O COUTO MIXTO

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Domingos Vaz Chaves

DOMINGOS VAZ CHAVES, nasceu a 3 de Agosto e foi registado a 16 do mesmo mês, do ano de 1954, na freguesia de Gralhas, concelho de Montalegre. Ali viveu com os seus avós maternos até aos 7 anos de idade. É filho de José Fernandes Chaves e de Teresa Vaz Chaves, neto paterno de José Fernandes Chaves e de Maria Dias e materno, de Domingos Vaz e de Maria da Glória Gonçalves Carneiro, todos naturais da dita freguesia de Gralhas, do concelho de Montalegre. Na sua aldeia, iniciou a instrução primária, tendo rumado a Lisboa, onde actualmente vive, quando frequentava a 2.ª classe e se juntou a seus pais que aí residiam e trabalhavam. Em 1965, após concluir a 4.ª classe e efectuado o então necessário e obrigatório exame de admissão para acesso ao ensino secundário, inicía os seus estudos no extinto Liceu Nacional de Gil Vicente, também em Lisboa. Sempre apegado às suas origens e inadaptado ao ambiente da capital, em 1969 regressa à sua terra e aí passa a frequentar o Colégio de Montalegre. Após reprovação no então chamado exame do 2.º ciclo (5.º ano), é-lhe imposto o retorno a Lisboa, facto que o leva à recusa de continuar os estudos. Começa então a trabalhar e a estudar alternadamente, vindo a concluir o Curso Geral dos Liceus em Julho de 1974, no Liceu D. Dinis. Tinha então 19 anos de idade. Em termos profissionais, ingressou na Policia de Segurança Pública no ano de 1981, a qual surgiu no seu percurso, através de um concurso público. Após a respectiva candidatura e a prestação das necessárias provas, deu entrada na Escola Prática de Policia, em Outubro desse mesmo ano, tendo frequentado o Curso de Formação de Agentes na cidade de Torres Novas. Concluído o 2


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mesmo, é colocado em Lisboa, local onde permanece até Outubro de 1985, data em que regressa à Escola Prática de Policia, para frequentar um curso de promoção a chefe. Após frequência do mesmo com aproveitamento, regressa de novo a Lisboa, onde volta a ser colocado. A partir daí reíniciou os seus estudos e após conclusão do 12º. Ano no Liceu D.Pedro V, no ano de 1989 entra na Faculdade de Direito de Lisboa, onde frequentou o respectivo curso. Sindicalista desde os tempos do Estado Novo, foi um dos principais activistas da causa sindical na PSP, e enquanto co-fundador, ainda na clandestinidade, da primeira Associação na Instituição – a Associação Sócio Profissional da Policia -, foi um dos principais intérpretes e impulsionadores da chamada “Batalha de Lisboa”, revolta ocorrida em 21 de Abril de 1989, que colocou Policias contra Policias no Terreiro do Paço e que levou à demissão do então Ministro da Administração Interna, Silveira Godinho, do Governo de Cavaco Silva. Em finais de 1994, deixa a actividade operacional da Policia e passa a desempenhar funções na área da formação. Em 1995, por despacho do Ministro Alberto Costa, é nomeado para o desempenho de funções na Inspecção Geral da Administração Interna. Em Novembro de 1996, através de sufrágio directo, é eleito para vogal do Conselho Superior de Justiça e em 1999, faz a denúncia no Parlamento Europeu, junto da Comissão Parlamentar de Direitos Liberdades e Garantias, da violação de direitos sindicais e constitucionais por parte do Governo português. Paralelamente à sua actividade, leccionou na Universidade Lusiada, tendo nos últimos anos dedicado algum do seu tempo à escrita, da qual se destacam para além desta pequena obra, História da Policia em Portugal-Formas de Justiça e Policiamento, Moralidade e Ética Policial, O Sagrado no Imaginário barrosão, O Último Enforcado em Montalegre, Direitos Fundamentais e dos Cidadãos, Relatos e Crimes do Arco da Velha, Raios e Coriscos, Gralhas-Minha Terra Minha Gente e Terras de Barroso-Origens e Caracteristicas da Região.

