Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 28/10/17

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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 28 E 29 DE OUTUBRO DE 2017

CONTRAPLANO MOSTRA DE SÃO PAULO

DRAMA

Uma expedição sem retorno

As crises de relacionamento

Premiado em Cannes, nacional “Gabriel e a Montanha” remonta trajetória de Gabriel Buchmann na África DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema

A

jornada do economista carioca Gabriel Buchmann pelo continente africano teve um fim trágico em 2009. Após ignorar recomendações do povo local, o jovem de 28 anos decidiu subir sozinho o Monte Mulanje, no Malaui. Dado como desaparecido, o corpo só foi encontrado três semanas depois. O laudo médico apontou hipotermia. A memória de Buchmann é homenageada na coprodução Brasil/França “Gabriel e a Montanha”, novo longa-metragem dirigido por Fellipe Barbosa, responsável pelo ótimo “Casa Grande” (2014). O cineasta foi amigo de infância de Buchmann e faz deste um filme bastante pessoal. A partir de registros escritos deixados pelo economista, entrevistas com pessoas que ele conviveu durante a viagem e com a família, Barbosa reconta a tragédia. O ano sabático tirado por Buchmann, interpretado no filme por João Pedro Zappa, tinha alguns objetivos, entre eles fazer uma pesquisa sobre a pobreza na África, que serviria de material para um doutorado na Califórnia. Como toda viagem que exige do viajante uma mudança brusca de sua rotina, Buchmann preservava não só a curiosidade acadêmica, mas também um instinto aventureiro, de onde o medo não fazia parte, e de desapego do mundo.

Narrativa Dividido em capítulos, “Gabriel e a Montanha” se passa nos países visitados pelo protagonista. Em cada um, o interesse em conhecer a ajudar a população local, que vive com poucos recursos, apresenta o lado altruísta de Buchmann. Ele gastava apenas dois ou três dólares por dia, dormia na casa de desconhecidos e ajudava como podia. Sua condição financeira era excelente frente àquelas pessoas que precisa-

Com estreia nacional prevista para 2 de novembro nos cinemas, filme reconta a viagem real de um jovem pesquisador pelo continente africano que terminou em tragédia na tentativa de subir o Monte Mulanje, no Malaui

vam, por exemplo, de apenas 40 dólares para garantir um ano inteiro de educação para os filhos. O primeiro ato de “Gabriel e a Montanha” mostra a grandiosidade com que o diretor Fellipe Barbosa pensou a história. Um longo plano sequência inicial mostra a descoberta do corpo de Buchmann, para depois acompanhar o passo a passo da expedição. Em termos técnicos, o filme é primoroso, especialmente com a direção de fotografia que não deixa passar a beleza dos cenários e das pessoas que ali transitam. O difícil acesso aos locais por onde Buchmann passa, como a subida sofrida ao Monte Kilimanjaro, localizado na Tanzânia, próximo ao Quênia, é um desafio para a equipe técnica, mas a câmera nunca decepciona. O equilibrado trabalho de som também é essencial nas locações abertas e movimentadas pelo povo africano. Ainda que a imagem ganhe contornos épicos, que remete imediatamente ao ótimo “Na Natureza Selvagem” (2007), dirigido por Sean Penn, o fil-

me opta por idolatrar o protagonista quase o tempo todo. Felizmente, a chegada de sua namorada Cris, interpretada por Caroline Abras, no segundo ato do longa, revela as vulnerabilidades de Buchmann, criando quase uma antipatia por ele. A relação do casal se estende demais dentro da narrativa do filme e, quando é abandonada, fica difícil se reconectar com a proposta original da obra. O roteiro acaba deixando de lado a verdadeira missão de Buchmann no continente africano: a busca pelo conhecimento e pelas relações interpessoais, com conflitos no terceiro ato que não prendem tanto a atenção assim.

