Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 15/10/16

Page 1

8 | Caderno3

DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 15 E 16 DE OUTUBRO DE 2016

Contraplano FESTIVAL DO RIO

INÉDITO

Filme memória

O tremor do caos humano

C Douglas Soares dirige e atua em filme que resgata as memórias familiares com sensibilidade

Em competição no Festival do Rio, filme “Xale”, de Douglas Soares, discute a resistência da memória DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema

A

delicadeza de “Xale”, primeiro longa-metragem do carioca Douglas Soares, é mais íntima do que um beijo de amor. A obra se utiliza de elementos da linguagem ficcional e documental para explorar a busca do cineasta pelo passado da própria avó, Araci Vanassian, descendente do genocídio armênio. Anos atrás, ela recebeu uma carta escrita em antigo armênio por um familiar, que nunca foi traduzida. Como resposta ao texto, Dona Araci enviou um xale que nunca chegou ao destinatário. Para investigar o passado da família, o diretor vai para a Armênia com o xale em mãos. A relação entre os dois personagens se estabelece de um lado pela viagem de Douglas e do outro pela velhice de Dona Araci, que revelam a base dramática da relação entre neto e avó. Na primeira metade da história, Douglas realiza um filme de um homem só. Em um país desconhecido e com a limitação do idioma, ele procura endereços

que já não são os mesmos enquanto filma e fotografa cenários que fizeram parte do passado da avó. Não demora muito até ele encontrar alguém para traduzir a carta que, talvez, só importe mesmo para Dona Araci. A partir disso, parece que o cineasta também está fazendo uma viagem de descoberta de si mesmo. Sozinho, muitas vezes em silêncio, Douglas caminha com uma motivação em mãos e várias no coração. É de lá que ele recebe a notícia do Alzheimer da avó, que tem dificuldade de lembrar informações recentes, mas nunca esquece do passado. O roteiro de “Xale” fala sobre as memórias que construímos no decorrer da vida, bem como sobre nossa projeção de um futuro incerto. Ao voltar para o Brasil, o diretor direciona a relação com a avó dentro de casa, dependente de atenção. Eles passam os dias entre conversas e cuidados que se potencializam pela naturalidade com que são registrados pela câmera.

Tempo Se em um primeiro momento o filme impressiona pela destreza do diretor em fazer um diário, ao voltar para o Rio de Janeiro, Douglas mostra sensibilidade e inteligência ao criar e condicionar os diálogos com Dona Araci. A dificuldade de comunicação do idioma do pri-

“Xale” é um filme de amor que olha com delicadeza para os laços familiares enquanto questiona o passado e o futuro de seus personagens meiro ato transforma-se no conflito do diálogo entre duas gerações que não funcionam da mesma forma. Em comum, os dois entendem que o tempo passa e a vida precisa ir para frente. O passado serve de referência para a projeção de um futuro incerto. Resta a vivência do presente, com as dificuldades que moldam nossa existência. “Xale” traz essa essência fresca do cinema brasileiro de refletir sobre um macro a partir de um recorte mais íntimo, onde realizador também é personagem, sendo possível até quebrar conceitos de linguagem para trazer novas propostas ao enredo. O longa cresce pela sabedoria do diretor de não forçar a emoção dessas relações históricas, seja a carta melancólica ou o envelhecimento de Dona Araci. “Xale” não nos prende em um único cenário de emoções e interpretações, preferindo dar liberdade para se envol-

DIEGO BENEVIDES

Prêmio da Crítica

caderno3@diariodonordeste.com.br

Cinema feminino EXISTEUMA discussão sobre o cinemafeito por ecom mulheresque, naverdade,não émuito nova,mas ganhamais camadasàmedidaqueas realizadorasdeaudiovisual encontramseuespaço. Apresençafemininanocinema cresce nãoapenas com oprotagonismo dentrodasficções,masganha representatividadeem cargos importantesda equipetécnica,como produçãoedireção. Anecessidadede discutirosconflitos vividospor elaseo desejodese empoderarda linguagem surgempara responder auma realidadeainda tomadapor homens. EmFortaleza, ajunção demulheresem coletivosestá emaltaem diversos segmentos.Ocoletivo “Caraa Tapa”, porexemplo, atuadesde2013sob coordenaçãodeIrenaBandeira, VivianeRocha eNataly Rocha,que promovempesquisassobre fotografia, mise-en-scène,cinema expandidoe artesvisuais. Emparceriacom

RENATACAVALCANTEé umadas jovenscearenses queinvestemna vertentefeminina docinema produtorascomoa“Minhas Queridas Produções”,capitaneada porRenata Cavalcante,e “Mirabilias”,deKennya Mendes,elastrabalhamjuntas para promoveropensamento femininoeos processoscriativos quepossibilitam enxergaralém da perspectiva masculinado cinema.Elasacreditam no poderfeminino quetransformaa artee omundo.E estãocertas.

ver e pensar as representações familiares, sociais e políticas feitas em tela. A partir disso, é impossível não encontrar em Dona Araci uma personagem carismática, que esconde um passado incompleto e hoje vive certa lucidez em meio ao Alzheimer. Em Douglas, vemos um jovem que busca sua própria libertação, como homem e como artista. É possível se emocionar, principalmente na conversa final, quando os dois falam sobre a vida, deitados na cama. “Xale” é, acima de tudo, um presente de Douglas para Dona Araci. Sem cair no fatalismo da velhice ou na juventude transviada, é um filme que encanta pela delicadeza e pelo respeito com que foi concebido. Ele reflete sobre as marcas que definem a nossa existência e fala sobre a vida que segue, onde somos mutáveis e mortais. É mais um filme de amor, fruto de uma forma especial de olhar para dentro dos personagens e de explorar as possibilidades da narrativa cinematográfica, como Douglas já fez nos curtas “A Dama do Peixoto” (2011) e “Contos da Maré” (2013), além das várias colaborações com Allan Ribeiro, como nos excelentes “Esse Amor que nos Consome” (2012) e “Mais do que Eu Possa me Reconhecer” (2014).

