatu causadas pelas atividades da mineração. Entre elas, expropriação e destruição de territórios quilombolas, criminalização dos garimpeiros artesanais, comprometimento das atividades produtivas tradicionais, impactos das explosões e ruídos sobre as condições das moradias, uso indiscriminado de água e riscos à saúde da população. Moradores do município preocupam-se ainda com a suspeita de que a mineradora canadense, Kinross Gold Corporation, esteja contaminando afluentes do local com arsênio, um semimetal altamente tóxico e cancerígeno. Em Paracatu, existem duas barragens de rejeitos, a Santo Antônio tem 399 milhões de metros cúbicos e não recebe rejeitos desde 2015. Já a barragem Eustáquio, construída em 2010, ainda faz o armazenamento dos resíduos da mineração e tem hoje 148 milhões de metros cúbicos de rejeito. Com o rompimento das barragens em Mariana e em Brumadinho, as comunidades que vivem abaixo das barragens em Paracatu estão em pânico, uma vez que as duas são vizinhas de bairros residenciais. 18
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Barragem da mineradora Kinross, em Paracatu. Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
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Cáritas em Paracatu A Cáritas há muito vem sendo uma das vozes isoladas em Paracatu ao contestar o modelo de mineração na cidade, uma vez que o poder da mineradora no território é grande e dificulta a mobilização da população atingida. O conflito socioambiental no município se acirrou após os crimes em Mariana e Brumadinho. Diante disso, a Cáritas Diocesana de Paracatu com apoio do bispo diocesano, dom Jorge Alves Bezerra, e em parceria com os movimentos locais vem realizando ações em prol de despertar a população para o risco que corre. A Cáritas vem promovendo encontros de formação e articulação com comunidades atingidas pela mineração, ONG’s, pastorais e movimentos sociais, além de participar de audiências públicas para denunciar as violações de direitos cometidas pela atividade minerária no município.
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Vidas atingidas
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Após o crime do rompimento da barragem de Mariana, nós, moradores das comunidades abaixo da barragem, ficamos preocupados, mas não com tanto medo. Depois veio a segunda barragem, Brumadinho, aí acabaram com a nossa mente e ficamos a nos perguntar: qual será a próxima barragem a se romper? E essa resposta eles não têm para nos dar. Moramos a menos de 1.000 metros da barragem e nós não temos mais a tranquilidade de viver, pois é uma pergunta que não se cala: qual será a próxima barragem? Sempre falamos isso, até mesmo as crianças.” Viviane Aparecida Pereira de Souza, membro do movimento Todos em Defesa da Vida e moradora da comunidade Lagoa de Santo Antônio, em Paracatu.
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CONFLITO SOCIOAMBIENTAL EM MARIANA O rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, em 5 novembro de 2015, em Mariana, intensificou o conflito socioambiental na região. Os danos causados pelo rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, Vale e BHP Billiton repercutem cotidianamente na vida das pessoas atingidas, violando seus direitos à vida digna, à moradia, à memória, à saúde, entre outros. Trata-se de um crime ambiental sem precedentes, que atingiu todo o Rio Doce, a mais importante bacia hidrográfica da região sudeste do Brasil, além do litoral do estado do Espírito Santo e do sul da Bahia. O crime da Samarco, Vale e BHP Billiton causou 19 mortes e um aborto, atingiu diversas comunidades tradicionais ao longo do Rio Doce, prejudicou e alterou drasticamente os modos de vidas de populações ribeirinhas, quilombolas, indígenas, entre outras. O mar de lama da mineração devastou os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, além de destruir casas e prejudicar a vida das pessoas de outras 6 comunidades da zona rural do município (Ponte do Gama, Paracatu de Cima, Borba, Pedras, Campinas e Camargos). Muitas das pessoas atingidas são forçadas a viver em moradias provisórias na área urbana de Mariana desde 2015, com isso os seus modos de vida foram drasticamente alterados, o que, em muitos casos, causa ainda mais sofrimento e adoecimento físico, psíquico e emocional. 22
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Ponte do Gama, zona rural de Mariana. Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
Cáritas em Mariana A Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais chegou ao território marianense no dia 06 de novembro de 2015, para prestar ajuda humanitária com base em seu protocolo para situações de crise e desastres, no âmbito da área de atuação do MAGRE (Meio Ambiente Gestão de Risco e Emergências). Nesse primeiro momento, a atuação da Cáritas se deu em caráter assistencial e emergencial. No entanto, atingidas e atingidos do município conquistaram, por meio de ação civil pública movida pelo Ministério Público de Minas Gerais, o direito de escolher sua própria Assessoria Técnica de confiança e, assim, ter o suporte necessário para lidar com os diversos desafios impostos pelo processo de reparação dos danos causados pelo crime. No dia 26 de outubro de 2016, a Cáritas iniciou sua atuação como Assessoria Técnica escolhida por atingidas e atingidos de Mariana, com um projeto de atuação multidisciplinar.
