INEXSISTENCIALISMO
INEXSISTENCIALISMO ENSAIOS PHILOSOPHICOS
São Paulo
Casa de Ferreiro
Inexsistencialismo: ensaios philosophicos
© Glauco Mattoso, 2023
Revisão
Lucio Medeiros
Projeto gráfico
Lucio Medeiros
Capa
Concepção: Glauco Mattoso
Execução: Lucio Medeiros
FICHA CATALOGRÁFICA
Mattoso, Glauco
INEXSISTENCIALISMO: ENSAIOS PHILOSOPHICOS/Glauco Mattoso
São Paulo: Casa de Ferreiro, 2023
126p., 21 x 21cm
CDD: B896.1 - Poesia
190 - Filosofia moderna ocidental
1.Poesia Brasileira I. Autor. II. Título.
NOTA INTRODUCTORIA
Tractei ja, num volume intitulado ESTUDOS PHILOSOPHICOS, daquellas questões mais metaphysicas, que não couberam em volumes attinentes a alguma religião, alguma mystica corrente, egreja, em summa, alguma fé. Faltava approfundar a face mais ligada às racionaes indagações, razão destes ensaios onde está transcripto o contehudo dos dialogos com esse joven interlocutor chamado Phedro, um cerebro brilhante que, embora delirante em varios ponctos, accaba, como Nietzsche, equacionando adspectos bem polemicos, na sua visão da minha falta de visão accerca do que estamos a fazer da nossa tão inutil exsistencia. Dialogos, sim, mesmo que evitando mostrar as minhas fallas, para appenas as delle exhibir, como que em louvor dos novos intellectos do paiz.
[25/08/2022]
[1] O SER E O NADA A VER
Prazer em conhescer-te. Sou leitor teu desde longa data, mas não tenho siquer meus trinta, ainda. Ah, sim, meu nome é Phedro Ulysses. Muito prazer, mesmo, Glaucão. Propor-te quero uma conversa de cunho philosophico. Tu queres commigo discutir certas questões da mente, metaphysicas, talvez, mas sempre na materia tendo um pé? Estás disposto? Dizem que me metto demais na vida alheia. Não repares, portanto, si eu fizer comparações que possam parescer deselegantes com essa tua vida de ceguinho, pois ellas me serão fundamentaes ao logico ou connexo raciocinio. Não quero ser socratico, mas vou partir dumas perguntas que, si fores com minima franqueza responder, teremos engrenado bem o pappo.
Bem, vamos la. Primeiro, relembrar pretendo um teu sonnetto, que dizia:
{Não sei si o ser é somos ou estamos, si somos ser somente estando em vida, ou si está ja, de facto, resolvida
a maxima questão: "Para onde vamos?"
[...] Questão não é "to be or not to be" nem "penso, logo exsisto" sem lazer. Questão é termos crença de não ser inutil que estejamos por aqui.
Não é coisa difficil de entender: Quer seja alguem que chora, alguem que ri, o pensamento é valido por si. Pensamos que exsistimos. Resta crer.} [0173]
Paresce-me ja claro um poncto, Glauco: o ser não será "sou", mas sim "estou".
Estamos de passagem, pois nascemos, vivemos e morremos. São conceitos battidos. Que revel-os temos. Quem nasceu, nasceu materia. A mente só registra alguma coisa caso nossa memoria, appós as decadas, voltar ainda possa àquillo. Nesse caso, não eramos nenhum pensante ser até termos uns quattro ou seis anninhos.
Teu caso, vate, illustra bem. Te lembras do penis que chupaste, tendo uns cinco, daquelle teu vizinho, ja de septe. Mas, antes, exsistias só naquillo que tua mãe contava sobre ti.