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OS POVOS PROMISCUOS Do mesmo modo que só na década de noventa do século vinte se rasgou o véu do silêncio sobre os acontecimentos da aldeia do Cambedo no rescaldo da Guerra Civil espanhola, também a memória da existência e extinção do Couto Mixto, uma singular entidade organizativa, situada na raia seca galaico-portuguesa, só nessa altura foi resgatada e se deu de novo a conhecer. A história da aldeia de Cambedo está intimamente ligada ao fim daquela experiência de organização comunitária, por mútuo acordo entre os estados português e espanhol. A aldeia do Cambedo, tal como as vizinhas Soutelinho da Raia e Lamadarcos, foram “povos mixtos” até 5 de Novembro de 1868, momento em que as três passaram a ser integralmente território português, na sequência da aprovação do Tratado de Limites, no qual eram designadas por “povos promíscuos”, depois de anos de negociações entre Portugal e Espanha. Até então, estes povoados eram divididos pela linha de fronteira política entre os dois Estados, dando-se a situação interessante de muitas casas serem divididas pela linha de fronteira, podendo a cozinha estar num país e o “sobrado” no outro, o mesmo é dizer, podia entrar-se por uma porta desde Portugal e sair-se por outra para Espanha.

A moeda de troca nestas negociações foi a integração do “Couto Mixto”, até ali uma entidade política singular, por muitos 4


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considerada uma república democrática independente, no Estado espanhol. Contudo, esta troca aparentemente justificada para tornar mais difícil o contrabando, esconde uma decisão política com maior alcance, que era de interesse comum para os dois Estados: pôr fim à “anomalia” com sete séculos de história designada por Couto Mixto.

O COUTO MISTO – UMA “REPÚBLICA” COM 800 ANOS Vários autores situam a sua constituição formal no século XII, entre os anos 1143-1147, e a sua origem no processo de independência de Portugal do Reino de Leão, numa época em que a divisão fronteiriça não estava definida.

O Couto Mixto era um enclave com vinte e sete quilómetros quadrados de superfície, situado na Galiza, entre as serras do Pisco e do Larouco, limitado a sul pela fronteira portuguesa, com três povoações (Santiago, Rubiás e Meaus), que nunca tinham formado parte de qualquer um dos países desde a formação de Portugal, onde viviam entre seiscentos e mil habitantes. São várias as teorias sobre a origem do Couto Mixto!... Entre elas está a que sustenta que a sua fundação deriva de um foral concedido por Sancho I, outra defende que se tratou de um “coto de homiciados”, isto é, “uma jurisdição territorial donde os criminosos que não tivessem sido autores de falsificação de moeda, delito sexual ou religioso, 5


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poderiam redimir as suas penas” , e outra assente ainda na lenda da princesa desterrada, que teria sido salva por habitantes do Couto de morrer quando dava à luz, depois de ter sido apanhada ao cruzar a serra por um nevão, e que agradecida, lhes concedeu a independência e os privilégios. Diz-se que os habitantes do Couto Mixto desfrutavam de uma série de privilégios: tinham direito a decidir se queriam ser espanhóis ou portugueses ou não optar por nenhuma nacionalidade; não pagavam impostos nem a um país nem ao outro, nem podiam ser recrutados pelos respectivos exércitos; não necessitavam licença para portar armas; podiam cultivar o que quisessem, incluído tabaco, cujo cultivo estava estrictamente controlado, tanto em Espanha como em Portugal; não tinham a obrigação de usar papel selado oficial para nenhum tipo de acordos ou contratos, obrigatório nos dois países; tinham permissão para transportar o que desejassem, sem risco de serem interceptados pelos agentes de autoridade de nenhum dos dois países, por um caminho neutral de seis quilómetros, o “Caminho Privilegiado”, que unia as três povoações do Couto Mixto com a localidade portuguesa de Tourém, atravessando território de Espanha e Portugal.