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Pioneirismo da Assessoria Técnica As atingidas e os atingidos de Mariana, organizados em uma Comissão, foram os primeiros a conquistar o direito à Assessoria Técnica independente. Isso gerou um precedente para as demais comunidades atingidas pela barragem de Fundão ao longo da bacia do Rio Doce, bem como pelas comunidades atingidas pelas barragens da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, na bacia do Rio Paraopeba, entre outras comunidades que, atualmente, encontramse em situação de risco. A Cáritas Minas Gerais é, portanto, pioneira na atuação como Assessoria Técnica de confiança das atingidas e atingidos por barragem de rejeitos da mineração no Brasil. O principal objetivo da Assessoria Técnica é garantir a participação ampla e informada nos processos decisórios e subsidiar as comunidades atingidas na luta pela efetivação da plena reparação das perdas e danos sofridos. O trabalho multidisciplinar é realizado de modo a respeitar e promover o protagonismo das pessoas atingidas na luta pela reparação integral, assim como, a garantir o direito ao acesso às informações e consolidar a autoorganização das comunidades.
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Vidas atingidas
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A assessoria técnica pra gente é fundamental. Hoje conseguimos reelaborar o cadastro e conseguimos que a nossa assessoria o aplicasse. Hoje já temos uma Matriz de Danos dos atingidos feita pela nossa assessoria junto com as universidades. Os próprios atingidos já têm argumentos técnicos para discutir com eles [Fundação Renova, Samarco, Vale e BHP Billiton]. Antes a gente não tinha isso, eu pelo menos era simplesmente uma trabalhadora rural, dona de casa, tinha a minha vida e meus terrenos, que foram todos estragados pelo rejeito da barragem, mas eu não tinha condições para discutir com as empresas da maneira que agora tenho. Se a gente não tivesse o apoio da assessoria com pessoas qualificadas para ajudar, hoje estaríamos na miséria mesmo, porque nós já vivemos uma vida imposta pelas empresas, vivemos mal, mas imagina se nós estivéssemos sozinhos? A gente só tem a agradecer mesmo a nossa assessoria”. Maria D’Angelo, moradora de Paracatu de Cima, em Mariana, e atingida pela barragem de Fundão.
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CONFLITO SOCIOAMBIENTAL EM BRUMADINHO Há séculos a cidade de Brumadinho lida com conflitos socioambientais causados pela atividade minerária, no entanto, os conflitos atingiram o seu ponto mais crítico com o rompimento das barragens da Mina do Córrego do Feijão, em 25 de janeiro de 2019, de responsabilidade da Vale. Foram contabilizadas cerca de 270 mortes, sendo que ao menos 2 mulheres estavam grávidas e alguns corpos ainda seguem desaparecidos. Os impactos socioambientais coletivos decorrentes de mais este crime da mineração são imensos e persistem de forma evidente em toda a região, causando alteração da dinâmica cotidiana de uma população inteira. Os danos causados são tanto de natureza material quanto imaterial, na relação da população com a terra, água, trabalho, quadros persistentes de depressão, ansiedade, entre outros.