Indígena Depois de passar por Berlim e vencer o Queer Lisboa, o amazonense “Antes o Tempo Não Acabava”, de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, teve sua primeira exibição nacional no Festival de Brasília. Na ocasião, antropólogas acusaram a ficção de reproduzir a cultura indígena de forma equivocada. Depois de muito se discutir sobre a representação do índio feita no longa, Jean-Claude Bernardet, o mais importante pensador de cinema do Brasil, confortou os diretores. Em e-mail, ele elogiou a coragem do filme: “Gostei de como vocês apresentam essa periferia de Manaus, afinal de contas, uma favela. Gostei de a aldeia ser uma referência verbal, no fundo distante desses índios da periferia”, disse. O longa será exibido em Fortaleza dentro da programação do For Rainbow.

A Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine), que reconhece o trabalho dos críticos profissionais do Ceará, concederá os prêmios da crítica para os melhores filmes do 10º For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual, que será realizado de 10 a 17 de novembro no Cinema do Dragão, e do 15ºNOIA – Festival do Audiovisual Universitário, marcado para acontecer entre os dias 22 e 27, na Caixa Cultural Fortaleza.

E

m 2013, o cineasta mineiro Ricardo Alves Jr. chamou atenção com o curta-metragem “Tremor”, sobre um homem que busca notícias da esposa desaparecida. Agora, o diretor expande esse universo no longa-metragem “Elon Não Acredita na Morte”, que teve sua primeira exibição no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e segue carreira nos festivais nacionais. A essência continua a mesma, com um protagonista em conflito que, à medida que a paranoia se estabelece, se encontra com os seus demônios. Dessa vez interpretado por Romulo Braga, que venceu o prêmio de melhor ator em Brasília, o filme mostra a obsessão de um homem que, nessa busca pela mulher amada, está mais perto de encontrar a si mesmo. É curioso como o cineasta mantém a atmosfera sombria e claustrofóbica do personagem, por meio de elementos dinâmicos da mise-en-scène milimetricamente arquitetada para dar uma noção infernal do desequilíbrio humano. Além de personagens opressores que impedem que Elon respire, em seu caminho está um passado desconhecido. O roteiro não entra muito em detalhes sobre a relação anterior do casal, o que é bom justamente por trazer dúvida se estamos acompanhando um “homem de

bem” ou se o caos que se instala na vida dele é fruto de culpa ou arrependimento. A câmera acompanha Elon quase sempre de costas, como quem esconde seu rosto e busca olhar para frente para desvendar o que não é óbvio. Em cenários sujos, escuros e misteriosos, Ricardo Alves Jr. também não se poupa de trabalhar o suspense dramático. Em certo sequência, Elon abre e fecha portas de salas vazias, como quem busca o inesperado, reforçando a competência sonora e fotográfica da obra. Os devaneios do protagonista são explorados com tensão tanto pelo ator quanto pelo diretor, que sabem da importância do silêncio na narrativa e não subestimam a compreensão do público, livre para entender esse homem abalado psicologicamente. Mesmo que o desfecho seja conhecido ou sugerido no título da obra, o que importa é o caminho rumo ao surto paranoico do personagem. O cineasta repensa a dinâmica das cenas dentro de uma precisão técnica impressionante, ampliando elementos de “Tremor” e se estabelecendo como um realizador inventivo que cria, hoje, um filme autoral puríssimo, apoiado em uma linguagem especial. “Elon Não Acredita na Morte” já garantiu distribuição e deve chegar aos cinemas brasileiros no segundo semestre de 2017.

Primeiro longa-metragem do mineiro Ricardo Alves Jr. , “Elon Não Acredita na Morte” mostra um homem transtornado em busca da esposa desaparecida

Admirávelmundovelho

Documentário O bairro Conjunto Palmeiras foi cenário do documentário “Palmas”, dirigido por Edlisa Peixoto, que tem lançamento marcado para 19 de outubro, em exibição gratuita, às 19h30, no Cineteatro São Luiz. O processo investigativo da cineasta acompanha o desenvolvimento socioeconômico do bairro através das décadas, desde o surgimento da comunidade até a criação de uma moeda própria e do primeiro banco popular comunitário do Brasil.

WESTWORLD A HBO começou com tudo a primeira temporada de “Westworld”, série baseada no longa-metragem de 1973 dirigido e roteirizado por Michael Crichton. Na trama, um parque de diversões com a temática de Velho Oeste é habitado por robôs com características humanas. Eles são programados para seguir uma narrativa criada para entreter os diversos visitantes que financiam o local. Com produção executiva de J.J. Abrams, Jonathan Nolan e Lisa Joy, a série atualiza a proposta original, eliminando a leveza cômica para investir em uma abordagem sociopolítica na qual a humanização e o condicionamento dos robôs são reflexos do abuso tecnológico e, principalmente, da ambição das grandes corporações de entretenimento. Os dois episódios já veiculados pelo canal trazem Thandie Newton e Ed Harris em papéis de destaque.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.