Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 02/09/17

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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 2 E 3 DE SETEMBRO DE 2017

CONTRAPLANO AÇÃO

Tempo de espionagem Em entrevista exclusiva, o ilustrador Sam Hart fala sobre a HQ que inspirou “Atômica”, em cartaz nos cinemas DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema

N

ascido na Inglaterra e criado no Brasil, onde mora até hoje, o ilustrador Sam Hart conheceu o roteirista Antony Johnston em convenções de graphic novels pelo mundo e, em 2010, recebeu o convite para desenhar “The Coldest City” (“A Cidade Mais Fria”), história de espionagem desenvolvida por Johnston. A parceria resultou em uma publicação elogiada que, claro, não demoraria a ser levada aos cinemas. Estrelado e produzido pela vencedora do Oscar Charlize Theron, o longa “Atômica” se inspira nesse universo de intrigas e reviravoltas proposto por Hart e Johnston, aproveitando que os filmes de heróis durões estão em alta, mas em um contexto mais orgânico, onde os personagens têm suas habilidades e a ética constantemente questionados. A história é ambientada pouco tempo antes da queda do muro de Berlim e o contexto político é fundamental para entender os perigos a que a protagonista se submete. Uma das características do material impresso é o visual cinematográfico proposto pelo desenho de Hart para contar a história da espiã Lorraine Broghton, cuja missão é investigar o assassinato de um oficial e resgatar uma lista perigosa que revela a identidade de vários agentes. “Na época eu estava fazendo bastante storyboard para publicidade e achei que seria apropriado para a temática dessa HQ tratar a narrativa como um storyboard de filme noir. O Antony já tinha pedido o estilo PB, sem tons de cinza, para aumentar a sensação de contraste, ‘nós contra eles’, do roteiro. Achei que remeter aos filmes, especialmente dos anos 40, poderia ajudar nesse desenvolvimento”, conta Hart em entrevista exclusiva à Contraplano. Enquanto a HQ segue um tom de suspense psicológico para contar a caçada de Lorraine, o blockbuster não se poupa de potencializar as cenas de ação e sensualidade da protagonista.

“Achei que realçaram os olhares e intensidade criando um efeito, digamos, mais visceral. Antony e eu usamos a linguagem de HQ da melhor maneira que sabíamos; é justo que na adaptação, usem a linguagem do cinema em toda a sua glória dolbystereo-technicolor”, reflete o ilustrador.

Adaptação Enviada a Berlim em plena Guerra Fria pelo MI6, Lorraine é recebida pelo desajustado agente David Percival, interpretado por James McAvoy, e começa a explorar a cidade, buscando em cada canto uma pista para entender o esquema instalado no local. A recomendação é que Lorraine não confie em ninguém. A espiã utiliza suas habilidades físicas e intelectuais para se infiltrar em um jogo perigoso, onde realmente não se sabe quem está mentindo ou falando a verdade. A liberdade criativa para construir a história em outro ritmo no cinema, no entanto, não comprometeu a dramaticidade desenvolvida pela dupla. “O roteiro está todo lá, e a estrutura do graphic novel contado em flashback, que achei fantástico. Gosto de pensar que talvez o aspecto monocromático das cenas de entrevista e das roupas da Charlize tenham sido por causa do visual da HQ, mas posso estar sendo otimista”, diz Hart. Recém-estreado no Brasil, “Atômica” chegou aos cinemas americanos no final de julho. Até agora, já faturou cerca de US$80 milhões em bilheteria, com um custo de produção de US$30 milhões. “O filme acho que já agradou bastante, na maior parte das críticas que vi, principalmente pelas cenas de ação. A HQ é mais séria e lenta, mas igualmente tensa e complexa. Por acaso, a temática da Rússia como inimigo do Ocidente está voltando às manchetes, então espero que mesmo quem não lembre da época de que trata a HQ consiga se envolver com a trama de desconfiança e traição”, conta. Com a divulgação massiva do filme, não será uma surpresa se ele virar uma franquia. Hart conta que Antony, criador da história, tem a intenção de escrever outras aventuras, inclusive uma sobre David Percival. “Não tem garantia de que eu volte a desenhar essas

Sam Hart é ilustrador da HQ “A Cidade Mais Fria”, criado por Antony Johnston e adaptado para os cinemas como “Atômica”, estrelado por Charlize Theron

GRAPHIC NOVEL

Atômica: A Cidade Mais Fria Criadoeroteirizado porAntony Jonhstone ilustradoporSam Hart DARKSIDEBOOKS 2017,176páginas R$54,90

HQs, pois o Antony é o criador e ele tem essa escolha. Não fui o único artista a fazer amizade com ele nas convenções de HQ”, brinca. A dupla nacionalidade do ilustrador também ajuda na criação de uma rede de produção de quadrinhos. Para ele, o mercado nacional e internacional são muito parecidos, em termos de como a carreira se desenvolve. Com a estreia do filme, a editora DarkSide Books se apressou para lançar os quadrinhos no Brasil, em edição que preza pela qualidade gráfica. Recentemente, Hart finalizou uma HQ curta para a antologia “As Crônicas de Os Poucos & Amaldiçoados”, de Feli-

pe Cagno, e escreveu o roteiro de sua próxima graphic novel autoral, que ainda não tem título e deve misturar ciência e magia. “Você estuda, faz fanzine, monta portfólio, consegue trabalhos menores e depois maiores. Muitas vezes equilibra os trabalhos profissionais com projetos autorais. Os dois mercados são promissores. Onde se diferenciam, acho, são nos contratos e na estabilidade”, explica. “Adorei (o resultado do filme). A Charlize está excelente e todos os atores dão um show. De verdade, eu não me imagino mais contente com o resultado do que já estou”, finaliza o ilustrador.

