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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 18 E 19 DE MARÇO DE 2017
CONTRAPLANO DOCUMENTÁRIO
BIOGRAFIA
Arrogância e fome de poder
D
Em documentário baiano, cineasta Paula Gomes acompanha a rotina de um garoto apaixonado pelo circo e que enfrenta a realidade dura de ser artista
A resistência da infância e da arte Em “Jonas e o Circo Sem Lona”, Paula Gomes acompanha a história de vida de um garoto apaixonado pelo circo DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema
M
orador de uma comunidade na Bahia, o menino Jonas tem 13 anos e é apaixonado por circo, resultado da influência de seus familiares que cresceram no picadeiro. Enquanto a mãe de Jonas exige que ele se dedique aos estudos, a avó alimenta as memórias que tem do passado circense, que só encanta mais o garoto. É quando ele decide montar seu próprio circo. Ao lado dos amigos, Jonas ensaia números de malabares, palhaços e de contorcionismo. A premissa da diretora Paula Gomes em “Jonas e o Circo Sem Lonas” parece simples, mas a forma como ela estuda a vida
de Jonas é exemplar. Primeiro pelo fato de que o protagonista não é lá o garoto mais perfeito do mundo. O documentário reconhece Jonas como uma criança normal, sem endeusamento do personagem para chegar onde deseja. É simpático que Jonas e os amigos brinquem de fazer circo, ainda mais em tempos quando a tecnologia tira a experiência brincante das crianças. Por outro lado, a arte tradicional é castrada pela mãe do garoto, que impede que ele continue com essa brincadeira. Dessa forma, “Jonas e o Circo Sem Lona” fala sobre o fim da infância e a resistência do fazer artístico pelo olhar de um simples menino.
Aproximação Em certo momento, uma das professoras de Jonas declara que é um erro fazer um filme sobre um menino negligente com os estudos, que ele não é bom exemplo para os outros. Mas essa não é a mensagem que Paula Gomes deseja passar. Em uma das cenas mais
emblemáticas e arrepiantes do documentário, Paula e Jonas conversam sobre suas respectivas artes. Os dois enfrentam problemas para fazer (circo e cinema), precisam de amigos para pôr os projetos em prática e, mesmo que acreditem no que fazem, várias coisas tentam impedir com que sejam felizes. O paralelo entre o fazer circense e o fazer cinematográfico revela as intenções da equipe, de discutir a sobrevivência do desejo artístico no mundo contemporâneo. Vale destacar também que Paula Gomes não se contenta apenas em acompanhar a saga de Jonas para administrar seu próprio circo. Ela decide se aproximar dele, não necessariamente como diretora, mas como humana. Diálogos íntimos surgem entre os dois, coisa que só seria possível com a confiança recíproca que eles estabeleceram ali. Essa liberdade entre equipe e personagens também permite inserir alguns elementos
DIEGO BENEVIDES
Mostra
diego.benevides@diariodonordeste.com.br
Espaços ocupados EM UMCIRCUITO mais restrito, filmesbrasileiros preocupados com a experiênciada linguageme com as abordagenspolíticassecontrapõem às comédiasenlatadasque superlotamas salascomerciais.Em“Era oHotel Cambridge”,acineastaEliane Caffé trazem suaficção traçosdocumentais paraacompanhar arotinade moradoresqueocupam oprédioque dánome aofilme, amaioria imigrantes enordestinos.Ameaçados otempo todode seremexpulsos dolocal, os personagensdialogamsobre a situaçãodeinvisibilidade eimpotência queenfrentam.Caffé fazum trabalho especialao misturar aespontaneidade dosrelatos com ascenasensaiadas, criandoumclima deinsegurança,mas tambémdeirmandade entre eles, cujasrachadurasacontecem inevitavelmentepor motivos externos.Eleitoomelhor longa-metragemdeficçãona opinião dopúblico do Festivaldo Rio 2016,a
“ERAO HOTELCAMBRIDGE”, dirigido porElianeCaffé, aborda questõesde ocupaçãoeimigração noBrasil obraestreounaúltima quinta-feira (16),mas oscinemasdeFortaleza ainda nãoforam contemplados.Aliás,a últimasemana foibemfeliz para o cinemanacional,que levousete produçõesàs telonas,mostrando diferentespropostasque moldama identidadepolítica e madurado audiovisualnacional.
quase ficcionais que, reencenados dentro de um documentário, trazem um tom divertido e leve para a obra. A aproximação é tão especial para a trama que Paula chega a intervir pelo futuro de Jonas, por mais que a mãe do garoto negue o seu pedido. A obra, enfim, mergulha no mais profundo sentimento de carinho e de humanidade, enquanto aborda a história de um garoto cheio de sonhos que precisa encarar os desafios da vida adulta prestes a bater à porta. No mês em que se comemora o Dia do Circo, “Jonas e o Circo Sem Lonas” é uma homenagem a todos os artistas que lutam para expressar sua arte. Tecnicamente impecável e com uma montagem que facilita embarcar na viagem de Jonas, o filme é mais um exemplo extraordinário de como cineastas podem repensar a contação de histórias no cinema, sem abrir mão de uma abordagem política e sentimental que cabe na trama.
