Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 03/12/16

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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 3 E 4 DE DEZEMBRO DE 2016

Contraplano DOLAN

BELLOCCHIO

Tragédia familiar anunciada

Vampiros italianos saem do escuro C

Vencedor do prêmio da crítica no Festival de Veneza 2015, “Sangue do Meu Sangue” reforça apuro narrativo do cineasta italiano Marco Bellocchio

Em “Sangue do Meu Sangue”, diretor italiano fala sobre o moralismo religioso em paralelo com o vampirismo DIEGO BENEVIDES Crítico de Cinema

M

arco Bellocchio, responsável pelos elogiados “Vincere” (2009) e “A Bela Que Dorme” (2012), ambienta seu trabalho mais recente, “Sangue do Meu Sangue”, em duas épocas totalmente distintas. A primeira delas, que consome metade da projeção, se passa no século 17, em Bobbio, região norte da Itália, quando a jovem freira Benedetta, interpretada pela bela Lidiya Liberman, é acusada de seduzir um padre e levá-lo ao suicídio. Para que o pároco tenha um sepultamento decente e se livre do inferno, os demais religiosos do convento fazem testes para

provar que ela teria feito pacto com o diabo. Nesse meio tempo, Federico, papel de Pier Giorgio Bellocchio, irmão do padre que se matou, se envolve emocionalmente com a jovem. Corta para os dias de hoje, quando um funcionário do governo e um bilionário russo retornam ao mesmo convento com uma proposta de compra. Lá, um velho Conde com hábitos noturnos reclama de séculos de vida que parecem estar chegando ao fim. O roteiro, assinado pelo próprio Bellocchio, dá um arriscado salto temporal para criar representações nesses dois períodos históricos. Se no primeiro, o cineasta volta as atenções ao recorrente tema da intolerância religiosa, o segundo mostra o lado mercenário e corrupto atuais. No meio dos dois estão as relações entre homens e mulheres, onde elas parecem ser submissas a eles e são julgadas por isso, em uma sociedade que oprime social ou politicamente.

A metáfora com o vampirismo é mais um acerto do roteiro, que trata tudo com naturalidade e não transforma este em um filme de gênero. Ainda assim, Bellocchio consegue fazer do Conde um personagem que não precisa derramar uma gota de sangue para ser assustador.

Segmentos Os dois segmentos parecem trazer intenções que não são reveladas de imediato. Bellocchio elabora uma trama tão densa, cheia de possibilidades de leitura, que talvez seja um charme o desfecho estranho que traz para o longa. Na direção, o italiano faz mais um trabalho efetivo de linguagem, transitando entre os dois tempos do filme com fluidez. Aos 77 anos, Bellocchio ainda mostra uma grande paixão pelo cinema, se permitindo ainda fazer escolhas de imagem e montagem para representar um discurso profundo sobre os sentimentos humanos e as relações de poder en-

DIEGO BENEVIDES

Sundance

diego.benevides@diariodonordeste.com.br

Cinema cyberpunk VENCEDORDE seis prêmiosno 15ºNoia – FestivaldoAudiovisual Universitário,ocurta-metragem cyberpunk“JanainaOverdrive”, de MozartFreire,mostra ainventividade docinema cearense, tendono campo dasideiasoseuprincipal orçamento. Ahistóriaacompanha uma transciborguequebuscasua sobrevivêncialonge docontrole biotecnopolíticodeuma corporação, referenciandofilmes clássicosda ficçãocientífica para elaborarum cenáriofuturista e ameaçador. Premiadocom ostroféus demelhor filme,trilha sonora, direçãodearte, figurino,maquiagem eatrizpara Layla KayãSah,“Janaina Overdrive”é, acimadetudo,umdesejo deumjovem diretordeabrirnovaspossibilidades parao cinemacearense. Esseano, Mozarttambémcirculou pelos festivaiscom outro curta,“Cinemão”, umaexperiência sensorial sobreas relaçõesafetivas.

MOZART FREIRE,diretordo curta cearense“Janaina Overdrive”,que recebeuseis prêmiosno Noia Tãojovem e tãotalentoso,o diretor entrapara alista depromessas de novaspossibilidadespara ocinema que éfeitohojeno Estado,contribuindo artisticamentepara alinguagem audiovisualepara a discussão sempre necessáriadeidentidade degênero.

tre as pessoas. O contexto político é intrínseco a tudo que é visto em tela, desde o enquadramento humilhante de uma jovem sendo murada por ter pecado aos diálogos fajutos sobre corrupção das instituições, sejam elas religiosas ou governamentais. “Sangue do Meu Sangue” demanda um pouco mais de disposição do público, já que a obra talvez não tenha interesse em ficar no óbvio e se utilizar de fórmulas comuns para contar sua história. Bellocchio utiliza o que há de melhor em sua própria filmografia para se atualizar como realizador e fazer um filme misterioso e sedutor, assim como Benedetta. O cineasta convida o espectador a acompanhar a luxúria desses personagens controversos. Também mostra que a passagem do tempo não necessariamente faz uma sociedade evoluir ou se livrar das amarras fantasmagóricas do passado ou do vampirismo do presente.