Dentro do perímetro do Couto Mixto, as autoridades portuguesas e espanholas não podiam entrar em perseguição de ninguém. Este privilégio talvez fosse uma reminiscência das suas origens, contudo, este direito de asilo nem sempre teria sido respeitado pelas autoridades dos dois países. Do mesmo modo, nem sempre foi 6


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cumprida a regra de recusar alojamento e passagem de forças militares pelo território do Couto ante a superioridade numérica destas. Foi o que aconteceu aquando das invasões francesas comandadas pelo Marechal Soult; com o contingente militar português de 700 soldados, seguidos por 300 mulheres, comandado pelo General Saldanha, em 1851, na sua retirada para a Galiza durante as Guerras Liberais, que pernoitaram uma noite no Couto Mixto a caminho de Lobios, ou com a ocupação por pequenas unidades militares galegas ou portuguesas, por ocasião das destruições das plantações de tabaco. Estas decisões, a integração dos povos promíscuos em Portugal e do Couto Mixto na Galiza, é pois a “estória que se segue para melhor compreender a verdadeira História desta “república” que durou 800 anos. No entanto, pouco se fala de uma república democrática, com os governantes eleitos directamente pelo povo, que existiu durante cerca de sete séculos, do XII ao XIX, em plena Península Ibérica, região pouco afeita à democracia nesse período e que mesmo no século XX passou por breves hiatos de liberdade na sua triste história de sangrento totalitarismo, só conhecendo a democracia há menos de meio século. Essa república, que o historiador galego Luiz Manuel García Mañá chama de “Unha República Esquecida”, foi um Estado independente de Portugal e Espanha situado no vale do Rio Salas, na região fronteiriça entre a Galícia, nos Concelhos de Calvos de Randin e Baltar, na Província de Ourense, e as terras portuguesas de Barroso, no Concelho de Montalegre.

O “Caminho Privilegiado” unia as três povoações do Couto Mixto com a localidade portuguesa de Tourém, atravessando território de Espanha e Portugal

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Era formado por três aldeias, Santiago, Rubiás e Meaus, que teve os seus direitos e privilégios reconhecidos por Foral outorgado por Sancho I possivelmente em 1187, ainda no século XII, quando Portugal lutava para ser reconhecido como nação independente do reino de Castela e Leão. Muito embora não se tenha certeza da origem dos privilégios concedidos à população do “Couto Mixto”, imagina-se que tenha relação com a proximidade do Castelo da Piconha, uma fortaleza construída sobre um velho castro lusoromano de fundamental importância na defesa da fronteira entre Portugal e a Galiza quando este último reino era dependente de Castela e Leão. O Foral foi renovado por Afonso II (1185 – 1233) e Afonso III (1210 – 1279), sendo que este último condicionou os privilégios à obrigação dos habitantes do Couto de ajudarem na defesa da Piconha em caso de ataque inimigo. A relação entre a obrigação da defesa do Castelo da Piconha e os inusitados privilégios dos habitantes do Couto é reforçada pela confirmação do antigo Foral por D. Denis (1261 – 1325), que o faz quando da restauração da fortaleza, e por D. João I de Avis (1357 – 1433), que manda reconstruí-lo após sua completa destruição pelos castelhanos em 1388. Assim também fez D. Manuel (1495 – 1521), que concedeu novo Foral em 1515, quando mais uma vez a fortificação foi ampliada. Mas, se os privilégios dos habitantes do “Couto Mixto” se originaram na defesa do Castelo da Piconha, continuaram existindo durante o período da União Ibérica (1580 – 1640) quando já não fazia sentido a defesa das fronteiras dos dois reinos unificados sob a Dinastia Filipina dos Habsburgos, e mesmo depois da completa destruição da fortaleza em 1650, nas guerras que se seguiram à Restauração. Assim, os habitantes do Couto continuaram elegendo os seus governantes que tinham poderes administrativos e judiciais, tanto na esfera cível como penal, ao mesmo tempo em que legislavam sobre todos os temas de interesse da população, independentemente das leis espanholas ou portuguesas. A autoridade máxima local era denominada “Juiz”, escolhido em eleição directa pela população das três aldeias para um mandato de três anos, período após o qual ele próprio deveria convocar novas eleições. O Juiz era auxiliado por seis ajudantes, também eleitos, dois por cada uma das aldeias, chamados “homes de acordo”, que tinham competência para resolver os litígios mais simples e aplicar penas leves.

