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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 9 E 10 DE SETEMBRO DE 2017
CONTRAPLANO HORROR
THRILLER
O retorno sinistro de Pennywise
Os perigos do isolamento
Nova leitura do personagem icônico criado por Stephen King assusta e diverte na mesma proporção DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema
N
ovas propostas de pensar o terror no cinema se apresentaram nos últimos anos nas produções mais alternativas, ainda que predominantemente os filmes comerciais do gênero recorram aos mesmos artifícios. “It: A Coisa” faz uma mistura de elementos mais autorais com os signos já conhecidos do horror para oferecer uma nova leitura sobre Pennywise, o palhaço dançarino criado em 1986 por Stephen King. O diretor Andy Muschietti transita entre o bizarro e o hilário de forma sutil para falar sobre o medo e os traumas da infância. A sensação de insegurança está presente nas mais de duas horas de duração do longa-metragem. Muschietti tem noção de que Pennywise é mais perigoso do que assustador e decide focar especialmente nos efeitos que ele causa nas crianças de Derry, cidade fictícia onde a história se passa. Com muitos personagens centrais, que formam o Clube dos Perdedores, ou seja, crianças que são discriminadas de alguma forma, o roteiro mostra com naturalidade a união de todos esses jovens. Em paralelo, eventos sobrenaturais começam a acontecer com cada um deles, enquanto Bill, vivido por Jaeden Lieberher, procura pistas sobre o desaparecimento de seu irmão mais novo. Antes dessa versão, a história já foi adaptada para uma minissérie televisiva em 1990, pouco tempo depois do lançamento da obra literária de King. É interessante perceber que “It: A Coisa” preserva muito da originalidade da trama clássica, mas se atualiza com maturidade para os dias de hoje. Talvez seja o reflexo de que o próprio livro de King foi ganhando novas camadas no decorrer do tempo e que, agora, pode ser lido a partir de novas perspectivas sobre aquelas crianças em perigo.
O ator Bill Skarsgård encarna o macabro palhaço Pennywise, que amedronta criancinhas na cidade ficcional de Derry. Com uma atmosfera que reveza entre o susto e o humor leve, filme agrada também pelo teor político do universo infantil
Assim, muito antes de ser uma história sobre um palhaço que toca o terror na vizinhança, “It: A Coisa” é sobre aquelas crianças em busca de crescer e sobreviver. É uma passagem. A primeira lição que eles aprendem é que precisam unir forças contra o mau, o que por si já revela as intenções por trás do escopo do suspense.
Abordagem O roteiro acerta ao atualizar os medos dos personagens. É um ganho que a trama aborde, em suas camadas, questões como abuso sexual, protecionismo familiar, preconceito racial e outros temas que trazem um tom político à obra. A atualização das temáticas se encaixa bem com o cenário oitentista da história, revelando que os problemas que estão em evidência hoje sempre existiram. A trama também é embalada pela trilha sonora do período, além de figurinos e design de produção que tra-
zem elementos cênicos fáceis de reconhecer por quem viveu aquela época. É mais ou menos o que a série “Stranger Things” tentou fazer ao explorar o saudosismo da mesma época, mas sem a fluidez com que a narrativa de “It: A Coisa” se estabelece. A série da Netflix mais parece um monte de recorte de referências jogadas sem critérios, enquanto o filme de Muschietti busca uma ligação mais forte como registro histórico. Sem negar a violência gráfica e as cenas de jump scare, o roteiro dá tempo também para que a ligação entre as crianças aconteça. A narrativa respira em diversos momentos para mostrar a infância como algo determinante da estrutura psicológica daquelas crianças. Os sustos estão ali, quase sempre provocados por cortes de câmera rápidos ou elevação sonora dos ruídos. Esses clichês se misturam com cenas divertidas que surgem de diá-
logos inspirados e executados com perfeição pelo elenco infantil. O filme não é necessariamente aterrorizante. Ele dá pequenos sustos e diverte ao mesmo tempo. Acerta ao não se levar tão a sério como filme de fantasia, onde o vilão é um palhaço psicopata que rapta e devora criancinhas. Aliás, o ator Bill Skarsgård entrega uma atuação afetadíssima e, por isso mesmo, genial de Pennywise, tão boa quanto ou superior ao que Tim Curry fez na minissérie. Skarsgård transita em todas as personas do vilão e vai do horror ao humor em dois segundos. “It: A Coisa” mostra que os signos do suspense podem ser repensados para proporcionar um entretenimento de qualidade. Muschietti é um artesão na construção de seus planos e demonstra, antes de tudo, respeito ao universo criado por Stephen King, fazendo desta uma ótima surpresa de uma temporada morna.