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Córrego do Feijão, Brumadinho. Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
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Cáritas em Brumadinho Com o rompimento das barragens da Vale em Brumadinho, a Igreja Católica precisou potencializar sua atuação no território, sobretudo, a partir do Vicariato Episcopal para a Ação Missionária do Vale do Paraopeba, da criação da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (RENSER), das paróquias da região e da Cáritas Minas Gerais. Inicialmente foram desenvolvidas ações de apoio emergencial à população atingida, bem como ações permanentes de apoio espiritual. Desde o dia 25 de janeiro de 2019, a Igreja contribuiu com o processo de formação de comissões de atingidos, bem como nas articulações política, social, de mobilização e organização comunitária. Além disso, a Igreja atua na elaboração, prospecção, orientação e execução de projetos sociais junto às comunidades atingidas. Trata-se de um trabalho de acompanhamento contínuo, cujo objetivo é potencializar o protagonismo e o empoderamento das comunidades. São vários os desafios colocados para a atuação da Cáritas em Brumadinho, pois os desdobramentos dos conflitos socioambientais ressoam no cotidiano da cidade, demandando dos parceiros na luta por garantia de direitos um constante processo de escuta e diálogo junto à população atingida, assim como, permanente monitoramento, avaliação e engajamento na busca por soluções frente aos impasses apresentados. 28
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Vidas atingidas
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Nasci em Brumadinho, uma cidade onde a mineração explora há mais de 40 anos e causa vários impactos, onde o pior é a minero-dependência, que torna irrelevante todos os outros impactos, como na saúde e no meio ambiente. Mas o maior impacto foi a morte de 272 pessoas com o rompimento da barragem da Vale, em janeiro de 2019. Atualmente trabalho junto com as comunidades atingidas pela barragem e nossa cidade luta pela justiça. A mineração levou mais que os nossos minérios, levou casas, bairros, nossa natureza, nossa saúde e a maior dor é que levaram nossos amigos e também matou nosso rio”. Caroline Kenia de Aguiar, moradora de Brumadinho e articuladora social da RENSER.
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IGREJAS E MINERAÇÃO A Rede Igrejas e Mineração é um espaço ecumênico, formado por comunidades cristãs, organismos e pastorais sociais, congregações religiosas, laicos, bispos e pastores, que busca responder aos desafios dos impactos e violações dos direitos socioambientais provocados pela mineração nas Américas do Sul, Central e do Norte. Ela surge a partir dos debates e reflexões do Fórum Social Mundial na Tunísia, em 2013, e também como uma resposta das comunidades de fé nos territórios aos impactos ambientais, sociais e às violações dos direitos humanos nas atividades minerárias. A partir da perspectiva da ecoteologia e da ecoespiritualidade, a Rede propõe uma visão pastoral para responder às questões impostas pela mineração, junto com os movimentos da sociedade civil. Historicamente, a Igreja Católica deu sustentabilidade ao modelo de mineração em Minas Gerais, um território com mais de 300 anos de extração minerária. No entanto, em sua história mais recente, a Igreja passou a ter um olhar crítico e opositor a este modelo predatório, insustentável e nocivo. Após os rompimentos das barragens de rejeitos da mineração em Mariana e em Brumadinho, as organizações da Igreja perceberam que, apesar da capilaridade nos territórios atingidos no estado, não existia uma articulação em torno desta pauta. Em março de 2019, se constitui a Rede Igrejas e Mineração – Minas Gerais, a partir de um encontro realizado em Paracatu que contou com a participação da Cáritas Regional Minas Gerais, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). 30
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Formação da Rede Igrejas e Mineração – Minas Gerais, em João Monlevade, em outubro de 2019.
Visita do representante do papa à Brumadinho, em maio de 2019.