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Caso houvesse recalcitrância na submissão às penalidades sentenciadas pelos “homes de acordo”, estes requisitavam a actuação do “vigairo de mes”, pessoa escolhida para executar as decisões e que tinha o poder de nomear ad hoc dois homens do povo para ajudá-lo na tarefa. Além dos “homes de acordo” e do “vigairo de mes”, o Juiz era auxiliado pelos “homes bos” escolhidos pelos Conselhos de cada aldeia (“Concellos dos Pobos”). Muito embora a capital administrativa do “Couto Mixto” fosse a aldeia de Santiago de Rubiás, a eleição do Juiz a cada três anos era realizada em campo aberto, no vale do rio Salas, em local equidistante das três aldeias, onde os candidatos apresentavam suas propostas e planos de governo ao eleitorado antes da votação. Confirmando o “Nihil novi sub sole” do Eclesiastes, as regras eleitorais seculares do “Couto Mixto” já previam o instituto do recall ao determinarem que o Juiz eleito poderia ter o seu mandato cassado pelos eleitores, caso não fizesse uma boa administração, o que era feito através de um plebiscito. A legislação do Couto, com base no direito consuetudinário, era guardada numa arca de madeira com três fechaduras, a “Arca das Três Chaves”, depositada na igreja de Santiago de Rubiás, sendo que só podia ser aberta com o uso simultâneo das três chaves, cada uma guardada por um representante de cada aldeia, o que significa que todas as decisões eram tomadas por unanimidade, já que o Juiz eleito, que ficava com 9


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a chave da sua aldeia, não podia abrir a arca sem a concordância dos demais. Além disso, a arca só podia ser aberta na presença, além dos detentores das chaves, de quatro homens de cada uma das aldeias, e com a presença dos “homes de acordo” eleitos nas mesmas. Infelizmente, muitos dos documentos seculares mantidos na Arca foram destruídos pelos soldados franceses do Marechal Soult em 1809, quando fugiam das tropas portuguesas e inglesas comandadas por Lord Wellington. Mas, segundo Luís Manuel García Mañá, no seu magistral “Couto Mixto-Uma República Esquecida”, nem tudo se perdeu, uma vez que “mais algúns dos documentos “deberon de ser agochados e protexidos, xa que anos despois se atopaban de novo na arca”. Dentre os documentos guardados na Arca estavam os Forais que desde o século XII garantiam aos habitantes do Couto diversos privilégios que iam muito além da inusitada possibilidade de auto-governo em plena idade média: o direito de livre comércio com Espanha e Portugal sem pagamento de impostos, podendo vender os seus produtos nas feiras e mercados dos dois países; o direito de possuir armas sem licença das autoridades; o direito de não contribuir com homens aos exércitos em caso de guerras; o direito de conceder asilo tanto a portugueses quanto a espanhóis fugitivos da justiça dos seus países; o direito à liberdade de cultivo e comércio, mesmo de produtos submetidos ao monopólio (“estanco”) das coroas vizinhas, como o tabaco (à época chamado “herba santa”); e o mais que inusitado direito ao “Camiño Privilexiado”, uma espécie de servidão internacional que saía de Rubiás, passava por Santiago e entrava em território português até Tourém, num percurso de aproximadamente seis quilometros por terrenos de Portugal, onde os habitantes do “Couto Mixto” não podiam ser incomodados pelas autoridades portuguesas por qualquer motivo, só podendo ser detidas por flagrante delito em caso de homicídio. A junção do direito de asilo a qualquer fugitivo dos dois países vizinhos com o direito ao Caminho Privilegiado dentro de Portugal, como era de esperar, transformou o antigo “Couto Mixto” num verdadeiro “depósito” de perseguidos da justiça, o que levou os dois reinos a se preocuparem com as consequências da manutenção dos privilégios feudais do Couto, principalmente depois da legislação que decretou o fim dos privilégios constitucionais dos coutos em Portugal (1834) e da “desamortización de Mendizábal” (1836) em Espanha, que estatizou todos os bens oriundos das obrigações feudais da igreja e dos mansos comuns. Ademais, o “Couto Mixto” estava geograficamente situado na região dos “pobos promíscuos”, 10


