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GAIO – ROSÁRIO: LEITURA DO LUGAR Câmara Municipal da Moita | Frederico Vicente e Ana Filipa Paisano
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I. PREFÁCIO O templo, no seu estaraí concede primeiro às coisas o seu rosto e aos homens a vista de si mesmos.1
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atrimónio’ é uma palavra gorda e redonda, que se aplica a muitas coisas, muitas vezes sem qualquer e icácia; que serve muitos propósitos, nem sempre aqueles que deve. Grandes mudanças sociais e políticas criam, habitualmente, um sentimento de insegurança e, naturalmente, a necessidade de nos agarrarmos a algo sólido, de procurarmos um sítio onde incar os pés – seja para saltar para a frente, seja para aguentar a tormenta. Nessas alturas o Homem procura o Património – e agarra-se ao Património. O século XX, com todas as alterações que trouxe, sobretudo após a II Guerra Mundial, com a aceleração da própria mudança, que antes fora paulatina, agudizou a urgência do Património. E essa urgência foi tanto mais sentida quanto mais profunda e rápida era a mudança, numa relação de quase directa proporcionalidade. (Historicamente, por exemplo, as primeiras medidas legislativas de protecção do Património ocorreram em simultâneo com as brutais transformações da Revolução Francesa.2) Porquê?
A esperança – sem a qual o homem cai em desespero – é, podemos imaginá-la assim, como um vector lançado sobre o futuro: a esperança aponta para um bem futuro, mais ou menos concreto. Mas é preciso reparar que esse vector do Futuro tem uma continuidade retrospectiva: para o Presente (eu tenho esperança agora) e também para o Passado; assim que as minhas expectativas de futuro decorrem de algo que já aconteceu. E o que é isso, esse prolongamento do vector da esperança para trás, sobre o Presente e para o Passado? A Memória. O que isto quer dizer é que não é possível desejar, concretamente, se não houver um conteúdo de memória que, de algum modo, antecipe ou a-presente a realização desse desejo.
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Martin Heidegger – A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 33. Françoise Choay – L'allégorie du Patrimoine. Paris, Éditions du Seuil, 1992, pp. 78-90.