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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 16 E 17 DE SETEMBRO DE 2017
CONTRAPLANO FESTIVAL DE BRASÍLIA
Fronteiras do cinema e receber consultoria de profissionais estrangeiros.
Eduardo Valente, diretor artístico do Festival de Brasília, fala sobre a edição histórica preparada para esse ano DIEGO BENEVIDES* Crítico de cinema
A
o completar 50 edições, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro se torna, mais do que nunca, a principal janela de expressão do cinema brasileiro contemporâneo. O festival mais tradicional do circuito realiza uma edição apontada pelos profissionais de cinema como histórica. As exibições começaram ontem (15), com a exibição especial de “Não Devore Meu Coração!”, de Felipe Brangança, que foi destaque em diversos festivais internacionais, incluindo Berlim e Sundance. A abertura também foi marcada pela emocionante homenagem a Nelson Pereira dos Santos, nome fundamental para entender o cinema brasileiro, a partir de obras como “Rio 40 Graus” (1955), “Vidas Secas” (1963) e “Memórias do Cárcere” (1984). A programação segue até dia 24 de setembro, no Cine Brasília da Capital Federal. Esse ano, o evento se estendeu, de sete para dez dias, ampliando também as programações principal e paralela para que haja um intercâmbio mais rico entre realizadores, críticos e público. Desde o ano passado, o cineasta e curador Eduardo Valente assina a direção artística da programação. Ele conduz as comissões de seleção de curtas e longas sempre com a preocupação de entregar os filmes mais relevantes do período. Além dele, integraram a comissão de seleção de longas os pesquisadores Beatriz Furtado e Pablo Gonçalo e os críticos Heitor Augusto e Marcus Mello. A comissão de seleção de curtas foi composta por Valente, pela pesquisadora Amaranta Cesar, o programador Daniel Queiroz e as produtoras Marisa Merlo de Paula e Thay Limeira. Valente conta que a programação desse ano mantém a coerência da anterior, buscando explorar o lugar que o Festival de Brasília ocupa hoje. “É um festival que tem como marca tanto propor o que são as questões mais interessantes e atuais no cinema brasileiro, no sentido es-
Curador do Festival de Brasília, Eduardo Valente defende a pluralidade da programação do tradicional encontro anual de cinema FOTO: KLEBER MENDONÇA FILHO
tético e da narrativa cinematográfica, e também uma questão da maneira que o cinema brasileiro está lidando, refletindo e sendo influenciado pela realidade sociopolítica do País e do mundo”, diz.
50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro adota nova política de prêmios que valoriza Diversidade Esse ano, Brasília exibe as a presença das obras aguardadas produções dirigi- selecionadas
das por Affonso Uchoa e João Dumans, Adirley Queirós, Julia Murat, Marcelo Pedroso, Daniela Thomas, Juliana Rojas, Douglas Soares, Gabriel Martins, Marcus Curvelo, entre outros realizadores expressivos do cinema autoral brasileiro contemporâneo. Uma das características mais instigantes é que cada um dos nove longas-metragens em competição representa um estado brasileiro, refletindo a descentralização da produção contemporânea. “Isso é marcante nesse ano e acho que também o fato de que são todos filmes que fazem ver e pensar o momento em algum grau conflituoso, não só no sentido de ter lados distintos em conflito, que é algo que vai estar em alguns dos filmes, mas conflituoso de um País que precisa reavaliar suas entranhas, falar de questões raciais, de gênero, de uma série de pontos e temas que estão em vários graus na ordem do dia, mas não é uma
ordem do dia porque alguém ta propondo que seja, mas porque as pessoas tem sentido essa necessidade de avaliar as bases”, explica Valente. As mostras paralelas e exibições especiais, como a do aguardado primeiro longa-metragem do cearense Leonardo Mouramateus, “António Um Dois Três”, criam mais espaços para dialogar e pensar a pluralidade da produção nacional. O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro também propõe iniciativas inéditas, como a Mostra Terra em Transe, que aborda o momento político e social brasileiro. Já a Mostra Esses Corpos Indóceis exibirá produções que retratam a visão dos cineastas em torno de personagens cujas identidades representam e afirmam existências que fogem à “normatização”. Por fim, a Mostra Futuro Brasil é vitrine internacional na qual cineastas com filmes em fase de finalização poderão apresentar suas produções
