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REVISTA PIXÉ Há trechos nos quais a narradora expressa a clareza que ela e os colegas tinham da própria condição de alunos de escola pública. É cortante a revolta dos adolescentes em relação à escola e ao universo ao qual faziam parte. A obra é um painel da sociedade contemporânea e a escola faz parte desse desenho dolorido. Nota-se, no romance, uma espécie de realismo que, na obra, volta-se também para a escola pública, tendo em vista a limitação do olhar da personagem, mas que na verdade aponta para um problema social que culmina no espaço escolar. Nunca gostei daquela escola. [...] O lugar era mau. Nas paredes, havia tatuada a raiva de crianças de muitas gerações. Não havia nada ali, além de mesas e cadeiras. Sabíamos que o futuro não alcançaria nenhum dos alunos, nem o Paulinho, que era o melhor de nós. O que fazíamos era matar o tempo. Deixar a vida passar. Ficávamos depositados durante o dia. (p. 16) Quem estudava naquela escola já estava reprovado. Uma reprovação diferente, antecipada. Não tínhamos chance. Ninguém sonhava com a faculdade. Paulinho, talvez. Medicina? Que piada. Mas ele queria. Dizia muitas vezes que sonhava usar jaleco com o nome bordado. Paulo Rogério Marques. No pescoço, carregaria um estetoscópio como nos filmes. Por mais que fosse o melhor aluno, não era o suficiente. Nunca era. O melhor daquela escola significava o pior de qualquer outra. (p. 80-81) Nas ruas de Brasília, a menina e os colegas perambulavam, explorando o espaço livre e colocavam em prática alguns atos de vandalismo. Nesse caminho público, ela encontrou um dos personagens mais curiosos do romance, Caco, um músico decadente e enfermo que foi para Brasília e se apresentava em festas formais, tocando jazz com sua banda. A história de Caco é brevemente contada durante as visitas ao seu esconderijo, um buraco escuro num viaduto da cidade. Os encontros entre a menina e o músico, sem dúvida, são as partes mais fascinantes desta história, pois a amizade dos dois cativa o leitor. Os encontros deles, pessoas feridas pela sociedade, é um alento para ambos, como uma cura. É nesta relação com Caco, que o romance incorpora um tipo de trilha sonora, a embalar as aventuras dos dois amigos, ao som do jazz que saía do trompete do músico. Compreende-se, nestes enlaces, o título do romance, inspirado numa das músicas que Caco toca, “They can’t take that away from me”, de George Gershwin. Música esta que, por sua vez, estabelece relação de intertextualidade com a obra, pois a narradora entende que sua memória é a única coisa que não pode ser tirada dela, é só sua, intrasferível, única e especial. Tanto que ela não externa suas lembranças às pessoas da clínica, porque tem medo que arrancarem isso dela. Os encontros secretos entre a adolescente e Caco tornam-se parte dominante da narrativa e criam grande expectativa no leitor. É a promessa de que mesmo no caos, há esperança, amizade e cumplicidade. Ela cuida dele e ele, em troca, fala sobre músicas, conta histórias, orienta. Mas, como um leitor de Mahon imagina, os desfechos das obras deste escritor são sempre surpreendentes e nem sempre felizes.