Ou seja, consciencia ainda não terias de exsistires, si crer fosses
appenas num espirito ou numa alma. Digamos que exsistias como corpo mas 'inda não, ou nunca, como mente. Em sendo, pois, materia, não "nasceste", pois eras exsistente ja num ovulo, na porra do papae e, por seu turno teus paes foram materia que ja vinha de porras e particulas pregressas, assim, pois, sem jamais haver principio, excepto na divina creação ou numa theoria biologica qualquer, que não importa aqui citar, tractando-se de especie, em algo, humana. Em outra poncta, Glauco, tu não morres emquanto corpo fores, ja que, quando cadaver te tornares, mudarás de forma, mas ainda alli materia exsiste e seguirá sendo materia, quer seja como uns ossos, como um pó que esterco ja virou, ou como fossil que irá, noutro momento, servir como estudo ou como peça de museu.
Percebes este ironico, cabal e immenso paradoxo? Mortaes somos appenas em espirito, mas, como materia, nós seremos immortaes! Sim, Glauco! Si memoria não tivermos
de nada, nada pode exsistir, para a nossa autoontologica noção.
Até posso fazer um trocadilho com outro bom vocabulo: "onthologica", suppondo ja que esterco nos tornamos...
A merda, aliaz, pouca differença faz, sempre "escatologica", si for tambem "eschatologica", Glaucão... Agora a accompanhar-me te convido no caso da visão, que certos cegos perderam, outros nunca della podem lembrar-se, eis que nascidos cegos são.
No caso do ceguinho que nasceu assim, si cor nenhuma viu, as cores jamais exsistirão nem exsistiram. No teu caso, Glaucão, tu só te lembras das cores a partir de quantos annos?
Do teu macacãozinho de bebê qual era a cor, Glaucão? Nenhuma, porra! Bebê tu nunca foste e macacão, portanto, não tiveste. Foi appenas historia a ti contada por mamãe.
Das cores tu te lembras, inclusive nos sonhos? Isso passa. Si ficares gagá, te exquescerás dellas. Então jamais ellas teriam exsistido.
Do mesmo modo, quando tu morreres,
memoria mais nenhuma terás dessas imagens coloridas, nem de nada, ou seja, a propria vida, como o mundo, na tua mente, como no universo, perdeu todo o sentido, só restando teus versos para a prova de que estavas vivendo por aqui. Bello consolo... Porem o teu cadaver, até mesmo si em cinzas se tornar, permanescer irá, constantemente transformado. Não morrem as moleculas, os atomos, mas, como ja não pensas nisso, tu não vives, não viveste, em summa, Glauco. Nosoutros, si, depois da tua morte, lembrarmo-nos de ti, será por prazo pequeno, pois iremos, nós tambem, deixar de exsistir como um dia alguem pensou que "seres" fossemos, humanos. Portanto, si de "essencia" não podemos fallar, que immaterial se denomine, só resta a material vida a quem queira alguma coisa a tempo desfructar, sem culpas nem remorsos pelo mal que tenha feito ou pelo bem que nunca fez para algum "irmão" ou "semelhante". Descartes concluiu que, si pensava, estava vivo. Bella conclusão,
que nunca acreação explicará, pois Deus cria a materia mas não deixa na gente essa semente que, na mente, permitte que creiamos nelle por aquillo que creou. Inutil termos nós crença tal num ente superior, si nossa crença morre com nosoutros. Deixando de exsistir a crença, deixa tambem de exsistir esse Deus humano, producto duma logica fallida, assim como outras logicas absurdas, tambem cartesianas, mas inuteis.
Alguem ja commentou que, si Deus morre, é tudo permittido. Tambem acho.
Lembrei-me, por signal, dum teu sonnetto, no qual tu pões na bocca de Confucio a phrase que nem é de Nietzsche, mas dum russo, o Dostoievsky. Nietzsche só fallou que Deus estava morto, não que tudo nos seria permittido.
Fallando nisso, Glauco, reparaste tu como os atheus nunca, abertamente, confessam ser atheus? De quem teem medo?
Dos homens? Temem criticas? Fogueira?
Ou medo teem é mesmo de que Deus exsista? A mim, atheus deviam ser anarchicos, rebeldes contra tudo
e todos. Deveriam é chutar o pau dessa barraca, a sociedade.
