Revista Literária Pixé - Edição 25

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REVISTA PIXÉ

CONTEMPORARTE PAPEL DE PAREDE

V

itrines, telas, projeções, hologramas. Vivemos na maior sala de exposições de todas, a galeria do real, com inúmeros totens que nos afastam de nossas próprias realidades – e das realidades de nossos semelhantes. Semelhantes? Alguns perguntariam. Passamos por centenas de outros seres ao longo de uma breve caminhada matinal, ao mesmo tempo alheios ao que nos torna únicos e providos de identidade. O ritual da solidão coletiva, uma característica marcante e basilar da existência nas sociedades industrializadas. Será mesmo? Milhões de indivíduos se empilham em pequenas unidades habitacionais para repousar melancolicamente após dias de repetitivo torpor e esmagamento em ruas, feiras, fábricas, estações, transportes, lojas, oficinas, escritórios. Cubículos, de todos os tamanhos, cores, modelos. Entre a rotina e o sono, frágeis antidepressivos: mais um reality, uma ou outra assinatura de streaming, pets, mídias sociais, jogos eletrônicos, álcool e comida rápida, drogas farmacêuticas. A cultura contemporânea, a cultura das cidades, da tecnologia, das marcas e do consumo têm a pedra de toque certeira para acumular sem agregar – acumulamos pessoas, comidas, acontecimentos, construções. Tudo se reúne e se sobrepõe em sucessivas camadas, às vezes como torres caóticas, às vezes como mais uma pincelada de tinta sobre uma superfície já saturada de revestimentos. Uma arqueologia cuidadosa das pinturas descascadas revela reiterações sutilmente variadas e como tal nomeadas: pré, pós, post, hiper, neo, plus, 2.0. Assim se renovam pessoas, carros, casas, espiritualidades, brinquedos, narrativas, tão somente como reiterações e releituras, como produtos novos em uma linha, que são capazes de variar sua configuração ao mesmo tempo que se mantêm legítimos para seus consumidores mais fiéis: leais em busca de um-não-sei-bem-o-quê-exatamente, crianças de todas as idades sedentas por distração (ou atenção?), mercados famintos por almas humanas. Acumulação sem agregação, o pior de dois mundos: o tumulto da multidão sem a generosidade e senso de pertencimento que poderia implicar, um tumulto de individualidades, cada uma tentando forrar o entorno de sua desolação monocromática com os papeis de parede que mais lhe apetecem. Carros seguem simbolizando status, tal como roupas, vitrines e viagens para resorts que jamais serão para todos – de todo modo, fugas de uma realidade que fraciona o espírito, esparramando seus pedaços pelo chão, para mais facilmente atar corpos à máquina, à repetição macambúzia da rotina, ao trabalho, às horas transcorridas no transporte, à mercantilização de olhos, pés e mãos em nome do equilíbrio de certos números em uma tela – uma pintura abstrata referida como “a economia” – aquela que não pode parar e concorre com a vida. É essa carroça que todos puxamos embasbacados e esperançosos, sem saber quem nos conduz ou para onde. Seguimos guiados capitalisticamente como Platão uma vez dissera: aquele que move, mas não cria; aquele que move, mas não é movido; aquele que move, mas nada decide. Seguimos. Ninguém solta a mão de ninguém, dizem. Mas às vezes mal seguramos nossas próprias existências. A vida escorre pelas frestas. Repetimos continuamente este mantra: nos esprememos, nos empurramos, pisamos uns nos outros, com licença, sinto muito, foi sem querer, e corremos atrás de expectativas criadas para serem inatingíveis. Enquanto isso, em meio a todas essas abstrações sociais que nos prendem a um ciclo perene de desgaste e catatonia, uma verdade sensível permanece: a arte, que nos desperta os sentidos, segue sendo a mais bela entre as mentiras. Enquanto a economia, a tecnologia e os outros anestésicos nos alienam de nossa própria humanidade, a arte nos conecta e nos encoraja a buscar nossos próprios entes, nossas próprias paredes, nossas próprias tintas.


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