Ofilme É verdade que ter Charlize Theron na pele de uma assassina que quebra tudo é naturalmente empolgante, em especial após a participação da musa em “Mad Max: Estrada da Fúria”. Sua beleza e sensualidade dão o toque perfeito para uma trama que, mesmo ambientada em um momento histórico anterior, ganha ares de contemporaneidade. As cores que faltam na HQ são trabalhadas de forma inventiva no cinema ao brincar com a tonalidade cinza de Berlim, enquanto explora as variações de neon dos cenários.

Dirigido por David Leitch, codiretor do competente “De Volta ao Jogo” (2014) e responsável pelo próximo filme do herói “Deadpool” (2018), o roteiro é complexo. São muitas informações a todo instante para criar a sensação de mistério que o tema da espionagem pede. No entanto, parece que Leitch não consegue abarcar esse universo excessivo e poderoso proposto pela HQ. É possível, várias vezes durante a projeção, questionar o que os personagens estão realmente fazendo e para onde querem ir. Isso porque o roteiro adaptado poupa o público de notícias importantes cujas consequências em cena nem sempre funcionam. “Atômica” não deixa de ser um filme de ação efetivo, em especial pela forma como Leitch conduz a pancadaria, explorando a violência gráfica e com uma trilha sonora eletrizante que remete aos sucessos oitentistas. Por outro lado, a trama não parece ser tão inteligente quanto no material original porque as trapaças surgem de maneira apressada e as reviravoltas já não surpreendem tanto do segundo para o terceiro ato. Parece que é uma história grande e complexa demais para um filme só, o que, pelo menos, deixa a vontade de conhecer mais esse universo.

NACIONAL

Várias mulheres em uma só

S

ete anos depois, a diretora Laís Bodanzky retorna aos cinemas com o drama familiar “Como Nossos Pais’, que marca nova parceria com o roteirista Luiz Bolognesi. Mais afiada do que nunca, a diretora explora a crueza de seus personagens em um mundo em constantes e rápidas transformações. A atriz Maria Ribeiro interpreta Rosa, mulher de 38 anos que tenta conciliar os afazeres domésticos, um relacionamento extraconjugal e a vida profissional. Em um almoço familiar, a mãe de Rosa traz à tona uma informação sobre a infância da protagonista, até então desconhecida. A partir daí, Rosa vai em busca de seu passado enquanto tenta descobrir o que quer para o seu futuro. Ao explorar a ideia de mulher moderna que precisa se virar em mil e ciente do movimen-

to feminista que ganha cada vez mais corpo na sociedade, Bodanzky apresenta personagens orgânicos e que funcionam tanto individualmente quanto combinados. A fluidez dos diálogos é acompanhada pela força de cada frase dita. Bodanzky opta pela naturalidade da encenação, abrindo espaço também para o improviso. É curioso como o roteiro reforce tantas vezes que Rosa tem 38 anos. Querendo ou não, é uma fase onde não dá mais para fugir das responsabilidades nem deixar os problemas para depois, e é preciso estabelecer um balanço entre as coisas. Rosa não é uma jovem adulta. Ela é uma mulher com total noção que pode ser de tudo um pouco, até que o calo aperta. Ela não obedece necessariamente ao ditado de que “os 40 são os novos 30”. É hora de aparar as arestas com os pais, de ver o

Maria Ribeiro estrela drama nacional “Como Nossos Pais”, premiado na última edição do Festival de Cinema de Gramado FOTO: PRISCILA PRADE/DIVULGAÇÃO

que ainda existe de bom no casamento e de projetar o que seria uma vida feliz a partir de então. É o momento de transcender além do óbvio.

Elenco Maria Ribeiro explora as nuances da protagonista com facilidade e é sempre bom ver sua competência sendo explorada no centro de um filme. Ela transita entre a filha desamada e a esposa infiel com naturalidade. Aliás, é divertido acompanhar como ela e o amante, papel de Pedro Rocha, se comunicam. Destaque também para Clarisse Abujamra, na pele da mãe de Rosa. Uma mulher firme, que não se arrepende do passado nem tenta reverter seus erros. Ela assume o total controle de seu destino, sendo o símbolo da mulher forte que já viveu o suficiente para saber que a vida é cheia de altos e baixos. Participam também Jorge Mautner, como o carismático pai de Rosa (aliás, é ótimo ver Mautner na tela), Paulo Vilhena, cada vez mais maduro como

ator em seus projetos, e Herson Capri, em uma participação rápida, mas relevante. Ao retratar as rupturas da classe média, Bodanzky faz um filme poderoso e verborrágico, ainda que de vez em quando assuma um tom novelesco desnecessário. Alguns conflitos não se resolvem bem, mas o que o roteiro evidencia, o que importa em primeiro lugar, é o embate de tantos personagens forte e com os quais é fácil se identificar. É um roteiro que pensa a dramaturgia em referência ao que o mundo passa hoje e exige do público certa maturidade. Grande vencedor do Festival de Cinema de Gramado desse ano, “Como Nossos Pais” levou também os troféus de direção, para Laís Bodanzky, atriz para Maria Ribeiro, ator para Paulo Vilhena, atriz coadjuvante para Clarisse Abujamra e montagem para Rodrigo Menecucci. É um exemplar do cinema brasileiro que troca as fórmulas fáceis pela provocação, em especial sobre o que significa estar no mundo hoje. (DB)


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