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aldeias galegas situadas na raia seca entre Portugal e Espanha, onde a fronteira cortava pelo meio três lugares - Soutelinho da Raia, Cambedo e Lamadarcos -, fazendo com que algumas casas tivessem algumas partes num país e e outras no outros, já que a linha fronteiriça não obedecia a acidentes naturais, mas pelo contrário, passava por dentro de ruas e prédios residenciais, o que significava que a cozinha de uma habitação poderia estar sediada em terreno português e o “sobrado” em lugar da Galiza. Em 1864, Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Lisboa estabelecendo novos limites na fronteira entre os dois países, ignorando o direito histórico-jurídico dos habitantes do Couto e anexando as suas aldeias ao território espanhol. Portugal, por sua vez, ficou com as três “aldeias promíscuas”, também ignorando a milenar tradição galega dos seus habitantes. A história dessa interessante experiência democrática ficou esquecida por mais de um século, já que não interessava aos governos ditatoriais dos países ibéricos a sua lembrança, só começando a ser resgatada após a democratização de Portugal e Espanha, já na quadra final do século XX.

A DEMARCAÇÃO DO COUTO A Norte de Montalegre e para Oriente do local onde a fronteira se torce e a terra portuguesa avança pela regiões espanholas como um dedo, situa-se a aldeia de Tourém. O Couto Misto constituía outro dedo maior, paralelo ao anterior.

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Entre os cerca de 1200 habitantes (1857) que detinham privilégios especiais, uns eram espanhóis e outros portugueses, escolhendo qualquer deles livremente a nacionalidade que pretendiam: no momento da boda, colocavam um P (Portugal) ou G (Galiza) junto à porta de casa e bebiam à saúde de um dos reis (o que parece só ter sido verdade até à década de 40 do século XIX, altura em que receando serem incomodados pelas respectivas autoridades, fizeram desaparecer as letras substituindo-as por vários outros símbolos). Nos 2650 hectares por onde o Couto se entendia segundo Vasconcelos e Sá que em 1861 levantou a planta dessa área, conjuntamente com D. José de Castro - eles viviam em três aldeias, comportando 250 fogos no conjunto, separadas pelo rio Salas: Meaus a Norte e Rubiás e Santiago, a Sul. A uni-las entre si e a Tourém existia uma “vereda privilegiada” ou caminho neutro, por onde circulava o comércio que se fazia livremente. Esta situação muito antiga, foi unanimemente reconhecida tanto por parte de Portugal como de Espanha, que não se poderia manter, por ser particularmente propícia ao contrabando, e nesses terrenos se acoitarem também bandos de malfeitores, embora o próprio Presidente da segunda comissão mista reconhecesse, que à altura já não era assim e que as duas autoridades ali intervinham. Além disso, os seus moradores não pagavam impostos, nem tãopouco os “tributos de sangue”, havendo no entanto e desde há muito, alcavalas dadas a um e outro país e à Casa de Bragança, seu senhorio e donatário. Até 1834, o juiz ou alcaide eleito pelos habitantes do Couto, era ratificado pelo juiz de Montalegre.

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Várias autoridades de ambos os lados, aí reunidas em 1819 haviam confirmado a sua pertença portuguesa, em virtude do foral que possuía a Casa de Bragança pelo sítio chamado Castelo da Piconha, pelo que ao nosso país pagariam também as multas por cultivarem tabaco que não fosse para uso exclusivo dos moradores. Do ponto de vista da jurisdição eclesiástica, dependiam de Espanha, tal como Tourém. A resolução da questão do Couto Misto, em cuja partilha o governo de Madrid nunca transigiu durante a demarcação preparatória do Tratado de 1864, foi talvez a que mais embaraços causou à comissão mista: nem a mais justa proposta portuguesa de divisão pelo rio Salas que fora apresentada desde o início, nem outras, demoveram a secção espanhola, apesar dos direitos provados, incluindo também o usufruto já muito antigo das pastagens do Couto por parte de três localidades junto a Montalegre - Padroso, Donões e Sabuzedo, ou tãopouco, o desejo de muitos habitantes serem portugueses. Nos acertos diplomáticos, Portugal acabaria por renunciar a favor de Espanha, como esta sempre pretendeu, a “todos os direitos que possa ter sobre o terreno do Couto Misto e sobre os povos nele situados, os quais (…) ficam em território espanhol” - Tratado de Limites, 1864, art.º 7.º, tendo-se ainda acordado - art.º 22.º do mesmo Tratado, que os habitantes do Couto Misto que fossem súbditos nacionais, pudessem, se lhes conviesse, conservar a sua nacionalidade, pelo que tinham de o declarar no prazo de um ano perante as autoridades locais. A expressão popular provou que afinal a proposta portuguesa de demarcação havia sido a mais ajuizada.