Premiação Destaque também para a nova política de distribuição de prêmios a partir de agora. Ano passado, foram distribuídos R$340 mil em prêmios para os vencedores. Agora, todos os selecionados receberão cachê de participação. A noite de encerramento será marcada pelo recebimento do cobiçado Candango e prêmios paralelos. “A maioria dos festivais mais interessantes no mundo e no Brasil não tem medo de que as pessoas se desinteressem de participar porque não premiam com dinheiro, e o valor agregado de receber um prêmio em um festival respeitado é um grande diferencial, é a marca que fica, de um prêmio não precisar de um cheque para ter valor”, defende. Pelo alto valor em dinheiro distribuído até então, a concorrência entre os filmes desagrava até mesmo alguns realizadores. Em 2014, todos os representantes dos longas concorrentes subiram ao palco do Cine Brasília para anunciar que o dinheiro seria dividido igualmente, uma forma de “denunciar” a premiação pomposa que o festival fazia. “É um entendimento de reforçar que o verdadeiro prêmio, se existe essa ideia, é estar no festival e ter escolhido pelo júri para receber uma comanda lá. E que o festival deve colocar uma parte do orçamento nos filmes porque eles são parte fundamental de um festival. Então é natural que gaste com os filmes, mas ele vai investir pra todos de uma maneira igual porque todos são parte essencial”, continua. A decisão prevê que os filmes queiram estar em Brasília cientes da ótima vitrine de exibição que o festival representa. Além do mais antigo e tradicional do circuito, o festival é responsável por dar visibilidade aos novos e bons realizadores, além de ser uma janela para discutir o mercado. Além de comemorar 50 edições, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro se prepara para uma etapa de renovação, tendo sempre a produção nacional como força motora de sua existência. * O crítico viajou a Brasília a convite do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
DRAMA
A história de duas irmãs
E
m uma cidade do interior que ainda está em processo de rompimento do tradicionalismo, a jovem Irene, papel de Priscila Bittencourt, também está em fase de amadurecimento. A relação com a mãe não é das melhores, marcas comuns da adolescência, e o pai está sempre indo e voltando por conta de compromissos profissionais. Certo dia, Irene conhece outra Irene, vivida por Isabela Torres, fruto de um relacionamento extraconjugal do pai, interpretado por Marco Ricca. A homônima tem o mesmo nome e a mesma idade, mas já está mais perto de se tornar uma mulher. Ao se aproximarem, as duas logo criam laços de afeto, algo que falta entre os irmãos da primeira Irene. “As Duas Irenes”, dirigido por Fabio Meire, coloca em pauta assuntos referentes à consti-
tuição familiar e tenta reverter alguns clichês que a história poderia vacilar em pequenas joias do roteiro. A relação entre as duas Irenes cresce sentimentalmente. Entre elas, há troca de experiências e do desabrochar da adolescência. São irmãs que se tornam cúmplices, ainda que o real contexto no qual estão inseridas seja delicado. Nas entrelinhas, a história também fala sobre a infidelidade do patriarca, que mantém duas famílias ao mesmo tempo. As duas esposas aparentemente compõem tipos diferentes, uma com a vida mais simples de costureira da região e a outra, “a original”, com mais conquistas. O roteiro acerta ao não deixar muito claro se elas têm noção da existência uma da outra, o que evita que o drama se torne uma disputa para ver quem fica com o pai. Por outro lado, o
Em “As Duas Irenes”, o diretor Fabio Meira discute as relações familiares tradicionais e coloca suas personagens principais em fase de transição
texto não coloca o pai das Irenes contra a parede. É desconfortável que, mesmo com o desfecho primoroso, sentir que a índole do pai não foi questionada, seja pela monogamia ou pela proposta de relações ditas poliamorosas.
Magnetismo Felizmente, as duas Irenes seguram com firmeza seus arcos narrativos que dizem respeito às transformações que acontecem durante a adolescência. Sob os olhos atentos do diretor Fabio Meira, as atrizes Priscila Bittencourt e Isabela Torres estão magnéticas em cena. Interpretando personas diferentes, elas se completam de alguma forma. Entre as duas as questões ultrapassam a relação de sangue paterno mostrar duas jovens questionando seus papéis no mundo, se conhecendo como mulheres. É interessante perceber que a primeira reação da Irene “original” ao descobrir a traição do pai é contar para a mãe. Logo, ela abandona a ideia. A
curiosidade que surge ao se aproximar da irmã vai além das questões familiares. Elas acabam se espelhando de alguma forma e, talvez por isso, os demais personagens não tenham uma força dramática tão grande assim. O diretor Fabio Meira pensa cada sequência a partir da simplicidade da imagem para gerar uma poética contida. A direção de fotografia tem total importância para a narrativa ao olhar para aquelas personagens de forma instigante, curiosa e, talvez, fetichista. Exibido na 67ª edição do Festival de Cinema de Berlim, “As Duas Irenes” também foi destaque na última edição do Festival de Cinema de Gramado, onde faturou os prêmios de melhor roteiro, ator coadjuvante para Marco Ricca e direção de arte, além do prêmio da crítica. Mais um exemplar que joga um olhar delicado na juventude, o bom ritmo do longa envolve o espectador, tornando-o cúmplice de uma relação diferente. (DB)