Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 23/09/17

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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 23 E 24 DE SETEMBRO DE 2017

CONTRAPLANO HORROR

FESTIVAL DE BRASÍLIA

Vampirismo histórico em cena

I

Em sua primeira experiência como atriz, no papel da vendedora Violeta, Aline Brunne encanta em produção rodada no Recôncavo da Bahia

A pele que habito Longa-metragem baiano “Café com Canela” experimenta a imagem sem medo de correr riscos DIEGO BENEVIDES* Crítico de cinema

U

m dos temas mais discutidos na edição de 50 anosdoFestivaldeBrasília do Cinema Brasileiro é o lugar de fala na sétima arte contemporânea. A curadoria desse ano deu material suficientenas mostrascompetitivas para garantir que os filmes dialogassemcomo queacontecenomundo nas esferas políticas e sociais – que ganham um contexto mais denso em um evento já naturalmente intenso e politizado, onde os questionamentos surgem de todos os lados. O longa-metragem baiano “Café com Canela”, dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio, foi uma dassurpresas da programação, que anuncia neste domingo (24) os vencedores do Troféu Candango. A partir de uma narrativa estrutural mais clássica, os cineastas arriscam ao experimentar as possibilidades da linguagem audiovisual, com seus truques de

imagem, incertezas da câmera e transgressõesarriscadas.Oroteiroacompanhadiversospersonagens em um bairro do interior baiano. Na pele eles carregam a ancestralidade negra, dando voz a tipos de pessoas que costumam ser marginalizados na vida real e no próprio cinema. O protagonismo fica por conta de Violeta, interpretada por Aline Brunne, vendedora de coxinhas que reencontra uma antiga professora, vivida por Valdinéia Soriano, entregue ao luto familiar e à depressão. Entre elas, questões relativas ao passado vêm à tona para pensar quais as possibilidades de caminhos para o futuro. O cotidiano daquelas ruas simples do interior baiano compõe o cenário para uma história que transita entre o naturalismo e o fantástico. As propostas visuais dos diretores permitem um tom diferenciado à obra – por meio dele a imagem pode ir alémdoquerealmenterepresenta a partir de uma liberdade criativa que se permite questionar o erro em cena. Faz parte da experiência de “Café com Canela” nos colocar em uma posição desconfortável da elaboração narrativa daquela história, reformulando nossas impressões como espectador do que se pode fazer na tela.

A obra cumpre um papel fundamental para pensar um novo tipo de cinema brasileiro autoral, que dialogue facilmente com o grande público sem se desligar das necessidades de pensar uma dramaturgia mais inventiva. A montagem também faz parte do processo de significação daquele espaço. Os tempos narrativos se justificam no decorrer da projeção, à medida que conhecemos a vida daquela comunidade.

Protagonismo Foi interessante ver “Café com Canela” após o intenso debate sobre a representatividade negra que falta em “Vazante”, drama histórico de Daniela Thomas. Ary e Glenda preenchem os espaçosvazios na obra de Daniela, comprovando ser possível falar sobre a resistência da cor e as lutas pela igualdade, valorizando a cultura e a história desse povo, e não os subordinando a um lugar infame de apenas existência e resistência. Compostoquaseemsuatotalidade por atores negros, o elenco é encabeçado por Aline Brunne, em sua primeira e infalível experiência com cinema. Aline é uma força da natureza que permeia por todos os personagens, extraindo de cada um a vitalidade que o roteiro pede.

Ela não se intimida ao lado de Valdinéia Soriano, um dos grandes nomes do teatro baiano. A câmera se apaixona pela sintonia entre as duas e até mesmo umdiálogoexpositivodemaissobre a paixão pelo cinema se engrandece em tela. Os diretores também se comprometem a faz um cinema nordestino de qualidade, a partir dos laços que eles mesmos criaram com a região do Recôncavo da Bahia. Não é um cinema periférico justamente por exaltar de forma respeitosaavida daquelespersonagens ora carismáticos, ora dolorosos. Eles pensam o cinema como espaçodetransformação que vai além da tela para construir novos agentes junto ao público. Odiálogocomostempossombrios que vivemos hoje é evidente, provando que não dá mais para negligenciar mudanças necessárias, ainda que aconteçam com lentidão. A existência de “Café com Canela” como obra cinematográfica naturalmente engajada já vale a experiência de assisti-la. Os aplausos incansáveis ao fim da sessãoforamprovadesuaimportância e urgência. * O crítico viajou a Brasília a convite do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

nicialmente desenvolvido como um projeto de série de televisão, o paraibano “O Nó do Diabo” foi exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro como um longa-metragem colaborativo dirigido pelos cineastas Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi. No cerne da narrativa, a intolerância racial que se alastra desde que o mundo é mundo. A trama tem como ponto principal uma fazenda isolada, palco comum entre os cinco períodos históricos abordados na trama. Subvertendo o que seria mais óbvio no roteiro, o primeiro dos contos começa em 2018, quando o “capataz” da propriedade abandonada caça jovens que a invadem. A partir daí, o retrocesso do tempo histórico mostra as diferentes formas de intolerância que os negros sofreram, cada um ambientado em uma proposta dramática diferente, mas interligadas por meio de truques cênicos e pelo personagem do Sr. Vieira, sempre interpretado pelo mesmo ator, o ótimo Fernando Teixeira. Além de mostrar que o preconceito pode estar enraizado na “linhagem” de uma família, a presença de Vieira em uma história que começa em 2018 e termina em 1818 traz a sensação de vampirismo social com que os negros foram e ainda são discriminados. Em cada conto, os personagens periféricos reproduzem as relações de dominação que ainda sujam de sangue a nossa história, dando a impressão de que a discriminação é uma patologia. A escolha pelo terror como

