Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 12/08/17

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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 12 E 13 DE AGOSTO DE 2017

CONTRAPLANO ARGENTINA

CINE CEARÁ

Quase estranho no ninho

O

Protagonizada pela atriz trans Daniela Vega, produção chilena mostra uma sociedade opressora que ainda não entende que nem todo mundo é igual no mundo

É normal seguir contra a corrente Longa chileno “Uma Mulher Fantástica”, de Sebastián Lelio, ressalta a importância de discutir sexualidade DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema

G

rande homenageado da edição desse ano do Cine Ceará, o cinema chileno se destaca na filmografia contemporânea por suas histórias que provocam. “Uma Mulher Fantástica”, novo trabalho de Sebastián Lelio, diretor do ótimo “Glória” (2013) representa com eficiência a produtividade dos realizadores chilenos. Realizado pelo premiado Pablo Larraín, um dos principais cineastas do Chile e que foi agraciado no Cine Ceará com o incontestável “O Clube” (2015), o longa acompanha a história de Marina, papel de Daniela Vega, uma mulher trans que perde o namorado, Orlando, que tanto amava. O roteiro do próprio Lelio em parceria com Gonzalo Maza evita começar a história de Marina do zero. Aqui, ela já está a um passo de conseguir seu nome social, tem empregos que pa-

gam seu sustento e amigos afetivos. Os roteiristas evitam acertadamente dar atenção ao arco da descoberta de Marina como mulher trans. Ela já fez a sua transição e luta por uma vida normal. A partir da morte de Orlando, Marina começa a ser constantemente questionada. O contato com a família do namorado a coloca em uma situação constrangedora de ter que explicar assuntos da vida pessoal do casal que não importam a ele, além de impedir que participe do velório do amado. A todo tempo, Marina é testada e humilhada pelo mundo ao redor. A violência verbal se torna física, até mesmo pelos investigadores que supostamente deveriam proteger Marina. Em determinada cena, a protagonista é obrigada a fazer um exame de corpo de delito. O diretor não apenas constrói uma das cenas mais emblemáticas, como força o público a participar daquela humilhação.

Enredo Teria ela cometido um crime sexual, somente por ser uma mulher trans? Seria impossível existir afeto entre ela e Orlando, somente por ser uma mulher trans? A discriminação vaga entre as mais escancara-

das e silenciosas, que partem de um olhar de reprovação, como se Marina fosse um erro social. Por mais de três vezes, ela pergunta se vai ser detida, revelando os medos do passado difícil que enfrentou até chegar onde está. Marina trabalha, é vaidosa, tem sonhos e amores, como qualquer outra pessoa. A falsa aceitação dos que a rodeiam cai por terra a partir do momento em que ela se torna uma ameaça para eles. Ciente de que não fez nada demais, Marina não quer (não tem) nada a provar para os outros. Ela só quer enterrar o seu amado e seguir a vida. Em momento algum o roteiro tem pena da protagonista. É curioso que Marina enfrente os desafios com a densidade que ela tira do medo e da necessidade de permanecer viva. Em alguns momentos, Lelio não abre mão de inserir elementos fantásticos e de horror para ambientar os enfrentamentos da personagem. A interpretação de Daniela Vega é simplesmente magnética, encarnando os conflitos de Marina com um toque pessoal, mas sem deixar de olhar para as problemáticas sociais e de gênero que o longa levanta.

Por vezes, Daniela parece saída de um filme de Pedro Almodóvar, prestes a explodir tudo ao seu redor por ter um mundo inteiro demandando demais de sua estabilidade física e psicológica. Ao denunciar a intolerância que ainda existe aos montes e o medo do “diferente”, “Uma Mulher Fantástica” presta excelente serviço para o cinema mundial, por se colocar não apenas como uma obra estilisticamente eficaz, mas também como uma história obrigatória de ser vista. Lelio tem provocado como poucos no cinema contemporâneo, permitindo-se correr riscos e sair do senso comum de temas que estão em constante debate. Com “Uma Mulher Fantástica”, o diretor dialoga com o mundo principalmente por meio das metáforas – como o espelho sobre o corpo nu de Marina, no terceiro ato. Mesmo fragilizada, ela luta para ser respeitada, compreendida e aceita. Não se sabe de onde tira forças, mas está ali, em pé, pronta para o que vier. Ela representa histórias que acontecem aos montes, diariamente, mas também a esperança de que, um dia, tudo possa acabar bem.

novo trabalho da diretora Julia Solomoff, “Ninguém Está Olhando”, é ancorado em uma trama basicamente multiétnica. Nico, interpretado por Guillermo Pfening, é um ator argentino em crise profissional e pessoal que vai para Nova York em busca de mais visibilidade e sossego afetivo. Sua convivência com os americanos e com outros latinos permeia a obra. Lá, ele não é uma estrela. Após abandonar o elenco de uma série de sucesso em seu país de origem, Nico vivencia a frustração do sonho americano. Na cidade onde tudo acontece, nada parece acontecer para ele. Nico vive de pequenos bicos de garçom e babá não só para se sustentar, mas também para passar despercebido. O fato é que suas ambições como ator sempre pulsam e aqui existe o arco mais interessante do roteiro. Nico não segue o padrão físico de um ator latino, o que dificulta sua entrada no mercado norte-americano. A frustração de estar em uma cidade desconhecida, com poucos amigos e vivendo das memórias de um passado recente que envolve um antigo relacionamento amoroso trazem a profundidade que o personagem precisa. Solomoff trabalha em harmonia com Pfening para expor as tensões e angústias do protagonista, que anda sem rumo e começa a construir uma vida que não é a sua.