Não basta ser agnostico: o subjeito precisa assumir, quando na latrina esteja accommodado, obrando sua materia, ja alterada, que ingeriu que, caso não consiga demonstrar que exsiste esse chamado Deus, corremos o risco de que, em summa, não exsista.
Citemos, caro bardo, o teu sonnetto:
{Sentado na privada, vate, estou emquanto com você teclo. Pensei:
Será que destas coisas todas sei ou dono da verdade nunca sou?
Será que Deus exsiste, em termos, ou appenas a supposta, a sua lei? Pensei bastante e... Porra, meu! Caguei um troço que nem Socrates cagou! Mas, como eu disse... Espere, Glauco, só mais um pouquinho... Ui! Ufa! Mais um fiz, enorme, grosso... Fico tão feliz das tripas desaptando mais um nó!
Emfim, eu lhe dizia que nem pró nem contra sou aquillo que se diz dum Deus omnipotente... Ei, mais um bis eu dei! Que cagalhão! E pororó...} [7111]
Com isso uma questão fica accabada.
Voltemos, entretanto, para a fria vaquinha, a transcripção do teu sonnetto.
Usar "confusionismo" trocadilho foi muito suggestivo, menestrel.
Vejamos como ficam os teus versos: {Confucio disse e eu, credulo, repito: "Si Deus morrer, é tudo permittido!"
Entendes, Glauco? Opino, ouço, decido e macto, si quizer, de Deus o mytho!
Pensemos com Confucio! Não me ommitto na hora de dizer de que duvido! Deus pode tudo? Usal-o faz sentido?
Ou somos nós que temos tal conflicto?
Sim, Glauco, ouçamos nossa propria mente, que echoa aquella phrase lapidar! Ja todos poderão assassinar um Deus que se suppoz omnipotente!
Então, valerá tudo! Sopa quente, sorvete geladinho, cada bar vendendo um bom sanduba, pelo mar navios navegando... Ou sou descrente?} [6844]
Tirando o lado comico, o que dizes reflecte bem aquillo que supponho.
Mas disso fallaremos mais addeante.
Voltar quero, Glaucão, àquelle poncto da nossa consciencia por effeito appenas da memoria. Assim, nós somos
producto do passado, o mais recente, no caso das tarefas quotidianas, roptina que seguimos sem pensar, ou somos, dum passado mais remoto, refens de inappellavel condição. Teu caso, o do menino que soffreu estupro oral, alem do fetichista effeito das soladas e pisões na cara, te remette "eternamente", ou seja, pelo prazo duma vida inteira, a tal ephemera passagem, tornando tua vida a tal "missão", no olhar dos kardecistas, missão essa que, para quem não passa por estupro egual, será vivida de maneira diversa, não voltada ao sexo dicto cruel, ou seja, sadomasochista. Nosoutros, Glauco, quando nos lembramos das scenas que, de infancia, nos marcaram, é para alegres factos festejarmos, tambem duma "missão" sendo signaes, porem de positivas consequencias.
Nem todos felizardos são, nem todos tiveram a feliz infancia dessas historias commoventes da ficção. Mas cada qual converte seu passado em fonte de exemplares aptidões
ao longo desta vida que, brevissima, tem prazo que somente nos permitte cumprir, ou não cumprir, ou descumprir o nosso "fado", um termo discutivel, que implica a liberdade de fazermos, por livre decisão, aquillo tudo que estava destinado para nós.
Um pouco de esoterico occultismo até pode caber para accalmar pesadas consciencias, mas não cabe nenhum moral sermão nos biographicos relatos dos "perdidos" neste "plano" que effeito tem de estrada accidentada. Alguem se realiza como o bom ladrão, para alguem como o mau poder tambem realizar a sua saga. O gay se realiza como gay, a puta como puta, alem do cego que como chupador tenha acceitado viver, caso não morra antes de estar bem disso plenamente consciente.
