MÁRIO SOARES – O COMBATE DE UMA VIDA
“Ser transmontano é uma Honra!... Ser Barrosão são duas”…
REGRESSO
Regresso às fragas de onde me roubaram Ah!... Minha serra, minha dura infância!... Como os rijos carvalhos me acenaram, Mal eu surgi, casado, na distância!... Cantava cada fonte à sua porta: O poeta voltou!... Atrás ia ficando a Terra morta Dos versos que o desterro esfarelou. Depois o céu abriu-se num sorriso E eu deitei-me no colo dos penedos A contar aventuras e segredos Aos deuses do meu velho paraíso..
Miguel Torga
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DOMINGOS VAZ CHAVES
O AUTOR
DOMINGOS VAZ CHAVES, nasceu a 3 de Agosto e foi registado a 16 do mesmo mês, do ano de 1954, na freguesia de Gralhas, concelho de Montalegre. Viveu com os seus avós maternos até aos 7 anos de idade. É filho de José Fernandes Chaves e de Teresa Vaz Chaves, neto paterno de José Fernandes Chaves e de Maria Dias e materno, de Domingos Vaz e de Maria da Glória Gonçalves Carneiro, todos naturais da dita freguesia de Gralhas, do concelho de Montalegre. Na sua aldeia, iniciou a instrução primária, tendo rumado a Lisboa, onde actualmente vive, quando frequentava a 2.ª classe e se juntou a seus pais, que aí residiam e trabalhavam. Em 1965, após concluir a 4.ª classe e efectuado o então necessário e obrigatório exame de admissão, para acesso ao ensino secundário, inicía os seus estudos no extinto Liceu Nacional de Gil Vicente, também em Lisboa. Sempre apegado às suas origens e inadaptado ao ambiente da capital, em 1969 regressa à sua terra e aí passa a frequentar o Colégio de Montalegre. Após reprovação no então chamado exame do 2.º ciclo (actual 9.º ano), é-lhe imposto o retorno a Lisboa, facto que o leva à recusa de continuar os estudos. Começa então a trabalhar num escritório sediado também na capital. Anos mais tarde, trabalhando e estudando alternadamente, veio a concluir o Curso 3
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Geral dos Liceus em Julho de 1974, no também já extinto Liceu D. Dinis em Lisboa. Tinha então 19 anos de idade. Em termos profissionais, ingressou na Policia de Segurança Pública no ano de 1981, a qual surgiu no seu percurso através de um concurso público. Após a respectiva candidatura e a prestação das necessárias provas, deu entrada na Escola Prática de Policia em Outubro desse mesmo ano, tendo frequentado o Curso de Formação de Agentes na cidade de Torres Novas. Concluído o mesmo, é colocado em Lisboa, local onde permanece até Outubro de 1985, data em que regressa à Escola Prática de Policia, para frequentar um Curso de promoção a Chefe. Após frequência do mesmo com aproveitamento, regressa de novo a Lisboa, onde volta a ser colocado. A partir daí reíniciou os seus estudos e após conclusão do 12º. Ano no antigo Liceu D.Pedro V em Lisboa, no ano de 1989 entra na Faculdade de Direito de Lisboa, onde frequentou o respectivo curso. Sindicalista desde os tempos do Estado Novo, foi um dos principais activistas da causa sindical na PSP, e enquanto co-fundador, ainda na clandestinidade, da primeira Associação na Instituição – a Associação Sócio Profissional da Policia -, foi um dos principais intérpretes e impulsionadores da chamada “Batalha de Lisboa”, revolta ocorrida em 21 de Abril de 1989, que colocou Policias contra Policias, no Terreiro do Paço em Lisboa e que levou à demissão do então Ministro da Administração Interna, Silveira Godinho, do Governo de Cavaco Silva. Em finais de 1994, deixa a actividade operacional da Policia e passa a desempenhar funções na área da formação. Em Novembro de 1996, através de sufrágio directo, é eleito para vogal do Conselho Superior de Justiça e em 1999, no Parlamento Europeu em Bruxelas, faz a denúncia junto da Comissão Parlamentar de Direitos Liberdades e Garantias, da violação de direitos sindicais e constitucionais por parte do Governo português. Conta no seu curriculo, com 1 medalha de ouro, 1 medalha de prata, 1 medalha de cobre, 1 medalha 1 estrela, 1 medalha 2 estrelas, 1 medalha 3 estrelas, 1 medalha por serviços distintos e 4 louvores, o último dos quais por “serviços distintos” prestados ao país. Paralelamente à sua actividade profissional leccionou na Universidade Lusiada, tendo nos últimos anos dedicado algum do seu tempo à escrita.
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OUTRAS OBRAS DO AUTOR: • • • • • • • • • • • • •
50 Anos de História/Auto-Biografia – 1954-2004 Gralhas-Minha Terra Minha Gente-Monografia da Aldeia de Gralhas Direitos Fundamentais História do Ultimo Enforcado em Montalegre História da Policia em Portugal-Formas de Justiça e Policiamento O Sagrado no Imaginário Barrosão General Humberto Delgado-Um Crime Sem Castigo Direito do Trabalho História da Policia para Crianças Moralidade e Ética Policial Raios e Coriscos Relatos e Crimes do Arco da Velha Terras de Barroso – Origens e Caracteristicas de uma Região
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Biografia
Mário Soares, de seu nome completo Mário Alberto Nobre Lopes Soares, nasceu em Lisboa, em 7 de Dezembro de 1924, filho de João Lopes Soares, professor, pedagogo e político da Iª República, e de Elisa Nobre Soares. Casou com Maria de Jesus Simões Barroso Soares em 1949, falecida em 7 de julho de 2015. Tiveram dois filhos, Isabel Soares, psicóloga e directora do Colégio Moderno, e João Soares, advogado e deputado à Assembleia da República, e cinco netos - Inês, Mafalda, Mário, Jonas e Lilah.
Actividade Profissional Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1951, e em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1957. Foi professor do ensino secundário (particular) e director do Colégio Moderno, fundado por seu pai. Exerceu a advocacia durante muitos anos e, quando do seu exílio em França, foi "Chargé de Cours" nas Universidades de Vincennes (Paris VIII) e da Sorbonne (Paris IV), tendo sido igualmente professor associado na Faculdade de Letras da Universidade da Alta Bretanha (Rennes) - Universidade de que é doutor "Honoris Causa". 6
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Actividade Política contra a Ditadura Desde os tempos de estudante universitário foi um activo resistente à ditadura. Iniciou então um longo e persistente combate que o levou a estar presente e activo na organização da oposição democrática ao salazarismo. Pertenceu ao MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista), em Maio de 1943, e, depois, foi membro da Comissão Central do MUD (Movimento de Unidade Democrática), sob a presidência do Prof. Mário de Azevedo Gomes (1946), tendo sido fundador do MUD Juvenil e membro da primeira Comissão Central. Foi Secretário da Comissão Central da Candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, em 1949. Integrou o Directório Democrático-Social (1955), dirigido por António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes e, em 1958, pertenceu à Comissão da Candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República. Como advogado defensor de presos políticos participou em numerosos julgamentos, realizados em condições dramáticas, no Tribunal Plenário e no Tribunal Militar Especial. Representou a família do General Humberto Delgado na investigação do assassinato daquele antigo candidato à Presidência da República, tendo contribuído decisivamente para desvendar as circunstâncias e denunciar as responsabilidades nesse crime cometido pela polícia política de Salazar (PIDE).
Foi membro da Resistência Republicana e Socialista, na década de 50, redactor e signatário do Programa para a Democratização da República em 1961, tendo sido candidato a deputado pela Oposição 7
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Democrática em 1965 e pela CEUD, em 1969. Em resultado da sua actividade política contra a ditadura foi 12 vezes preso pela PIDE (cumprindo um total de quase 3 anos de cadeia), deportado sem julgamento para a ilha de S. Tomé (África) em 1968 e, em 1970, forçado ao exílio em França. Em 1973, no Congresso realizado em BadMünstereifel, na Alemanha, a Acção Socialista Portuguesa, que fundara em 1964, transformou-se em Partido Socialista, do qual Mário Soares foi eleito Secretário-Geral e sucessivamente reeleito no cargo ao longo de quase treze anos.
Actividade Política após o 25 de Abril Em 25 de Abril de 1974, Mário Soares estava no exílio em França, de onde regressou a Portugal no dia 28, tendo chegado a Lisboa no depois chamado "combóio da liberdade". Passados poucos dias, foi enviado pela Junta de Salvação Nacional às capitais europeias para obter o reconhecimento diplomático do novo regime democrático. Participou nos I, II e III Governos Provisórios, como Ministro dos Negócios Estrangeiros, e no IV, como Ministro sem Pasta, de que se demitiu em protesto pelo chamado "caso República" e pela crescente tentativa de perversão totalitária da revolução, abrindo-se assim a crise governamental que levou à queda desse Governo e, depois, à contestação ao V Governo Provisório e à demissão de Vasco Gonçalves, período que ficou conhecido por "verão quente" (1975), em que tiveram lugar o célebre comício da Fonte Luminosa, ao qual acorreram muitas centenas de milhares de pessoas em protesto contra a ameaça de uma nova Ditadura, e, mais tarde, o "25 de Novembro", movimento militar que repôs o espírito original e democrático da Revolução de Abril. Como Secretário-Geral do PS participou em todas as campanhas eleitorais, tendo sido deputado por Lisboa em todas as legislaturas, até 1986. Em consequência da vitória do PS nas primeiras eleições legislativas realizadas em 1976, foi nomeado Primeiro-Ministro do I Governo Constitucional (1976-77), tendo também presidido ao II (1978). Neste período, foi necessário enfrentar e resolver uma situação de quase ruptura financeira e de paralisia das actividades económicas do país, ultrapassada mediante a aplicação de um programa de estabilização e rigor, negociado com o FMI, graças ao qual foi 8
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possível celebrar um "grande empréstimo" e voltar a pôr a economia a funcionar.
Foi ainda durante o I Governo Constitucional que se procedeu à integração, com pleno êxito, de quase um milhão de portugueses retornados das ex-colónias. Durante 1976 e 1977 foram também aprovadas as primeiras leis que deram forma ao novo Estado de Direito (código civil, lei da delimitação dos sectores, lei de bases da reforma agrária, etc.) e começaram a funcionar, com regularidade, os mecanismos institucionais previstos na Constituição de 1976. Rompido que foi, por denúncia unilateral do CDS, o acordo político de incidência governamental em que assentava o II Governo Constitucional e demitido o Executivo pelo então Presidente da República, general Ramalho Eanes, Mário Soares liderou a oposição entre 1978 e 1983, tendo sido durante esse período viabilizada a primeira revisão da Constituição da República, na qual se empenhou fortemente. Esta revisão constitucional eliminou finalmente a tutela político-militar do Conselho da Revolução, que vinha dos primeiros tempos da Revolução, e consagrou o carácter civilista, pluripartidário e de tipo ocidental do regime. Foi então criado o Conselho de Estado, para o qual Mário Soares foi eleito pelo Parlamento. Após nova dissolução da Assembleia da República, ocorrida em 1983, e na sequência das eleições legislativas que voltaram a dar a vitória ao PS, foi nomeado Primeiro-Ministro do IX Governo Constitucional, com base numa coligação partidária PS/PSD (1983-85). Este Governo viu-se 9
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confrontado também com uma dramática situação financeira e uma crise generalizada, que o levaram a pôr em prática um novo plano de emergência e recuperação que restabeleceu os equilíbrios financeiros externos. Coube ainda ao IX Governo Constitucional ultimar o processo de adesão de Portugal à CEE, conduzir as últimas negociações e assinar o Tratado de Adesão, em Junho de 1985. Apesar de o PS ter perdido as eleições de Outubro de 1985, realizadas por força de nova dissolução da Assembleia da República, em consequência do rompimento, pelo PSD, da coligação PS/PSD, Mário Soares candidatou-se às eleições presidenciais, previstas para Janeiro de 1986. Teve o apoio de independentes e do PS (na 1ª volta) e de toda a esquerda (na 2ª volta), tendo sido eleito em 16 de Fevereiro, por cinco anos. Foi o primeiro Presidente civil eleito directamente pelo povo, na história portuguesa. Renunciou então aos seus cargos de Secretário-Geral do PS e de deputado, tendo tomado posse e prestado juramento no dia 9 de Março de 1986. Em 13 de Janeiro de 1991 foi reeleito Presidente da República, logo à 1ª volta, tendo obtido a maior votação de sempre para esse cargo: 3 460 381 votos (70,40% dos votos validamente expressos), tendo terminado o seu segundo mandato em 9 de Março de 1996.Tornou-se membro do Conselho de Estado em 1996, por inerência. Em 1999 foi eleito Deputado ao Parlamento Europeu, tendo cumprido toda a legislatura (19992004). Em 2006 concorreu, de novo, a Presidente da República, pelo PS, tendo perdido as eleições para Aníbal Cavaco Silva, entretanto reeleito para um segundo mandato.
Outras actividades em Portugal Em 10 de Março de 1996 assumiu a presidência da Fundação que havia sido fundada em 1991 com o seu nome e, em 1997, foi eleito presidente da Fundação Portugal-África. Foi presidente: do Conselho de Patronos da Fundação Arpad-Szenes/Vieira da Silva (1994-2013); da Comissão de Investigação sobre as transacções de ouro efectuadas entre as autoridades portuguesas e alemãs durante o período compreendido entre 1936 e 1945 (1998); da Comissão de Honra para as Comemorações dos 500 anos da viagem de Pedro Álvares Cabral (1998); da Comissão Nacional das Comemorações do 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em celebração da Década das Nações Unidas para a educação em matéria dos Direitos do Homem (1998) e da Comissão da Liberdade Religiosa (2007-2011). Foi também Professor Catedrático 10
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Convidado da cadeira de "Relações Internacionais" da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra nos anos lectivos 199697 e 1997-98 e Professor Convidado da Universidade Lusófona da cadeira de "Socioeconomia Política da União Europeia" no ano lectivo de 2001-02. Foi membro honorário da Academia das Ciências de Lisboa, da Sociedade Portuguesa de Autores, da Sociedade Portuguesa de Escritores, Presidente Honorário do Conselho de Patronos da Fundação Arpad Szennes/Vieira da Silva e membro do Júri do Prémio Pessoa.
Acção Internacional
Como Secretário-Geral do PS e Vice-Presidente da Internacional Socialista (IS) - cargo para que foi eleito no Congresso de Genève, em 1976, e depois sucessivamente reeleito até ser nomeado Presidente Honorário em 1986 - Mário Soares desenvolveu uma intensa actividade internacional. Foi presidente das Comissões da IS para o Médio-Oriente e para a América Latina, tendo realizado várias missões de informação àquelas zonas e bem assim à África Austral. Participou em numerosas negociações, encontros, colóquios, congressos e missões no quadro da Internacional Socialista e fora dele. De entre a actividade internacional desenvolvida no exercício de cargos públicos, destaca-se: como Ministro dos Negócios Estrangeiros, o estabelecimento de relações diplomáticas com todos os países do Mundo e o início oficial do processo de descolonização nos encontros de Dakar, com Aristides Pereira, antigo Presidente da República Popular de Cabo Verde, e de Lusaka, com Samora Machel, malogrado Presidente da República Popular de Moçambique; como Primeiro-Ministro, o impulso inicial dado ao processo de adesão de Portugal à CEE, em Março de 1977 (I Governo Constitucional), o começo das negociações com o FMI para a recuperação da economia 11
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portuguesa (II Governo Constitucional) e a consagração da opção europeia com a assinatura, em simultâneo com a Espanha, do Tratado de Adesão, em 12 de Junho de 1985 (IX Governo Constitucional); como Presidente da República, a defesa intransigente do respeito pelos direitos dos homens e dos povos, de que Timor-Leste constituía então uma referência portuguesa dramática, a frontalidade assumida em visitas oficiais e cimeiras de Chefes de Estado e de Governo na denúncia dos regimes que se afastavam do modelo proposto pela Carta da ONU para o desenvolvimento e a intervenção permanente no sentido de a dimensão atlântica encontrar forma numa comunidade de povos de expressão portuguesa, reaproximando o Brasil dos novos conceitos estratégicos nacionais.
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MÁRIO SOARES UMA VIDA DE COMBATE
Quando os pais de Mário Soares se apaixonaram, cada um deles já tinha um filho. O mais velho, Tertuliano, meio-irmão do futuro Presidente da República pelo lado do pai, nasceu em 1906, quando João Lopes Soares ainda era padre. A mãe, Joaquina, era filha dos donos de uma pensão de Leiria onde o sacerdote fazia as suas refeições e foi vítima do escândalo, tendo sido posta fora de casa pelos pais. João Lopes Soares foi preso nessa mesma altura, por ter aderido aos ideais republicanos, pelo que o bebé passou os primeiros tempos de vida entregue a um médico amigo do pai. Tertuliano foi médico do Exército, pelo que ajudou a livrar o irmão mais novo da tropa, ainda chegou a estar preso no início da ditadura, mas afastou-se progressivamente desse combate. Numa ida à cadeia para visitar Mário Soares, pediu-lhe: "Não digas a 13
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ninguém que és meu irmão." A história, revelada por Maria Barroso a Joaquim Vieira, não chegou a ser incluída na biografia "Soares, uma Vida" (Ed. Esfera dos Livros). A mãe de Mário Soares também já tinha um rapaz, Cândido Nobre Baptista, que no Bilhete de Identidade aparecia como filho de pai incógnito. Cândido era uma espécie de faz-tudo no Colégio Moderno e ajudou Mário a esconder uma caixa com papéis proibidos e uma colecção do Avante. Elisa Nobre ganhou a lotaria na terra onde nasceu (Pernes, Santarém) e dirigia uma pensão na Rua Ivens, ao Chiado, quando se apaixonou pelo padre João Lopes Soares, que foi governador civil de três distritos, deputado, vogal do Conselho de Finanças Publicas e ministro das Colónias em 1919. Quando foi instaurada a ditadura militar de 1926, na antecâmara do salazarismo, João Lopes Soares tornou-se um dos seus mais ferozes inimigos. Em 1948, um subinspector da PIDE descreveu-o assim: "Tem longo cadastro nesta polícia em virtude da sua teimosa actividade política contra o governo da nação. Dada a sua posição social e a sua inteligência, torna-se sem dúvida um adversário perigoso, que além de outras, se evidenciou na última intentona revolucionária, em que se evidenciou como um dos principais elementos, elaborando um projecto de lei em que ordenava vis vinganças contra os que com sacrifício têm levado a cabo de bom fim a grande obra de ressurgimento nacional." Entre 1947, data do último golpe em que se envolveu, e 1970, quando morreu, João Lopes Soares continuou a ser vigiado pela polícia política. Em 1961, na sequência de mais uma detenção do filho Mário, interceptaram-lhe uma carta dirigida a um amigo, inédita, que agora se revela: "A minha alma forte, de antigo batalhador – sem um vislumbre de vaidade – não se abateu nem esmorece com a injusta prisão daquele querido filho, que é todo o meu orgulho. Sobretudo pela nobreza do seu carácter e pelo seu inexcedível aprumo moral."
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CAPITULO I O PREGUIÇOSO “GIGI” E O CAMARADA“FONTES”
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João Soares com o filho Mário no domingo de Páscoa de 1927, no Campo Grande
Mário Soares nasceu dois anos antes do 28 de maio de 1926 e tornou-se, ao longo da vida, o reverso da figura maior da ditadura. Se Salazar era provinciano, austero, adepto da ordem e retrógrado, Soares era cosmopolita, jovial, amante da liberdade e voltado para o futuro. "Gigi" ou "Licas", chamava-lhe até aos 11 anos o pai, que mal viu crescer aquele seu filho enfermiço e preguiçoso, nascido a 7 de dezembro de 1924, no segundo andar esquerdo do número 153 da Rua Gomes Freire, em Lisboa. "O prédio situava-se paredes meias com o Rilhafoles; passei parte da minha infância a ver os malucos do muro do quintal", recordaria Mário Soares no livro-entrevista de Maria João Avillez Ditadura e Revolução. Na época, Elisa Nobre Baptista (mãe de Cândido, 17 anos mais velho do que Mário) e João Lopes Soares (pai de Tertuliano, com mais 18 anos) não eram ainda casados. O antigo sacerdote continuava a aguardar a declaração de nulidade da sua ordenação e o casamento só se concretizaria em 1934, quando o pequeno Mário Alberto Nobre Lopes Soares tinha 7 anos. Mas o miúdo já sentira as consequências da ditadura, que se instalou no País quando ele tinha pouco mais de 1 ano - e ele viria a ser o reverso de um Salazar provinciano, austero, adepto da ordem e retrógrado, pois seria cosmopolita, jovial, amante da liberdade e voltado para o futuro.