Elenco O ator João Pedro Zappa se entrega ao personagem com paixão, submetendo-se aos desafios enfrentados pelo biografado. Ao seu lado, Caroline Abras também se destaca, em especial pela espontaneidade dos diálogos. Ainda assim, é o elenco nativo que chama a atenção. Barbosa decidiu dirigir as pessoas

que conheceram Buchmann durante a expedição, fazendo uma mistura curiosa entre ficção e documentário. O diretor investe no instinto desses atores não-profissionais para alcançar bons momentos dramáticos. Mesmo assim, há um excesso quando eles mesmos passam a narrar repetidamente o quanto ainda pensam em Buchmann. “Gabriel e a Montanha” é um filme de grandes proporções em termos de produção e realização, ainda que sua inconstância narrativa se acentue após mais de duas horas de projeção. E, por mais lamentável que tenha acontecido com Buchmman na vida real, o desfecho silencioso do filme pode não emocionar, o que é uma pena. O longa foi o único brasileiro a participar do Festival de Cannes desse ano, na programação da Semana da Crítica. Na ocasião, o diretor Fellipe Barbosa recebeu o prêmio de revelação do júri oficial, além do prêmio de distribuição da Fundação Gan, que garantiu sua circulação também nos cinemas franceses.

O

cineasta sul coreano Hong Sang-soo não é apenas um dos diretores mais produtivos da atualidade, mas também um dos que consegue mantém nível de qualidade irreparável em suas produções. “O Dia Depois”, em exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é, pelo menos, o terceiro filme de sua autoria que chega ao Brasil apenas em 2017. Ainda sem data de lançamento em circuito nacional pela Pandora Filmes, a obra traz o fluxo inventivo do cineasta ao contar mais uma história sobre relacionamentos que parecem óbvios, mas ganham novas camadas pela forma como o diretor desenvolve e monta os conflitos dos personagens principais. Logo nos primeiros minutos de projeção, uma mulher coloca o marido contra a parede, questionando-o se ele é fiel. O protagonista é Kim Bongwan, papel de Kwon Hae-hyo, editor de livros que vive um caso extraconjugal. A desconfiança da esposa é válida, mas Bongwan não consegue ir além do silêncio para respondê-la. A entrada de uma terceira mulher, Soung Areum, interpretada por Kim Min-hee, vai mudar o destino de todos. Sang-soo economiza no uso da câmera, repetindo os movimentos para causar certo desconforto em relação aos melodrama que ali se estabelece. A palavra é muito importante para o diretor, sendo capaz de mudar a perspectiva do público em pouco tempo e, o que é sempre curioso, por meio de artifícios simples que ele costuma usar. O diretor está mais à vontade para

abraçar o exagero de alguns personagens e, o que é sempre positivo, não os poupa das consequências inevitáveis de suas escolhas. O humor está nas entrelinhas, ainda que a perspicácia com que os conflitos se revelam para o público distancie esse de outros romances mais convencionais. É interessante notar também que as três mulheres do filme não canonizam o protagonista. Por repetidas vezes, Bongwan escuta que ele é um covarde, vivendo uma vida onde o jogo de cena tem dia e hora para acabar. Essas mulheres podem até ser passionais, afetivamente carentes, mas elas debocham de um homem que não mede o que suas atitudes podem causar a quem está ao seu redor. Relacionamentos tóxicos estão por toda parte e Sang-soo sempre sabe como articular o tema de maneira criativa e calcada na realidade. Em seus filmes não existe uma aura de romantização dos sentimentos. Eles são falhos, como tudo na vida, e a exposição desses defeitos é o que faz com que, a cada filme lançado pelo diretor, possibilite uma expansão sentimental também de quem assiste. Em “O Dia Depois”, Sang-soo faz suas viagens temporais de forma mais discreta, utiliza-se de uma fotografia preto e branco e ressalta os contrastes entre os personagens. É um filme menos ambicioso em seu método de produção, mas que mostra como uma história banal pode se transformar em uma verdadeira viagem sobre o outro. Ou sobre os outros ao redor e, sobretudo, sobre nós mesmos. (DB)