A ARCA ERA A LEI Uma imponência de pedra|... A igreja paroquial de Santiago tem paredes lisas, com excepção dos vitrais que enrubescem um altar opulento, talhado do chão ao tecto em dourado. Tem um enorme crucifixo ao centro, uma figura de São Tiago à direita e uma Senhora do Pilar à esquerda. Mas o que é verdadeiramente surpreendente, é que galgando o púlpito e contornando o altar, se encontra uma escadaria invisível aos olhos dos fiéis, que desce até uma câmara escondida no subsolo. Nessa cave, um espaço bafiento e mal iluminado, existe uma relíquia, uma arca antiga de madeira de carvalho e com três fechaduras. Dentro dessa arca estão reunidos os principais documentos que garantiram durante 13


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séculos a autonomia ao Couto Misto. Cartas dos reis de Portugal e Espanha. Mas também as actas de todas as resoluções tomadas pelos juízes da lei, os representantes eleitos de cada aldeia e governadores do Couto Misto. Esse cargo continua a existir, embora hoje tenha um papel meramente simbólico. Mas, tal como no passado, cada um dos três homens tem em seu poder uma das chaves que abrem a arca. Só as três chaves conseguem abrir o baú. O mesmo é dizer que nenhuma resolução era tomada se não fosse por unanimidade.

Nas aldeias ainda há várias casas com um P, um E ou um X, esculpido na pedra, por cima da porta. As famílias decidiam se queriam ter nacionalidade portuguesa, espanhola ou mista (mixta, em galego) de uma maneira muito simples: no dia do casamento, o homem tinha de fazer um brinde a um dos reis, diante de todos os vizinhos. A maioria, no entanto não brindava e marcava o X na parede, porque em caso de delito, seriam julgados pelos três juízes do Couto. “A prisão era aqui, no forno do povo”. “Os ciganos eram logo detidos, sem acusação nenhuma. Por isso é que existia um vigário de mês, que era um cargo de rotatividade mensal entre os homens do Couto, com função de vigiar o caminho privilegiado.

O PAÍS DA MEMÓRIA Entre Meaus e Santiago há um enorme lameiro, a que toda a gente chama “a veiga”. Foi ali que o povo do Couto Misto votou a 14


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integração na coroa espanhola em 1864. O referendo foi cumprido segundo as leis do Couto. Um voto por família de pau no ar.

Muitos queriam ficar do lado português mas desde logo ficou decidido que as três aldeias haveriam de permanecer juntas, para preservar a identidade. Outras aldeias da raia passaram pelo mesmo processo, já que as linhas de demarcação fronteiriças eram ténues até ao século XIX. E na verdade, só uma povoação escolheu ficar do lado de Portugal. É por isso, que olhando para o mapa, Tourém parece ficar na ponta de um dedo, rodeado de Galiza. Os mistos, optaram por Espanha. Mas uma parte do antigo território, a encosta do Gerês, passou para as mãos de Lisboa. Os lameiros na zona de fronteira sempre foram pastados por vacas galegas e barrosãs”, garante quem por ali andou uma vida inteira passada em Tourém a traficar contrabando entre Portugal e Espanha. “Ninguém conhece aquela zona tão bem como os contrabandistas. Durante décadas, o usaram o caminho privilegiado (que já não oferecia outro privilégio senão o de um certo recato e do difícil acesso às autoridades) e os terrenos do que um dia foi o Couto Misto para carregar volfrâmio, azeite e bacalhau. A encosta do Gerês, que foi mista e hoje é portuguesa, nunca deixou de ser usada pelos rebanhos de Rubiás e Santiago, ao contrário dos de Meaus por estarem mais longe. Na aldeia de Rubiás e durante toda a vida, os pastores sempre levaram as vacas para Portugal e a fronteira nunca deixou de ser um marco pouco natural, para os “mistos”. “Há quantos anos ninguém me perguntava pelo Couto Misto”, constata Enrique Veloso durante uma visita feita à aldeia, depois de uma passagem por Tourém. “Sabe: o meu avô falava desses tempos, 15