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"O meu pai foi um político, ainda que modesto, da I República", contava à conversa com Sérgio Sousa Pinto, registada na obra Diálogo de Gerações, mas "nunca foi socialista". Várias vezes deputado e ministro das Colónias em 1919, dos tempos da Monarquia até ao final da vida, foi "quase conspirador profissional" contra as ditaduras. "Quando era pequeno, via-o em lugares estranhos, onde ia com a minha mãe, que mudava de táxi para o encontrar em casas de amigos ou em jardins, às vezes, por pouco tempo. (...) A minha mãe recomendava-me para não esquecer o nome que o meu pai usava: "Senhor Araújo", africanista em férias" (idem). No Portugal Amordaçado lembrava que já ia, "com 5 ou 6anos, à prisão política do Aljube" e "a Peniche, numa fria madrugada, para [se] despedir" do pai, deportado a segunda vez para os Açores. Após o regresso, em 1935, "seriamente preocupado com a sua precária situação financeira", após "nove anos de "vida airada", (...) de permanente luta e conspiração" (site da Fundação Mário Soares), João Soares irá conseguir o alvará que o autoriza a abrir um estabelecimento de ensino particular, o Colégio Moderno, que passa a funcionar no ano letivo de 1936-37 - e onde muitos vultos excluídos do ensino oficial irão lecionar, pois "sempre foi um refúgio para os perseguidos do regime" (Ditadura e Revolução). No tempo da escola, dada a sua magreza e apesar de jogar bem futebol, Mário era conhecido como "Lingrinhas" e, recordará mais tarde, era um aluno "péssimo", "medíocre", "desinteressado". No Colégio Moderno, além das conversas dos amigos do pai, que até então o fascinavam e "constituíram a [sua] primeira escola política", conhecerá três figuras, "tão diferentes entre si, nas posições ideológicas, [mas que] exerceram uma influência profunda" no jovem, tirando-lhe a ideia de ir para Direito, "a cidadela do reacionarismo" (Portugal Amordaçado): Álvaro Salema, Agostinho da Silva e Álvaro Cunhal (outra página). Matriculou-se em Ciências Histórico-Filosóficas em 1942, mas perdeu logo três anos devido às primeiras prisões políticas (seria encarcerado 12 vezes), só se licenciando em 1951. Integrou-se no núcleo da faculdade da Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas, "um grupo muito pequeno, mas coeso" (Ditadura e Revolução), mas que, contava no Portugal Amordaçado, quase se limitava, "cautelosamente, a distribuir a imprensa que o Partido Comunista e, mais tarde, o MUNAF [Movimento de Unidade 17
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Nacional Antifascista, presidido por Norton de Matos, mas controlado pelos comunistas] forneciam, a pintar nas paredes slogans como "Morra a PVDE!"[mais tarde, PIDE] e "Abaixo o Tarrafal" e a estudar e debater problemas "teóricos' do marxismo". Leu então obras de Lenine e Estaline, Dimitrov e Thorez, o AntiDüring, de Engels, e O ABC do Comunismo, de Bukarine - "obra que se dizia "aconselhável", apesar de o seu autor ser um "renegado"!"(idem). Por essa época, revela Pacheco Pereira, "copia aplicadamente, com a sua letra elegante, os clássicos do marxismoleninismo e os textos de Cunhal, como A Célula de Empresa" (Álvaro Cunhal: Uma Biografia Política - "Daniel"). O pai, tolerante mas irónico, referia-se a "esses camaradinhas teus amigos". Na altura, nem sequer lhe causava qualquer impressão o facto de ter controleiros do partido, pois entendia que "fazia parte das regras do jogo", nem lhe faziam confusão os encontros secretos, "nos lugares mais estranhos", admitindo ser essa a razão por que, depois, conhecia tão bem Lisboa (Diálogo de Gerações). A carreira como comunista assumiria, porém, uma dupla face: enquanto "Fontes" (pseudónimo escolhido numa reunião na Avenida Fontes Pereira de Melo, em que Octávio Pato passou a ser o "Melo") começava a ser uma aposta do "Partido", o filho do velho conspirador republicano era visto, no panorama das oposições, apenas como um jovem de esquerda. E, no entanto, logo em 1944, Piteira Santos sugere o seu nome para a direção das Juventudes Comunistas de Lisboa. O seu primeiro momento alto foi quando a direção académica das Juventudes Comunistas, para assinalar a derrota de Hitler, decidiu organizar "a primeira grande manifestação, genuína e popular, nas ruas de Lisboa contra o fascismo" (Ditadura e Revolução). A Soares competia sublevar e paralisar a Faculdade de Letras, interrompendo as aulas e arrastando os alunos para a manifestação, fazendo o mesmo em liceus e na Faculdade de Ciências - e na varanda desta faculdade improvisou o primeiro discurso público -, seguindo a multidão, com bandeiras da Inglaterra, EUA, França e paus sem o estandarte da URSS (mas com "vivas!" a Estaline, garante João Madeira, na sua História do PCP), para o bairro das embaixadas. E, como desenhou Mário Dionísio, "era um mar de gente".
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No seu jeito voluntarista e intuitivo, aos 21 anos decidiu logo aderir ao MUD (Movimento de Unidade Democrática, resposta à provocação de Salazar, que, face a pressões externas, disse não haver oposição), só comunicando depois ao seu controleiro. "O PCP desconfia dos promotores da reunião do Centro [Escolar] Almirante Reis", escreve João Madeira, "mas a iniciativa não lhe pode ser indiferente, até pela amplitude e pelas potencialidades que gerara" (idem). E acabaria por tirar proveito da adesão de Soares, pois integrariam a Comissão Central do MUD Juvenil três "quadros excecionais" das Juventudes Comunistas: Soares, Octávio Pato e Salgado Zenha - "começou assim entre mim e o Zenha (ele era um ano mais velho) um relacionamento que foi imediatamente simpático, aberto, franco" (Ditadura e Revolução). Mas Almeida Santos assegura que Zenha, "visita quase diária da sua república [de estudantes, em Coimbra], nunca aderiu ao PCP" (Mário Soares - Uma Vida). No ano seguinte, integrava a Comissão Central do MUD, substituindo Alves Redol, embora só fosse apresentado como "representante da juventude". Nesta fase, encontrou-se três vezes com o já clandestino Álvaro Cunhal: quando o comunista visitou o velho João Soares e "[insistiu] para que [Mário prosseguisse] o combate sem desfalecimentos"; quando estava disposto a acatar a sugestão do pai e ir para a Suíça estudar no Instituto Jean-Jacques Rousseau, Cunhal disse-lhe, na Figueira da Foz, que ele estava "a cumprir muito bem a [sua] missão, não [havia] quem [o pudesse] substituir" e tinha de ficar no País "por dever de militância" - o que encheu de orgulho o jovem comunista -; e numa reunião clandestina de quadros ligados à juventude, onde voltou a perceber a aposta que o PCP nele fazia, pois, quando se desconfiou que a vivenda do Estoril estaria a ser vigiada e as normas de segurança obrigavam a abandonar o local dois a dois, após Cunhal e outro membro do Secretariado, saíram logo a seguir Soares e Zenha (Ditadura e Revolução). Mas rejeitaria sempre a ideia de passar à clandestinidade, pelo que recusou ir à Lousã, em 1946, como delegado da juventude ao IV Congresso, avançando Octávio Pato. "Uma coisa era a luta à luz do dia, ser preso, voltar a sair, continuar a lutar, mas ir fazendo a minha vida pessoal; outra, a clandestinidade" (idem). E quando saiu do calabouço, em 1949, na sequência da candidatura de Norton de Matos (outra página), entrou em colisão com o PCP e foi expulso do partido - "com honras de denúncia no Avante!" 19
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No fundo, explica João Madeira, preso "justamente quando a unidade se esboroa no rescaldo das eleições presidenciais, não participa diretamente na constituição do MND [Movimento Nacional Democrático] e, depois de libertado, esclarece a sua posição em carta dirigida a Ruy Luís Gomes, que viria a ser impressa e publicamente difundida" (idem). "O Piteira Santos foi incontestavelmente a figura-chave do grupo e a razão de ser de tanta publicidade nas expulsões" (Diálogo de Gerações). Mas, gostava de sublinhar, "nunca fui expulso de uma maneira formal" (Ditadura e Revolução).
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CAPITULO II
MANTER A HONRA NA PIDE SEM SUCUMBIR NEM FALAR
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Prisão: "Se nós aguentávamos (...) com alguma galhardia", contava o pintor Júlio Pomar, já Mário Soares mantinha "a mesma maneira de ser" de quando estava livre "Fuja, menino! Está cá a PIDE", avisou a empregada às seis da manhã do dia 13 de fevereiro de 1949, quando a polícia política o tentou prender em casa, na sequência da candidatura de Norton. "[Vestiu] um sobretudo por cima do pijama, [calçou] uns sapatos" e fugiu pelos quintais (Ditadura e Revolução). Preso à tarde, foi a sua quinta ida para o calabouço. A sua estreia na cadeia data de agosto de 1944, à saída de uma interrompida conferência sobre música gregoriana, no Grémio Alentejano, comentada por Lopes-Graça. "Sairia poucas horas depois, após as advertências solenes da praxe, por se verificar que não tinha ficha na outra polícia, a tenebrosa PVDE de então [PIDE, a partir de 1945]" (Portugal Amordaçado). Voltou a ser detido em 1946, porque a Comissão Central do MUD elaborou um documento violento contra a entrada de Portugal na ONU, e em 1947, por causa de outro documento do MUD Juvenil. E, a 31 de janeiro de 1948, quando o MUD programou uma manifestação para assinalar a efeméride, ficou seis meses preso, primeiro numa cela "relativamente simpática" no Aljube - na detenção de 1961, esteve um mês nos "curros", "espaço exíguo", onde podia dar três passos, "não mais", com "uma tábua para dormir e duas mantas esburacadas", sem luz nem jornais, a comer "um rancho repelente" -, onde agora se encontrava com o pai (detido na sequência da abortada conspiração de abril de 1947), sendo depois transferido para Caxias, "coisa verdadeiramente indigna, horrorosa: a retrete era coletiva, sem separações, tínhamos de fazer as nossas necessidades à frente uns dos outros; a água que havia era gélida" (Ditadura e Revolução). 22
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E, "numa fria madrugada fui interrogado na sede da PIDE por um tal Farinha Santos, meu antigo colega na Faculdade de Letras, que era então agente qualificado da polícia política. Brincando com uma pistola enquanto me interrogava, disse-me: "Se disparar e o matar, nada me acontecerá. Todos dirão que disparei em legítima defesa." O pior de tudo, no ambiente lúgubre em que me encontrava, é que acreditei!" (Um Político Assume-se). Atrás das grades uma dúzia de vezes, agredido, sujeito à tortura de sono, isolado, "só existem dois caminhos: manter a honra e não falar ou sucumbir. Resisti. E, por isso, a prisão foi para mim uma grande escola de conhecimento de mim próprio. [A primeira vez na PIDE] tinha 24 anos. Ganhei uma confiança em mim que não tinha antes" (idem). Em 1950, preso quando discursava no Dia da Paz, "como tinha conseguido introduzir, furtivamente, o discurso no bolso do Prof. Câmara Reys, a PIDE viu-se obrigada a libertar-me, por falta de prova" (Ditadura e Revolução).
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CAPITULO III
DEPORTADO PARA SÃO TOMÉ E PRESO DO ANO PARA A AMNISTIA INTERNACIONAL
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Castigo. No final do salazarismo, o regime tentou vergar o advogado oposicionista, fixando-lhe residência numa ilha de clima tropical e em que poucas pessoas ousavam falar com o degredado "Levava um fato de flanela espesso, próprio do inverno lisboeta" quando aterrou em São Tomé e sentiu o "calor insuportável" do arquipélago que fica na linha do equador, recordará num artigo no Expresso (citado na Fotobiografia). A sugestão tinha sido do diretor da PIDE, Silva Pais, e o inspetor Sachetti, "impecavelmente vestido e perfumado" quando o informou da decisão de lhe fixar ali residência, comunicou-lhe: "Dentro de meses ninguém se lembrará que houve um advogado chamado Mário Soares" (idem). Na origem do desterro estava o caso de pedofilia, investigado pela Judiciária, que envolvia ministros de Salazar e ficou conhecido como Balletts Roses. O escândalo tinha-lhe sido contado, em casa de Sophia de Mello Breyner, pelo advogado Pires de Lima. Depois, o socialista foi visitado, no seu escritório, por um jornalista do Sunday Telegraph e, após sair a notícia, pela PIDE, que ali o prendeu sem mandado. O ministro Franco Nogueira anota, a 11 de janeiro de 1968: "De grande excitação o ambiente de política interna. Escândalos de alguns políticos com raparigas menores, supostos, exagerados, ou verdadeiros, são pretexto. Mas o caso é mais complexo e profundo: trata-se de ataque frontal ao Governo de Lisboa, e não só por elementos da oposição portuguesa" (Um Político Confessa-se). 25
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Três meses preso, como de costume acusado de "atividades contra a segurança do Estado", antes de o habeas corpus pedido pelo advogado socialista José Magalhães Godinho ter efeitos práticos, foi libertado. E, em março de 1968, o subdiretor da polícia política informa-o que ia ser deportado, por tempo indeterminado e sem fundamento legal - e "eu nem sabia ao certo onde estava São Tomé no mapa" (Ditadura e Revolução) . "No torvelinho do choque entre governo e oposições", regista Franco Nogueira na Biografia de Salazar, "é detido Mário Soares, contra quem a polícia afirma possuir provas materiais, que diz irrefutáveis, e que demonstram a sua responsabilidade na campanha [para enfraquecer o regime]; é-lhe fixada residência em São Tomé pelo chefe do Governo e da decisão é interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo" - e será com base nesse recurso que Marcello Caetano, ao subir ao poder, deixará regressar a Lisboa o seu ex-aluno de Direito, numa espécie de aceno à sua anunciada abertura. "Nunca tinha ido a África antes" e, vendo ainda a polícia a agredir família e amigos que se tinham ido despedir ao aeroporto, foi para o desterro num voo direto para Luanda e, dali, num "teco-teco" para São Tomé (Fotobiografia), acompanhado pelo inspetor Abílio Pires, o "especialista dos intelectuais" (Uma Vida). Depois do choque ao sair do avião (40 graus, toda a agente de roupa branca e em mangas de camisa), alojou-se numa pensão. "Aquele ambiente morno e sonolento [que se vivia na ilha]", escreverá Mário Jesus da Silva, "foi um pouco agitado quando ali desembarcou o Dr. Mário Soares, exilado por razões políticas" (Sortilégio da Cobra). Por essa época, também se alojavam na pousada de São Jerónimo muitos mercenários que participavam na guerra do Biafra, que Portugal apoiava pouco discretamente, permitindo armazenamento e trânsito de armas e de medicamentos em aviões Super Constellattion - até o dinheiro do novo país foi impresso na Casa da Moeda. Suecos, alemães ou portugueses, os pilotos dos frágeis aviões T-6 e Minicoin (também conhecidos como "Biafran Babies"), que enfrentavam os poderosos caças Mig da Nigéria, numa "guerrilha dos pobres", recebiam por mês o equivalente ao preço de dois automóveis Jaguar. Em Lisboa, os amigos convencem-se da hipótese "de um mercenário ser pago para sobre ele exercer qualquer tipo de violência", mas o deportado "acabará por 26
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estabelecer laços do mais cordial convívio com os aventureiros seus vizinhos" (Uma Vida). Mário Silva, que se tornou um dos poucos brancos da colónia que fazia questão de privar com o oposicionista, lembra que, certa vez, "à saída do restaurante, estava parado a uns vinte metros um velho Volkswagen "carocha" preto, em direção ao qual o Dr. Mário Soares dirigiu um aceno bem-disposto e irónico, que nos despertou a curiosidade. Era a PIDE local, que mantinha uma vigilância adesiva e permanente, seguindo-lhe todos os passos" (Sortilégio da Cobra). E, no dia 24 de maio, o ditador anota na sua agenda o tema da audiência ao governador de São Tomé: "estadia do Dr. Mário Soares" (Salazar - Uma Cronologia, de Fernando de Castro Brandão). O representante do Governo parecia quase tão aflito como o chefe da PIDE local, que mobilizava os seus 22 agentes para vigiarem o deportado dia e noite. "A sua vida em São Tomé decorre entre a curiosidade dos seus habitantes, classificados em estratos raciais, de acordo com os esquemas típicos de exploração implantados nas velhas colónias"(Um Combatente do Socialismo). Isolado na ilha até novembro, ao tentar defender um pobre empregado acusado de furto - "estudei o processo como nunca tinha estudado nenhum, fiz daquilo o processo do regime" (Uma Vida) - percebeu que não podia advogar, pois a sentença do juiz, para espanto geral, foram 13 anos de prisão. Ainda tentou, como Maria Barroso, ser professor do liceu. Sem êxito. Também o convite para ser advogado, com uma avença, da roça de Água--Izé, da CUF, lhe seria retirado, após pressões da polícia para a empresa não contratar "tão nefasto advogado, traidor à pátria". Quase sem ninguém com coragem para lhe falar (os negros deixavam-lhe discretamente, à porta, frutas e mariscos como manifestação de simpatia), a PIDE nem o deixou enviar uma carta de condolências ao embaixador americano pela morte de Martin Luther King - e só saberia do parisiense Maio de 68 através de um transístor, que lhe tinha chegado clandestinamente, em que ouvia a Rádio Brazaville. Uma das exceções ao medo geral - além de Mário Jesus da Silva e mulher, da família Malveiro, do engenheiro Goulão (da roça ÁguaIzé) e poucos mais, todos alvos de avisos da PIDE ("não será bom 27
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manter esse convívio; pode ter consequências desagradáveis") - foi o alferes miliciano Eduardo Fortunato de Almeida. Homem de confiança do governador e que pertencia ao Quartel-General do comando militar, mas que tinha sido seu aluno no Colégio Moderno e, na altura a cumprir serviço militar na colónia, procurou o político e afirmou-lhe a sua solidariedade. Soares nunca esqueceu o gesto. Como nem todos os envelopes chegavam ao destino, pois a polícia política, como repetiria nos anos de exílio, ficava com vários, Fortunato de Almeida passou a ser intermediário seguro, pois "levava as cartas [endereçadas em seu nome]debaixo da boina ou do chapéu" (Uma Vida). E Mário Silva recorda, em Sortilégio da Cobra, o muito que se riram quando "a alfândega não deixou passar e lhe reteve o livro O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Talvez por causa do "vermelho", que podia cheirar a marxismo". Em Lisboa, os socialistas formavam o que a polícia política designava como a "Comissão de Socorro [ou Auxílio] ao Dr. Mário Soares". Ao mesmo tempo, choviam telegramas e cartas de protesto em Belém e em São Bento, da Fédération Démocratique Internationale des Femmes, da Liga Portuguesa dos Direitos do Homem, de professores da Universidade de São Paulo, dos exilados no Brasil (esta dirigida ao cardeal Cerejeira) e da Amnistia Internacional. "Fui um dos beneficiários dessa organização humanitária, que me declarou, em 1968, 'preso do ano'" (Elogio da Política). O relatório da Amnistia dizia que "o mais famoso exemplo deste tipo de atuação da PIDE [prisões sem culpa formada e medidas de segurança adicionais às penas] é o caso do conhecido advogado e social-democrata opositor de Salazar, Dr. Mário Soares". Palma Inácio (autor do desvio do avião da TAP) fez um plano para o libertar, que Soares achou "sempre uma loucura" (...): teria de sair de noite, numa piroga, para apanhar um barco fora das águas territoriais de São Tomé. Embora o plano fosse [viável] (...), o mar estava infestado de tubarões (...). Encarou-se depois a hipótese de fuga de um helicóptero que pousaria no próprio aeroporto", mas "nunca se arranjou" (Ditadura e Revolução). Até que, uma manhã, no barbeiro - que era " retrosaria, drogaria, livraria e papelaria" (Fotobiografia) -, ouviu na rádio que Salazar caíra da cadeira. Nessa altura, lembraria Mário Jesus da Silva, "tinha na sua posse uma carta recente de Marcello Caetano, em que este referia que não concordava com o exílio a que o tinham 28
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forçado e que, se estivesse na sua mão, o faria regressar com a brevidade possível. Estava lá escrito, preto no branco" (Sortilégio da Cobra). O sucessor de Salazar - e Soares acalentou o projeto de escrever uma biografia do ditador, pois "gostava de conhecer melhor essa figura e o seu tempo" (O Que Falta Dizer) - deixa regressar o oposicionista, mas, lembrava Raul Rego, no Diário Político, "não se deixou dizer [nos jornais], na altura".
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CAPITULO IV
SECRETÁRIO DE NORTON DE MATOS ATÉ REVELAR SER DO PCP
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Mário Soares na conferência de imprensa em que Norton de Matos anunciou a sua candidatura
Aos 24 anos, movendo-se clássicos, participando em a sede da candidatura comunistas que eram ali MUD Juvenil
com facilidade nos meios oposicionistas grupos e tertúlias, até conseguiu encher presidencial do general de jovens apresentados como sendo apenas do
"Velhinho! Livra-nos desta enrascada do Salazar", terá dito uma mulher do povo, "paupérrima", metendo a cabeça no automóvel onde seguia o general Norton de Matos, no trajeto entre Évora e Beja, tão apinhado de gente como os comícios no Porto, recordaria Mário Soares em Portugal Amordaçado. Apesar de "um setor significativo [dos dirigentes do MUD], próximo do Partido Comunista - Mário Soares, Maria Isabel Aboim Inglês e Tito de Morais - tivesse começado por preferir Mário de Azevedo Gomes", como refere João Madeira em História do PCP, pois o "agrónomo seareiro" era "a nossa referência" (Ditadura e Revolução), a personalidade do ex-grão-mestre da Maçonaria impôs-se ao jovem político. "O general, apesar dos seus oitenta anos, conservava uma energia de ferro e uma lucidez admirável", enaltecia Soares quando, aos 46 anos, escreveu Portugal Amordaçado - sem imaginar que, também ele, na longevidade, imitaria o vulto que chamava aos políticos do regime "pigmeus". Em finais de 1948, vencidas as resistências do Partido Republicano Português, do grupo de Cunha Leal e da opinião de António Sérgio, o general aceitava concorrer, pela oposição, às presidenciais de 31
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1949, contra um já decrépito marechal Carmona - pois para Salazar, salientava Mário Soares, "uma simples figura de palha serviria para ocupar a Presidência da República" (idem). Na época, garante Pacheco Pereira na sua biografia de Cunhal, o jovem Mário, então com 24 anos, "movia-se com enorme habilidade nos meios oposicionistas lisboetas, beneficiando das relações sociais que o seu pai tinha em pleno coração da conspiração republicana. Através de uma ativa participação em tudo o que era tertúlia, movimento ou grupo, Soares dispunha já de uma invejável rede de amizades e de contactos, não só com as pessoas da sua geração, mas com oposicionistas mais velhos. Entusiasta, ativo e prosélito, o jovem comunista estava em todo o lado e ia a todo o lado" (Duarte O Dirigente Clandestino). Muito discreto na sua militância comunista, logo se tornou secretário de Norton de Matos na Comissão Central da candidatura. A "casa modesta", na Rua do Quelhas, onde o candidato vivia com uma "devotadíssima sobrinha", tinha sido transformada em sede e Soares "despachava diariamente com o general", que o recebia na cama, depois de ler o Times, "recostado numa série de almofadas" (Ditadura e Revolução). E foi ele que chamou o amigo Júlio Pomar para fazer o retrato que ilustraria os cartazes. "Em pouco tempo, e com uma economia de traços impressionante, fez um desenho que foi julgado por todos sensacional" (Portugal Amordaçado). Os comunistas, ao tomarem conhecimento do facto, ficaram "encantados", mas o amigo do pai do seu secretário não suspeitava que o jovem que dinamizava a sede e a enchia com rostos do MUD Juvenil (as comissões distritais tinham sido transformadas em comissões de apoio à candidatura) se tornara, sustenta Pacheco Pereira , na "principal peça do PCP na candidatura" (idem). Nem tudo era unanimidade, chegando a haver até os que advogavam a ida às urnas e os que se mantinham contra qualquer colaboração numa previsível "fraude eleitoral". Churchill proferira, três anos antes, a frase que, simbolicamente, inaugurou a Guerra Fria: "De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente." E, agora, os setores moderados da Oposição "começavam a revelarse mais anticomunistas do que antifascistas" e o próprio Norton, perante o fantasma que o regime agitava do perigo vermelho, até queria denunciar o compromisso unitário, mediante uma declaração 32
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pública anticomunista, mas seria dissuadido dessa posição (ibidem). "Neste contexto", frisa João Madeira, "à medida que crescia a tensão entre as correntes e os setores apoiantes do general, o PCP prefere impor a presença de um representante nos serviços centrais da candidatura. É em Mário Soares [até essa altura representante da Comissão Central do MUD Juvenil] que recai essa incumbência" (idem), com o Secretariado do partido, primeiro através do seu controleiro e depois num encontro com José Gregório, a comunicarlhe que não só devia declinar a sua militância como comunicar que passava a ser o representante do PCP na candidatura. Após uma primeira fase em que recusou cumprir aquela diretiva - "quereriam atirar-me para a clandestinidade?", como avisavam os seus amigos (Um Político Assume-se) -, acabou por ceder, comunicando ao general, então com 82 anos, que resolvera aderir ao PCP. "Ah! Sim", estranhou o candidato, "[olhando-o] por detrás dos óculos" (Ditadura e Revolução) e "fixando-[o] com um olhar frio, impenetrável" (Um Político Assume-se). "A reação do general e do seu círculo mais próximo é devastadora face à revelação do próprio Soares, a meio da campanha, de que a partir daí seria o representante oficial do PCP. Não só seria desalojado do gabinete que ocupava, como proibido de aceder ao piso da sede da candidatura em que funcionava o general e o grupo mais chegado de colaboradores, e ainda proibido de participar visivelmente nas sessões e comícios públicos (História do PCP). "Nunca mais [o] recebeu", "estava banido" - e Norton de Matos até se foi queixar a João Soares que o filho, afinal, era um comunista. Depois, "foi um final de feira desagradável: por fora, a sede da candidatura, dia e noite cercada pela PIDE; lá dentro - onde [esteve] até ao fim - a Comissão queimando todos os papéis que pudessem ser comprometedores" (Ditadura e Revolução).