Estopô Balaio Também fora do circuito de estreias em Fortaleza, mas chegando aos cinemas de outras capitais, o documentário “Estopô Balaio” é o novo trabalho do cineasta Cristiano Burlan. O filme explora as ruas do bairro Jardim Romano, no extremo leste paulistano, que sofre constantemente com enchentes e é esquecido pelas autoridades. O Coletivo Estopô Balaio, que dá nome ao filme, é um símbolo de resistência artística dos moradores da região. Em 2010, o bairro ficou submerso por três meses e os moradores foram obrigados a reinventar a vida e a criar perspectivas de sobrevivência. Com uma estrutura um pouco mais tradicional, Burlan ganha com as ótimas entrevistas que mostram como esses sobreviventes tentam sair da invisibilidade social e resistir
O Curta O Gênero 2017 está com inscrições abertas até dia 31 de março para trabalhos e produtos para Simpósios temáticos, Mostra Internacional Audiovisual e Concurso de fotografia Contrastes. Esse ano, o evento tem como tema “Desafios atuais dos feminismos latino-americanos: política, estratégias e articulações possíveis” e terá uma vasta programação artística e de debate. Os projetos devem ser inscritos pelo site oficial (www.fabricadeimagens.org.br).
epois de voltar aos holofotes com “Birdman ou a Inesperada Virtude da Ignorância” (2014), o ator Michael Keaton cresceu os olhos para as novas oportunidades que o cinema trouxe. Não foi surpresa que um de seus projetos em seguida fosse “Fome de Poder”, drama ambicioso que conta uma das histórias mais arrogantes de que se tem notícia. O filme biografa a vida de Ray Kroc, um vendedor fracassado que praticamente se apropriou do McDonald’s e o transformou em um gigante da indústria alimentícia mundial. Ao perceber o potencial familiar, imobiliário e gastronômico do negócio criado por dois irmãos, no sul da Califórnia, Ray Kroc adquire uma participação na lanchonete e começa o trabalho de expansão de franquias. Mesmo com cláusulas que impedissem que ele virasse dono da marca, o empresário conseguiu tirar o negócio das mãos dos criadores originais da marca. Sim, a história é realmente curiosa e mexe com os nossos nervos de injustiça. “Fome de Poder” foi desenvolvido com certa expectativa do público, mesmo com a direção de John Lee Hancock, cujo maior “sucesso” foi “Um Sonho Possível” (2009). É aqui onde começam os problemas da obra. “Fome de Poder” nunca consegue alcançar a maturidade que uma história dessas precisa. Ao inserir pitadas cômicas e histéricas, o roteiro não sabe bem
para onde ir e se repete constantemente em quase duas horas de projeção. O Ray Kroc interpretado por Keaton não é minimamente carismático, nem mesmo em sua arrogância, para manter interesse no filme. Na pele dos irmãos McDonalds, Nick Offerman e John Carroll Lynch fazem o que podem para não serem engolidos por um texto que não oferece muitas oportunidades para eles. Assim, “Fome de Poder” não constrói boas relações entre os seus personagens. Entre tantas possibilidades de discutir a indústria alimentícia e seus vícios, literalmente falando, a obra perde muito tempo tentando ser cool demais, quando na verdade não toma partido algum sobre o que quer abordar. O roteiro peca também em transparecer de forma muito fácil como Ray Kroc trapaceia os irmãos McDonalds. O que poderia ser um grande clímax acaba surgindo apenas por questão de necessidade na narrativa, com fórmulas fáceis de serem resolvidas. Parece, no fim das contas, uma abordagem inocente demais para uma história que até hoje impacta em tantos setores da sociedade, não apenas no gastronômico. O despreparo de Hancock e sua equipe, com destaque especial para a montagem e a trilha sonora, fazem com que “Fome de Poder” seja uma experiência indigesta que deixa a sensação de que poderia ser bem melhor em outras mãos. (DB)
Michael Keaton protagoniza drama biográfico sobre empresário que descobre o potencial do Mc Donald’s e o transforma em uma marca mundial
Documentáriosimperdíveis
Festival A 27ª edição do Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema está com inscrições abertas para curtas-metragens brasileiros e longas realizados na América Latina, Caribe, Portugal e Espanha. Realizadores devem enviar suas obras até 7 de maio pelo site oficial (www.cineceara.com). O festival acontece de 5 a 11 de agosto no Cineteatro São Luiz e programação paralela em outros pontos da cidade. Esse ano, o Cine Ceará homenageará o cinema chileno.
COUTINHO A Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) fez uma pesquisa entre os críticos associados e convidados para eleger os melhores documentários brasileiros lançados até hoje. Eduardo Coutinho foi o realizador mais lembrado na pesquisa. “Cabra Marcado para Morrer” (1984) conquistou o primeiro lugar da lista, que ainda citou “Jogo de Cena” (2007), “Edifício Master” (2002), “Santo Forte” (1999), “Peões” (2004), “O Fim e o Princípio” (2005), “Moscou” (2009) e “As Canções” (2011), reconhecendo a carreira de um dos principais realizadores e pensadores do documentário nacional. O levantamento é o ponto de partida para o livro “Documentário Brasileiro – 100 Filmes Essenciais”, que será lançado no segundo semestre de 2017 pela Abraccine, em conjunto com o Grupo Editorial Letramento. A entidade lançou ano passado o livro “Os 100 Melhores Filmes Brasileiros”, com críticas das obras mais relevantes da filmografia nacional.