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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 26 E 27 DE AGOSTO DE 2017
CONTRAPLANO NACIONAL
A tristeza de um palhaço Com segurança e criatividade, Daniel Rezende estreia na direção de “Bingo – O Rei das Manhãs” DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema
D
e ator de pornochanchadas a ícone infantil da televisão, Arlindo Barreto viu a fama surgir de repente ao ser contratado para a versão tupiniquim do palhaço Bozo, sucesso absoluto nos Estados Unidos dos anos 1980. No entanto, uma cláusula contratual impedia que o homem por trás da maquiagem fosse revelado para o público. A trama de “Bingo – O Rei das Manhãs” faz um recorte nostálgico da memória cultural da televisão brasileira e seus grandes ícones. O texto de Luiz Bolognesi vai além do personagem para falar sobre seu intérprete, jovem que não via problema em sonhar alto e conquistar seu espaço, que foi justamente o que o levou ao fundo do poço. Chamado de Augusto Mendes no filme, o protagonista vivido por Vladimir Brichta não é uma vítima das circunstâncias. O sucesso que Bozo faz no Brasil é de inteira responsabilidade de seu intérprete, que partia de uma performance anárquica para pensar o humor. Isso também o colocava em um território escorregadio, já que suas ações controversas impactavam em todos ao seu redor. O pai carinhoso de outrora começa a se afastar da família, em especial de seu filho Gabriel, interpretado por Cauã Martins. Os dias já não eram os mesmos e o sucesso parecia eterno. Ele não era só um apresentador, era uma marca.
do novas camadas. Não é necessariamente divertido ver o Bozo de volta. Talvez pelo oportunismo com que Augusto transforma o personagem em ícone, é difícil se relacionar com ele hoje. Quando os conflitos mais humanos começam, o filme ganha corpo e se transforma, inesperadamente, em um furacão. Daniel Rezende, em sua primeira experiência como diretor após montar “Cidade de Deus” (2002) e os dois “Tropa de Elite” (2007-2010), entre tantos outros trabalhos aclamados, segue o fluxo oferecido por Bolognesi. Rezende desmascara o que está por trás da fama e suas consequências irremediáveis, sem ser moralista. A falsa alegria do palhaço se transforma em terror. Vladimir Brichta também acompanha bem as nuances do roteiro e sustenta com primor a (de)composição de Bingo. Escrito
originalmente para Wagner Moura, Brichta prova que foi a “substituição” certa, fazendo com que seja difícil imaginar qualquer outro ator no papel. Ele transita com naturalidade entre o garanhão ambicioso e a estrela em decadência. Do segundo para o terceiro ato, a obra finalmente deixa o público em completa imersão. Em diversos momentos, Rezende filma Bingo com ares de horror. Mais parece que estamos vendo o ainda inédito “It – A Coisa” na forma como ele se torna um palhaço macabro para justificar seu declínio. Aliás, Rezende faz um trabalho soberbo como diretor. A criatividade do reali-
zador aparece nas transições entre cenas, na composição dos planos, nos jogos de luz e, claro, na supervisão da montagem de Marcio Hashimoto. Rezende também brinca com as sensações do público. O humor de Bozo não é mais engraçado, as piadas não funcionam, nem mesmo para as crianças, talvez por isso o diretor se dedique aos momentos dramáticos, todos efetivos. A visão entre o real e o imaginário de Bingo é um artifício cênico perigoso, mas eficaz também em sua repetição. O drama se acentua
quando Bingo vai receber um prêmio pelo seu trabalho. Essa cena, inclusive, rima com os momentos finais do longa, quando a maquiagem já não é mais importante.
Elenco Além de Brichta, Leandra Leal é outro destaque no elenco. Ao viver Lucia, diretora do programa, a atriz traz o toque de doçura que falta no protagonista. Evangélica e determinada, Lucia sabe como a televisão funciona e é seletiva. O que não dá certo logo é substituído ou descartado. O roteiro faz questão de abordar que, naquela época, ela era uma das poucas mulheres em grandes cargos nas emissoras, o que mostra como o filme também está preocupado em discutir o papel da mulher na arte. Lucia não se revela apenas o interesse amoroso de Bingo, justamente por ser seu contraponto, mas também sua salvação. É na religião que Augusto/Arlindo encontra um novo palco e se apresenta, até hoje, vestido de palhaço. A participação da experiente Ana Lúcia Torre é sempre bem-vinda. Como mãe de Augusto (aqui chamada Marta Mendes), ela própria vive o declínio dos grandes atores na década de 1980. Enquanto o filho experimenta tempos áureos de fama, a mãe vive o esqueci-
mento, na esperança de um dia voltar aos holofotes. Tainá Müller e Emanuelle Araújo fazem boas participações como Angelica, ex-esposa de Augusto, e a cantora Gretchen, respectivamente. A relação entre Augusto e Gretchen traz alívio cômico para uma trama que tende a mergulhar profundamente no drama. Não que seja o mais novo clássico do cinema nacional, até porque escorrega ao tentar abarcar tantos fatos da vida de seu protagonista, deixando de lado alguns conflitos importantes, como a própria relação dele com o filho. Mas é um filme que investiga a humanidade de seus personagens, sem transformá-los em meros acessórios. Rezende passa de um montador competente para um diretor criativo, que sabe muito bem o que está fazendo com cada movimentação de câmera e pensa, aliás, em como dar material suficiente para favorecer a montagem. A obra, que tem sido taxada de “pouco brasileira”, é brasileiríssima. O estilo refinado de Rezende não deixa de ser brasileiríssimo. Talvez quem reclama disso não esteja acostumado a ver filmes tão bem acabados em seus quesitos técnicos e que dialogue facilmente com o público, assim como aconteceu com os recentes “Soundtrack” e “O Filme da Minha Vida”. E é sempre bom ver que qualidade técnica e apelo popular podem, sim, andar de mãos dadas.