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CAPITULO V
CLANDESTINIDADE NUNCA “QUERIA TER GAJAS, IR AO CINEMA OU VIAJAR”
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Aos 24 anos, o então militante comunista Mário Soares tornou-se uma espécie de infiltrado do PCP na candidatura presidencial do general Norton de Matos, que tinha então 81 anos – a mesma idade de Soares na sua última candidatura presidencial. Em 1949, as sessões de propaganda deviam acabar antes da meianoite, mas houve um comício no Teatro Avenida, em Coimbra, em que ainda faltava falar tanta gente que Mário Soares, que estava a presidir à sessão, pediu autorização para prolongar mais meia hora. "A multidão ululante calou-se, dando lugar a um silêncio espesso, impressionante. O representante da autoridade, sentindo o peso desse silêncio, levantou-se e disse: 'Está concedida!'. E eu, do palco, retorqui: 'Uma salva de palmas para o representante da autoridade!'" O funcionário era o tenente da GNR José Sacchetti, que viria a ser subdirector da PIDE, numa das vezes em que Soares voltou a ser preso, recordou o ex-presidente no "Portugal Amordaçado", o seu livro sobre os anos da ditadura. Os serviços da candidatura, com dactilógrafos e tarefeiros voluntários do MUD (Movimento de Unidade Democrática) juvenil, na maioria comunistas, ficaram instalados no primeiro andar de um prédio junto à Rua do Quelhas, por baixo do apartamento onde residia Norton de Matos. O jovem secretário, Mário Soares, despachava directamente com o candidato. Sem saber que ele era militante do PCP, recebia-o de manhã, ainda na cama, depois de dormir até tarde e ler o The Times, um hábito adquirido quando foi embaixador em Londres. Soares descreveu-o a Maria João Avillez, para o livro "Ditadura e Revolução", como "um ancião venerável, bem-disposto, de carácter firme e imperioso, com uns olhos, por detrás dos óculos, lucidíssimos e divertidos, que denotavam uma imensa experiência de vida. Era um contador de histórias fabuloso, apreciador da boa mesa. Baixo, forte, sem ser gordo, tinha um rosto redondo e o andar difícil. Trajava sempre de negro."
Um retrato de Pomar para financiar a campanha Uma das primeiras tarefas atribuídas a Soares foi a preparação de um cartaz com o rosto de Norton de Matos, para ser exposto em todo o país. "Levei lá o meu amigo Júlio Pomar, que Norton de 35
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Matos não conhecia. O Pomar era, na altura, um jovem muito magro, feio, com imensas borbulhas, usava aqueles óculos que ainda hoje usa. O Norton, quando o viu, ficou perplexo: ‘É este o pintor?’ O Pomar nem lhe pediu que posasse, não demorou meia hora a fazer o desenho: em três traços estava ali o Norton, em corpo e alma." O retrato foi editado aos milhares e vendido por todo o país, para ajudar a financiar a campanha, uma vez que uma circular aos homens ricos da oposição não tinha surtido grande efeito.
Outra fonte de receitas foram os donativos dos anónimos que iam às sessões de campanha, e que contribuíam, respondendo ao slogan "um escudo para a candidatura".
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O golpe publicitário do teatro Um dos truques da candidatura da oposição para ampliar o impacto foi uma ideia de Manuel Tito de Morais, recordada por Soares no "Portugal Amordaçado": "Comprámos metade da sala do Teatro Nacional, onde, nessa altura, se representava, sem brilho, uma peça de Ramada Curto, perante um público reduzido. Num camarote tomou lugar o general Norton de Matos, acompanhado da devotadíssima sobrinha, com quem vivia, e que em todas as ocasiões se mostrou solidária connosco. No primeiro intervalo, mal se acenderam as luzes, o general foi reconhecido e delirantemente aclamado pêlos amigos presentes, primeiro, e, depois, pelo público em geral. Agradeceu, impávido — e, no fundo, divertidíssimo. Claro que, no segundo intervalo, a sala apareceu literalmente ocupada por agentes da PIDE à paisana e por polícias fardados. Mas não houve incidentes. No dia seguinte o «Diário da Manhã» comentava com azedume a «coincidência» de tantas presenças oposicionistas na mesma sessão de teatro."
Os pneus furados e o cartaz do avental Soares queixou-se de que o governo mandava furar os pneus dos carros de quem participava nas sessões de campanha de Norton, como aconteceu com a sua viatura em Loulé. E apareceram afixados um pouco por toda a parte cartazes com fotografias de Norton de Matos com o avental maçónico, uma vez que tinha sido Grão-Mestre, de forma a assustar os eleitores com o papão da maçonaria. Norton de Matos não fazia ideia de que a sua candidatura estava infiltrada de jovens comunistas, nem tão pouco de que o seu próprio secretário era filiado. Isto mudou por ordens do PCP. O controleiro de Soares, Armando, instruiu-o para revelar a Norton de Matos que era militante comunista e que passaria a ser o representante do PCP na candidatura.
O dilema do jovem comunista A ordem suscitou um dilema no jovem secretário, que sabia que ia pôr em causa a boa relação que até aí tinha tido com Norton de Matos, e, pior ainda, arriscar-se-ia a ter de ir para a clandestinidade, assim que se soubesse que era filiado no PCP. E isso era algo que não desejava. Uns anos antes, já tinha recusado esse destino. "Com o meu temperamento não dava. Queria ter gajas, ir ao 37
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cinema, viajar. Tinha ambições várias, ambições literárias…", justificou a Joaquim Vieira, autor de "Mário Soares, Uma vida". Soares cedeu aos interesses do PCP e comunicou a Norton de Matos uma meia-verdade, como se a decisão de ser militante comunista fosse recente e não já de há quatro anos. "Sabe, sr. General, nós na vida temos que tomar as nossas opções partidárias. Entendi que era chegado o momento e ser meu dever fazê-lo, e escolhi o Partido Comunista. Sucede que a direcção do Partido quer que eu o informe de que a partir de agora passo a ser, na Candidatura, representante do PCP". O secretário nunca esqueceu o olhar profundo do general, por detrás dos óculos, procurando penetrar nos seus olhos: "Ah, sim? Não sabia que era essa a sua opção". Ficaram de voltar a falar, mas depois de almoço, quando o secretário voltou, os papéis da sua mesa tinham sido levados para o andar de cima por ordens do candidato. Foi a sobrinha que justificou: "O meu tio está muito zangado consigo, deu-me ordens para não o deixar entrai Hoje, não o quer receber!"
Soares aceitou: "Também percebo que estivesse danado… falava comigo todos os dias, em confidências, era um tipo de quem ele gostava, era amigo do meu pai; e depois eu vou dizer-lhe que sou comunista?" Manteve-se a trabalhar na candidatura, mas não voltou a falar com Norton de Matos, e foi proibido de ir ao comício do Porto. Só que esse corte não o ilibou aos olhos da PIDE, pelo contrário. Os dois 38
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últimos dias antes da «eleição» arquivos da candidatura, que já se da PIDE. Soares seria detido madrugada: "Seria a minha quinta vinte e quatro anos."
foram passados a queimar os encontrava cercada por agentes pouco depois em casa, de prisão e tinha acabado de fazer
"Velhinho!... Livra-nos desta enrascada do Salazar" Quanto a Norton de Matos, não chegou a ir a votos, mas fez uma campanha extraordinária. A duas semanas do dia das eleições, marcadas para 13 de Fevereiro de 1949, milhares de pessoas alinharam-se ao longo da estrada entre Évora e Beja, para ver passar a comitiva, uma mulher do povo meteu a cabeça no carro que conduzia o candidato e gritou-lhe um apelo: "Velhinho! Livranos desta enrascada do Salazar". No cargo estava outro "velhinho", o marechal Óscar Carmona, com 79 anos. Na reunião da cúpula da União Nacional, o partido único que suportava o Estado Novo, 19 dos 23 dirigentes votaram que devia ser Salazar o candidato do regime, por Carmona estar velho e adoentado. Apenas quatro acharam que o marechal devia candidatar-se à reeleição, conta Marcello Caetano, no livro "Minhas memórias de Salazar". Mas o ditador não estava interessado em deixar de ser Presidente do Conselho de Ministros, pelo que sorriu e pôs fim à reunião: "Meus senhores, como a única solução apresentada em alternativa é inviável, concluo que a Comissão aprovou por unanimidade a reeleição do Marechal Carmona."
Ia assim ter início a primeira campanha presidencial, o primeiro combate entre dois candidatos, 39 anos após a instauração da 39
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República e oito anos antes das primeiras emissões televisivas em Portugal. O candidato da oposição tratou de todo o processo burocrático com enorme antecedência, 8 meses, e chamou 30 jornalistas a sua casa. Anunciou-lhes que ia concorrer à Presidência e ofereceu-lhes um cálice de Vinho do Porto, mas de nada lhe valeu. A censura apenas permitiu que saísse nos jornais portugueses uma notícia de um parágrafo: "O sr. General Norton de Matos convidou para ontem os representantes da Imprensa nacional e estrangeira, aos quais declarou as razões da sua candidatura, apresentada como de revolução contra o actual regime, e expôs o seu programa." O relatório de um infiltrado da PIDE para o "genial Salazar" Foi ignorado na imprensa até ao início oficial da campanha, mas a PIDE vigiava os seus movimentos: prendeu sete elementos da candidatura no fim de uma reunião à porta de sua casa e estes apenas foram libertados depois de Norton de Matos telefonar directamente a Salazar. A polícia política recebeu ordens para deixar de vigiar a casa do candidato, mas passou a recorrer a infiltrados: em Dezembro, Norton de Matos manteve uma longa conversa de duas horas com um informador da polícia política, que transcreveu o diálogo de memória num relatório secreto de nove páginas, assinado com o pseudónimo M3, com votos de que pudesse ser útil a bem do "genial Salazar". Nesta conversa, o candidato contou que tinha 18 comissões distritais com 180 membros, mostrou-se convencido de que conseguiria 60 a 70% dos votos e assumiu o objectivo de "deitar abaixo esta odiosa situação que fez do país um estado-polícia, acabando duma vez para sempre com essa maldita polícia política, com as suas arbitrariedades, ameaças e vexames". Ao fim de 22 anos de Estado Novo, 16 dos quais sob liderança de Salazar, Norton de Matos centrou a campanha na falta de liberdade e defendeu a extinção da PIDE, o fim da censura e o encerramento da prisão do Tarrafal. Num livro que editou sobre a campanha, o general propôs a criação de um monumento às vítimas de violência política e a publicação, num número especial do "Diário do Governo", de todas as ordens e instruções sobre censura, bem como a divulgação dos nomes de todos os censores que trabalharam desde o início da ditadura. Salazar decidiu que a campanha podia começar a 1 de Janeiro e só a partir daí 40
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começaram a sair notícias sobre o candidato. A censura afrouxou, mas continuava activa: não foram feitos cortes nos primeiras notícias sobre declarações do general - como disse o ministro do Interior numa entrevista a "O Século", a censura "limitou-se a dar ligeiras indicações quanto aos títulos e à sua apresentação gráfica".
Os três temas proibidos Em cada comício ou sessão de propaganda, tinha de estar presente um representante do Governo Civil, para evitar excitações desmedidas. Segundo as Memórias de Costa e Melo, citadas no II volume da biografia de Álvaro Cunhal escrita por Pacheco Pereira, num comício em Aveiro, o funcionário fez chegar à mesa dos oradores um bilhete com três temas de que era proibido falar: "Atitude do exército, Supostas violências exercidas pelas corporações policiais, Colónia Penal do Tarrafal". Juntou ainda três interdições: não podiam fazer "Propaganda comunista, Ameaças e atitudes sediciosas, Gritos subversivos".
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Norton de Matos participou apenas em cinco sessões de propaganda ao longo de toda a campanha: na Voz do Operário, em Beja, Évora e Faro, e, a mais impressionante, no Porto, no comício da Fonte da Moura, a que assistiram cem mil pessoas segundo o relato dos jornais. Uma semana antes, também no Porto, no campo de futebol do Salgueiros, tinham aparecido 30 mil pessoas para assistir a um comício onde não estava Norton de Matos, que se limitou a enviar um representante para ler uma mensagem. Para evitar a repetição, a Federação Portuguesa de Futebol, dirigida pelo presidente da Legião Portuguesa, emitiu uma ordem para proibir novos comícios em campos de futebol.
Salazar a escrever os discursos de Carmona O regime sentiu-se obrigado a reagir. Marcou-se então uma visita oficial do Presidente-candidato ao Porto, onde Óscar Carmona chegou de comboio e foi recebido por 250 mil pessoas, segundo a contagem generosa de "O Século". Salazar recusou candidatar-se ao cargo, mas esteve omnipresente na campanha. O seu rosto aparece ao lado do candidato nos cartazes do regime com o lema "Dois homens uma só obra". O discurso do Presidente no Porto, tal como a sua palestra na Emissora Nacional na véspera da votação e o texto que leu na tomada de posse foram escritos por Salazar (os originais manuscritos também estão na Torre do Tombo). Era também Salazar que escrevia as respostas às cartas do candidato da oposição, em que este se queixava da censura, mas fazia-se passar pelo seu chefe de gabinete, José Manuel da Costa, para retirar importância ao assunto. Escreveu, com a sua letra, uma carta para ser dactilografada que começava assim: "O senhor presidente do conselho recebeu a carta de V. Exª de 8 de Setembro com bastante atraso, pelo facto de se encontrar em férias longe de Lisboa e, pedindo desculpa da demora na resposta, encarregou-me de transmitir a V. Exª o seguinte:" O ditador tinha acabado de escrever também aquele que se tornou o seu discurso mais conhecido, com a passagem "Devo à providência a graça de ser pobre". Nos dois últimos dias de 1948 e nos primeiros seis dias de 1949, Salazar gastou 31 horas a preparar esse texto, de acordo com os registos minuciosos do seu diário. Leu-o perante duas mil pessoas que se deslocaram ao palácio da 42
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Bolsa, no Porto, para assisitir à II Conferência da União Nacional – e que o ovacionaram.
As quatro instruções da campanha liderada por Marcello Caetano A campanha de Óscar Carmona foi dirigida pelo presidente da União Nacional, Marcello Caetano, que viria a ser o sucessor de Salazar em 1968. Não se olhou a gastos (em várias eleições no Estado Novo há registos de financiamentos directos do Governo à União Nacional), pelo que nesta campanha foram impressos mais de 1,5 milhões de cartazes, editados 170 mil folhetos e comprados 27 mil exemplares de livros contra Norton de Matos escritos por Costa Brochado, ou obras de dissisidentes comunistas, como "Escolhi a Liberdade", de Kravchenko. Realizaram-se em todo o país 404 sessões de propaganda com 1622 oradores. O mais requisitado era o ministro das Obras Públicas, José Frederico Ulrich (primo afastado do presidente do BPI), com nove intervenções. Uma contabilização das obras por distritos mostrava que o Porto tinha saído beneficiado, com 101 obras, mais do dobro de Vila Real e Castelo Branco, que surgiam a seguir, com 43.
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Marcello Caetano correu todos os distritos para se reunir com as estruturas locais do partido e falou com representantes de todos os concelhos. As actas das reuniões estão disponíveis na Torre do Tombo, onde a Sábado as consultou, e mostram como os caciques locais controlavam a maior parte das terras. Nalguns casos queixavam-se de algumas pessoas da oposição, transmitiam queixas, ou reivindicações. Outros asseguravam que as eleições estavam ganhas, desde que o bispo falasse com os padres, como aconteceu por exemplo com o representante de Celorico da Beira: "É necessário que ao clero do concelho sejam dadas ordens do bispo da diocese". Nos arquivos da União Nacional relacionados com esta campanha, há quatro instruções dactilografadas em folhas A5 que faz sentido que tenham sido preparadas por Marcello Caetano, ou por outro alto dirigente do partido, pois destinam-se a alertar o governo para medidas urgentes que devem ser tomadas a tempo de agradar a certos interesses antes das eleições. Primeira instrução: cada ministro deve designar um delegado junto da Comissão Executiva da União Nacional, que esteja sempre pronto para rebater qualquer crítica da oposição; Segunda: "É indispensável que pelo Fundo do Desemprego seja atribuída uma verba aos Governadores Civis (250 ou 300 contos a cada distrito) para estes poderem subsidiar oportunamente e sem mais formalidades certos pequeníssimos melhoramentos rurais a que as Câmaras, por falta de receitas, não podem agora acorrer e que é do mais alto interesse político promover quanto antes". Terceira: "No Ministério das Finanças estão pendentes vários pedidos de empréstimos a Câmaras Municipais. Parece indispensável que sejam prontamente despachados (isto é no mês de Dezembro)". E ainda uma quarta instrução para os CTT resolverem ou explicarem os enormes atrasos na instalação de postos telefónicos.
52 mil mulheres a assinar o papel Esta foi também a campanha que marcou o aparecimento massivo das mulheres na luta política. Do lado do regime, e apesar de não poderem votar todas, foi utilizada uma expressão de Norton para provocar a reacção feminina, através deste panfleto: "Norton de Matos declarou que as mulheres estão a seu lado". Em resposta, um grande grupo de mulheres de Lisboa, sem distinção de classes, resolveu convidar todas as mulheres da capital 44
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para, nos dias 6 ou 7 do corrente mês, a qualquer hora, irem lançar o seu nome numa das listas especialmente destinadas a esse fim, afirmando que votam no sr. Marechal Carmona e portanto na ordem, na paz e na prosperidade da terra portuguesa." Parece uma anedota, mas houve 52 mil mulheres que se deram ao trabalho de ir assinar o papel, segundo as contas do jornal "O Século".
Candidatura de Norton travada pelo PCP A seis dias das eleições, uma reunião com cerca de 70 pessoas da candidatura, a maioria representantes do PCP, ficou decidido que não iria a votos, porque era impossível conseguir eleições justas e livres, e para não legitimar o regime de Salazar no estrangeiro. Contrariado, o general obedeceu. Apenas votaram 875 598 eleitores, 16% dos que deveriam ter direito a voto. À noite, milhares festejaram no Terreiro do Paço, onde ecoava o som de um altifalante do Ministério do Interior: "Já não podem ter dúvida os comunistas de que Portugal é para os portugueses." Na véspera, segundo uma biografia escrita pelo seu sobrinho-neto José Norton, o general anotou na agenda apenas cinco palavras: "Desisti de ir às urnas." Em Benguela, Angola, onde a notícia terá chegado atrasada, foi Norton de Matos que recebeu mais votos.
Soares alertado para chantagens com gravações nos hotéis de Moscovo Há 46 anos, enquanto estava exilado em Paris para não ser preso pela polícia política em pleno marcelismo, Mário Soares foi convidado a visitar Moscovo. A iniciativa partiu da União das Associações de Amizade e Laços Culturais com os Países Estrangeiros da União Soviética. No avião, seguiam mais três portugueses: o seu amigo Augusto Abelaira e os comunistas Alexandre Babo e Óscar Lopes. Soares foi inicialmente colocado num hotel à parte e só no dia seguinte foi transferido para o luxuoso Hotel Moscow, onde estavam os outros três portugueses, que o puseram de sobreaviso face à hipótese de ser filmado e chantageado. A revelação foi feita pelo próprio Soares a Joaquim Vieira, autor da mais completa biografia do ex-Presidente ("Mário Soares, Uma 45
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Vida, Ed. Esfera dos Livros), numa das 16 entrevistas que lhe concedeu: "À tarde, o director [da União das Associações de Amizade] diz-me que conseguiu que eu fosse para o Hotel Moscow, de grande luxo, perto do Kremlin, onde estavam os outros portugueses. Havia lá uma quantidade de mulheres bonitas, assombrosas. O Babo e o Abelaira avisam-me de que existe um sistema de filmagem e gravação de som para fazerem chantagem. Lá resisti".
No fim puxou de um “tupperware" No dia anterior, logo à chegada, Mário Soares tinha sido recebido por uma senhora que insistiu que tinham de ir jantar. O opositor do Estado Novo ainda resistiu, "Não vale a pena, já jantei no avião", mas a interlocutora atalhou: "É obrigatório". "Ela escolheu a ementa para mim e para ela. Só bebi um copo de zurrapa que parecia vinho mas ela comeu brutalmente, e no fim puxou de um tupperware e guardou o resto da comida (…) Compreendi que tinha diante de mim uma pessoa esfomeada; o que ela queria, realmente, era comer", recordou. Num passeio nocturno pela capital soviética, o fundador do PS entrou no hall de uma estação de comboios cheio de miseráveis, bêbedos e velhos a arrasar-se pelo chão. Foi à casa de banho e deparou-se com tudo aberto, "faziam tudo à vista de toda a gente". "Fugi, horrorizado".
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CAPITULO VI APOIANTE DA CANDIDATURA DO GENERAL SEM MEDO A VAIAR MARCELO CAETANO EM LONDRES REUNIÃO EM PARIS COM CUNHAL
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Furacão. Após a campanha que assustou o regime, a fraude eleitoral e o exílio na embaixada, Mário Soares foi vê-lo ao hospital de Praga e Jorge Semprún queria que Costa-Gravas rodasse um filme.
