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I. PREFÁCIO

GAIO – ROSÁRIO: LEITURA DO LUGAR

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O templo, no seu estaraí concede primeiro às coisas o seu rosto e aos homens a vista de si mesmos.1

Património’ é uma palavra gorda e redonda, que se aplica a muitas coisas, muitas vezes sem qualquer e icácia; que serve muitos propósitos, nem sempre aqueles que deve. Grandes mudanças sociais e políticas criam, habitualmente, um sentimento de insegurança e, naturalmente, a necessidade de nos agarrarmos a algo sólido, de procurarmos um sítio onde incar os pés – seja para saltar para a frente, seja para aguentar a tormenta. Nessas alturas o Homem procura o Património – e agarra-se ao Património. O século XX, com todas as alterações que trouxe, sobretudo após a II Guerra Mundial, com a aceleração da própria mudança, que antes fora paulatina, agudizou a urgência do Património. E essa urgência foi tanto mais sentida quanto mais profunda e rápida era a mudança, numa relação de quase directa proporcionalidade. (Historicamente, por exemplo, as primeiras medidas legislativas de protecção do Património ocorreram em simultâneo com as brutais transformações da Revolução Francesa.2) Porquê? ‘ A esperança – sem a qual o homem cai em desespero – é, podemos imaginá-la assim, como um vector lançado sobre o futuro: a esperança aponta para um bem futuro, mais ou menos concreto. Mas é preciso reparar que esse vector do Futuro tem uma continuidade retrospectiva: para o Presente (eu tenho esperança agora) e também para o Passado; assim que as minhas expectativas de futuro decorrem de algo que já aconteceu. E o que é isso, esse prolongamento do vector da esperança para trás, sobre o Presente e para o Passado? A Memória. O que isto quer dizer é que não é possível desejar, concretamente, se não houver um conteúdo de memória que, de algum modo, antecipe ou a-presente a realização desse desejo.

1 Martin Heidegger – A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 33. 2 Françoise Choay – L'allégorie du Patrimoine. Paris, Éditions du Seuil, 1992, pp. 78-90.

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A Memória é a imagem presente do Passado3, e imagem que é minha, que está agora em mim. Ainda assim eu não tenho memória de tudo aquilo que me aconteceu, mas apenas daquilo do qual percebi um certo bem, do qual aprendi algo, que valia a pena reter (nem que seja que devo evitar um determinado tipo de circunstâncias). Foi por perceber esse bem que eu guardei em mim essas experiências, constituindo memória a partir delas. É a partir dessas memórias que se pode constituir a imagem de bem, presente mas relativa ao Futuro, que é a esperança. Sem Memória, portanto, não há Esperança, não é possível esperar, desejar, a partir de si, conscientemente, livremente. E não é possível, também, mover-se na direcção da realização de si. A consequência da falta de memória – Orwell trata disso em 1984, –não é apenas a ausência de esperança, mas a ausência de desejo: a apatia. A preservação da Memória – quer individual, quer colectivamente – é, portanto, indispensável a uma existência humanamente sadia, capaz de dinamismo no tempo e no espaço.

Mas a memória humana é frágil – exclusivamente deposta em contentores friáveis, em tecido vivo, perecível. Por isso, desde os tempos mais remotos, o Homem escolheu consignar as suas memórias a algo exterior a si mesmo, mais resistente – coisas, lugares –, que, fruto dessa consignação e do trabalho de afeiçoamento da matéria que ela implicou, adquiriram, eles próprios – coisas, lugares – uma índole quasí-humana: ou seja, a capacidade de nos falar, de nos interpelar ou envolver; e um valor não-intrumental, que não depende do uso que se lhe atribui – um valor de insubstituibilidade – semelhante ao de um ser humano. Assim que, em alturas de mudança eminente – crises, como a de hoje – é possível regressar a essas coisas, a esses lugares – tal como a um pai, que nos defende, ou a uma mãe, que nos acolhe.

‘Património’: é no que acima se disse que reside o seu signi icado existencial; e é daí que decorre a sua razão de ser e as nossas razões para o proteger.

As alternativas são assustadoras. Freud menciona casos em que a tentativa de ignorar o passado – pelo seu peso, por algum trauma – gera uma “compulsão de repetição”, em que o paciente, não tendo criticado e assimilado verdadeiramente o seu passado, volta a ele inconscientemente, nos momentos em que está menos alerta, repetindo os próprios comportamentos que condena, os comportamentos que a si próprio pesaram e traumatizaram (Hitchcock ilustrou bem esta situação com um clássico do cinema: “Psycho”)4 .

3 Santo Agostinho – Con issões, Livro XI, capítulos 17, 23 e 26 (Seguimos a tradução da edição da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2000.) 4 Cf. S. Freud – Erinnern, Wiederholen, Durcharbeiten, G. W., t. 10, 1913-1917, pp. 126-136 (Remémoration, répétition, perlaboration, cit. in Paul Ricoeur – «Vulnérabilité de la mémoire» in Jacques Le Goff, (sous la présidence de) – Patrimoine et Passions Identitaires (Actes des Entretiens du Patrimoine, Paris, 6-8 janvier 1997). Paris: Fayard, Editions du Patrimoine, 1998; p.19-20.