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mas a partir dos anos de 1930 foi uma conversa proibida, porque havia a Guerra Civil e esse assunto ia contra a unidade nacional.” “Ia contra o cabrão do Franco, essa é que é essa”, riposta logo Aníbal Alvárez, sentado num caixote e apoiado numa bengala, boina galega a cobrir a cabeça calva. “Em minha casa sempre me disseram que eu era misto, que o meu pai era revolucionário.”

E o pai dizia-lhe que mesmo não sendo do seu tempo, ouvira as histórias dos homens que vinham de fora casar e estabelecer-se. “O meu avô falou de muitos assassinos espanhóis que vieram para aqui esconder-se, a pensar que não lhes acontecia nada”, comenta José Rodríguez. “Mas vinham todos enganados, porque com um crime desses aos ombros eram logo recambiados para Espanha. Ou para Portugal, se fossem portugueses.” Hoje, dizem os meus interlocutores que gostariam de voltar a ser mistos, como antigamente. “Rapaz, nós somos mistos, sempre fomos”. Aníbal outra vez: “Na nossa terra mandamos nós.” O terramoto de Lisboa destruiu os arquivos da fundação do Couto Misto e os primeiros relatos escritos datam do século XIII. Estas eram as terras da Piconha, incluíam as três aldeias do Couto, mais Tourém e um castelo construído no Gerês, cuja localização exacta permanece uma incógnita. É certo que D. Manuel I mandou reconstruir a fortaleza em 1515, e que três anos mais tarde, as populações de Rubiás, Santiago e Meaus se sublevaram contra o 16


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governador local António Araújo, por causa da imposição de imposto no caminho privilegiado. O corregedor de Riba Côa, António Correia, e o alcaide-mor da Galiza, José Escalante, condenaram o governador português do castelo da Piconha e também o espanhol do vale do Salas, e acordaram que a partir desse momento, o povo misto teria o direito a privilégios de autonomia para não ser vítima de novos abusos. Até ao século XIX, a pequena república de pastores manteria as suas regras medievais inalteradas. Em 1810, a Junta de Armamento do Reino da Galiza recebeu uma carta do prior de Celanova, que está guardada no Arquivo Histórico da Província de Ourense, acusando o território do Couto Misto de acolher um “número infindável de moços fugidos à tropa e de criminosos de toda a espécie”. E essa queixa desencadeou o processo que levaria ao fim do Couto Misto, com a assinatura do Tratado de Lisboa em 1864. Hoje, o vale do Salas esqueceu a história dos homens e regressou ao seu estado primitivo, o de uma criação esmerada da natureza. É uma república esquecida, uma Andorra que nunca o chegou a ser, como um dia disse o padre Lourenço Fontes. E no entanto, ao falar com um grupo de velhos, homens nomeados juízes, contrabandistas ou empresários, percebe-se que a mística dos mistos ainda não sucumbiu totalmente. É fim da tarde de junho, o sol presta-se à despedida e inunda agora o vale do Salas de um tom dourado. Escalam-se as fragas a meio caminho entre Tourém e Pitões das Júnias, aquelas que garantem a melhor vista do Couto. E nessa altura, no exacto momento em que uma águia plana majestosamente ao longo do rio, percebe-se que a fúria de fronteiras e a cobiça territorial acabaram com um país, para construir no lugar dele coisa nenhuma.

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BIBLIOGRAFIA Terras de Barroso (Origens e Caracteristicas da Região) Domingos Vaz Chaves

INDICE Aspectos Gerais A História Os Povos Promíscuos Couto Misto – Uma República com 800 anos A Demarcação do Couto A Arca era a Lei O País da Memória

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