O "general Coca-Cola", como começaram por minimizar os comunistas, acabou por eletrizar o País em 1958 depois da célebre frase sobre o que faria a Salazar se fosse eleito Presidente: "Obviamente, demito-o!" Mário Soares, a quem Humberto Delgado chamava então "o homem dos barbas" - "referia-se a Jaime Cortesão e a Azevedo Gomes, de cujo prestígio tinha um certo ciúme" (Um Político Assume-se) -, integrou a comissão da candidatura do "General sem Medo" e, na "primeira vez que [votou]", verificou a "fraude eleitoral escandalosamente praticada pelo regime" (ibidem), pois, oficialmente, 75 % do País votou no candidato fascista. "O general corre agora o risco de ser preso, por ter cometido o "crime" de se opor vigorosamente ao regime de Salazar", escrevia o New York Times, enquanto o L"Express escolhia para título "A última fraude". No entanto, como Mário Soares admitiria, "foi durante os meses que precederam a entrada de Humberto Delgado na embaixada do Brasil [para pedir asilo político] que mais com ele [conviveu]" 48
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(Portugal Amordaçado), acrescentando que "reuníamos quase todos os dias no escritório do nosso amigo Acácio Gouveia" (Um Político Assume-se). Nessa fase, o ex-candidato pretendia criar um movimento político e Soares cedeu o seu escritório para lá se fazerem reuniões, mas recusou-se "a participar, ou sequer a assistir, como mero observador, por [lhe] parecer que o Movimento [Nacional Independente] não tinha grande viabilidade política" (Portugal Amordaçado). Mas estaria ao lado do já então considerado internacionalmente como líder da oposição portuguesa, por exemplo, na tradicional romagem ao cemitério do Alto de São João, em Lisboa, a 5 de outubro, para comemorar a implantação da República. E, no seu livro Memórias, Humberto Delgado descreve o que aconteceu, após já terem visitado as sepulturas de Miguel Bombarda e do almirante Cândido dos Reis. "Quando já estávamos para depor uma coroa de flores no monumento do falecido presidente da República, Dr. António José de Almeida, a polícia portou-se de forma indescritivelmente bárbara, atacando-nos com granadas de gás lacrimogéneo, muito embora entre os presentes se encontrassem dois candidatos à Presidência da República, o Dr. Arlindo Vicente [apoiado pelos comunistas, desistira a favor de Delgado] e eu próprio, e diversos outros membros da Oposição, já idosos, tais como o Dr. António Sérgio, o Dr. Jaime Cortesão e o Dr. Azevedo Gomes." Demitido e ameaçado, sem direito sequer a passaporte para ir ao funeral do Papa Pio XII, há uma manhã em que o general reflete em sua casa, na Rua Filipe Folque. "Um amigo acaba de o avisar que vai ser preso nessa mesma tarde" (Humberto Delgado Assassinato de um Herói, de Mariano Robles Romero-Robledo e José António Novais). E, "subitamente", "sem nos prevenir" (Um Político Assume-se), às 15 e 30 desse dia 12 de janeiro de 1959, entra na chancelaria do Brasil (a embaixada ficava na mesma rua da polícia política) e pede asilo político. O embaixador Álvaro Lins, então com 47 anos, não está, mas é informado e chega uma hora depois. Nessa mesma tarde, após a audiência que teve com o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Marcelo Matias, resolve conceder asilo a Humberto Delgado, antes mesmo de a decisão ser homologada pelo Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores, como uma posição do Governo brasileiro. Seguem-se 98 dias de um braço de ferro entre as autoridades de Lisboa e o representante de um executivo que se está a mudar do 49
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Rio de Janeiro para Brasília, e que o diplomata regista minuciosamente no livro Missão em Portugal. "Naturalmente, nessa linha do seu estilo, o que o velho ditador pretendia era que a Embaixada do Brasil fizesse, com o chefe da oposição portuguesa, a mesma oferenda à PIDE que ele fizera ao seu colega Franco, com os exilados espanhóis entrados em território português", durante a Guerra Civil de Espanha (19361939), "e que eram fuzilados todos, às centenas, como bichos, ali mesmo, a dois passos da fronteira, no anfiteatro das touradas em Badajoz" (Missão em Portugal). Apesar de não ser diplomata de carreira, antes um "escritor e ilustre académico" (Um Político Assume-Se) , defendeu a soberania do seu país como poucos embaixadores. Como lembrará na carta de devolução da Grã-Cruz da Ordem de Cristo ao Governo Português ("Nada fiz, em matéria de serviços à ditadura portuguesa para merecer essa condecoração"), o regime "salazarista pretendeu tratar a Embaixada do Brasil em Portugal como se fôra a delegação em Lisboa de alguma das suas províncias ultramarinas [como, então, se designavam as colónias]" (idem). Finalmente, a 20 de abril, Humberto Delgado parte para o Brasil e, em vez do que designava depreciativamente como a "guerra de papéis" (manifestos e petições) da oposição interna, vai fundar as Juntas Patrióticas de Libertação Nacional (1959) e, a partir de Argel, em novembro de 1961, quando já criara a Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), o general fará um apelo para a revolta nacional. E vai estar ligado a vários movimentos insurrecionais, da tomada do paquete Santa Maria, numa operação de Henrique Galvão, ao desvio do avião da TAP, numa ação do grupo de Palma Inácio. E até entra clandestinamente em Portugal, disfarçado com óculos e bigode, para assumir o golpe de Beja, que fracassa antes de o general chegar ao quartel que devia ser tomado pelos oposicionistas. Nessa altura, antes de abandonar o país, deixa-se fotografar, lendo o Diário de Notícias desse dia, em plena Avenida da Liberdade. "A PIDE sofreu com esta fotografia, divulgada clandestinamente, uma funda humilhação"(Um Político Assume-se). Após as querelas no exílio ( incompatibilizara-se, entretanto, com vastos setores oposicionistas no Brasil e na Argélia), quando foi operado de urgência na Checoslováquia, "a pedido dos comunistas, que [lhe] arranjaram um passaporte falso para viajar, via Zurique, 50
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até Praga" (onde Delgado conhecera Cunhal, em 1963), Mário Soares foi ver como o oposicionista "estava a ser bem tratado" (Um Político Assume-se), pois o PCP temia que, caso morresse naquela altura, Salazar os acusasse de terem eliminado um adversário. Ao ver o advogado português no hospital, e percebendo os riscos que ele corria ao visitá-lo num país da Cortina de Ferro, além de lhe pedir para informar a mulher que lhe enviasse a farda de general, garantiu a Soares que iria derrubar, de forma revolucionária, Salazar. "Chamou mesmo uma enfermeira e reclamou: "Traga-me uma garrafa de champanhe da Crimeia, para celebrar com este meu amigo o compromisso que acabo de assumir com ele" (idem). Ainda o veria, uma vez mais, quando foi jantar, com Maria Lamas, a casa de Emídio Guerreiro, em Paris - "estava muito magro, mas não menos impaciente" para entrar em ação (Portugal Amordaçado). "Nessa noite, (...) estava de novo eufórico. Anunciou-nos a conspiração que estava de novo em marcha e em que, finalmente, o regime seria derrubado" (Um Político Assume-se) . Logo os amigos, que não tinham conhecimento de nenhum rumor do género, pensaram que era "uma fantasia" do general ou "uma armadilha da PIDE" (idem). A reflexão de Mário Soares era certeira. A 13 de fevereiro, perto de Villanueva del Fresno (Badajoz), os hipotéticos cúmplices da conspiração eram os quatro elementos da brigada da polícia política (Rosa Casaco, Agostinho Tienza, Casimiro Monteiro e Lopes Ramos), que ali mesmo assassinaram e enterraram o general e a sua secretária brasileira Arajaryr Moreira Campos. Jorge Semprún, "grande escritor e então militante comunista" (A Esperança É Necessária), mais tarde ministro da Cultura de Felipe González, "quis fazer um filme a partir do que eu escrevera no Portugal Bailloné [Portugal Amordaçado] sobre Humberto Delgado", mas o cineasta Costa-Gravas, que rodava filmes de denúncia política e para quem tinha escrito os argumentos de Z e de A Confissão, já se tinha comprometido com outro projeto (Ditadura e Revolução). Ainda na ressaca do Maio de 68, quando Mário Soares tentou iniciar uma carreira em Vincennes, os estudantes esquerdistas nem sequer o deixavam falar, pois, como contou a Dominique Pouchin (Memória Viva), a PIDE difundira panfletos afirmando que ele era "um social-democrata nojento, um traidor e um amigo de [Marcelo] Caetano" - e os alunos, até serem confrontados com as suas passagens pelas celas salazaristas, rotulavam-no como "porco 51
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fascista" (idem). Depois, lecionou também na Sorbonne e em Rennes, advogou, escreveu em revistas e fundou, com outros exilados, uma livraria em Paris - até seria iniciado na Grande Loja de França, acabando por esquecer a Maçonaria ao regressar a Portugal.
Em Londres, a denunciar o massacre de Wiriamu, com Lord Caradon e padre Adrian Hastings (centro)
Mas aproveitou sobretudo o tempo em que morava num modesto apartamento do Boulevard Garibaldi - "já vi uma vez uma fotografia de um prédio imponente, que não sei se era o Palácio de Versalhes, que me mostraram e me disseram: "olhe, dizem que você vive aqui"" (O Futuro Será o Socialismo Democrático) - para estabelecer uma rede de cumplicidades com universitários e jornalistas, os grandes da Internacional Socialista, "elementos-chave dos aparelhos partidários" e "altos funcionários governamentais", exilados políticos sul-americanos e nacionalistas africanos, os escritores Jorge Amado e García Márquez, Carlos Fuentes e Vargas Llosa - e, obviamente, para promover campanhas internacionais contra a ditadura e a guerra colonial . O momento mais importante foi, sem dúvida, o aproveitamento da visita de Marcelo a Londres, de 16 a 18 de julho de 1973, para as comemorações do 6.º centenário do Tratado de Tagilde (primeiro fundamento jurídico do futuro tratado de aliança Luso-Britânica, que ainda hoje perdura). Dias antes, a 10 de julho, o Times denunciava 52
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o massacre de Wiriyamu, em Moçambique, pelas Forças Armadas portuguesas e relatado pelo padre católico Adrian Hastings. O futuro dissidente socialista Rui Mateus, já após a rutura com Soares na década de 80, registou a sua versão em Contos Proibidos: "Os dirigentes trabalhistas boicotariam todas as cerimónias, tendo Harold Wilson recebido uma delegação do PS, chefiada por Mário Soares, o que provocaria grande histeria no seio do governo português. Este participaria ainda numa importante sessão solene organizada pelo padre Adrian Hastings em Chattham House, com a presença da fina flor da esquerda britânica. Pela primeira vez, aparecia o nome de Mário Soares na imprensa britânica e em toda a imprensa mundial, enquanto Marcello Caetano era apresentado, com desdém e sem subterfúgios, como um ditador." No Brasil, onde morreria em 1980, o ditador contava a Joaquim Veríssimo Serrão: "O fiasco foi das manifestações de uma escória de trabalhistas e homossexuais, reunida por Mário Soares e comandada por um conhecido agitador paquistanês que a polícia prendeu em flagrante, como toda a imprensa londrina noticiou, revelando que a hostilidade não era portuguesa." (Confidências do Exílio). Veríssimo Serrão questionaria Marcelo sobre a tese do socialista, nas primeiras filas da manifestação em Londres, ter então calcado a bandeira portuguesa. "Foi-me dito que se passou, mas não vi." (ibidem). Soares consideraria a acusação uma "imbecilidade". "Um patriota e um republicano, como eu sou e sempre fui, nunca iria pisar a bandeira da República, que nunca foi a bandeira do salazarismo" (Revolução e Ditadura). Nos anos em França, assistiu ao congresso do PSF em que Miterrand assumiu a liderança e impôs o símbolo da rosa e acompanhou os debates ideológicos que então se travavam entre socialistas europeus, encontrou-se com o italiano Pietro Neni ou o sueco Olof Palme, conviveu com os exilados grego Papandreou ou o espanhol Tierno Galván, até esteve no Chile com Allende. E Cunhal? "Encontrei-o duas ou três vezes em Paris, mas sempre nos recantos mais estranhos e depois de ter tomado as medidas conspirativas mais extraordinárias, como se estivéssemos em Lisboa, fugidos à PIDE." (A Esperança É Necessária).
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CAPITULO VII
MEDIANO ADVOGADO E PROFESSOR EM PARIS
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Poderia ter sido advogado, professor, jornalista mas foi "empurrado" para a política
Se o leitor for ao Dicionário de História de Portugal, do Joel Serrão, veja as entradas "Constituições" e vai ver que a maior parte delas estão assinadas MS [Mário Soares]"(O Que Falta Dizer). "Poderia ter sido advogado, professor, jornalista [chegou a escrever com o pseudónimo Carlos Fontes e, do exílio parisiense, também assinaria como Clain d"Estaing textos para o República, dirigido pelo seu camarada Raul Rego], talvez escritor", lembrava no discurso do jantar dos 80 anos, em que proferiria o célebre "basta!" relativo às pressões para se candidatar às presidenciais de 2005. "As circunstâncias empurraram-me para a política - antes e depois do 25 de Abril -, onde, aliás, ultrapassei, dadas as funções que exerci, tudo o que algum dia poderia ter ambicionado ou sequer imaginado", admitia no mesmo discurso. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1951, mas percebeu que um emprego público como professor estava-lhe vedado pelo regime (ainda lecionou no ensino particular Filosofia e de Organização Política e chegou a dirigir o Colégio Moderno, fundado pelo pai). Voltaria também a ser docente quando se exilou em França - chargé de cours nas 55
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universidades de Vincennes (Paris VIII) e da Sorbonne (Paris IV) e professor associado na Faculdade de Letras da Universidade da Alta Bretanha (Rennes) - e, após abandonar Belém, num seminário de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra. Depois, "aluno mediano, mas cumpridor" ( "já então usava o discurso fácil, só que o rigor do Direito exige estudo atento e adequada disciplina mental"), como recordaria Marcello Caetano (Confidências do Exílio), licenciou-se em Direito em 1957, com a mesma média que a obtida em Letras - 13 valores - e foi estagiar no escritório de Gustavo Soromenho. Defendeu presos políticos nos pseudo-julgamentos do Tribunal Plenário, como Octávio Pato e Palma Inácio, implicados no caso de Beja, membros da FAP (cisão maoísta do PCP) e do MPLA. Admitiu ter ganho "uns dinheiros" num ou noutro caso que lhe chegaram ao segundo andar da Rua do Ouro, onde tinha o escritório, com que faria a casa em Nafarros projetada pelo amigo Keil do Amaral e efetuaria a viagem pelo mundo em 1970, mas, por norma, não costumava receber muito, porque, resumia, era "um advogado de casos medianos, de divórcios, sucessões, pequenas coisas" (O Que Falta Dizer).
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CAPITULO VIII
ÁLVARO SALEMA AGOSTINHO DA SILVA E ÁLVARO CUNHAL
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Aprendeu marxismo com Salema, civismo com Agostinho, militância com Cunhal
"No fim do liceu havia de encontrar três homens que [o] marcaram profundamente, dando um sentido mais esquerdista e uma maior consistência ideológica à [sua] posição sentimental de antifascista" (Portugal Amordaçado): Álvaro Salema, Agostinho da Silva e Álvaro Cunhal. E, no entanto, "entre eles havia, claramente, antagonismos marcados nas conceções, nos estilos e na forma de abordar os problemas nacionais" (Ditadura e Revolução). Por exemplo, Álvaro Cunhal e Agostinho da Silva, "como tipos humanos, situam-se nos antípodas um do outro" (Portugal Amordaçado). Álvaro Salema, "compagnon de route do PCP", seu professor de Filosofia que lhe deu lições particulares, "marxista heterodoxo, nesse tempo muito preocupado com Nietzsche e Freud, imbuído do criticismo sergiano [isto é, de António Sérgio] (de quem, aliás, se considerava discípulo), envolto aos nossos olhos numa aura romântica que lhe dava o longo cativeiro sofrido nos Açores" (ibidem). Dez anos mais velho, "havia nele um idealismo filosófico que casava mal com o marxismo" e "disse-me muitas vezes que Marx não era tudo". Seriam "amigos próximos (...) pela vida fora, 58
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até ele morrer. (...) Porém, foi sempre incapaz de cortar com o Partido Comunista, mesmo após o 25 de Abril. Tivemos diversas discussões a esse propósito; nunca se quis inscrever no Partido Socialista" (Ditadura e Revolução). Agostinho da Silva, seu professor de Literatura, um "místico laico, apóstolo nessa época da heroicidade cívica" (Portugal Amordaçado). Com dezoito anos de diferença, "tinha uma vida cultural mais lata, uma formação humanística muito sólida, era o homem do Grego e do Latim... Muito sedutor, comunicativo, aberto, curioso, era alguém totalmente desinteressado das coisas materiais, (...) não era um alinhado, foi sempre ferozmente independente". No fundo, "ensinou-me o civismo, despertou-me para a cultura, orientou-me o espírito crítico, sempre com grande sentido de liberdade, avesso a todo o tipo de dogmatismo" (Ditadura e Revolução). E Álvaro Cunhal, prefeito e regente de estudos no Colégio Moderno, que lhe deu lições de Geografia antes de entrar na clandestinidade, uma "personalidade ímpar", com "olhar penetrante de iluminado, indomável força interior ao serviço de uma mística" (Portugal Amordaçado). "Suscitou também o [seu] interesse pela literatura e pelo movimento cultural do neorrealismo, que na época começava a ser pujante, afirmando-se nas letras, nas artes e na cultura" - e Soares tornou-se amigo dos escritores e artistas da sua geração. Cunhal convidava-o a ver exposições ou a assistir a uma conferência sobre literatura. "Achava-o um homem coerente e fascinante, um idealista, um puro que sonhava com a revolução e, ao mesmo tempo, um esteta: andava sempre bem vestido, trajava com gosto, embora modestamente. (...) Era, para mim, o revolucionário típico, um homem que estivera na União Soviética [por essa época, ainda se desconheciam os crimes de Estaline], que, quando fora preso, não falara na polícia e que se sabia que era importante no Partido Comunista". E, quando se foi embora, escreveu-lhe "uma carta de incitamento a uma vida política orientada em determinado sentido" (Ditadura e Revolução). "Muito mais tarde, Soares atribuirá a Agostinho da Silva e Salema uma influência sobre si "muito mais duradoura e profunda" [Ditadura e Revolução]", escreve Joaquim Vieira (Uma Vida). "No entanto, a análise do seu imediato percurso político à época dá a entender que Cunhal o terá então influenciado mais que os outros dois (o que 59
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porém, mais tarde, poderá ter-lhe sido desconfortável reconhecer) " (ibidem).
Inspirado por António Sérgio e Bento de Jesus Caraça
Apesar de estar ao lado de Bento de Jesus Caraça na polémica com António Sérgio (quando era jovem comunista), o tempo fez que a figura do seareiro se agigantasse Discípulo assumido dos seareiros (os vultos que se reuniam em torno da revista Seara Nova), onde pontificavam três figuras tutelares - António Sérgio, Jaime Cortesão e Mário de Azevedo Gomes -, Mário Soares sublinhava, no Portugal Amordaçado, que "o grande mestre da [sua] geração foi, incontestavelmente, António Sérgio". Apesar disso - como reconheceria na entrevista de sete horas, concedida, em 1979, a um grupo de jornalistas (Augusto de Carvalho, Cáceres Monteiro, José Miguel Júdice, Nuno Rocha e Pedro Cid), com a finalidade de ser publicada em livro, que teria o título O Futuro Será o Socialismo Democrático -, na polémica que Sérgio manteve, em 1946, com Bento de Jesus Caraça - "um homem extraordinário, um cientista de um grande humanismo e 60
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cultura", que "surgiu como a grande referência democrática da geração do pós-guerra", como o definiu em Ditadura e Revolução ,ele esteve do lado do matemático, então próximo do PCP. Na época do MUNAF, professor de Económicas, diretor da coleção de livros de divulgação da Biblioteca Cosmos e ligado à Universidade Popular, Bento de Jesus Caraça "tinha um enorme ascendente na juventude do meu tempo, era um dos nossos mentores, um homem com uma cabeça linda, um estilo próprio, que tentávamos copiar" (Ditadura e Revolução). "Hoje, refletindo, compreendo melhor a argumentação de António Sérgio" (idem). Aliás, já no Portugal Amordaçado, admitia que, "com o recuo que dá o tempo, a figura de Sérgio agiganta-se: compreendemos agora melhor a decisiva influência que exerceu em tantos de nós, mesmo quando dele divergimos; reconhecemo-nos no timbre inconfundível da sua voz; na sua coragem cívica exemplarmente firme; na força contestativa do seu tenaz apostolado democrático durante a longa noite salazarista! E quando enviou, em livro, a sua tese de licenciatura, As Ideias Político-Sociais de Teófilo Braga, a António Sérgio, "inimigo intelectual" do político da I República, recebeu uma carta de sete páginas datilografadas do autor de Ensaios e de Alocução aos Socialistas: ""Como é que Você conseguiu dar ordem e uma certa coerência a um pensamento tão caótico como é o do Teófilo Braga?" A meu ver, António Sérgio não tinha razão, pois o pensamento de Teófilo Braga não era, na realidade, tão caótico como ele o pintava" (O Futuro Será o Socialismo Democrático). Houve uma fase em que, já "desiludido com o comunismo, mas também ultradesconfiado do macarthismo, predominante na América do Norte", três vultos estrangeiros o inspirariam, como escreveu em Um Político Asssume-se: "Pierre Mendès France, grande figura política e moral, efémero primeiro-ministro de França; Pietro Nenni, italiano e chefe do Partido Socialista; e o inglês Aneurin Bevan [o único que não viria a conhecer pessoalmente], ministro trabalhista da Saúde do Governo de Attlee, criador do Serviço Nacional de Saúde, obrigatório e gratuito." Mais tarde, à conversa com Maria João Avillez (O Presidente), diria que Hannah Arendet, Arthur Koestler, Raymond Aron, Norberto Bobbio e Karl Popper seriam também "referências decisivas na [sua] evolução" ideológica, pois mostraram-lhe "os mecanismos 61
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odiosos dos regimes totalitários e ensinaram-[lhe] o primado da liberdade". Estaria já a preparar a resposta à pergunta que lhe faria, em 2005, a revista brasileira Veja: como gostará de ser lembrado no futuro? "Como homem livre e consciente dos seus deveres para com os outros. As funções, em democracia, são sempre transitórias. O que conta é o homem e o modo como exerceu os cargos por onde, efemeramente, passou" (A Crise? E Agora?).