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Preservar o Património não é pois uma questão dita – super icialmente – “cultural”; não é (não deve ser) “para turista ver”. Não, o Património é essencial, porque é, literalmente, monumental.

“Monumentum” é o gerúndio do verbo latino “moneo”, que se traduz como ‘lembrar’ (com um sentido apelativo); ‘monumento’ – palavra bastante menos redonda e gorda que ‘património’, e que de ine com bastante mais pertinácia e perspicácia o mesmo conjunto de objectos que ‘património’ – ‘monumento’ é, então, simplesmente, aquilo que lembra: um lembrete. E, de quê? Pois daquilo que torna a esperança possível: um lembrete – um monumento – daquelas experiências, pessoais ou colectivas, que geraram um discernimento, sobre os próprios – indivíduos ou sociedades –, e sobre os outros; um discernimento, uma percepção, uma consciência que ajuda a viver melhor, mais humanamente.

Se é por isto que vale a pena preservar o Património – ou doravante, melhor dizendo, os monumentos – a questão que agora emerge é como. Em primeiro lugar é preciso reconhecê-lo, reconhecê-lo e identi icá-lo, na sua essência – na sua inalidade e no efeito que lhe é próprio – ou seja, dar-se conta do seu sentido, do seu conteúdo de memória. Mas, na minha memória e na memória de cada um, no seu conteúdo paramim. Não bastará, por conseguinte, apontar as determinantes categoriais ou abstractas dos monumentos – “históricas”, como às vezes se diz –, porque não seriam, nessa exacta medida, existenciais, em acção na vida, e, por conseguinte, seriam incapazes de tocar mentalidades e de mover pessoas ou nações. (Walter Benjamim ilustra esta situação com as pessoas que voltaram mudas dos campos de batalha da I Guerra Mundial – nada há para contar, não porque nada tenha acontecido, mas porque não foi possível perceber o paramim do que aconteceu, não se encontrou sentido para o que se passou – a ausência de um juízo existencialmente pertinente inibia a assimilação e bloqueava a capacidade de transmitir os acontecimentos.5) É por isto que a noção de “genius loci” é tão e icaz quando considerado em relação com as coisas e lugares que são monumentos – vamos ver como.

A maior parte dos povos não-modernos – desde os antigos romanos, ao xintoísmo japonês, passando pelos indígenas norte-americanos ou australianos – teve a tendência para personi icar os entes inanimados particularmente signi icativos. A noção romana de espírito do lugar – “genius loci” – é um caso particular, hoje reapropriado pela Teoria da Arquitectura6. Investigações recentes, no campo das neurociências, vieram dar consistência cientí ica a esta estratégia de interpretação do signi icado. Ao que parece o ser humano dispõe no córtex

5 Walter Benjamin – “O Narrador” in Sobre a Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d’Água, 1992, p. 28. 6 Christian Norberg-Schulz – Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture . New York: Rizzoli. 1980.

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frontal de um conjunto de neurónios que tem por função simular aquilo que o interlocutor está a sentir e a pensar – os chamados “neurónios espelho”. A capacidade de dialogar requer essa competência, para replicar apropriadamente aquilo que a pessoa que se tem por diante pensa e sente, de modo a assim nos podermos inscrever nesse luxo de comunicação e responder-lhe adequadamente, de uma maneira que corresponda às expectativas dessa pessoa. Uma acção tão simples quanto colocar o telemóvel sobre a mesa pressupõe a antecipação do que esse objecto inanimado irá sentir ao embater na mesa, activando os mesmos neurónios do que se fosse o próprio a tocar na mesa7 .

Convirá também notar que a noção de “genius loci” pertence à espécie das ‘imagens’ e não das ‘metáforas’: a metáfora, ainda que possa ser surpreendente e rica de matizes, funciona no interior da esfera da linguagem, da verbalização, e, portanto, numa esfera estritamente racional, que não requer explicações; a ‘imagem’, por seu turno, provém de um mundo imaginário, fantástico, e, nessa medida, não limitado; se a ‘metáfora’ se apresenta circunscrita, a ‘imagem’ é agregadora e centrífuga ao mesmo tempo, pedindo uma hermenêutica, poder-se-á dizer, “rizomática”, em que, para compreender é necessário seguir os caminhos de signi icação que gradualmente se vão abrindo durante o próprio processo de leitura. Esta maneira de apreender o signi icado de uma obra ou lugar salvaguarda a liberdade de cada um seguir o seu próprio caminho interpretativo – nomeadamente quando se trata de realizar uma obra arquitectónica sobre uma pré-existência monumental – ainda que mantendo todas essas interpretações dentro de um mesmo âmbito de intersubjectividade (a totalidade do rizoma de linhas interpretativas), que não admite contradições e garante a comunicação interpessoal.8