De sortes ou azares eu não fallo, pois somos nós sortudos si soubermos usar nossos azares como tu usaste, em beneficio do tesão, ainda que masoca. Do limão fizeste limonada. Algum de nós
terá feito, tambem, um succo doce das suas desventuras, si souber os factos encarar como um signal daquillo que, na vida, nos agguarda em termos dum lembrete irreversivel. Eu proprio ja notei que, por ter feito diversas crueldades contra quem commigo conviveu, sem ter siquer soffrido qualquer typo de castigo, terei como "missão" expezinhar ainda muita gente em minha vida. Mas isso mais addeante explanarei. Só quero concluir, Glaucão, que, por emquanto, definimos o conceito de "ser" como o de "estar", ja que passamos um tempo bem pequeno, si comptarmos appenas o que fica na memoria durante esta fugaz philosophia. Deixemos, por agora, aqui illustrado o pappo com aquelle teu sonnetto que eguala alguns analogos destinos:
{A coisa é mathematica: si alguem
lucrou, outrem perdeu. Quando um centavo no bolso entrou-me, alguem, que o tinha, sem o dicto agora está, mas as mãos lavo.
E quando alguem gargalha, outrem mais bravo ou triste o contraponcto fará: vem
ao caso assignalar que todo escravo trabalha emquanto folga o amo que o tem. Assim, para que o orgasmo um homem goze e satisfaça a sua phantasia, um outro de agonia a mesma dose terá de supportar: eis a harmonia. O sadomasochismo, pois, se explica. Um soffre, emquanto um outro se sacia.
O cu se sacrifica, emquanto a picca penetra, arromba, rasga e se ecstasia.} [2012]
[15/08/2022]
[2] OBJECTANDO O OBJECTIVO E OBJECTIVANDO O SUBJECTIVO
Não sou negacionista, Glaucão, mas aquillo que se pensa da sciencia não passa de illusão. Sinão, vejamos... As duvidas accerca deste mundo visivel e palpavel são aquellas erguidas pelos sabios scientistas, por technicos nas areas mais "exactas", ou seja, as que com numeros trabalham e em comptas mathematicas calculam. Mais duvidas teem elles do que nós, philosophos. Não digo que, na practica, algumas descobertas scientificas não tenham advançado com successo no campo technologico. Comtudo, funccionam para appenas mascarar, tal como um anesthesico, o supplicio diario, quotidiano, dos humanos aqui neste planeta abbandonado, especie de zoologico de especies que luctam pela mera sobrevida. Num tal "valle de lagrymas", quem tem algum conhescimento scientifico se illude por suppor que é mais capaz de tanta adversidade enfrentar com
authenticos progressos, seja a fome, a sede, extremas dores, morbidades, phenomenos climaticos, affora as guerras, os eventos violentos. No meio disso tudo, si pudermos, ainda que por breve tempo, orgasmos gozar, mesmo que seja às custas dos coitados que soffrendo privações estejam, acharemos a alegria, ainda que illusoria, de viver. Os mesmos scientistas que se gabam de tudo conhescer melhor que nós, os mesmos sacerdotes que, em Deus crendo, allegam que teremos salvação, são, elles todos, muitas vezes, quem mais soffre esse infructifero tormento do humano sacrificio, um transe insano.
Allega quem sustenta a scientifica pesquisa, a descoberta "comprovada", que exsiste essa actual "realidade", em termos, "objectiva", que nos dá visão mais panoramica daquillo que chamam "universo" cognoscivel, no qual sentido faça a nossa vida.
Allega quem fé prega num Deus magico que exsiste essa fatal "penalidade", em termos, "subjectiva", que nos dá
visão um tanto onirica daquillo que chamam "paraiso", feito um premio que desta absurda vida nos resgate appós termos, si formos sempre estoicos, podido supportar o soffrimento. Dum lado, uma visão dicta "real" e, doutro, uma visão dicta "fiel".