Primeiras formações socialistas:Ramos da Costa, Manuel Tito de Morais e Mário Soares fundam a ASP em Genebra
A esquerda europeia ainda era seduzida pelos 'amanhãs que cantam' do comunismo soviético, mas o secretário-geral da Ação Socialista apostava já num modelo a que chamaria socialismo em liberdade Apesar de Khrushchev ainda não ter denunciado aquilo que o dissidente português então já pensava sobre o estalinismo, sendo expulso do PCP sob a acusação de titismo (o cisma jugoslavo é de 62
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1948), Mário Soares referirá sempre os anos cinquenta como a sua "longa travessia do deserto". "Não é de estranhar", escreverá Fernando Rosas, que "cedo se tenha incompatibilizado com o que [ele e vários dos seus companheiros] entenderam ser os aspetos autoritários, despóticos e antidemocráticos do estalinismo e do próprio leninismo", advogando, antes, "um marxismo devolvido à sua "pureza", isto é, como então entendiam, "expurgado" das suas componentes autoritárias, burocráticas e repressivas" (O Presidente de Todos os Portugueses). Enquanto muitos amigos da juventude, sobretudo após a notícia do Avante! ("A luta contra os oportunistas [um deles, era Soares] é a base do fortalecimento da luta pela democracia e pela paz"), lhe fizeram "um bloqueio afetivo, tentando [isolá-lo]", o que foi "um golpe duro" (Um Político Assume-se), outros antigos camaradas também andavam por essa época a ler, em francês, O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler, Eu Escolhi a Liberdade, do dissidente soviético Victor Kravtchenko, De Volta da URSS, de André Gide, a nova revista France Observateur, ainda títulos do ex-comunista jugoslavo Milovan Djilas ou do marxista heterodoxo francês Henri Lefèbvre, os três volumes da biografia de Trotski, A Engrenagem, de Jean-Paul Sartre, ou Autocrítica, de Edgar Morin. E se Mário Soares, como admitiu posteriormente, "não tinha, politicamente, para onde ir" (Ditadura e Revolução), os outros estavam com o mesmo dilema. Após esse período de profunda reflexão individual - pois se esses anos "foram bastante calmos no plano da intervenção política, [seriam] fecundos do ponto de vista da reflexão e da aprendizagem teórica" (Uma Vida) - , poderia repetir, no resto da sua vida, o que respondeu à bancada parlamentar do PCP, em 1983, durante a apresentação do programa do Governo do Bloco Central: "Estou no lugar onde sempre estive, mesmo quando julgava que era comunista" - o socialismo. Foi então que "[compreendeu] - e não [se enganou] que para derrubar o salazarismo, num mundo dividido em dois blocos rivais, era necessário que a Oposição Democrática, desde o final da [II] Guerra [Mundial]fortemente influenciada pelo PCP, se libertasse dessa tutela incómoda. Daí a "longa marcha" que [empreendeu] até à refundação do Partido Socialista, membro de pleno direito da Internacional Socialista. Foi um caminho que passou pelo neutralismo, que [o] aproximou do terceiro-mundismo (Nehru, Tito, Nasser, Sukarno) e dos movimentos anticolonialistas, que desembocou numa total autonomia estratégica em relação ao 63
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PCP" (A Crise? E Agora?). No fundo, já revelava a qualidade com que a poetisa Natália Correia o definiu, na época da Presidência: "imbatível de intuição", revelaria Fernando Dacosta em O Botequim da Liberdade. Um conjunto de pessoas, onde se juntavam os expulsos do PCP e elementos da já extinta União Socialista, de António Macedo e José Magalhães Godinho a Salgado Zenha e Catanho de Menezes, em 1953 formam um grupo de reflexão, pressão e ação política chamado Resistência Republicana e Socialista , acabando depois por aderir, em 1956, ao Diretório Democrático--Social (dirigido por António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes). Mas, no fundo, só voltará a ter atividade relevante na campanha de Humberto Delgado (outra página). Finalmente, em 1961, seria redator e signatário do "Programa para a Democratização da República", que, nas palavras de Raul Rego, "levou à cadeia meia centena de signatários e à polícia todos eles" (Diário Político [1968]). O ano crucial é 1964, quando Mário Soares (o único que continuava no país), Tito de Morais (então exilado em Argel, mas que se mudaria depois para Roma) e Ramos da Costa (já forçado a viver em Paris) decidem, em Genebra, fundar a Ação Socialista Portuguesa (ASP), organização parapartidária que será o embrião do PS. Já antes, lembrará Tito de Morais, em O "Portugal Socialista" na Clandestinidade, "em 1962, Mário Soares, Piteira Santos e eu reunimo-nos num café em Paris para darmos os últimos retoques à Declaração de Princípios desse movimento socialista que deveria de servir de base ideológica ao grande movimento socialista que todos tínhamos em mente construir. Piteira Santos afastou-se de nós, mas a ideia continuou fazendo a sua estrada". Dois anos depois, em abril, no Hotel Moderne da cidade helvética, assinaram a primeira Declaração de Princípios da ASP e elegeram como secretário-geral Mário Soares - que ali estava "em representação do numeroso grupo de socialistas que, em Portugal, acedera a participar numa organização clandestina de luta contra o fascismo e pela construção de uma sociedade socialista" (ibidem). Decidiram ainda ter um jornal, impresso no estrangeiro, embora destinado ao interior, mas, como lembrava Tito de Morais, "só três anos depois foi possível tornar o Portugal Socialista uma realidade" (idem). 64
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"Combinando a herança nacional da oposição demoliberal com os postulados ideológicos do socialismo", regista o historiador Hipólito de la Torre Gómez, Soares "fundou a Ação Socialista Portuguesa (ASP), iniciativa afortunada que viria a entrar em sintonia com as aspirações das novas classes médias e profissionais, não comunistas, mas abertamente orientadas para fórmulas de progressismo democrático" (O Estado Novo de Salazar). No entender de Juliet Antunes Sablosky, ainda "não era um partido político enquanto tal, mas antes um conjunto de personalidades com opiniões convergentes sobre alguns aspetos da teoria socialista", cuja Declaração de Princípios, difundida em 1970, "radicava diretamente em [José] Fontana, [Antero de] Quental e [António] Sérgio, constituindo uma amálgama de socialismo utópico português e republicanismo" (O PS e a Transição para a Democracia). Simultaneamente, há outras facetas que o vão tornando uma figura singular. "Como nenhum opositor da época", escreveu José Freire Antunes, "Soares compreendeu o poder da Imprensa ocidental na criação - inevitavelmente aleatória - de factos políticos sobre um país periférico e sem liberdades formais" (Nixon e Caetano), tornando-se rapidamente amigo de, entre outros, a jornalista Marvine Howe, que veio, em 1963, para a delegação do New York Times em Lisboa. E também das embaixadas dos países livres, a ponto de, lembrou Teresa de Sousa, a PIDE chegar "a filmar almoços que Soares oferece a representantes diplomáticos na sua casa em Nafarros" (Os Grandes Líderes). Nas eleições de 1965, como regista Franco Nogueira na biografia de Salazar, o líder da ASP, um dos "nomes já veteranos" contra o regime, é candidato a deputado pela Oposição Democrática. Mas será na sua faceta de socialista que irá ganhar uma dimensão internacional. Nesse mesmo ano, escreve uma carta a solicitar a admissão da ASP na Internacional Socialista, que só se concretizará em 1972, no XII Congresso da IS, em Viena. Entretanto, os dirigentes da ASP escrevem aos socialistas franceses, aos sociais-democratas alemães e suecos, aos trabalhistas ingleses para estabelecer relações, participar nas conferências dos líderes dos partidos socialistas europeus, pedir apoios - e foi no congresso da IS em Eastbourne, corria o ano de 1969, no qual discursou, que Mário Soares conheceu o seu futuro grande amigo, o alemão Willy Brandt. 65
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PS como fundamental "Stradivarius" político… A posição do líder no congresso da ASP, sustentando que era necessário um partido político para exercer uma oposição mais eficaz, triunfou sobre a tese dos que temiam o aumento da repressão policial. E, a 19 de abril de 1973, era fundado, na Alemanha, o Partido Socialista
No momento decisivo, no meio daquele grupo de socialistas exilados em França e na Alemanha, na Inglaterra e em Itália, na Bélgica, na Suíça e na Suécia, a que se juntavam os de Portugal, que tinham viajado até à estância termal alemã de Bad Münstereifel iludindo a polícia política portuguesa (fazendo escala em Zurique ou Milão, Paris ou Colónia, Bruxelas ou Londres, rumo a Bona), Mário Soares via a mulher votar contra a sua proposta de transformar a ASP em partido político. O argumento usado por Maria Barroso era que tinha sido esse o sentido de voto dos socialistas que ela estava a representar, pois cada delegado do interior, após reuniões em casas particulares, escritórios de advocacia ou cooperativas culturais, tinha sido mandatado por uma convenção do núcleo que representava - e os de Lisboa estavam contra, com destaque para o secretário-geral adjunto da ASP, Salgado Zenha, que não viajaria para não despertar suspeitas à polícia política - embora, como todos levantaram os bilhetes no mesmo balcão da Lufthansa, a irónica 66
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funcionária perguntava a Gustavo Soromenho: "O senhor é daquele grupo que vai a Bona [então, com Berlim na Alemanha Comunista, a capital da República Federal da Alemanha) por sítios diferentes?" Pouco importaria o voto de Maria Barroso e de outros seis, pois dos 27 presentes naquela sala envidraçada da Academia KurtSchumacher, da Fundação Friedrich Ebert, situada a 40 quilómetros de Bona e ligada ao SPD alemão, numa votação nominal, uma vintena de delegados pronunciava-se a favor da passagem da ASP a Partido Socialista e, finda a contagem, todos se levantaram a aplaudir a deliberação. Elke Sabiel, funcionária da Fundação e única não portuguesa presente no congresso, evocando este momento, vinte anos de pois (Diário de Notícias, de16 abril de 1993), sublinharia que Willy Brandt e Mário Soares eram muito parecidos. "Confiam muito nas pessoas. Até nisso se assemelham..." Em suma: a 19 de abril de 1973, "com o apoio eficaz da poderosa social-democracia alemã", como salienta o historiador espanhol Hipólito de la Torre Gómez (O Estado Novo de Salazar), o congresso decidia mesmo que era chegada a hora de haver um instrumento - "como eu lhe chamava, um Stradivarius", diria Soares (Um Político Assume-Se) - para o momento em que o regime caísse. Mário Soares percebeu bem a diferença de estar na Internacional Socialista sem ser com o mero estatuto de observador. Afinal, já tinha frequentado reuniões do PS Francês e desenvolvido contactos que seriam fundamentais para a ASP/PS, elencados por Juliet Antunes Sablosky: alguns partidos, como o SPD alemão, "ofereceram fundos destinados a custear o material de propaganda e as deslocações dos membros da ASP a outros países onde se realizavam reuniões internacionais"; outros, como os socialistas franceses e os trabalhistas ingleses, "permitiam a utilização das suas instalações para a realização de reuniões"; os socialistas italianos "facilitaram a utilização de meios de impressão e ofereceram assistência técnica ao jornal da ASP [e, depois, do PS] Portugal Socialista" (O PS e a Transição para a Democracia). Mas essa não era uma tese unânime, pois Soares - ali eleito secretário-geral e sucessivamente reeleito no cargo -, não só tinha contra Salgado Zenha, que "nunca sentiu o Partido como instrumento necessário de trabalho" (Ditadura e Revolução), como seria contraditado por Mário Mesquita, "que tomou à letra as instruções que trazia de Lisboa" (idem), argumentando até que um 67
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partido português não devia nascer em terra estrangeira. No fundo, como explica Susana Martins, "a proposta que [os membros do núcleo de Lisboa supunham] estar [ainda] numa fase embrionária élhes [ali] anunciada como um facto praticamente consumado" (O Partido Socialista e a Revolução, org. Vitalino Canas). Naqueles quatro dias de trabalhos, em que Fernando Valle e António Arnaut presidiam à mesa, dividem-se as opiniões. Soares tinha resumido os argumentos dos que se opunham: "A ideia de que a transformação de um partido pode atrair, da parte do Governo, um acréscimo de repressão; o receio de que as nossas estruturas orgânicas não sejam suficientemente fortes para justificar - mesmo aos olhos do público interessado - uma tal transformação; o problema da eventual inoportunidade política da medida, no período pré-eleitoral que atravessamos." Arons de Carvalho dirá, em entrevista ao JN, em 2001, que alguns tinham "medo que a repressão aumentasse assim que regressassem a Portugal", arriscando penas entre dois e oito anos. O próprio Soares admitiria que, "como membros de um partido, necessariamente clandestino, o risco era mil vezes maior" (Ditadura e Revolução). Pouco importava. O "italiano" Tito de Morais até já tinha sugestão para o símbolo do PS, com a clássica mão fechada, mas que no primeiro projeto, oferecido pelo designer romano e militante do PS Italiano, Enzo Brunori, agarrava um punhal partido. Depois, os que regressaram a Paris ou a Roma levaram a foto do grupo dos 27 (como fundadores, em lista posterior, elaborada em 1977 por Tito de Morais e Catanho de Menezes, serão registados 115 nomes), mas ninguém a trouxe para um Portugal de devassa policial. "Nunca iríamos convencer a PIDE de que eram fotografias de férias", diria Arons de Carvalho (idem). Aliás, até as assinaturas, por questões de prudência, irão ser omitidas e, na edição do Portugal Socialista de agosto, a ata, redigida por António Arnaut, que dá a notícia da fundação do PS ocupa a primeira página inteira, mas tem preciosidades como a data ("tantos do tal") e a localização ("algures, na República Federal da Alemanha"). Soares escreve logo um relatório para os seus amigos suecos, alemães e ingleses, enquanto os seus camaradas do interior fundam cooperativas em Lisboa, Porto e Coimbra para criarem uma espécie de biombo legal. E em agosto, numa reunião de três dias, em Paris, nas instalações da Fundação Leo Lagrange, seria 68
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aprovada a Declaração de Princípios e o Programa, que Tito de Morais se encarregará de imprimir em Itália. Haverá ainda duas reuniões entre PS e PCP em Paris, em 1973 e em 1974, com declarações conjuntas - numa estratégia de aproximação para se constituir uma frente antifascista, da qual discordavam vultos como Zenha, entendendo que era um retrocesso em relação à estratégia de autonomia da CEUD. Faltava pouco para o plano de Otelo e os blindados de Salgueiro Maia virarem uma página importante na História de Portugal.
A Europa Connosco…
Porto recebe a "nata" da Internacional Socialista
A iniciativa A Europa Connosco reuniu representantes de 55 partidos no palco e consagrou, em Portugal, Soares como um dos grandes da IS Um impressionante friso surge no comício do PS no Porto, em março de 1976, sob o lema A Europa Connosco: o alemão Willy 69
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Brandt, o sueco Olof Palme, o francês François Mitterrand, o austríaco Bruno Kreisky, o espanhol Felipe González, o belga Willy Claes (viria a ser vice-primeiro-ministro e secretário-geral da NATO), o italiano Francesco de Martino (seria substituído na liderança do PSI, em agosto, por Bettino Craxi), o holandês Joop den Uyl (então, primeiro-ministro), o norueguês Odvar Nordli (primeiro-ministro desde janeiro), o austríaco Hans Janitschek (líder da Internacional Socialista desde 1969 e, mais tarde, autor da biografia, "por encomenda", de Soares, Portrait of a Hero) - a "nata" socialista entre os 55 partidos estrangeiros ali representados. Mitterrand, por exemplo, logo em junho de 1974, participara em comícios do PS no Porto, Coimbra e Lisboa. E Brandt incentivara a Internacional Socialista (IS) a criar, em agosto de 1975, o crucial Comité de Amizade e Solidariedade com a Democracia e o Socialismo em Portugal - e a IS, nessa altura, não só tomou uma posição de confronto face a Moscovo (o que tinha sido sempre evitado), como disputou a influência a Washington. Mas a cimeira no Palácio de Cristal, que antecipava a campanha eleitoral para as legislativas de 25 de abril de 1976, ultrapassava tudo o antes visto. Esta reunião, registou Rui Mateus em Contos Proibidos, "consagraria Mário Soares perante o público português como um dos grandes da Internacional Socialista." No mês seguinte, "quando Willy Brandt foi eleito presidente da IS, Mário Soares e Olof Palme foram dois dos seus 14 vices" (ibidem). E na mensagem enviada para a homenagem a Mário Soares em Arcos de Valdevez, em 2010, Mikhail Gorbachev lembrava que, "como Willy Brandt, [o seu amigo Mário] tem um recorde de serviços e cargos na Internacional Socialista" (Vida e Obra).
Fim da longa guerra e descolonização… Acordos. Treze anos após Salazar ter ordenado "para Angola, rapidamente e em força", a paz chegava às três frentes de batalha. Mário Soares não pensou nas independências de Cabo Verde, São Tomé, Timor. E distinguiu o acolhimento dado a 800 mil retornados e aos pieds noirs franceses "O senhor é que não me dá lições de patriotismo a mim!", gritava Mário Soares a Spínola na véspera da reunião com os dirigentes do PAIGC, em Argel, a 15 de junho de 1974, como revelou Almeida Santos (Quase Memórias, 2.º vol.). Naquela fase, as teses sobre o 70
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futuro das colónias ainda provocava choques entre as várias fações que se digladiavam após a Revolução do 25 de Abril. O então ministro dos Negócios Estrangeiros tentava conseguir a paz e a autodeterminação com os movimentos de libertação, mas as declarações de Spínola e dos que pretendiam um processo mais lento ou o caminho do federalismo chocavam com a realidade: a extrema-esquerda tinha lançado a palavra de ordem "nem mais um soldado para as colónias" e, nos teatros de guerra, os militares portugueses já confraternizavam com aqueles que, antes, eram os "turras".
Na cronologia das negociações merecem destaque o encontro particular com o angolano Agostinho Neto (MPLA) em Bruxelas, logo a 2 de maio; a ida a Dacar, a 16 de maio (primeiro dia de Soares como ministro), no avião particular disponibilizado pelo presidente senegalês Léopold Senghor para o encontro com o cabo-verdiano Aristides Pereira (PAIGC), "onde se deu o primeiro passo no sentido da descolonização" (Um Político Assume-se); o espontâneo "abraço de Lusaka", sob os auspícios do presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, com o moçambicano Samora Machel (FRELIMO), a 6 de junho; e os encontros com os angolanos Jonas Savimbi (UNITA) e Holden Roberto (FNLA) em Kinshasa, a 26 de novembro.
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"Esperava, confesso, que no regresso de Dacar, tendo assinado o cessar-fogo [na Guiné-Bissau], a viagem fosse saudada no Governo e desenvolvida nos jornais. Mas não. O silêncio - ou quase - foi a regra. Não agradou ao PCP nem a parte do MFA, por ser eu e, consequentemente, o PS a aparecer como pioneiro da descolonização" (Um Político Assume-se). Mais tarde, Marcello Caetano comentaria a Veríssimo Serrão que, neste encontro, "a delegação portuguesa [era] chefiada por Mário Soares, velho amigo e companheiro dos terroristas"(Confidências do Exílio). Sobre Moçambique, Almeida Santos contou, no documentário de Mário Barroso Memórias do Portugal Futuro, que Soares "teve um primeiro gesto que marcou um pouco o processo, que foi o encontro com Samora Machel [não se conheciam]. Na altura, isso (...) surpreendeu toda a gente. Mas não só o encontro - foi o abraço. Dois países que ainda estavam em guerra. Uma guerra de dez anos, em que tinha morrido muita gente. Os dois dirigentes dão um abraço público, filmado, que correu mundo." Exilado no Rio de Janeiro, Marcello Caetano tinha uma leitura inversa e escrevia que este acordo foi "negociado entre abraços do sinistro Mário Soares aos assassinos de portugueses" (idem). Um processo rápido. "Depois de uma série de oradores (...) [num comício no Porto], é a vez de Mário Soares, que demonstra os seus dons de orador", escreveu Jean Daniel, a 4 de novembro de 1974. "Desafio qualquer pessoa a não sentir um arrepio ao ouvir um discurso que comece assim: "Camaradas (desde logo, o timbre impõe um silêncio que o orador aproveita plenamente), camaradas (silêncio de novo), neste momento (silêncio), pela primeira vez desde há 13 anos, não há balas disparadas por espingardas em nenhum território onde há forças portuguesas. Acabamos de receber a confirmação do cessar-fogo em Angola" (Fotobiografia). Tantos anos após a frase de Salazar "para Angola, rapidamente e em força", e de oito mil portugueses e um sem-número de africanos mortos, a paz chegava aos três teatros de guerra. "Eu tenho responsabilidades no arranque da descolonização, que não enjeito", assumirá Soares. "Mas não tenho nenhumas na aplicação dos tratados de independência. Nessa altura, não tive qualquer responsabilidade efetiva na matéria" (O Futuro Será o Socialismo Democrático). No fundo, "nunca me passou pela cabeça que se fizesse uma descolonização com a rapidez com que se concretizou. (...) Muito menos em Cabo Verde, em São Tomé ou em 72
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Timor" (Ditadura e Revolução). O pior foi Angola. "Quando cheguei [ao Alvor, em janeiro de 1975], percebi que os dados estavam lançados e o jogo, praticamente, feito. Eu trabalhara muito para a realização daquela conferência, falara com Agostinho Neto, com Holden Roberto e com Jonas Savimbi. Era necessário pô-los em contacto para, em conjunto, procurarmos uma solução." Mas, nesse dia, "percebi que a visão dominante, naquela sala, era pró-MPLA. Os outros dois movimentos deixaram-se colocar, talvez pela força inelutável das coisas, numa posição secundária" (idem). Após assinarem o acordo (e antes da independência) começa a guerra civil e "Angola entrou numa espiral de violência" (Um Político Assume-se). Em O 25 de Abril Visto da História, livro de 1976, José António Saraiva recapitulava: "Temos assim que o PS começa, diretamente, através do seu secretário-geral Mário Soares, por desempenhar um papel preponderante na descolonização, é depois ultrapassado e acaba - claramente já marginalizado - a condenar de modo explícito a forma como decorria a evolução dos acontecimentos em Angola e a posição da parte portuguesa" - a alcunha do alto-comissário Rosa Coutinho seria "o almirante vermelho". "Você vendeu Angola e Moçambique!", foram-lhe gritando depois os retornados, embora Soares lembrasse sempre que foi no seu primeiro governo que se fez "um esforço extraordinário, na altura em que o País recebia cinco mil refugiados diários, para minorar a situação dos desalojados e o impacto negativo que poderiam ter na sociedade portuguesa" (O Futuro Será o Socialismo Democrático) e concluía, nesse ano de 1979, que já não havia "um problema de retornados". Décadas depois, mantinha a mesma leitura. "A descolonização - feita num ano e meio - foi das políticas mais difíceis e controversas do pós-Revolução dos Cravos. Portugal recebeu, em poucos meses, cerca de oitocentos mil retornados, regressados à pressa das colónias, onde deixaram tudo: profissões, haveres, empresas, esperanças de vida. Mas não houve aqui um fenómeno correspondente ao dos pieds noirs franceses, regressados da Argélia, que tantas perturbações sociopolíticas causaram. Os portugueses que regressaram foram reintegrados, com relativa facilidade" (Um Político Assume-se).
A “traição” de Soares e outros mitos sobre a descolonização portuguesa… 73
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O aspecto talvez mais controverso e que gera mais animosidades da vida política de Soares é o seu papel na descolonização. É fácil perceber que alguns das centenas de milhares de colonos portugueses que foram forçados a sair de Angola e Moçambique procurem alguém a quem culpar. E é típico que em guerras de guerrilha que nunca terminam com uma vitória convencional evidente, algumas lideranças militares e alguns veteranos apontem para os políticos e para uma facada nas costas para justificar a derrota, alimentando o mito de uma vitória traída. O grande traidor numa determinada versão da história da descolonização portuguesa seria Soares. Ora essa ideia assenta numa série de erros e mitos.