A noção de “genius loci” dá, assim, uma expressão sintética e compreensiva do paramim do objecto ou lugar que tenho diante, porquanto me ‘sintoniza’ com ele, estabelecendo algo como um ‘contágio disposicional’. O reconhecimento do “genius loci”, na medida em que se subentende humanizado um objecto ou lugar, implicitamente explica-me como posso entrar em relação com ele, torna-o particularmente apto a compreender-me e a ser por mim compreendido. É interessante como o cinema e, nomeadamente, o cinema de animação – recordem-se tantos ilmes da Disney – soube tirar partido desta capacidade de interpretação através da personi icação, criando imagens densas de potencial de comoção. Pelo contrário, elencar as componentes formais de um determinado objecto ou sítio, conhecer a sua história, o seu processo de constituição, não realiza, por

7 “Dialogo tra Sarah Robinson e Vittorio Gallese” in Dialogues (https://www.academia.edu/37134702/Intervista_su_Architettura_e_Neuroscienze_con_Sarah_Robinson 15.06.2020) 8 Gaston Bachelard – A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Cap. III, subcapítulo I e II

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si só, o acesso a esse paramim que dá nota do valor de memória, da pertinência ao Eu do monumento. Porquê? Porque qualquer conhecimento racionalista se processa por categorias ou classes, por notas comuns, isto é, identi icando no objecto que se quer conhecer as mesmas características que já se identi icaram noutros, antes conhecidos, e que o faz semelhante, por certos aspectos, e dissemelhante, por outros. Mas, desta maneira, não é possível identi icar o que neste objecto especi ica a relação insubstituível – a um tempo única e necessária –, não categorizável, quasí-humana, que esse objecto proporciona, e que o torna digno de memória, i.e., um monumento. Uma metodologia analítica de leitura do património é, em consequência, insu iciente. Um olhar mais profundo sobre o modo de percepção do ser humano dá nota de que este apenas reconhece na realidade aquilo de que percebe o signi icado9. A percepção humana é como um motor-de-busca de signi icados, repetidamente procurando aplicar à realidade uma matriz interna de sentido, de paramim. Inúmeras são as experiências que demonstram que a percepção isiológica dos elementos da realidade é completamente determinada pela interpretação que se consegue dar ao que se vê. Sem signi icado o ser humano só ouve sons – e não palavras – e vê manchas – e não iguras. Não captar o signi icado é como habitar um país estrangeiro de língua desconhecida de que só se consegue ouvir um vozear indistinto, irreplicável. Sendo que a percepção humana está particularmente preparada para as relações interpessoais – tendo aprendido, desde muito cedo, a perceber, interpretar e reagir adequadamente às mais leves alterações de isionomia ou de tom de voz – a personi icação de um objecto inanimado permite reconhecer nele aquilo que ele tem para me dar existencialmente. Por meio dessa personi icação, atentando nela, é depois possível reconhecer as especi icidades ísicas que servem de veículo à sua identidade insubstituível – muito para além do que resultaria de uma mera comparação analítica com outros objectos da mesma ou de outra classe – do mesmo modo que o conhecimento da personalidade de uma determinada pessoa faculta uma perspicácia maior no identi icar um determinado traço da face, ou um trejeito ou entoação típicos.

O conjunto do texto e imagens que a seguir se apresenta é a ilustração prática do processo que atrás se procurou descrever e justi icar nas suas peculiaridades fenomenológicas e cognitivas.

O trabalho de identi icação do “genius loci” ou “genii loci” (espíritos do lugar) permite a identi icação dos traços formais – da arquitectura, do lugar – pelos quais o seu sentido memorial, o seu signi icado monumental, é veiculado, permitindo subsequentemente a sua correcta intervenção. Assim é possível discernir que

9 Maurice Merleau-Ponty – a primeira parte. Phenoménologie de la Perception. S. l.: Gallimard, 1992, passim, mas especialmente

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partes preservar, que partes suprimir (porque obstaculizam o acesso ao sentido do lugar) e o que acrescentar e como (com a intenção de facilitar o acesso ao signi icado do lugar). E tudo isto sem impositivas subjectividades autorais – como hoje em dia frequentemente acontece – ou confrangedoras submissões estilísticas – como acontecia em intervenções mais institucionais – na medida em que todo

Deste modo consegue-se uma e icaz e efectiva preservação do Património, dos monumentos, já não entregues a insu icientes ditames técnicos, como os da mínima intervenção ou da intervenção reversível. Deste modo os monumentos (o Património) – arquitecturas, lugares, objectos de artesanato ou arte, com valor de memória – poderão cumprir a sua função, a função de, como Heidegger sintetizava na citação inicial, “dar às coisas o seu rosto”, ou seja, desocultar a oferta de relação humana, com potencial de felicidade, que contêm, e, por meio disso, de “dar aos homens a vista de si mesmos”, isto é, a autoconsciência, madura e crítica, sem a qual não é possível uma presença – social, politica, cultural – operativa.

Pedro Marques de Abreu Lisboa, 22 de Junho de 2020

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