C Vladimir
Brichta estrela cinebiografia do palhaço Bozo, ícone infantil dos anos 1980
Composição É interessante notar que o roteiro de Bolognesi vai ganhan-
DIEGO BENEVIDES
Brasília
diego.benevides@diariodonordeste.com.br
A cidade mais fria COMESTREIA previstapara 31de agostono Brasil,“Atômica” é o primeirogrande trabalho dirigidopor DavidLeitch,quetambém será responsávelpor“Deadpool 2”.Com CharlizeTherone JamesMcAvoy comonomes depesodo elenco, a aventurapromete sensualidadee ação emuma tramadeespionagem. Olonga-metragem ébaseado na graphicnovel“Atômica:ACidade Mais Fria”,quetambém já temdatapara chegaràs prateleiras nacionais:6 de setembropelaDarkSideGraphic Novel,braço daeditora DarkSide Books,especialistaem publicaçõesde fantasiae horror. Odestaqueda publicação éo estilo sofisticadoque osautores imprimemà história.Antony Johnston éoautor da premiadasériedeHQs “Wasteland”, roteiristado game“Dead Space”e escreveupara personagens como Wolverinee Demolidor.Aarte éde SamHart,ilustrador inglês quemora
CHARLIZETHERON protagoniza “Atômica”,filme inspiradoem graphic novelescritaporAntony Johnston noBrasile temnocurrículo quadrinhos como“Juiz Dredd” e“Tropas Estelares”. “Atômica:ACidadeMaisFria” junta-se aostítulosrecém-lançados pela DarkSideGraphicNovel, como “Fragmentosdo Horror”, deJunji Ito; “MeuAmigo Dahmer”,deRobert Crumb,e“Wytches”, deScottSnyder e colaboraçãodo desenhistaJock.
Universitário Referência entre os festivais universitários realizados no Brasil, o NOIA divulgou a seleção oficial de curtas das duas mostras competitivas que acontecem de 3 a 8 de outubro na Caixa Cultural Fortaleza. Serão 21 produções na Mostra Brasileira, com destaque para “Sam” (foto), de Miguel Moura e Julia Souza; “Por que Não?”, de Lucas Memória, e “Fora de Quadro”, de Txai Ferraz. Outras sete produções concorrem na Mostra Cearense, entre eles “O Vigia”, de Priscila Smiths e P.H. Diaz, e “Batidas”, de Thiago Henrique Sena. Além dos filmes, o Festival NOIA também investe em outras linguagens. Estudantes cearenses também participam ds mostras competitivas de bandas e fotografias, que buscam revelar novos talentos que se destacam desde a formação acadêmica.
A 50ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que promete ser histórica, revelou mais detalhes sobre sua extensa e concorrida programação. Um dos destaques é a exibição hors concours de “António Um Dois Três”, primeiro longa-metragem dirigido pelo cearense Leonardo Mouramateus. Rodado em Portugal, o filme foi exibido também na programação do prestigiado Festival de Rotterdam, no início desse ano.
Batismodesangue
Curadoria Richard Peña, professor da Escola de Artes da Universidade de Columbia e um dos mais renomados especialistas em cinema, participa de dois encontros na Unifor, no dia 1ºde setembro. O primeiro é um workshop que vai discorrer sobre o futuro da curadoria de cinema, abrangendo a história, o desenvolvimento e os propósitos da programação e da curadoria voltadas para o cinema. O segundo é a masterclass gratuita “Um Olhar para os Curtas-Metragens”.
NETFLIX O thriller francês “Raw”, dirigido pela cineasta Julia Ducournau, entrou para o catálogo da Netflix. Elogiado pela imprensa estrangeira após sua passagem pelo Festival de Cannes do ano passado, o longa-metragem conta a história de uma jovem vegetariana que, após ser obrigada a experimentar carne em um trote na faculdade, começa a ter um comportamento estranho. De forma inventiva, sem abrir mão da violência gráfica e estilizada, Ducournau elabora uma trama que poderia cair na militância alimentícia, mas que investe em elementos transcendentes da juventude, enquanto discute também questões familiares importantes. O tom de fábula dá um charme especial à toda a carnificina. “Raw” é uma das boas surpresas entre os filmes de gênero dos últimos anos e coloca Ducournau como uma diretora a ser acompanhada.