Portugal não podia fazer uma descolonização orgulhosamente só
A República da Guiné-Bissau, de que o PAIGC tinha proclamado unilateralmente a independência em 1973, era reconhecida por mais de 80 países – mais do que aqueles que mantinham relações diplomáticas com Portugal. A pressão de toda a comunidade internacional, começando pela ONU, e incluindo muitos dos nossos aliados ocidentais, ia no sentido da rápida descolonização. Soares sabia bem disso como primeiro Ministro dos Negócios Estrangeiros pós-25 de Abril. Grande parte dos países do mundo não queria esperar por eleições e não confiava em referendos organizados em territórios em guerra e com a presença de tropas portuguesas. O Secretário Geral da ONU veio a Portugal discutir independências rápidas via negociações directas com os movimentos independentistas que eram internacionalmente reconhecidos como os únicos representantes legítimos dos respectivos povos. Recordese ainda, que em 1975 não havia praticamente democracias 74
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multipartidárias em África, e que os EUA de Nixon estavam atolados no escândalo de Watergate. Em Portugal em 1974 dominava a oposição à continuação das guerras As únicas manifestações públicas sobre temas coloniais em 1974 eram para gritar “nem mais um soldado para as colónias”. Sem rotação de tropas, independentemente da vontade de políticos como Soares, a continuação da guerra era insustentável num prazo relativamente curto. E os movimentos independentistas não aceitavam um cessar-fogo sem negociações para a independência. A descolonização era vista geralmente como inevitável e os principais partidos da direita não se opuseram a ela. Freitas do Amaral fez questão de sublinhar nas suas memórias que era um europeísta, e que o CDS deixou claro na sua primeira conferência de imprensa que o tempo de descolonizar tinha chegado. Os discursos e entrevistas de Sá Carneiro em 1974 deixam claro que o PPD/PSD considerava inevitável uma descolonização rápida. Os partidos representados no Governo Provisório aprovaram os acordos de independência da Guiné-Bissau e Moçambique e aplaudiram-nos de pé na Constituinte. E se em relação a Angola houve divergências, inclusive de Soares, elas não diziam geralmente respeito à independência ou ao envio de novas tropas, mas apenas a quem apoiar ou reconhecer. E Spínola? O seu crescente isolamento internacional e interno levou-o a assinar, em Julho de 1974, uma lei constitucional que vinculava o país a uma descolonização rápida levando à independência, e a demitir-se em Setembro desse ano. Soares, ao contrário de Spínola, esteve politicamente bem acompanhado em 1974-75 na sua urgência em descolonizar. A descolonização e a saída dos colonos foram comparativamente normais Em nenhuma colónia europeia em África com uma presença forte de colonos europeus o fim foi outro que não fosse a saída deste últimos em grande número. Por várias vezes, da Argélia até ao Zimbabué passando pelo ex-Congo belga, essa saída deu-se de um modo mais sangrento do que nas colónias portuguesas. O fim dos impérios está historicamente relacionado com grande violência. Niall Ferguson, insuspeito de simpatias esquerdistas, aponta como um dos principais factores explicativos da grande violência do século XX que este seja o grande cemitério de 75
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impérios. Há muitos exemplos de descolonizações tão ou mais precipitadas e violentas do que a portuguesa. Ao fim de dois anos os britânicos saíram da Índia/Paquistão e os Franceses da Argélia. Os belgas saíram do Congo em menos de um ano. Em todos estes casos a descolonização deu-se no meio de migrações forçadas e de um grau de violência igual ou superior ao que se verificou no fim do império português. A descolonização portuguesa poderia ter sido diferente? Talvez se tivesse sido feita mais cedo se tivessem evitado as guerras. Mas também poderia ter sido diferente para pior. Se a guerra em 1974 tivesse sido continuado explicitamente em nome da defesa dos colonos, estes ter-se-iam provavelmente tornado alvos a abater. Em suma, estamos perante factores que escapam ao controlo de um actor, de um decisor. O máximo que se pode fazer é tentar prevenir ou atenuar os problemas. Os negociadores portugueses, nomeadamente Soares, obtiveram nos tratados de independências algumas garantias formais, como sucedeu também no caso dos franceses ou dos britânicos ou belgas. Mas elas revelaram-se em boa parte impossíveis de aplicar. E os vários governos portugueses com a participação do PS conseguiram, apesar de tudo, a evacuação em segurança da esmagadora maioria dos “retornados”, e garantir financiamento e mecanismos legais que resultaram na reintegração relativamente bem sucedida destas centenas de milhares de refugiados. Soares não foi o principal autor da descolonização, mas não a renegou. As grandes decisões que levaram à descolonização de 1975-75 foram tomadas, antes de 1974, por Salazar. Foi este último que, em 1961 (possivelmente, no início até com algum apoio popular), viu na guerra a única solução aos pedidos de independência. Mesmo que as guerras levassem, por exemplo, na Guiné a uma derrota “honrosa”, como Marcelo Caetano referiu, resignado, a um Spínola indignado, em 1973. Em 1974-75 foram os militares os decisores principais. Ao sublinhar o peso decisivo dos militares na descolonização Soares talvez exagere, por vezes, as suas diferenças de opinião e de estratégia negocial relativamente ao MFA, ou o risco de um colapso militar imediato. Melo Antunes queixou-se disso. Mas Melo Antunes também nunca escondeu que foi realmente ele o principal responsável de um processo de descolonização, que ele e os seus companheiros do MFA viam como indispensável e justo. 76
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Apesar de tudo, Soares foi o líder político que mais claramente assumiu a defesa da opção por uma descolonização rápida – algo controverso depois do regresso das tropas e de se poderem desenhar pacificamente planos ideais de descolonização. Talvez isso explique o especial ódio que lhe é votado. Soares não acreditava que fosse possível democratizar Portugal sem descolonizar rapidamente. Era para ele uma questão de princípio, que o tinha levado a romper publicamente com a tradição de nacionalismo colonial do republicanismo português. No manifesto fundador do PS, em 1973, certificou-se de que o novo partido se afirmaria como “radicalmente anticolonial”. Não se podia lutar pela liberdade pela metade. Era também uma questão política prática. Já vimos a dimensão externa deste problema, a que Soares era muito sensível, sabia que resistir à descolonização seria um desastre para um país desesperado por apoio internacional para a sua democratização e desenvolvimento. Soares não ignorava também que politicamente seria suicida deixar a esquerda radical aparecer como os únicos defensores da paz, como os bolcheviques tinham feito na Rússia em 1917. Mais, se foi difícil organizar eleições no continente e nas ilhas, no prazo de um ano, em Abril de 1975, seria inconcebível fazê-lo ao mesmo tempo em territórios com a dimensão e população de Angola e Moçambique. O fim do império português resultou em muitas vítimas inocentes Convém lembrar, no entanto, que a maioria das vítimas mortais antes de 1975 foram africanos apanhados nas guerras pela independência pelas quais Soares não pode ser responsabilizado. E depois de 1975 as guerras em Angola e Moçambique foram sobretudo alimentadas por disputas pelo poder, pela estratégia do regime racista da África do Sul, e pelas guerras por procuração das superpotências da Guerra Fria. Responsabilizar principalmente Soares pelo fim do império português e pelos seus custos em nome de uma suposta traição a uma pátria pluricontinental que ele não reconhecia é historicamente insustentável. Afirmar que Soares defendeu que uma descolonização rápida era condição indispensável para a democratização e desenvolvimento de Portugal é um dado histórico que ele não negou.
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CAPITULO IX
Derrotar os novos Lenines Verão Quente de 1975
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Numa fase em que os blocos político-militares negociavam uma détente (apaziguamento da tensão entre EUA e URSS), os atores principais da geopolítica olhavam para um Mário Soares a defender a democracia num país que podia alterar os equilíbrios mundiais e acabar com essa coexistência pacífica.
O vertiginoso ano de 1975, em que o processo político-militar se acelerou e o País parecia estar à beira da guerra civil, transformaria Mário Soares no herói da democracia. Já tinha havido a transformação do MDP/CDE em partido, que os socialistas perceberam ser a forma de os comunistas criarem um partido satélite para lhes roubar votos. Mas tudo começaria a ficar claro quando o Conselho Superior do MFA, logo apoiado por manifestações convocadas pelo PCP, outros partidos de esquerda e a Intersindical, aprovou a "unicidade sindical" no dia 2 de janeiro. O PS, através do seu número dois, Zenha, opõe-se logo à existência de uma só central sindical. A partir dessa altura, cava-se um fosso entre comunistas e socialistas que se manterá, pelo menos, até às presidenciais de 1986, quando o PCP, sem outra alternativa, convocou um congresso extraordinário para aconselhar o voto em Soares contra Freitas (ver "Missão Impossível acaba em Belém"). Aliás, logo no rescaldo das legislativas de 1976, José Miguel Júdice sublinha que "um Partido Socialista chega ao poder, indiscutivelmente, pela sua recusa de um "Programa Comum" [com o PC] como o francês 79
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[entre o PSF e o PCF]" E concluía: "o que vier a suceder irá refletirse (...) em toda a Europa, mas talvez em especial em França" (O Pensamento Político de Sá Carneiro e Outros Estudos). Após o golpe spinolista do 11 de Março, quando se iniciaria o que ficará conhecido por PREC (Processo Revolucionário em Curso), com as nacionalizações, o aprofundar da Reforma Agrária e a institucionalização do Conselho da Revolução, o líder socialista admitirá que teve a intenção de abandonar logo o III Governo Provisório, mas que Zenha o terá convencido de que o fundamental era garantir que as eleições se realizassem. E, de facto, enquanto Vasco Gonçalves previa, como Soares relataria em Um Político Assume-se , que "o MDP/CDE vai ser o maior partido, depois o PCP e o PS talvez fique em terceiro lugar", os resultados nas primeiras eleições livres dão resultados opostos: o PS com 37,9%, o PPD [depois, PSD] com 26,4%, o PCP com 12,5%, o CDS com 7,6% e o MDP/CDE com 4,1%. A partir daqui, defrontam-se a legitimidade revolucionária e a legitimidade eleitoral, a força da rua e a vontade do País. Após ter-se sagrado vencedor nas urnas e do afastamento das comemorações do 1.º de Maio protagonizado pelos comunistas, Mário Soares passa à ofensiva contra os militares revolucionários, o PCP e a extrema-esquerda. Mas, prudente, "não [pediu] a substituição do Governo nem [reclamou] o lugar de primeiroministro, como muitos camaradas [seus] pediam". E ficou assim, como citariam Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, "com uma força extraordinária"(Os Dias Loucos do PREC). Almeida Santos lembra que o líder [do PS] lançou o slogan "socialismo em liberdade", "que tanta mossa fez no anarcopopulismo reinante" (Nova Galeria de Quase Retratos). E Manuel Alegre sintetiza ainda melhor: "Houve então uma pequena-grande frase de Mário Soares, porventura a mais importante que ele proferiu ou, pelo menos, a que maiores consequências históricas viria a ter: "A liberdade é um valor em si mesmo revolucionário"" (Arte de Marear). A 19 de maio de 1975, aproveita a ocupação do jornal República dirigido pelo seu camarada Raul Rego e com uma redação quase socialista - pelos tipógrafos de extrema-esquerda para lançar uma campanha internacional a denunciar a tentativa de sovietização de Portugal. "O [Álvaro] Cunhal nunca deve ter sabido o preço que essa aventura lhe custou" (Um Político Assume-se). Sobre este período, a posterior leitura do líder comunista acerca das 80
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afirmações de Soares podem sintetizar-se numa frase: "Mentira afirmada e repetida tendo quem mente consciência de que está mentindo e caluniando perante milhões de portugueses, que dificilmente terão acesso à verdade" (A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril ). Em protesto pela ocupação do República, o PS abandonaria o IV Governo Provisório, sendo seguido pelos ministros do PSD dois dias depois e abrindo a crise que levou à queda desse Executivo e, depois, à contestação ao V Governo Provisório e à posterior demissão de Vasco Gonçalves. Entretanto, a ocupação da Rádio Renascença permitiria a Soares estabelecer relações de cumplicidade com o cardeal-patriarca e a Igreja Católica. No Verão Quente de 1975 há bombas a rebentar, julgamentos populares, sedes do PCP incendiadas, os atentados direitistas do ELP e do MDLP, açambarcamento de géneros alimentares, tendências separatistas nas ilhas, "uma enorme confusão de serviços secretos", lembra Rosado da Luz, "que "ajudavam", empurravam, influenciavam e compravam os seus aliados internos" (Os Anos de Abril). Surge o Documento dos Nove, subscrito pela ala moderada do MFA e ideologicamente próxima do PS (embora, como se queixará Vasco Lourenço, em Do Interior da Revolução, Soares privilegiasse os spinolistas), e é criado o Comité de Apoio do Socialismo Democrático a Portugal (com Brandt, Schmidt, Palme, Callaghan, Mitterrand, Kreisky). E, sobretudo, a manifestação da Alameda (ou da Fonte Luminosa), onde acorreram largos milhares de pessoas a protestar contra a ameaça de nova ditadura, as teses do PCP, as correntes terceiromundistas. "Foi o princípio do fim de Vasco Gonçalves e marcou o ponto de viragem da cavalgada revolucionária que, se não fosse detida como foi, arrastaria Portugal para o abismo. (...) A partir daí, o vento mudou, aprofundando por forma irresistível a clivagem entre os militares que se reclamavam do MFA" (Ditadura e Revolução). Nesse dia, estavam cá Michel Rocard, Jacques Attali, Alain Touraine, Jean Nouvel. "Muitos temiam que a batalha da liberdade estivesse já perdida. Mas, depois de assistirem ao comício da Alameda - espetáculo por eles nunca visto! -, recobraram outro ânimo. Mediram a nossa determinação e compreenderam que nunca desistiríamos de lutar. É daí, de resto, que data a admiração da Europa democrática pelo PS português" (idem). 81
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Antes mesmo desta fase, já Kissinger, que chegou a advogar para Portugal um estatuto de "vacina" da Europa contra o comunismo, apelidara Soares de "Kerensky português", sustentando que seria devorado pelo Lenine-Cunhal (ver texto ao lado). Mais tarde, André Malraux diria ao L'Express que "os socialistas portugueses demonstraram ao mundo que os mencheviques também eram capazes de vencer os bolcheviques" - e esse, para Soares, foi "um dos elogios mais importantes que já recebi na vida" (O Que Falta Dizer). No Le Nouvelle Observateur, em julho de 1977, Jean Daniel esclarecia, na sua "Carta a um socialista em cólera - Resposta a Jean--Pierre Chevènement" (que tinha dito, no congresso do PSF, "nem morrer como no Chile nem trair como em Portugal"), que "se houve uma "linha Soares" foi uma linha de resistência contra o estalinismo e a guerra civil que dele teria resultado, contra o despotismo e o caos - e não (...) uma contrarrevolução". E, após a queda do Muro de Berlim, quando já era Presidente, Soares podia lembrar que "os acontecimentos em catadupa [nesse ano de 1989] vieram dar em absoluto razão aos portugueses que se bateram em 1975 pela liberdade - quer quanto ao seu valor intrínseco, universal e insubstituível, quer quanto ao "colossal embuste" em que afinal o comunismo se tornou" (Intervenções 4). Após a queda de Vasco Gonçalves, nas negociações para se constituir o VI Governo, Pinheiro de Azevedo convidou-o para seu vice--primeiro-ministro, mas Soares não só declinaria o convite, como recusaria integrar o gabinete que conciliava todas as correntes, do PCP ao PSD. "Nesses meses de brasa - outubro e novembro - quase não fiz mais nada do que conspirar" (Um Político Assume-se) com os Nove, outros militares, civis, a Igreja. Entretanto, há o assalto à embaixada de Espanha para contestar a sentença de morte por garrote de dois separatistas bascos (que podia ter provocado incidente diplomático); a manifestação de apoio ao VI Governo Provisório, com Pinheiro de Azevedo, perante as bombas de fumo no Terreiro do Paço, a acalmar a multidão ("É só fumaça! O povo é sereno!"); o cerco dos trabalhadores da construção civil a São Bento, sequestrando Governo e Parlamento e houve a hipótese de se transferirem órgãos de soberania para o Porto. E, a 6 de novembro, o célebre frente a frente entre Soares e Cunhal, "talvez [o debate] mais escutado e longo da televisão" portuguesa (idem), em que o socialista acusou o PCP de querer 82
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transformar Portugal numa ditadura, o comunista replicou com a famosa expressão "olhe que não; olhe que não", e o primeiro ironizava que, se defendesse a aliança PS-PCP, talvez viesse a receber "a medalha Lenine". Tudo conduziria ao confronto militar do 25 de Novembro de 1975, que encerrava o PREC e definiria o regime democráticoparlamentar, sendo "o virar de uma página, que podia ter sido trágica, e a restituição da Revolução de Abril à sua pureza inicial" (ibidem). E, como recordará o cineasta António-Pedro de Vasconcelos, "quando, a seguir ao 25 de Novembro, [Soares] se recusou a dispensar Cunhal no Governo, não fez mais do que responder a Sá Carneiro o mesmo que respondera ao velho estalinista, que lhe pedira, após o 11 de Março, a cabeça do chefe da direita" (O Presidente de Todos os Portugueses). Em suma, como concluiu Vasco Pulido Valente (Portugal - Ensaios de História e de Política), "se hoje há um regime democrático o responsável é Mário Soares, que precisamente o impôs contra a vontade dos militares. A verdadeira revolução foi a dele."
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CAPITULO X
MINISTRO DOS NEGOCIOS ESTRANGEIROS
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O facto de ter sido o primeiro político a comunicar uma imagem internacional do novo regime, como ministro dos Negócios Estrangeiros não agradou nada a Vasco Gonçalves
"Em nome de um Portugal renovado", Mário Soares discursava na Assembleia Geral da ONU a 23 de setembro de 1974. "Poucas vezes", terá talvez exagerado Diaz Nosty, "no grande fórum mundial se haviam escutado tantas manifestações de entusiasmo e simpatia por um país e por um ministro [seu] representante" (Um Combatente do Socialismo). A queda da mais velha ditadura europeia com uma revolução de cravos nos canos das espingardas encantou o imaginário das várias esquerdas, despertou um invulgar interesse internacional pela política portuguesa e abriu caminho à independência de cinco novos países africanos. No fundo, como garantia Almeida Santos, "Portugal era então a coqueluche da cúpula política internacional" (Quase Memórias, 2.º vol.). Antes mesmo de Mário Soares ser o ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) dos I , II e III Governos Provisórios (nesse período crucial entre maio de 1974 e março de 1975), logo após o 25 de Abril, "a pedido de Spínola", foi enviado pela Junta de Salvação Nacional às capitais europeias (uma ronda de dois dias por Paris, Bruxelas, Londres, Amesterdão, Bona, Helsínquia, Roma, Vaticano) para obter o reconhecimento do novo regime, como contaria a Maria João Avillez (Ditadura e Revolução). "Mesmo antes da sua inclusão no Governo Provisório", escreveu Diaz Nosty, "o papel de Mário Soares seria essencial na hora de dar uma dimensão real à nova realidade portuguesa. As suas declarações, as suas contínuas viagens, a sua comparência nos mais altos organismos mundiais serviriam para transformar o passado desprezo internacional numa quase generalizada resposta de apoio e compreensão por parte do mundo" (idem). 85
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A 16 de maio, quando entra no Palácio das Necessidades pela primeira vez como ministro do Governo liderado por Palma Carlos, tinha parte do corpo diplomático à sua espera. Fez, então, um discurso explicando que não iria sanear ninguém, mas explicando que a política externa portuguesa "iria mudar 180º". Não houve saneamentos e não teve "nenhuma razão de queixa de qualquer diplomata. Antes pelo contrário: todos cumpriram a nova linha política que defini para a política externa portuguesa", lembraria num colóquio sobre o serviço diplomático, na Assembleia da República, em 2008. Esse gesto pragmático, admitiria o embaixador Hall Themido, "contribuiu para tranquilizar os Estados Unidos acerca da revolução ocorrida em Portugal" (Dez Anos em Washington). Nessa mesma tarde houve "um acontecimento insólito e antes nunca visto": "Entrou no espaço aéreo português o avião pessoal do Presidente Senghor, para [o] transportar a Dacar", onde, sob a égide do primeiro-ministro do Senegal, se encontraria com o dirigente do PAIGC (e futuro Presidente de Cabo Verde) Aristides Pereira, assinando ambos o acordo de cessar-fogo na Guiné, "o primeiro passo concreto no caminho da descolonização" (mesmo discurso). E, em simultâneo com as negociações com os movimentos de libertação das colónias, estabelecia relações diplomáticas com 26 países, com destaque para a Índia e a União Soviética, demais regimes comunistas da Europa do Leste, países árabes e Estados africanos. Ao mesmo tempo, tinha o cuidado de "evitar conflitos com a Espanha de Franco e o Brasil, em fase de ditadura militar, sem deixar de os condenar por falta de respeito dos Direitos Humanos" (Um Político Assume-se). Em junho, estava em Otava (Canadá) a participar numa conferência interministerial da NATO e, em setembro, discursava na ONU, numa sala completamente cheia e em expectativa. Mas, após o 11 de Março, no IV Governo Provisório, o MNE seria Melo Antunes, passando o líder do PS a ministro sem pasta - o cargo que sempre teve Álvaro Cunhal e também tivera Sá Carneiro. Mas Vasco Gonçalves, no livro-entrevista com Maria Manuela Cruzeiro, entendia que Soares, como ministro dos Negócios Estrangeiros, "não deu uma imagem fiel do MFA, nem da nova política que se estava a iniciar com o 25 de Abril". E acrescentava 86
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"que a História veio a mostrar que ele conduziu uma política orientada, sobretudo, para o estreitamento das relações do PS com a social-democracia internacional e que esta assumiu posições muito negativas em relação ao nosso processo, particularmente no ano de 1975" (Um General na Revolução).