E
m seu primeiro longametragem como diretor, após breve experiência em curtas, o cineasta Damien Power explora a temática do isolamento em “O Acampamento” ao mostrar uma viagem romântica que se transforma em uma luta pela vida. Sam e Ian, interpretados por Harriet Dyer e Ian Meadows, respectivamente, viajam para um lugar remoto na floresta, às vésperas do réveillon. O casal começa a presenciar estranhos acontecimentos, entre eles a aparição de um bebê no meio da floresta. Reforçando a tradição do gênero suspense do cinema australiano, Power sabe que a sua história não é exatamente original, talvez por isso se utilize de outros mecanismos para criar tensão durante a projeção. A montagem é o artifício que mais funciona. Aos poucos, é possível entender as temporalidades da narrativa, que se cruzam na virada do segundo para o terceiro ato. Outro ponto curioso é como o diretor mostra de imediato quem são os vilões, deixando em segredo apenas quais são as intenções deles com suas vítimas. O suspense é criado pela incerteza que ali reside. Ainda que os conflitos comecem a ser resolvidos, e o destino dos personagens traçado, Power leva suas reviravoltas até o último minuto. O cineasta não economiza na violência gráfica e coloca o espectador em uma situação incólume e desconfortável. Isolados, o jogo de vida ou morte se desenvolve sem grandes pretensões, mas ainda de forma criativa. A sequência de
fuga entre as árvores da floresta, por exemplo, demonstra como o diretor se interessa em brincar com as percepções do espectador. Logo no começo do filme, Sam e Ian prometem se casar após a temporada no acampamento. No decorrer da trama, o roteiro faz questão de provocar uma ruptura entre os dois, o que imediatamente faz com que seja questionado o amor que ali existe. É sutil, mas a forma como o abandono surge entre eles é um dos bons pontos do texto. Power também traz elementos que referenciam alguns de seus curtas-metragens anteriores, como “Peekaboo” (2011) e “Boot” (2012), onde ele já revelava destreza ao convidar o espectador a ter uma experiência angustiante a partir de situações simples. Power não evita a mea culpa de seus personagens, questionando-os a todo o momento sobre suas atitudes. Os atores Harriet Dyer e Ian Meadows estão bem em cena. Dyer explora as nuances de Sam, da mulher apaixonada à vítima que luta pela vida. O filme também sugere o machismo e a misoginia dos vilões, ainda que não escancare totalmente. Ao não se aprofundar nisso, o filme abre mão de discutir um assunto que tem se evidenciado e precisa ser discutido o máximo possível, de forma até mesmo educativa ou como denúncia social. Ao propor uma forma particular de contar uma história previsível, “O Acampamento” segura a atenção do público, ainda que deixe passar o compromisso maior em discutir suas principais entrelinhas. (DB)
Suspense australiano “O Acampamento” brinca com as percepções do público para criar uma história efetiva, ainda que não fuja dos padrões do gênero
DOCUMENTÁRIO
Caleidoscópio lynchiano
O
império construído por David Lynch no decorrer dos anos o alçou a um dos nomes mais prestigiados do cinema, em especial pela contribuição artística de filmes como “Veludo Azul” (1986) e “Cidade dos Sonhos” (2001). Mesmo com o afastamento voluntário das telonas que já dura mais de dez anos, desde “Império dos Sonhos” (2006), o diretor continuou se dedicando ao audiovisual, seja em vídeos, curtas-metragens e no retorno do acalmado programa de televisão, “Twin Peaks”. Entender Lynch como um artista plural é entrar em um território escorregadio e enigmático. Sabendo disso, os diretores Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm mostram Lynch em outros ângulos no documentário “David Lynch: A Vida de um Artista”.
O filme abre espaço para que Lynch narre suas memórias desde a infância, com foco na relação com a própria família e com as artes plásticas. Revelar esse lado pouco conhecido de Lynch é o grande trunfo da produção, que embarca em uma egotrip filosófica que descasca, aos poucos, os ideais artísticos mais amplos do realizador.
Estrutura O documentário parece não ter interesse em discutir a sua valiosa filmografia, mas, enquanto escuta o que Lynch tem a falar sobre sua evolução como pintor, faz o público compreender um pouco mais sobre a visão da arte dele. É uma biografia que naturalmente já carrega uma parcialidade por exaltar uma figura emblemática e, por escolha, também não refuta os posicionamentos do biografado.
Documentário “David Lynch: A Vida de um Artista” reúne memórias do cineasta consagrado para falar sobre concepção artística e familiar
Nguyen, Barnes e Neergaard-Holm quebram a estrutura do documentário tradicional para focar apenas na narração de Lynch, que traz as informações necessárias para as cenas, enquanto as imagens mostram arquivos pessoais ou ele pintando em seu ateliê. No decorrer da projeção, e à medida que a história cresce, suas telas também ganham mais significado e enchem o quadro fílmico de cores e texturas. A câmera está sempre preocupada em fazer um Lynch um mártir e até um acender de cigarro se torna uma cena poética em tela. Também é curioso acompanhar a revelação do mito. Ao relembrar seus traumas de infância ou momentos importantes para a sua formação artística, Lynch conta tudo como se fosse um amigo próximo, não um cineasta do seu quilate. Por outro lado, esse pouco envolvimento do trio de diretores parece ser muito arriscado. Lynch tem total domínio do material que quer entregar pa-
ra o filme e chega a incomodar a não-interferência dos diretores ao moldar a narrativa do documentário. Claro que “David Lynch: A Vida de um Artista” tem o propósito de imortalizar o cineasta no cenário artístico contemporâneo e é curioso que isso aconteça por meio de outras variantes, como a pintura. Também não deixa de ser um filme direcionado aos fãs de Lynch, ainda que evite discutir a importância da sua filmografia para a história. O documentário não dimensiona a importância nem dos filmes de Lynch, muito menos de suas telas. É um relato pessoal, íntimo demais, que pode até se tornar enfadonho se você não se interessa minimamente em tentar entender o que existe na cabeça dele. Sem muitas provocações e deixando-se levar pelo seu biografado, “David Lynch: A Vida de um Artista” fica como um bom registro de um homem que sempre será além do que mostra ser. (DB)