4 minute read
CAPÍTULO 1: A LAMA
from Trajetórias de uma lama litorânea: peças cerâmicas, arte educação ambiental e ações relacionais
by Duke Orleans
Capítulo 1: A Lama.
É claro que a lama não nasceu em 2015 (jornal Correio Mercantil de 1901 notificou o fenômeno), mas esta iguaria vinha sendo degustada em doses homeopáticas nas últimas décadas, porém, agora a alopatia agressiva se assentou na praia do Cassino. Existem vários registros anteriores desta deposição, mas o fato é que o fenômeno tem se acelerado nos últimos anos comprometendo a socialidade desnuda da beira da praia planificada mais antiga do Brasil. Cenário ideal para filme de zumbis ou mutantes que emergem do lameiro já transmutados cenicamente, mas o cenário desconcertante para uma imagem paradisíaca de um beach no extremo sul do Brasil. Polêmicas a parte a origem do fenômeno, o fato é que o Cassino virou um “Mar de Lama”. O olhar dos transeuntes não está no Mar (Oceano Atlântico) mas na praia que formou um novo oceano constituído por lama. O que de fato está acontecendo com a praia do Cassino de forma cada vez mais frequente?
Advertisement
(TORRES, 2015, p.66)
A lama na praia do Cassino aparece como intrusa, “alopatia agressiva” que ameaça a “socialidade desnuda” e o faz de forma cada vez mais frequente. O que estaria acontecendo? Ou poderíamos pensar: o que é a lama? Desde 2015, desenvolvo experimentos de transformação da lama em pasta cerâmica. Uma pesquisa que pôde se desenvolver durante os anos de 2017 a 2019, através do Projeto Sal Cerâmica, que recebeu apoio do ILA – Instituto de Letras e Artes através de bolsa de pesquisa EPEC. Através do projeto de pesquisa nos dedicamos ao estudo da possibilidade de transformação da lama do Cassino em pasta cerâmica, com o objetivo de utilização para o ensino e a produção de peças utilitárias e artísticas, bem como para a realização de ações de arte educação ambiental. Com a orientação da Professora Roseli Nery (ILA/FURG), partimos deste objetivo inicial: o desenvolvimento de massas cerâmicas a partir do estudo das propriedades plásticas, físicas e químicas da lama do Cassino, bem como de outras argilas encontradas na região de Rio Grande e que serviram também para a conformação de pastas específicas. Os resultados encontrados revelam que esta matéria prima possui propriedades condizentes para a conformação de pastas cerâmicas eficientes para uso artístico e artesanal.
Visualizando a potencialidade da lama como base para as massas cerâmicas, bem como o interesse da comunidade que passou a ter conhecimento desta pesquisa, inicialmente em feiras públicas como o caso da Quitanda Cultural, 1 depois com o Atelier
1 Quitanda Cultural, feira em praça pública promovida pela Secretaria de Cultura de Rio Grande, acontece na Praça Xavier e na Avenida do Cassino.
Livre do Mercado (Rio Grande), com as práticas de ensino-aprendizagem das técnicas de modelagem cerâmica, ampliamos a pesquisa para o projeto de extensão Sal Cerâmica, levando a possibilidade de preparo das massas, ensinando novas técnicas de modelagem e acabamentos, introdução aos processos de queima e o envolvimento carinhoso com a aldeia Guarani que se encontrava em Domingos Petroline Outro desdobramento do projeto foi a iniciativa de configuração de um espaço autônomo de ensino e produção de peças cerâmicas, chamado barroôco.arte, que fomentou a ideia de uma eco olaria que irei apresentar mais à frente. Estas ações de fomento à produção cerâmica local envolveram um trabalho de pesquisa da história da cerâmica na região, como algo do qual se tem registros arqueológicos, como os descritos no livro Sítios de Pesca Lacustre em Rio Grande, RS, Brasil, que aponta que:
A cerâmica forma uma tradição própria, denominada Vieira por Schmitz e Brochado (1966): possui mais semelhanças com as tradições cerâmicas platinas do que com as do Planalto Brasileiro. São recipientes simples, rasos, pequenos, com antiplástico mineral, geralmente sem decoração, às vezes com a superfície externa coberta por suaves impressões da polpa do dedo (digitado), roletada ou ponteada; nos períodos iniciais, a base do recipiente pode estar coberta por um engobo branco, como certas cerâmicas do Rio do Prata; final do período a parede externa pode estar coberta por impressões de cestaria. (SCHMITZ, 2011, p.72-73)
Com o conhecimento arqueológico aliado na intenção de seguir produzindo argilas com os elementos naturais locais, foi possível perceber o domínio de técnicas que foram apenas apropriadas ao material em questão, como o uso de antiplásticos, que são substâncias para corrigir o excesso de plasticidade, como areia, ou chamote, e/ou outras argilas, para melhor estruturar a lama e posteriormente desenvolver as peças, não com a intenção de reprodução do que foi passado, mas de fomentar a evolução cerâmica local, bem como:
A evolução da cerâmica Vieira de formas mais rasas, menores e mais diversificadas para formas um pouco mais profundas, um pouco maiores e mais uniformes, mostra, além de um maior domínio da técnica, um maior ajustamento na exploração dos recursos uniformes do ambiente. (SCHMITZ, 2011, p.249)
Destaca-se o potencial cultural implicado na possibilidade de facilitar às novas comunidades que habitam na região, no século XXI, o fazer e o saber de uma prática ancestral que ficaria relegada ao esquecimento e que poderia proporcionar novas alternativas de expressão e promoção de uma cultura viva e permanente. Nesse sentido,