Moção de confiança derruba I Governo PS
O regime entrara numa nova fase: Ramalho Eanes (apoiado por PS, PSD, CDS, MRPP, PCP(ml) e AOC) tinha sido eleito a 27 de junho e investido como presidente a 14 de julho de 1976. Depois, empossou Mário Soares, a 23 de julho, como primeiro-ministro do I Governo Constitucional, um Executivo socialista minoritário e o primeiro dos seus três gabinetes - e nenhum cumpriria o mandato. Na síntese de Martin Gilbert, agora, "Portugal tinha uma Constituição democrática e, na sequência de novas eleições, um Governo parlamentar liderado pelo socialista Mário Soares" (História do Século XX). "Embora a sua posição política interna fosse mais fraca do que a de Eanes em 1976", defende Kenneth Maxwell, "Soares gozava de uma enorme vantagem sobre o novo presidente. Ao contrário de Eanes, era um cosmopolita, tão à vontade em Paris como em Lisboa"(A Construção da Democracia em Portugal). Até o New York Times, recorda João Hall Themido, em editorial, "o considera como reunindo todas as qualidades para o exercício daquele cargo e 87
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descreve-o como um socialista moderno, à maneira europeia, que emergiu em Portugal após a Revolução" (Dez Anos em Washington). Apesar de "não dispor de maioria absoluta", Eanes "não hesita em empossá-lo como primeiro-ministro, não levantando qualquer entrave à fórmula minoritária proposta", sublinha Maria Inácia Rezola (25 de Abril - Mitos de Uma Revolução). "Integrando no seu elenco um rol de personalidades prestigiadas (Henrique de Barros, Almeida Santos, Medeiros Ferreira, Sottomayor Cardia, entre muitos outros), o Governo consegue fazer passar o seu programa" no Parlamento (ibidem). No fundo, escrevia José Freire Antunes em Sá Carneiro - Um Meteoro nos Anos Setenta, "a Nação passava a Mário Soares um cheque com a cobertura de uma grande esperança. Restava saber se ele seria tão ágil a governar como fora a zurzir os comunistas". Álvaro Cunhal, no seu ensaio de 1999, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A Contrarrevolução Confessa-se), confirmaria: "A formação do Governo do PS marca assim não só a extinção da dinâmica revolucionária como a viragem para o desencadeamento do processo contrarrevolucionário a partir do poder político - do Governo e da Assembleia da República." Curiosamente, como o próprio revelaria em Um Político Assume-se, Soares "[aceitou] contra a [sua] vontade o dificílimo cargo de primeiro-ministro" por sentir que, naquela altura, "não tinha suficiente experiência administrativa para ocupar um lugar político tão difícil". Depois, após recusar a proposta de Sá Carneiro para formarem um gabinete de coligação - e não exigir à Assembleia da República logo uma moção de confiança -, admitiria que foi um "erro grave", justificado com a "falta de experiência política e administrativa". Até porque os tempos eram difíceis e, tinha advertido na tomada de posse, "os portugueses sabem agora distinguir a utopia, socialmente tão perigosa, daquilo que é possível e sensato realizar" (idem). "As perspetivas para a democracia portuguesa", lembra Tony Judt (Pós-Guerra - História da Europa desde 1945), "continuavam sombrias - Willy Brandt era apenas um dos muitos observadores contemporâneos que viam em Soares outro Kerensky [a comparação é de Kissinger], um engodo involuntário para as forças não democráticas que o iriam substituir na primeira oportunidade. 88
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Mas Soares sobreviveu - e mais: as Forças Armadas mantiveramse confinadas às casernas e o papel das suas franjas politizadas [foi] cada vez mais marginal". Neste período, muitas das chamadas "conquistas da Revolução" terminavam, nomeadamente a Reforma Agrária, com a nova lei de bases, também conhecida por Lei [António] Barreto (o ministro da Agricultura). Outro domínio em que a normalidade seria assegurada, no meio de enorme contestação, foi o ensino superior, com Sottomayor Cardia a reintegrar professores que tinham sido saneados e a impor um novo modelo de gestão das escolas. Ao mesmo tempo, o ministro do Trabalho Maldonado Gonelha tentava disciplinar as reivindicações do mundo laboral. Paralelamente, o desígnio europeu parece ser um objetivo central. O líder do PCP irá contrapor que "é bom lembrar que, até à formação do seu Governo em 1976, Mário Soares proclamava que a entrada na CEE [atual UE] seria um desastre para Portugal" (idem). Mas, contrariando até a opinião da maioria dos economistas, o primeiro-ministro decidiu pedir a adesão formal à Europa Comunitária (então CEE, um pequeno clube de apenas nove países), a 28 de março de 1977. Mas o mais grave era mesmo a situação económica, na sequência da Revolução e do choque petrolífero de 1973. Silva Lopes, governador do Banco de Portugal, chegava a acordar o primeiroministro pela uma da manhã por causa da bancarrota iminente no dia seguinte, como contava Soares a Teresa de Sousa, ao que ele retorquia: "Por favor, senhor governador, deixe-me dormir. Caso contrário, amanhã não estarei em condições para encarar tão grave problema" (Portugal Tem Saída). Nesta altura, além das ajudas da Alemanha, Hall Themido diz que "foi evidente o intuito americano de ajudar o Governo de Mário Soares, que enfrentava grandes dificuldades para fazer face à balança de pagamentos", com Washington a ser determinante a convencer outros países (do Japão à Noruega) a participar no "grande empréstimo" a Portugal. E Soares teve "papel decisivo nas diligências que efetuou por ocasião da sua visita aos Estados Unidos, em abril de 1976", pois foi recebido pelo presidente Carter, "avistou-se com Mondale, Vance e Brzezinski", "falou com os presidentes do FMI e do Banco Mundial, participou em reuniões de esclarecimento organizadas nas duas Câmaras do Senado" (ibidem). Entretanto, Ramalho Eanes, "cercado por civis e militares que procuravam instrumentalizá-lo, 89
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distanciou-se do Governo justamente quando precisávamos mais do seu apoio, por termos começado a negociar com o FMI" (Um Político Assume-se). Álvaro Cunhal, no relatório lido no IX Congresso do PCP, em maio de 1979, sintetizaria as críticas ao I Governo: "Começou a política sistemática de agravamento das condições de vida dos trabalhadores", "desencadeou (...) a primeira brutal ofensiva contra a Reforma Agrária", "lançou a desastrosa política de endividamento externo e a operação de integração no Mercado Comum", "preparou a contrarrevolução legislativa". E justificava assim o voto que conduziria à queda do Executivo, quando Soares apresentou, a 17 de novembro de 1977, uma moção de confiança chumbada no Parlamento a 6 de dezembro - o que, pelas normas constitucionais da época, provocava o fim do Governo. Após falharem as negociações dos bastidores, dirá a Joaquim Vieira: "Deu-se esta coisa extraordinária: o PC votou com o CDS e toda a direita para derrubar o Governo socialista" (Uma Vida). Muito mais tarde, já em 1983, em resposta à bancada comunista na apresentação do Governo do Bloco Central (PS-PSD), recordaria este período: "Nós lembramo-nos do tempo em que em todas as paredes de Portugal foi posto o nome de Maldonado Gonelha [slogans pintados pediam "Soares/Gonelha (ou Barreto) - Rua!"], sem nenhum prejuízo efetivo para ele e com algum prejuízo para aqueles que escreveram nas paredes."
A Influência de Ramalho Eanes e a maior crise no PS… Feitios. Os primeiros presidente e primeiro-ministro eleitos acabaram por transformar os seus desentendimentos políticos num ressentimento mútuo Os perfis de Soares e Eanes não podiam ser mais contrastados. Em 1976, um advogado que sempre foi político apoiava para Belém um general que, no dizer de José António Saraiva , "[personificava] o "apartidarismo do exército", encarnando o "militar puro"" (O 25 de Abril Visto da História). No 25 de Novembro emergira, como rosto dos vencedores, Ramalho Eanes, que se tornaria o óbvio candidato presidencial do PS e dos partidos à sua direita. E numa das raras vezes em que Sá Carneiro se antecipou a Soares foi nessa candidatura: ao ser informado por Marcelo Rebelo de Sousa de que o PS ia apoiar Eanes, esqueceu de que estava a defender Pires 90
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Veloso na reunião e, conta Maria João Avillez, "num volte-face inesperado" de quem "não resiste à jogada tática de se antecipar" (Sá Carneiro - Solidão e Poder), não só convence o PSD a propor aquele nome como informa a agência noticiosa (ANOP). Na manhã seguinte, escreve Miguel Pinheiro, "a notícia da decisão do PPD foi a primeira coisa que Mário Soares ouviu ao acordar. O líder do PS ficou furioso. E Ramalho Eanes também" (Sá Carneiro).
"Ainda jovem", "figura austera e opaca, que seguiu uma estratégia de combinação de forças, conforme as circunstâncias", "a sua ação provocou uma forte reação dos líderes dos dois maiores partidos, que tinham esperado ter nele uma espécie de [presidente] Carmona", regista Rui Ramos, na sua História de Portugal. Além de não convidar Soares a tentar formar terceiro gabinete, Eanes optou pelos governos de iniciativa presidencial, estando então, como sublinham André Freire e Marco Lisi, "escorado na ideia de "responsabilidade política" dos governos perante o PR, que vigorará até à revisão constitucional de 1982" (Os Anos de Abril): o liderado por Nobre da Costa (ministro da Indústria no I Governo de Soares) nem chegou ao poder, ao ser aprovada a moção de rejeição do programa, avançada pelo PS; o de Mota Pinto (ministro do Comércio no mesmo Executivo) caiu em junho de 1979; e o de 91
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Maria de Lourdes Pintasilgo foi empossado só para assegurar a transição até às legislativas antecipadas de 1979. Numa época em que havia quem, em vez do sistema misto parlamentar-presidencial (que evoluiria para parlamentar mitigado), defendesse o presidencialismo, o líder socialista deparava com a crescente influência eanista no interior do PS, a ponto de "em algumas [secções do partido terem] já substituído o [seu] retrato de secretário-geral pelo do presidente Eanes" (Um Político Assume-se) - e a aversão mútua passará a ser constante. No final de 1980, a recandidatura do Chefe do Estado tinha já o apoio expresso dos socialistas, mas quando Eanes declara, após as legislativas, que defende um modelo de sociedade próximo da AD (PSD-CDS-PPM), foi a gota de água que Mário Soares esperava para romper, enviando-lhe uma carta em que sustentava: "Vossa Excelência derrotou-se a si próprio." Ou, em Soares Responde a Artur Portela, dizia que "o seu perfil de homem político é a hesitação e a ambiguidade" e aquela posição "foi um ato de puro oportunismo político, que enraiveceu os militantes do PS" (Um Político Assume-se). Até a diretora do Diabo (e uma das figuras mais famosas da direita à época), Vera Lagoa, no seu livro Eanes Nunca Mais, referia essa "caça aos votos de direita depois da infantil colagem à AD na célebre conferência de imprensa". A Comissão Nacional do PS, contra o entendimento do líder, cuja posição é defendida por Almeida Santos e contestada por Salgado Zenha, resolve manter o apoio a Eanes contra Soares Carneiro "homem (...] retraído, esfíngico, rebuscado na linguagem, com um passado de ligação ao anterior regime" (Como se Faz Um Presidente), mas a esperança da direita. Depois, como não conseguiu convencer a direção, autossuspendeu-se das funções de secretário-geral para não ter de participar na campanha. Após a vitória folgada de Eanes, começou "nova fase da política portuguesa, com a coligação AD enfraquecida e uma ala do PS dita eanista vencedora, triunfalista e mais ou menos alinhada com o presidente " (Um Político Assume-se). As contas serão ajustadas no IV Congresso, em maio de 1981, com os apoiantes de Soares contra o Secretariado Nacional - que, derrotado, irá originar o ExSecretariado, grupo em que se destacam, além de Zenha, os futuros líderes Constâncio, Sampaio e Guterres.
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Os próximos episódios (as críticas de Eanes ao Governo do Bloco Central, a formação do PRD e o apoio à candidatura presidencial de Zenha) transformou esses diferendos, no dizer de Joaquim Vieira, "de divergência política em ressentimento pessoal" (Uma Vida).
Governo PS-CDS durou escassos sete meses
Coligação. Em vez de um acordo à esquerda com o PCP ou do "natural" entendimento com o PSD, o PS formou um Executivo com o CDS, que lançaria as bases da sua política mais à esquerda: o Serviço Nacional de Saúde "A maior conquista social do 25 de Abril", como o antigo ministro António Arnaut define o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que viria a tornar-se uma bandeira de toda a esquerda, surgiu no primeiro Executivo que integrava ministros do CDS. "Todo o País tinha perfeita consciência de que não havia, de momento, alternativa" ao PS, reconhecia Mário Soares em Um Político Assume-se. Perante uma situação "à beira da bancarrota", admitiria que só aceitara o "insistente" convite do presidente para formar novo gabinete "por razões meramente patrióticas" (idem). Mas se Ramalho Eanes o encarrega, a 28 de dezembro de 1977, de formar um novo elenco, como lembra Maria José Stock, também o informa de que devia "[obedecer]ao pressuposto de uma maioria viável e coerente", pois "dado o fracasso" da "anterior solução minoritária do PS sairia reforçada a necessidade de se proceder a 93
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um acordo interpartidário"(O Partido Socialista e a Democracia, org. Vitalino Canas). Na época, porém, o líder carismático do PSD estava afastado da atividade política. Mesmo assim, relata Miguel Pinheiro, "por pressão de [Ramalho] Eanes, Mário Soares e Sousa Franco [então, presidente dos sociais-democratas] negociaram, durante semanas, uma aliança PS-PSD que sustentasse o novo Executivo. Só que tornou-se claro para todos (...) que a qualquer altura Sá Carneiro voltaria com renovada força, decidido a amassar, rasgar e a queimar qualquer contrato feito na sua ausência. Para prevenir uma nova e inevitável crise, Soares esqueceu os sociais-democratas e assinou um acordo de incidência parlamentar com o CDS" (Sá Carneiro), que implicava a entrada no Exec utivo dos ministros centristas Basílio Horta, Sá Machado e Rui Pena. No fundo, tudo começou com a boleia que Soares deu a Alçada Batista, em que se lembrou de lhe pedir para perguntar aos amigos do CDS se não queriam formar Governo. "Por exclusão de partes, só me podia virar para o CDS"(Uma Vida). E após negociações surgiu o acordo para o II Governo Constitucional, com posse a 20 de janeiro de 1978 e que viu chumbadas na Assembleia da República as moções de rejeição do PSD e do PCP. Afinal, ganhava pertinência o sarcasmo de Cunhal quando evocava, no seu ensaio A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril, o "papel" do I Governo na "viragem" da Revolução para a contrarrevolução: "Nada de admirar que Freitas do Amaral tenha, com apropriada ironia, comentado no II Congresso do CDS (23-25 de julho de 1976) que algumas das medidas do programa de Governo do PS tinham sido copiadas do programa do CDS e que o CDS tinha, por isso, razões para reclamar "direitos de autor"." Na sua História de Portugal, Rui Ramos, pelo contrário, sustenta que "Mário Soares, entre 1976 e 1978, meteu o "socialismo na gaveta", mas não enveredou abertamente pela economia de mercado. Manteve as nacionalizações, mas foi abrindo sectores de atividade à iniciativa privada e dando-lhe garantias legais; conservou a proibição do despedimento individual, mas aceitou o coletivo e os contratos a prazo de três anos." Nesta fase, e ainda com muita gente com memória fresca da Revolução, a nível intestino a coligação com o partido mais à 94
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direita, como sublinhava Maria José Stock, "levaria a enorme polémica no interior do [PS] e a bastantes saídas de militantes" (idem), acabando até por se formar novo partido, a UEDS, liderado pelo ex-ministro Lopes Cardoso (ver "A fação trotskista"). Perante as reticências dos que não aceitaram o "desvio de direita", o secretário-geral negociou a entrada no PS, logo em fevereiro, do GIS (Grupo de Intervenção Socialista), formado por ex-militantes do MES e no qual se incluíam dois futuros líderes do PS, Jorge Sampaio e Ferro Rodrigues. "Para [Jorge] Galamba, esta terá sido mais uma "grande vitória pessoal para o dr. Mário Soares" do que propriamente para a IS [Intervenção Socialista], já que [ele] conseguia assim preencher a ala esquerda do PS que tinha ficado vazia após a cisão do grupo de Lopes Cardoso" (ibidem). Entre os membros do GIS somaram-se críticas, com o escritor Nuno Bragança a redigir uma carta em que dizia que "parece difícil a faina dos que, depois de tanta hesitação, vão aparecer publicamente como avalizadores do PS que renegou qualquer opção de esquerda"; enquanto o historiador César Oliveira afirmava que os ex-camaradas seriam "o mercurocromo que o PS vai usar para impedir que as suas próprias gangrenas alastrem por todo o corpo" (ibidem). E, no entanto, o Executivo teria um programa mais à esquerda do que o anterior, com o PS a "[tentar] realizar uma política mais progressista", na leitura de Maria José Stock. "A política de austeridade deveria ser compensada por uma série de medidas sociais: (...) foi apresentado o Serviço Nacional de Saúde [cuja lei só seria aprovada já no tempo do Governo Pintasilgo], o ministro da Agricultura tentou regular a entrega de reservas na zona de intervenção da Reforma Agrária sem intervenção da GNR e o salário mínimo foi substancialmente aumentado, tentando o Governo, desta forma, reconquistar a confiança dos sectores da população que andavam mais afastados" (ibidem). Mas "os tempos eram difíceis", recordará Mário Soares. "Havia que prosseguir as negociações com o FMI para podermos ultrapassar a crise financeira que nos atingira, a chamada primeira crise do petróleo, agravada, no nosso caso, pela descolonização - e pela necessidade de integrar milhares de retornados que regressavam à Pátria sem casa, sem bens e sem trabalho - e ainda pelo desvario das ocupações e nacionalizações do PREC, pelos saneamentos e 95
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pela prisão e fuga para o estrangeiro dos nossos maiores empresários e banqueiros" (Um Político Assume-se). Prepara-se, assim, um programa de estabilização e rigor para negociar com o FMI "o chamado "grande empréstimo", que salvou Portugal do colapso financeiro" e que "nos trouxe um desafogo financeiro incontestável" (Diálogo de Gerações). A Carta de Intenções assinada "impunha um apertado "plano de estabilização", cuja austeridade não foi bem compreendida por alguns socialistas e, sobretudo, pelos partidos da oposição", o PSD à direita, o PCP e a UDP à esquerda (Um Político Assume-se). "O pior, no entanto, foi que o descontentamento foi publicamente expresso pelo Presidente da República" - nas comemorações oficiais do 25 de Abril, Eanes já tinha proferido um discurso polémico, que talvez seja o início da rutura entre os dois políticos - , que "aproveitou (e talvez tenha mesmo estimulado) a saída intempestiva dos ministros do CDS" (ibidem) para de novo derrubar Mário Soares. E se "o II Governo Constitucional correu muito bem, sem quaisquer tensões internas" (Um Político Assume-se), o acordo "naufragou porque a pressão direitista e reacionária das bases do CDS se sobrepôs à vontade dos seus dirigentes" (O Futuro Será o Socialismo Democrático). António Arnaut, inicialmente convidado para a Justiça, mas que acabaria na pasta dos Assuntos Sociais, lembrava, em entrevista ao Tempo Medicina (maio de 2009), que os três ministros centristas "apoiaram o SNS" e Freitas "também", "mas começou a ter problemas com médicos e militantes do partido por o CDS estar a apoiar um projeto socialista, socializante". No fundo, "semelhante política [de um programa mais à esquerda] seria difícil de realizar numa coligação com o CDS", reconhece Maria José Stock. "Com o PSD a evoluir para a direita, depois do regresso de Sá Carneiro, o CDS, invocando o facto de que no [Ministério da Agricultura] e no [Ministério da Administração Interna] se estavam a adotar medidas demasiado à esquerda e de que o PS teria feito um acordo com o PCP "debaixo da mesa", exigiria a demissão do ministro da Agricultura" (idem). Soares invocará "o pretexto irrisório de uma decisão do ministro da Agricultura" (Um Político Assume-se) - a política agrícola era contestada por Amaro da Costa e por Lucas Pires - para os centristas denunciarem o acordo, os seus governantes abandonarem o Executivo e Eanes exonerar o primeiro-ministro, 96
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que abandonaria as funções a 29 de agosto, escassos sete meses após a tomada de posse. Eanes recusava convidar de novo o líder do partido mais votado e Soares disfarçaria a sua fúria citando o presidente da I República, Teixeira Gomes: "Sinto-me liberto como um pássaro fora da gaiola" - e voltou a sentar-se no Parlamento. Começava o ciclo da oposição. E a melhor síntese talvez seja a de David Birmingham, em História de Portugal - Uma Perspetiva Mundial: "Um Governo socialista aprendeu a gerir a austeridade sem rutura social e, depois, a ceder o poder com boa vontade democrática." Em 2012, depois de o ter defrontado nas presidenciais e de até ter sido ministro num Executivo de José Sócrates, no comentário para a série televisiva Memórias do Portugal Futuro (realizado por Mário Barroso), Freitas do Amaral fará justiça histórica: "Na companhia, para ele agradável, do dr. Afonso Costa, e na companhia, para ele desagradável, do dr. Salazar, acho que são as três grandes figuras do século XX português, na parte política."
O Kerensky português na análise de Kissinger… Equívoco!... Perante a situação portuguesa, o secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger comparou o líder socialista português ao social-democrata russo derrotado por Lenine. Costa Gomes ("primeiro chefe de Estado português a visitar oficialmente os Estados Unidos", mas cuja deslocação a Washington, como anotou o embaixador Hall Themido, passou para a história como sendo de Mário Soares), na conversa com Luís Nuno Rodrigues, lembrava que, no almoço de 18 de novembro de 1974, "Kissinger foi muito agressivo connosco, em especial com Mário Soares, a quem apelidou de Kerensky" (Costa Gomes - No Centro do Furacão). Num erro de análise, o americano "levou tempo a convencer-se de que Mário Soares era uma escolha acertada como interlocutor", escreveria Hall Themido, ao ponto de, em conversas informais com o embaixador, considerar que se tratava de "um político ingénuo" (Dez Anos em Washington). E Soares recordaria o que ele lhe tinha dito: "Você fique cá, porque eu vou cuidar de si, vou arranjar-lhe um lugar numa universidade. Se você for para Portugal ou é fuzilado ou fica preso toda a vida." (O Que Falta Dizer). 97
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Mas seria o próprio Kissinger a admitir, em Anos de Renovação, que "este aparte não constituía qualquer juízo quanto às boas intenções de Soares; depois de derrotar os comunistas, ele viria a dar um contributo fundamental para o seu país, enquanto primeiroministro e, mais tarde, como Presidente". E Rui Mateus, no livro Contos Proibidos, recorda que, no encontro seguinte, Kissinger "fez questão de afirmar perante os seus principais colaboradores ter-se enganado em relação a Mário Soares quando o classificou de "Kerensky português". Essa admissão causaria grande surpresa no Departamento de Estado, pouco habituado a atos de humildade do seu ministro, mas a verdade é que Soares era também, (...) naquela época de desorientação nacional, o exemplo do lado bom da política externa norte-americana".
Um apreciador dos prazeres da vida… "Bon vivant". O antigo presidente tinha fama de ser um apreciador dos prazeres da vida, como mostram estes excertos de obras sobre Soares "Até aos 20 e tal anos, (...) desconhecia o prazer da mesa", admitia a Maria João Avillez. "O Manuel Mendes ["ajudante-conspirador" do pai e uma "espécie de irmão mais velho"] descobria as velhas tascas dos galegos onde se comiam os melhores pratos e os bons petiscos: os jaquinzinhos, os mexilhões, os bons peixes e mariscos, as açordas, o arroz no forno, as iscas, a orelheira de porco" (Ditadura e Revolução). Leitor que juntou 60 mil títulos e cinéfilo de paixão, Mário Soares "gosta de ver o mar, gosta de mulheres bonitas (...), gosta de comer bem, gosta de uma boa conversa, gosta de rir", garantia o seu assessor cultural em Belém, José Manuel dos Santos (Marketing Político, de Margarida Ruas dos Santos).