Além desta rede, a Igreja Católica também está articulada em dois organismos institucionais que atuam na pauta da mineração: a Comissão Especial de Ecologia Integral e Mineração da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e o Grupo de Trabalho Ecologia Integral e Mineração do Regional Leste II da CNBB. A Rede não é um movimento por si só, já que a Igreja caminha junto às comunidades e aos movimentos que nascem da sociedade. Embasada na encíclica ecológica do papa Francisco, Laudato Si, na Carta Pastoral do Celam (Conselho Episcopal Latino-americano) sobre Ecologia Integral e no documento do Sínodo da Amazônia, a Rede busca aprofundar o papel da Igreja na organização e resistência dos povos nos territórios, frente ao avanço, aos impactos e às violações de direitos impostos pela mineração.
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REPARAÇÃO INTEGRAL Romper com o paradigma do atual modelo minerário, especialmente no Sul Global, é o grande desafio de nossos dias. Enquanto seguimos nessa busca, é necessário também reivindicar a reparação integral dos danos sociais e ambientais decorrentes desse modelo extrativista e predatório. Afinal, aquele que causa um dano é obrigado a repará-lo. A complexidade dos danos e a profundidade das violações de direitos nos contextos de mineração, porém, exigem que a reparação ultrapasse o mero caráter pecuniário tradicionalmente proposto como solução para os casos. Nesse sentido, os sistemas internacionais têm reconhecido que, com foco na centralidade das vítimas, nos direitos das futuras gerações e na regeneração da natureza, a reparação deve ser entendida como gênero que engloba medidas que buscam tanto restituir à vítima o direito violado, como corrigir as circunstâncias estruturais que levaram às violações dos direitos mais fundamentais. Assim, foram classificadas as seguintes categorias: Escola de Paracatu de Baixo, Mariana.
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1. Restituição
É a reposição do direito perdido. Ex.: o reassentamento das comunidades devolve às famílias atingidas o direito à moradia.
2. Compensação/Indenização
Na impossibilidade ou insuficiência da restituição, deve-se compensar as perdas sofridas. Ex: pagamento de indenização; diante de um reassentamento realizado em terreno menos produtivo, ampliação do tamanho da terra etc.
3. Reabilitação
Corresponde à promoção das condições físicas, psíquicas, econômicas e sociais das comunidades atingidas. Ex: fornecimento de atendimento e apoio à retomada da produção, assistência à saúde mental etc.
4. Satisfação
É dever do Estado e dos responsáveis pelo crime prestar satisfações públicas pelo ocorrido para que não se esqueça. Ex: pedido de desculpas, construção de memoriais e tombamento de bens históricos fazem parte deste processo.
5. Não repetição
É preciso garantir à sociedade que o mal não se repetirá. O rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, bem como a situação dos mais diversos conflitos socioambientais instaurados pelo modelo de mineração vigente devem ser encarados como determinantes para a revisão da legislação sobre mineração no Brasil. Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
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“Esta terra que hoje é testemunho de morte, também será testemunho de vida, se nós seguirmos e perseguirmos nosso caminho, um caminho de fraternidade.” Monsenhor Bruno-Marie Duffé Representante do papa Francisco em visita à Brumadinho para manifestar solidariedade às pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, em maio de 2019.
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CÁRITAS MINAS GERAIS NO CUIDADO DA CASA COMUM
Enfrentamento ao modelo de mineração e defesa dos direitos socioambientais
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEIXO, L. Implementação das sentenças interamericanas no Brasil: desafios e perspectivas. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2019. BECKER, Luzia Costa. Tradição e modernidade: o desafio da sustentabilidade do desenvolvimento na Estrada Real. 2009. 446f. Tese (Doutorado). IUPERJ, Rio de Janeiro. Business and Human Rights Resource Centre. www.business-humanrights.org/pt Instituto PACS. Mulheres e conflitos ambientais: nem nossos corpos nem nossos territórios. Cartilha. http://www.pacs.org.br/files/2017/09/ Cartilha_mulhereseconflitosambientais_final.pdf Instituto PACS; DPLF et al. Por que é fundamental abordar o tema das empresas transnacionais e mecanismos de denúncia?
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