Cineasta sul coreano Hong Sang-soo exibe mais uma produção inédita na programação da Perspectiva Internacional da Mostra de Cinema de São Paulo

EM CARTAZ

Embriagados de amor

T

antas histórias de amor já foram encenadas pelo cinema e não deixa de ser um pouco raro encontrar uma comédia romântica minimamente carismática, mesmo se apropriando dos clichês do gênero. Produzido pelo experiente Judd Apatow, diretor de filmes como “O Virgem de 40 Anos” (2005) e “Descompensada” (2015), “Doentes de Amor” é uma produção original da Amazon feita para o cinema, que venceu o prêmio do público no Festival de Locarno (Suíça) desse ano. A trama é inspirada na história de amor vivida por Kumail Nanjiani, que roteiriza e protagoniza o longa-metragem. Kumail é um jovem paquistanês que trabalha como motorista e tenta a vida em Chicago como comediante. Em uma de suas apresentações, ele conhece Emily e os dois se apaixonam.

Por mais que viva nos Estados Unidos, Kumail ainda segue a cultura de seu país de origem, controlada pelos pais que lhe planejam um casamento arranjado. Além disso, Emily adoece misteriosamente, o que faz com que Kumail conheça os pais da garota, dois norte-americanos em crise. O roteiro, assinado por Kumail e sua namorada na vida real, Emily V. Gordon, faz uma excelente dosagem entre o humor e o drama familiar e afetivo. As situações surgem sempre com naturalidade, por mais previsíveis que algumas delas possam parecer. A química entre Kumail e a atriz Zoe Kazan, que interpreta Emily, é essencial para garantir a empatia do casal e colocar o jovem paquistanês em novas perspectivas. Com a doença de Emily, o roteiro abre espaço para a chegada de seus pais, inter-

Comediante paquistanês Kumail Nanjiani escreve e protagoniza comédia romântica inspirada em sua história de amor com a terapeuta Emily V. Gordon

pretados pelos ótimos Holly Hunter e Ray Romano.

Densidade De forma ágil, o roteiro toca em questões sobre imigração, preconceito social, espiritualidade e rumos inesperados que vida traz. Isso tudo sem tom de autoajuda ou apelativo, o que normalmente acontece em tramas mais juvenis, como “A Culpa é das Estrelas” (2014), que a todo tempo verbaliza frases filosóficas para exigir que o público se envolva com os personagens. Em “Doentes de Amor” acontece justamente o contrário. Mesmo em uma situação clichê, o roteiro ainda surpreende pela forma com que os diálogos são oferecidos e, especialmente, interpretados pelo casal principal. Kumail é o exemplo de que a linha entre o humor e o trágico pode ser tênue e impressiona especialmente em uma de suas apresentações de stand-up, quando seu texto falha e o improviso não dá certo.

São as sutilezas do longa que o transformam em uma experiência agradável, onde sorrir e chorar com o que é posto em cena cabe unicamente a quem assiste. Não tem nada ou ninguém forçando a barra nas emoções do público, seja com pieguices ou trilha sonora emotiva. Além disso, Kumail e Emily discutem temas que parecem ultrapassados, mas que ainda separam as pessoas. Aliás, a separação está sempre em cena, seja no sentido geográfico ou sentimental. É um filme que se fragmenta até onde pode para lutar por um final feliz e questiona se finais felizes não seriam frutos de toda essa romantização dos livros e filmes. “Consegue imaginar um mundo em que terminaríamos juntos?”, indaga Emily. Sem pretensões e ciente de que ainda há espaço para as boas comédias românticas, “Doentes de Amor” é um feel good movie que revela ao mundo sua alma doce, capaz de tocar o coração. (DB)


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