O longa-metragem também discute sem muita profundidade as questões homoafetivas de Nico, que também fugiu para Nova York após uma decepção amorosa. Nesse ponto, o roteiro trata Nico como um menino, mesmo perto da casa dos 40 anos, que não sabe muito bem administrar o que acontece em sua vida. Do segundo para o terceiro ato, “Ninguém Está Olhando” ganha uma camada novelesca na relação de seus personagens, que não cai muito bem quando estamos falando da tradição do cinema argentino. Pode até ser autorreferente, já que o protagonista é um ator de televisão, mas como obra cinematográfica acaba prejudicada pela falta de ambição e tato narrativos, que não deslocam os conflitos dos personagens para um espaço onde exista algo fresco para suprimir da trama. Cabe a Pfening investir no carisma antitético do protagonista, que tenta maquiar o fracasso com pequenas trapaças. A relação de Nico com o bebê Theo rendem cenas inesperada pela imprevisibilidade e carisma de como os dois abraçam o acaso narrativo. Falando melhor sobre a crise profissional do que a pessoal de seu protagonista, “Ninguém Está Olhando” escorrega sem grandes danos. Chega a ser um feel good movie sobre solidão e ausência do outro em uma ambiente que as engole e expõe suas fragilidades mais íntimas. (DB)

O ator Guillermo Pfening é destaque no longa-metragem argentino “Ninguém Está Olhando”, de Julia Solomoff, que estreia comercialmente em dezembro

CUBA

Uma amizade inesperada

A

mbientado nos anos 80, sob gestão de Fidel Castro, a trama de “Santa e Andrés” tenta espelhar questões políticas da época com a homossexualidade de seu protagonista, vivido por Eduardo Martinez. Andrés é um artista que vive exilado no alto de uma montanha. A ele é destinada a vigília da revolucionária Santa, papel de Lola Amores, que todos os dias carrega sua cadeira e a coloca na frente da casa de Andrés, para impedi-lo de sair durante um evento político importante, afastando-o, assim, da mira da imprensa. A convivência diária faz com que surjam entre eles alguns interesses, que se desenrolam durante as quase duas horas de projeção. O roteiro acerta ao fazer com que Santa e Andrés encontrem seus próprios mecanismos de aproximação. Suas dife-

renças, nesse sentido, são fundamentais para que possam se ouvir e se entender. O mundo de fora pega fogo, mas é a partir desse universo micro que os dois transcendem. Durante a história, Lechuga deixa claro suas preferências políticas na forma com que constrói a relação entre os dois personagens e deles com o exterior. O diretor questiona constantemente as noções de herói e vilão desse recorte histórico. Esses papéis misturam-se à medida que Santa e Andrés se tornam pessoas mais tolerantes com as diferenças um do outro.

Temáticas Cabe dizer que o fato de Andrés ser homossexual é, a princípio, uma ótima provocação do roteiro, ao mostrar que a perseguição aos gays é algo histórico, especialmente quando agem de forma política pa-

A exibição de “Santa e Andrés”, do diretor Carlos Lechuga, foi proibida em Cuba, mesmo após aprovação do estado para a realização do drama

ra defender os ideais nos quais acreditam. Os questionamentos sobre a era Fidel e, sobretudo, sobre o que viria a seguir são pertinentes. Tanto que a exibição da obra foi proibida em seu país de origem, Cuba, mesmo depois da autorização do estado para sua realização. Essa proibição fala muito sobre o quanto a história repercute até hoje e, coincidentemente, os artistas continuam sendo perseguidos por suas ideias. Felizmente, o cinema serve de arma implacável de representação e, de uma forma ou outra, o acesso aos filmes “proibidos” acontecem. Nesse sentido, o diálogo que “Santa e Andrés” faz com os dias turbulentos de hoje é efetivo, quando a política, mesmo opressora e perdida, ainda tenta se dignificar e impor sua moral desgastada. Por mais que olhe para o passado, o longa cutuca as feridas atuais e suas incompreensões. Na direção, Lechuga faz bom uso das locações abertas,

com a precisão da imagem e da captação da paisagem, bem como da direção de arte que não exagera na reprodução da época (a não ser pelo cabelo rebelde de Santa). Pena que o roteiro deslize na construção de seus personagens da metade para o final. Santa é a principal prejudicada, pois suas motivações em relação a Andrés se confundem com desejo. Então precisamos engolir que ela ofereça, por exemplo, uma oportunidade de ele se deitar com uma mulher; ela mesma, no caso. A trama não deixa de cair no novelesco, onde o exagero dos atores em seus momentos de crise quase conseguem desfazer o bom desempenho mostrado no início da película. Eduardo Martinez, no entanto, tenta preservar o lado lúdico do artista político e sua fuga para o mar é um ato simbólico. Ao final, fica um gosto meio amargo, de obra incompleta (ou em construção), mas que, independente disso, precisa ser vista. (DB)


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