Aquarius A revista francesa Cahiers du Cinéma divulgou sua tradicional lista de melhores filmes do ano e colocou o longa-metragem pernambucano “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, na quarta posição. Elogiado desde o Festival de Cannes, o filme não se qualificou para representar o Brasil no Oscar devido às questões políticas em que se envolveu. Além de “Aquarius”, a lista da Cahiers du Cinéma inclui o alemão “Toni Erdmann”, de Maren Ade, no topo, seguido de “Elle”, de Paul Verhoeven, e “Demônio de Neon”, de Nicolas Winding Refn. Pedro Almodóvar figurou na sexta posição com seu último trabalho, o drama “Julieta”. Indicado ao último Oscar, “Carol”, de Todd Haynes, também foi lembrado pelos autores da publicação.

O drama “Não Devore Meu Coração”, primeiro longa solo dirigido pelo prestigiado roteirista Felipe Bragança, parceiro de Karim Aïnouz, representará o Brasil na competição principal do Festival de Sundance 2017, que acontece de 19 a 29 de janeiro em Park City, Utah, nos Estados Unidos. Estrelado por Cauã Reymond, o filme narra uma história de amor juvenil e tem como pano de fundo as disputas por terra na fronteira do Brasil com o Paraguai.

onsiderado um prodígio por uns e incompreendido por outros, o canadense Xavier Dolan virou fetiche dos principais festivais de cinema. Aos 27 anos, ele já tem seis longas-metragens como diretor e anda na corda bamba do prestígio. Mimado ou não, a inquietação de Dolan, principalmente em relação aos conflitos familiares, sempre chama atenção. Não seria diferente com seu mais recente trabalho, “É Apenas o Fim do Mundo”, vencedor do grande prêmio do júri do Festival de Cannes. Com o propósito de contar à família que está morrendo, o jovem Louis, interpretado com uma doce frieza por Gaspard Ulliel, volta para casa após 12 anos de distância. O reencontro com sua mãe, irmã, irmão e cunhada acontece de forma abrupta, em uma mistura de amor, saudade e rancor. A mágoa que todos guardam está implícita nos diálogos rudes, mas nunca chega a se expor completamente para o público. Baseado em uma peça de Jean-Luc Lagarce, “É Apenas o Fim do Mundo” concentra os elementos básicos que interessam a Dolan como realizador. Estão ali os embates familiares, a verborragia do roteiro e, principalmente, certa histeria que fazem dos personagens seres detestáveis. A história demora a andar por enclausurar o elenco em uma dinâmica pobre, onde ninguém é capaz de criar o mínimo de empatia para que o público continue interessado.

Com um elenco estelar, Dolan exige de Vincent Cassel e Léa Seydoux interpretações irritantes. A oscarizada Marion Cotillard também está deslocada em cena, já que sua relação com Louis é vazia. Talvez a proposta de Dolan seja mostrar o desconforto e a falta de comunicação que existem nas famílias, mas a falta de sutileza da encenação impede uma maior imersão. O diretor até joga alguns elementos no ar que funcionam em partes, como a possibilidade de a família ter entendido que o retorno de Louis anuncia uma tragédia. O passado deles continua uma lacuna, enquanto o futuro se torna uma farsa. O amor está ali, mas parece tão cristalizado, incapaz de passar por transformações. É um filme que não afaga; incomoda justamente por trazer uma visão catastrófica dos sentimentos. É de se esperar essa histeria de Dolan e coube bem em obras como “Mommy” (2014), mas aqui parece mais um capricho. Dolan continua um bom apreciador musical, capaz de misturar Blink 182, Grimes e Moby e ficar bom, mas esquece de amadurecer a sua forma de contar histórias. É, enfim, um jovem talentoso, que talvez esteja mais preocupado em personificar a si mesmo em cena do que a propor algo fora da sua zona de conforto. Ainda assim, ele causa, para o bem ou para o mal, dissonâncias que alimentam sua forma de se expressar, e é uma provocação sempre bem-vinda. (DB)

Aos 27 anos, o canadense Xavier Dolan lança seu sexto longa-metragem, “É Apenas o Fim do Mundo”, com uma dose extra de personagens histéricos

Comonossospais

Prodecine A Ancine e o Banco Regional do Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) abriram chamada pública para o edital que direciona R$30 milhões para longas-metragens brasileiros, de ficção, documentário ou animação. É a quarta edição do edital, que já contemplou 55 projetos até então. O Prodecine, do Programa Brasil de Todas as Telas, estimula filmes com potencial para participar de festivais e, ao mesmo tempo, dialoguem com o público.

CINEBIOGRAFIA Até demorou para a vida de Elis Regina virar tema de filme, mas chega a ser inesperado que “Elis”, de Hugo Prata, não dê conta da intensa trajetória da cantora. O roteiro se perde em pequenos conflitos que nunca são aprofundados, o que impede que o público possa conhecer e celebrar a figura icônica que ela foi. A atriz Andreia Horta até tenta reproduzir os maneirismos de Elis e faz um bom trabalho na dublagem das canções, mas ela se limita a um texto frágil, que ensaia dizer que a vida de Elis foi baseada em seus relacionamentos amorosos. Repetitivo e careta, “Elis” é um pouco daquilo que Elis Regina tentava não ser: igual aos outros. Ainda que o filme não agrade, a sorte é que as músicas ficam, nunca envelhecem.


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