gênero cinematográfico é essencial para acentuar o incômodo causado pelo filme. Os diretores não se privam de usar os recursos visuais e sonoros já conhecidos, incluindo um horror mais gráfico e sanguinolento, sem negar sua inspiração em uma geração de filmes “b” do cinema. O elenco afiado colabora para a construção rápida dos conflitos dos personagens, sem deixar a impressão de que são pequenas histórias interligadas por uma mesma temática. Assim, percebemos uma unidade efetiva entre todos os segmentos, o que possibilita não ser tão estranho ver um produto originalmente televisivo se desenrolar tão bem como obra cinematográfica. Cada diretor dá sua própria colaboração para a concepção do projeto e a unidade entre os cinco períodos históricos de “O Nó do Diabo” fica mais evidente nas três primeiras histórias. O horror tem interessado cada vez mais aos cineastas brasileiros, especialmente quando usados como condutor para discutir a intolerância enraizada em nossa cultura. As duas histórias finais, apesar de tão importantes quanto as demais, parecem apressadas, e não conseguem existir à altura das anteriores. A cena final, no entanto, acerta ao propor o ressurgimento como força de combate, inspirando esperança e luta pela igualdade. Mais do que refletir sobre a progressão histórica da posição os negros na sociedade, “O Nó do Diabo” questiona em suas entrelinhas até quando a intolerância será algo cíclico e nos pede pressa em lutar contra ela. (DB)

Cinco contos de terror discutem a progressão histórica do preconceito racial no Brasil. Filme foi inicialmente pensado como série de TV

GÊNERO

Corpos em transição

R

epresentante gaúcho na competição pelo cobiçado Troféu Candango, “Música para Quando as Luzes se Apagam” mostra a jornada documental e fictícia de transformação da adolescente Emelyn, que passa pelos dramas comuns da idade, especialmente no que diz respeito à sexualidade. Uma roteirista chega à pequena vila onde Emelyn mora com a proposta de criar um personagem a partir das suas próprias motivações e, aos poucos, ela se torna Bernardo. O filme de estreia de Ismael Caneppele, roteirista de “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009), surgiu de um diário que virou um livro e, agora, ganha novos embates no longa-metragem. Como eixo principal, o roteiro foca em uma garota que passa a entender seu próprio corpo e os desejos que a idade faz desabrochar. O hibridismo da obra impede que haja uma diferenciação clara do que sur-

Entre os nove longas-metragens selecionados para a Mostra Competitiva do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, “Música Para Quando as Luzes se Apagam” apresenta fluidez e aposta em uma narrativa sensível sobre a juventude

ge como ficção ou documentário, mesmo com a presença da atriz Julia Lemmertz interpretando o alter ego de Caneppele.

Muito mais do que refletir sobre gênero e sexualidade, “Música para Quando as Luzes se Apagam” fala sobre corpos livres que fluem sem pressa. É

uma herança do próprio processo criativo da obra, que partiu de autodocumentários do elenco para testar as formas de olhar para o redor. As imprevisi-

bilidades que surgem em cena, muitas vezes aparentemente desconexas, criam a atmosfera do filme, que se coloca como uma experiência, antes de tudo, sensorial. Aqui entra, então, a responsabilidade da delicada montagem de Germano de Oliveira, que se debruça nas possibilidades alegóricas da imagem para provocar. Não há uma narrativa clássica se desenvolvendo ali, nem roteiro pré-concebido para ser atuado. Assim como sua personagem, a obra também é fluida, o que pode impactar de forma positiva ou não no receptor. A presença de Lemmertz naturalmente já denuncia uma ficcionalização da trama, mas há em sua personagem o desejo de entendimento do mundo ao redor. A atriz traz muito de si para a trama e, claro, é sempre bom ver como a relação se dá entre ela e Emelyn. A montagem assinada por Germano de Oliveira traz novos significados para a relação de Emelyn com a personagem de Lemmertz, sem nome, de uma forma poética intensa e rara no cinema brasileiro. Talvez por is-

so, a complexidade do que é apresentado por Caneppele talvez demore um pouco para se fazer entender. Não por ser uma obra visionária, mas por se arriscar em um território onde naturalmente existem dúvidas não só dos personagens, mas também do público. Assim, acredito que “Música para Quando as Luzes se Apagam” é uma obra que tem o poder de continuar reverberando no futuro do cinema brasileiro e a cada retorno à história de Emelyn podemos perceber novos significados. Mas, para isso, é necessário que o mundo também acompanhe as transformações que hoje são inegáveis. O filme também tem um compromisso social e político, o que se torna recorrente no Festival de Brasília, e o entendimento que ele busca não é pontual, mas crescente. E depende também da participação de nós, como receptores, olhar para ele de forma sensível e aberta. Caneppele consegue, em seu primeiro longa como diretor, falar sobretudo sobre afeto em um mundo onde o desconhecido costuma assustar. (DB)


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