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"Eu já o vi em situações em que qualquer outro político (...) ficaria ridicularizado, (...) [com] episódios engraçados como o daquela vez em que se enganou e beijou um anão convencido que era uma criança" (ibidem). Ou no teatro, quando a atriz brasileira Fernanda Montenegro interpretava a peça de Beckett Dias Felizes e, notou José Manuel Homem de Mello, houve "quem tivesse ficado ailleurs como o Presidente Mário Soares, que "cochilou" praticamente o tempo todo" (Páginas do Meu Diário). A Maria João Avillez declarava que, "sinceramente, penso que [a vaidade] não é o meu principal defeito", embora admitisse gostar de "uma linda gravata" ou "um fato com corte especial" (idem). Além da "paixão imoderada" pelos chapéus, pois, frisou António-Pedro Vasconcelos, "Soares sabia, por instinto, que, no imaginário popular, a coroa é ainda, de Mobutu à rainha de Inglaterra, o símbolo do poder, sagrado e inviolável" (O Presidente de Todos os Portugueses). A caminhada a dois com Maria Barroso… Mário Soares é indissociável de Maria de Jesus Barroso, com quem partilhou todo um percurso de vida, familiar, social, política. Estiveram juntos por 66 anos, até que a morte os separou.
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Conheceram-se na Faculdade de Letras, em Lisboa, onde Mário Soares cursava Direito e Maria Barroso História e Filosofia, depois de ter já cursado Arte Dramática, no Conservatório Nacional.
Nascida em 1925, em Olhão, filha de um oposicionista, cedo testemunhou o preço da oposição ao regime, quando o viu pai deportado para os Açores, já depois de ter estado preso. Viveu primeiro em Setúbal, onde a mãe, professora primária, esteve colocada, e depois em Lisboa. Foi atriz no Teatro Nacional D. Maria II, na companhia Amélia Rei Colaço/Robles Monteiro, de onde é afastada por pressão política. Os poemas que declamava, inflamados, valeram-lhe ser interrogada pela PIDE por duas vezes. Mário Soares e Maria Barroso casaram-se em 1949, por procuração, porque Soares estava detido no Aljube. Acompanhou o marido quando foi deportado para S. Tomé, mas foi obrigada a ficar em Lisboa quando Soares esteve em Paris, reunindo a família sempre que possível. “Quis acompanhá-lo sempre, mesmo nos momentos mais difíceis”, disse, numa entrevista ao jornal i, em 2015. Foi professora no Colégio Moderno, fundado pelo sogro, João Lopes Soares, quando Soares estava no exílio europeu. Proibida de ensinar pelo Estado Novo, assumiu outras tarefas. 100
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Em 1973, participou, na Alemanha, na reunião fundadora do Partido Socialista. Foi a única mulher a fazê-lo. Viajou de Portugal levando os votos dos camaradas da Ação Socialista Portuguesa, que não queriam que o movimento se transformasse em partido, por considerarem que era ainda cedo para isso. Por isso e porque sempre pensou pela sua própria cabeça, votou contra o marido. Na entrevista de 2015, reconhece o mau julgamento: “Estávamos errados e Mário Soares estava certo, a História provou-o”, disse. Depois do 25 de Abril de 1974, foi eleita deputada à Assembleia da República por quatro vezes, pelos círculos de Santarém, Porto e Faro. Em 1986, Mário Soares é eleito Presidente da República e Maria Barroso assume o papel de primeira dama por uma década. Dedicou-se à defesa de causas como a luta contra a violência, o racismo e a exclusão social e trabalhou no apoio aos países de língua portuguesa, especialmente Moçambique. Manteve a atividade depois de Soares deixar a Presidência da República, assumindo a presidência da Cruz Vermelha Portuguesa até 2003, tenho sido a única mulher a exercer o cargo, e fundando e presidindo à fundação Pro Dignitate. Em 1962, novamente detido no Aljube, Soares escreve um poema a Maria, que será lido pelo filho, João Soares, nas cerimónias fúnebres, em 2015: (…) o amor, / querida, / opera esse milagre, / simples, / como tudo o que é natural: / ouvir, / bem no fundo do coração, / as palavras não ditas / mas sentidas; / adivinhar, / bem ao nosso lado, / a presença, / insubstituível e certa / do ausente / – presença inconvertível / em ausência / por maiores que sejam a distância e o silêncio!...
Os inimigos de estimação… O cliché de se dizer que alguém foi "maior do que a vida" aplica-se a Mário Soares, e isso implica também a existência de um lado menos pacífico da sua vida: as guerras, as inimizades, os berros, as traições, os insultos e as intrigas. Isto partindo do pressuposto de que Soares não tirava gozo de um bom choque de personalidades. Do tanto que há para contar, eis os seis maiores "inimigos" políticos da vasta carreira de Mário Soares em democracia (porque antes dela, houve Salazar e Marcello Caetano).
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- Álvaro Cunhal Os dois "galos" do pós-25 de Abril. Antes da Revolução prevaleceu a lógica do "inimigo do meu inimigo (o Estado Novo), meu amigo é". Depois, veio a luta pelo poder.
Ficaram célebres os debates televisivos, com Soares a acusar Cunhal de querer impor uma nova ditadura em Portugal, agora de esquerda. Cunhal pouco mais conseguia do que sorrir e dizer "olhe que não, doutor, olhe que não…" Em 1986, Cunhal fez o sacrifício de recomendar o voto em Soares na corrida final contra o candidato da direita à Presidência da República, Freitas do Amaral.
- Salgado Zenha… Contemporâneos da luta contra o regime do Estado Novo (Soares em Lisboa e Zenha em Coimbra), andaram pelo Partido Comunista e pela Acção Socialista até fundarem o PS na clandestinidade.
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A ruptura começou já em liberdade quando, em 1976, Soares não convidou Salgado Zenha para ministro. A gota de água aconteceu quando Mário Soares se recusou a apoiar a candidatura de Eanes (outro fiel inimigo) à Presidência da República. Em 1986, é o próprio Zenha que se candidata – do outro lado estava Mário Soares. As divergências entre os dois seriam atenuadas com o tempo, mas a rancor nunca desapareceu.
- Ramalho Eanes Soares apoiou Eanes na corrida a Belém em 1976, mas os dois estilos de homem rapidamente entraram em choque. Dois anos depois, Eanes exonerou Soares do cargo de primeiro-ministro.
Mário Soares já não o apoio na segunda campanha presidencial. Em 1986, Eanes vinga-se com o patrocínio de Salgado Zenha a Belém… contra Soares. Com a saída de Ramalho Eanes da política, a guerra quase extingui-se.
- Freitas do Amaral…
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Foram eles que protagonizaram aquela que foi provavelmente foi a corrida presidencial mais dramática, a de 1986, com Soares a ganhar ao sprint. Pelo meio, insultos e alguma violência. Com o tempo, foram-se aproximando, quase ao mesmo ritmo com que Freitas do Amaral (que foi presidente do CDS-PP) começou a "sair" da direita e a entrar no centro-esquerda (chegou a ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de José Sócrates).
- Cavaco Silva…
Depois de Cunhal, foi o seu maior inimigo de estimação em tempos de liberdade. Soares achava Cavaco um tecnocrata, um homem sem mundo. A antítese do que se achava ele próprio. Uma das primeiras consequências da subida de Cavaco Silva à liderança do PSD, em 1985, foi o fim do Bloco Central, o governo liderado por Mário Soares com o apoio do PS e do PSD. Seguiram-se dez anos de guerras mais ou menos surdas entre Cavaco Silva (em São Bento) e Mário Soares (em Belém). "Presidências abertas", "direito à indignação", "acabar o mandato com dignidade" e "forças de bloqueio" são alguns dos termos com que se cunhou a rivalidade. Em 2006, Cavaco recandidatou-se a Belém e Soares, inesperadamente, avançou também, aos 82 anos. Mas perdeu.
- Manuel Alegre… Foi preciso passar muita água sob o Largo do Rato para que estes dois históricos do PS se incompatibilizassem. Em 2005, Alegre avançou para a Presidência da República à revelia de José Sócrates, que escolheu como candidato oficial Mário Soares.
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Alegre ficou com 20% dos votos contra 14% de Soares. Cinco anos depois, Alegre recandidatou-se e Soares vingou-se na sombra ao lançar a candidatura de Fernando Nobre, do mesmo espaço político do ex-amigo. Acabaram por se reconciliar pouco tempo antes da morte de Soares.
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Até sempre, "militante número 1 da nossa democracia" Mário Soares morreu aos 92 anos no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa. Nascido em 7 de Dezembro de 1924, Soares, advogado, combateu a ditadura do Estado Novo e foi fundador e primeiro líder do PS. Após a revolução de 25 de Abril de 1974, regressou do exílio em França e foi ministro dos Negócios Estrangeiros e primeiro-ministro entre 1976 e 1978 e entre 1983 e 1985, tendo pedido a adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1977, e assinado o respectivo tratado, em 1985. Em 1986, ganhou as eleições presidenciais e foi Presidente da República durante dois mandatos, até 1996.. De rosas amarelas nas mãos ou cravos vermelhos, milhares de pessoas encheram as ruas de Lisboa para se despedirem do antigo Presidente da República, Mário Soares, que foi a enterrar esta terça-feira no Cemitério dos Prazeres. Foi no Largo do Rato, sede do Partido Socialista que ajudou a fundar, que o ex-Chefe de Estado recebeu o maior dos banhos de multidão do dia: "Soares é fixe", "Soares amigo, o povo está contigo" e "PS, PS" foram os gritos da multidão, entre lágrimas e longos aplausos. O cortejo fúnebre de Soares, transportado num armão da GNR, passou por mais três locais da capital ligados à sua 106
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carreira política: o Palácio de Belém, a Assembleia da República e a Fundação Mário Soares. A despedida ao antigo Presidente da República começou logo pela manhã - a câmara ardente na Sala dos Azulejos do Mosteiro dos Jerónimos abriu às 08h00 para receber os anónimos e figuras públicas que se quiseram despedir de Soares. Às 13h00 começou a sessão solene evocativa de homenagem, marcada por emoção, lágrimas, palmas, música e poesia. Depois de se ouvir o hino nacional e a voz de Mário Soares proferindo o início do discurso da cerimónia de assinatura do tratado de adesão à CEE, o filho do antigo Presidente, João Soares, de cravo vermelho na lapela e voz embargada, fez a primeira intervenção, e destacou o "homem livre", "digno" e "corajoso". "Nos dias cinzentos e de chumbo da ditadura, quando o íamos visitar ao parlatório a Aljube ou a Caxias, cheios de raiva contida e de lágrimas, porque a mãe ou a avó nos diziam que não podíamos chorar na presença dos 'pides' era ainda e sempre o pai que nos dava alento, nos consolava e dava ânimo", recordou por sua vez a filha, Isabel. De rosa amarela na mão - as flores favoritas da mãe, Maria Barroso.
"Um humanista singular" Intercaladas por intervenções musicais do coro do Teatro Nacional de São Carlos e da Orquestra Sinfónica Portuguesa, foi depois a vez do presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, do primeiro-ministro, António Costa, e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. "Mais do que militante número 1 do PS, foi o militante número 1 da nossa democracia", afirmou Ferro Rodrigues, descrevendo o antigo primeiro-ministro e Presidente da República como alguém que "tinha a visão dos grandes estadistas e a intuição dos grandes políticos" e "pôs sempre Portugal em primeiro lugar". "Mário Soares lutou até ao fim", sublinhou. Numa intervenção de cerca de dez minutos que gravou na Índia, onde se encontra em vista de Estado, António Costa, disse que Soares "foi, em momentos decisivos, o rosto e a voz da liberdade" de Portugal. "Desse título, que era certamente aquele que mais lhe agradaria, raros homens se podem orgulhar", afirmou. "Mário Soares construiu a história e, por isso, a história guardará o seu nome, a sua obra, o seu exemplo. É um exemplo de combate 107
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constante por aquilo em que acreditava. É um exemplo de coragem de dizer o que pensava e de fazer o que devia, ainda que fosse o único a dize-lo e a faze-lo, mesmo que ficando por uns tempos, mas apenas por uns tempos, sozinho. É um exemplo de génio político, que alcançava o que parecia impossível de alcançar", rematou. A última intervenção na sessão solene evocativa coube a Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente louvou a "telúrica resistência", a "indómita vontade" e a "ilimitada coragem e liberdade" de Mário Soares, e lembrou também Maria de Jesus Barroso, "sua companheira de vida, inspiradora". O Presidente da República recordou Soares como um "singular humanista e construtor de portugalidade" e considerou que, como "um homem que fez história", merecia ser homenageado num lugar como o Mosteiro dos Jerónimos. "Inspirador lugar este em que nos encontramos, gentes de várias raízes e destinos, unidas pelo essencial: evocar e homenagear um homem que fez história, sabendo que a fazia, mesmo quando tantos de nós nos recusávamos a reconhecê-lo", declarou. Quanto à "portugalidade" do fundador do PS, o chefe de Estado disse que Portugal foi "princípio e fim de um percurso que, para Mário Soares, era um desígnio". "É certo que diversa da portugalidade de outros, que, sendo igualmente ecuménicos, teriam esperado um Império imorredouro. Antes, portugalidade lida à luz do realismo dos novos contextos e da liberdade dos povos. Foi assim Mário Soares. À sua maneira, no seu tempo e no seu modo, um singular humanista e construtor de portugalidade. Por isso, aqui viemos e aqui estamos hoje. Com uma saudade feita futuro", acrescentou. O chefe de Estado terminou o seu discurso com uma citação que, disse, "Mário Soares acabou por converter em lema de vida", de Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa: "Para ser grande, sê inteiro: Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes". A cerimónia, inteiramente civil, terminou com o hino nacional e palmas dos convidados, antes de a urna sair dos claustros transportada a ombros por seis militares da GNR. Depois, começou o percurso até ao Cemitério dos Prazeres, onde foram prestadas honras militares. A despedida final a Soares foi reservada à família e amigos próximos. 108
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Portugal é, porque Soares foi… Não faltará quem faça a biografia de Mário Soares, como não haverá falta dos comentários de ódio e veneração. Indiferença, ninguém sentirá. Figura maior do que a pessoa, é incontornável, não pela opinião que se possa ter sobre ele, mas pelo papel que tem na História de Portugal. Qual a dimensão da sua presença? Para nós é claro: no Século XX português destacam-se três políticos ímpares: Afonso Costa, António Salazar e Mário Soares. Outros nomes importantes, exaltados conforme a cor política de quem faz o balanço, são apenas outros, nem melhores, nem piores enquanto pessoas; não tiveram a oportunidade nem a sagacidade de moldar a coisa pública com a mesma marca pujante. Tive oportunidade de conhecer Mário Soares no princípio do período a que se costuma chamar de “soarismo”: entre 1974 e 1985, anos em que foi ministro dos Negócios Estrangeiros e depois Primeiro-Ministro. Continuou na vida pública, até foi Presidente da República, e nunca abandonou as suas causas até à morte; mas foi nesses anos de Governo que teve um papel determinante na formatação política (e, por inerência, social) do Estado que temos até hoje, já adentro do século seguinte. Nesses anos, dificilmente alguém diria que eram anos soaristas; a luta política constante, na procura de um formato para o Estado e o entrecruzar de protagonistas, em peripécias por vezes perigosas, não permitia ver um rumo coerente no que estava a acontecer. E, realmente, o percurso não mostrava pertinência no seu todo, com avanços e recuos de todas as partes e constante remanuseamento dos poderes civis e militares. Tratava-se de marcar território para a Assembleia Constituinte que determinaria a Constituição, medir a força das várias ideologias e resolver o problema premente da Descolonização, tudo ao mesmo tempo. No meio de pressões internacionais, e através de diplomacia e rapidez de decisão, Mário Soares foi fundamental na determinação do modelo de República que temos até hoje. Soube ser maleável e inflexível conforme os acontecimentos requeriam, com uma percepção muito clara do que estava em jogo, escolha certa de aliados e uso inteligente das limitações internas e externas. Se 109
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vivemos numa democracia parlamentar de modelo ocidental, com liberdades extensas e oportunidade social (incompleta e periclitante, com certeza, mas genética) devemo-lo a alguns, mas devemo-lo sobretudo a Mário Soares. Os seus inimigos atiram-lhe duas responsabilidades: os de direita, a Descolonização apressada e atamancada; os de esquerda, o conluio com os americanos a favor de um capitalismo sem preocupações sociais. Quanto à Descolonização, é preciso levar em conta dois factores incontornáveis. Em primeiro lugar, a má descolonização foi o culminar inexorável das políticas coloniais anteriores. No Estado Novo, quer com Salazar, quer com Caetano, nunca foi dada oportunidade aos brancos de se auto-gerir e aos negros de se emancipar. A acrimónia entre colonos e nativos tinha chegado a um ponto que não era possível apaziguamento e reajustamento equitativo entre eles. Em segundo lugar, as tropas portuguesas estacionadas nas colónias recusaram-se a lutar a partir de 26 de Abril. Ninguém queria arriscar a vida numa guerra com os dias contados. Os rebeldes viam-no (qualquer militar que lá estivesse em 1974 o confirmará) e portanto o Governo português não tinha poder de fogo para impor uma solução que salvaguardasse os colonos. Nem tinham sido estudadas soluções para os casos especiais, como a dos funcionários públicos ultramarinos. Depois de uma guerra sem quartel, não era possível uma paz cordial. Só restava fugir, com a roupa do corpo. Não havia qualquer condescendência internacional para outra solução. Soares tinha consciência deste drama, mas teve de o ultrapassar. Quanto à famigerada “aliança” informal com os americanos – porque os outros governos europeus não estavam interessados em interessar-se – não foi nem linear, nem simples, nem espúria. Há que ver a situação no contexto da Guerra Fria. Kissinger, um falcão com olímpico desprezo pelos países de segunda linha, teve duas posições quanto ao caso português (isto conforme documentação tornada pública posteriormente); por um lado, considerou uma invasão militar, por outro, pensou que até seria bom que Portugal se tornasse uma República Popular, para servir de exemplo aos outros países europeus – “assustá-los”, nas palavras dele. Ao nível da política interna, estava disposto a apoiar as forças mais reaccionárias, salazaristas (ainda os havia, como ainda os há) ou 110
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dos militares de direita. Frank Carlucci, foi enviado à pressa para Lisboa (em Janeiro de 1975) para substituir Stuart Nash Scott, um diplomata de carreira que estava num posto sem importância e não tinha a menor preparação para a situação que de repente lhe rebentou na cara. E foi Carlucci que, fazendo uma avaliação correcta da situação, percebeu que Soares tinha as qualidades e ideias necessárias para conter os marxistas-leninistas sem recurso à guerra civil. Soares, realmente, convenceu os americanos que poderia resolver a situação.Claro que há mais premissas nesta história; Brezhnev também não queria complicações no equilíbrio precário e terá dito a Cunhal que era melhor não se esticar de mais. (Isto, já é especulação minha. Mas de certeza que o telefone vermelho entre Washington e Moscovo tocou algumas vezes.) Também ficará para a História a aposta de Soares na União Europeia, um novo posicionamento indispensável para Portugal no contexto daEuropa. (Se a UE está de rastos, já é outra história, imprevisível na altura). Ou seja, enquanto esteve no Governo, tomou muitas decisões com repercussão duradoura para esta República. Sempre agiu no nosso interesse. Com ele desaparece a geração dos grandes políticos do 25 de Abril, homens com mais motivações ideológicos do que materiais. E como fazem agora falta ícones do mesmo quilate! Com o seu desaparecimento, encerrou-se o Portugal do século XX.
FIM
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ÍNDICE Páginas 6 – Biografia 7- Actividade Profissional 7- Actividade Política contra a Ditadura 8- Actividade Política após o 25 de Abril 10 -Outras actividades em Portugal 11- Acção Internacional MÁRIO SOARES UMA VIDA DE COMBATE
CAPITULO I 16- O PREGUIÇOSO “GIGI” E O CAMARADA “FONTES” 21- CAPITULO II 22- MANTER A HONRA NA PIDE SEM SUCUMBIR NEM FALAR
CAPITULO III 25- DEPORTADO PARA SÃO TOMÉ E PRESO DO ANO PARA A AMNISTIA INTERNACIONAL
CAPITULO IV 31- SECRETÁRIO DE NORTON DE MATOS ATÉ REVELAR SER DO PCP
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CAPITULO V 34-CLANDESTINIDADE 35-NUNCA “QUERIA TER GAJAS, IR AO CINEMA OU VIAJAR” 35- Um retrato de Pomar para financiar a campanha 37- O golpe publicitário do teatro 37- Os pneus furados e o cartaz do avental 37- O dilema do jovem comunista 39-"Velhinho!... Livra-nos desta enrascada do Salazar" 40- O relatório de um infiltrado da PIDE para o "genial Salazar" 41- Os três temas proibidos 42- Salazar a escrever os discursos de Carmona 43- As quatro instruções da campanha liderada por Marcello Caetano 44-52 mil mulheres a assinar o papel 45-Candidatura de Norton travada pelo PCP 45-Soares alertado para chantagens com gravações nos hotéis de Moscovo 46- No fim puxou de um “tupperware"
CAPITULO VI 48-APOIANTE DA CANDIDATURA DO GENERAL SEM MEDO A VAIAR MARCELO CAETANO EM LONDRES 55- CAPITULO VII 56-MEDIANO ADVOGADOE PROFESSOR EM PARIS
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MÁRIO SOARES – O COMBATE DE UMA VIDA
CAPITULO VII 58-ÁLVARO SALEMA AGOSTINHO DA SILVA E ÁLVARO CUNHAL 60- Inspirado por António Sérgio e Bento de Jesus Caraça 66- PS como fundamental "Stradivarius" político… 69- A Europa Connosco… 70- Fim da longa guerra e descolonização… 73-A “traição” de Soares e outros mitos sobre a descolonização portuguesa…
CAPITULO IX 79-Derrotar os novos Lenines 79-Verão Quente de 1975
CAPITULO X 85-MINISTRO DOS NEGOCIOS ESTRANGEIROS 90- A Influência de Ramalho Eanes e a maior crise no PS… 97- O Kerensky português na análise de Kissinger… 98- Um apreciador dos prazeres da vida… 99- A caminhada a dois com Maria Barroso… 101- Os inimigos de estimação… 106- Até sempre, "militante número 1 da nossa democracia" 107-"Um humanista singular" 109- Portugal é, porque Soares foi…
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DOMINGOS VAZ CHAVES
BIBLIOGRAFIA Biografia – Fundação Mário Soares Restante – Totalmente indexada no tempo
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