Nenhuma dellas, Glauco, soluciona a duvida maior da nossa vida: Vivemos, affinal, por quanto tempo? O tempo da materia na qual temos um corpo transitorio? Ou mais um tempo, ou antes, ou depois, ou ambos esses estagios, um "eterno" tempo, sem relogios nem bissextos kalendarios, no qual reencarnamos successivas e tantas vezes quantas necessarias a alguma perfeição? Si for num tempo "real", não tem sentido nossa vida, pois nada sobrevive nos planetas por muitas eras dictas "astronomicas". Si for num "fiel" tempo, tambem não consigo ver sentido nesta vida, pois, caso seja alguma penitencia appenas temporaria, não terá valido nada a pena ter passado por isto quem deseja algo melhor.
E, caso seja a nossa recompensa por outra bem peor encarnação passada, significa que é melhor perdermos as futuras esperanças naquillo que jamais compensará o minimo de inferno que encaramos. Sem chance: encarnação nenhuma pode fazer com que subamos um degrau em termos de comforto, numa longa escada que nos cansa cada vez mais, quanto mais subimos, doloridos nas pernas, ja sem follego, um horror...
Comforto material, sim, nós podemos ter, caso neste prazo consigamos tirar algum proveito dos que estejam abbaixo de nosoutros. Mas comforto de espirito não acho razoavel que exsista, Glauco, salvo si qualquer otario crê nalguma "salvação" que nunca, no final, lhe chegará.
Fiquemos, pois, com estes argumentos que chamo provisorios: Tu não tens nenhuma chance, caso na sciencia alguma confiança deposites em termos duma cura da cegueira.
Não tens nenhuma chance caso sejas tu crente em taes espiritas discursos
accerca da melhor encarnação futura, comparada à actual phase de cego masochista que supportas. Que resta, menestrel? Pensa commigo... A cura do glaucoma não exsiste.
Tampouco uma possivel cura para teu quadro diabetico. Privado estás duma visão que mal tiveste emquanto um pouco lias e escrevias.
Privar-te irás tambem de comer doces?
Viveste teus septenta. Talvez vivas oitenta ainda, às custas de remedios tomados todo dia. Algo compensa a falta da visão? A poesia paresce compensar, ja que tu tens, por meio della, tantos desabbafos composto, fora alguma deixa para leitores que desejem abusar da tua condição de cego, numa sessão de fellação ou de massagem podal, linguopedal, coisas do typo. Porem, algo compensa quaesquer dessas
dietas idiotas que, durante bastante tempo, foste respeitando?
Não, nada, menestrel. Por isso observo com todo o meu appoio o teu intento de bollos e puddins appreciar
sem culpa nem remorso, tal e qual me vejo quando opprimo ou expezinho alguem que em meu poder tenha cahido. Saber approveitar, no que é possivel, a vida, nesses ludicos momentos de tregua nas agruras quotidianas, é tudo que nos resta, si quizermos cumprir uma "missão", termo que irei, em outros destes pappos, explanar melhor, para chegarmos, talvez, ao desfecho dum fructifero discurso. Concluo, por emquanto, transcrevendo um typico poema teu, tomado por "Individualista" manifesto, que illustra a tal questão do "subjectivo" com termos mais satyricos. Puzeste na bocca dum leitor phrases do typo: {Bobagens, Glauco! Pouco vale sermos humanos todos! Vale tão somente aqui sermos quem somos, ou melhor, ao menos que sejamos quem pensamos que somos! Glauco, uma autocognição é coisa para poucos! Que se foda quem pensa pertencer a qualquer gruppo, nação, religião, facção, povão! Mal sei como meu proprio cu funcciona! Ainda perder tempo vou com gente
maria-vae-co'as-outras, Glauco? Vão tomar todos no rabo! Penso só por minha cabecinha, melhor digo, por minhas cabecinhas! As vaquinhas que fiquem no presepio collectivo!} A tal leitor tu mesmo respondias: {Em parte até concordo com seus termos, mas mesmo tendo mente independente de livre-pensador, ao meu redor percebo dos demais os seus reclamos, com elles me comparo, dou razão a muitos excluidos, pois ha toda especie de injustiça. Me preoccupo com isso, o que me torna quasi irmão daquelles que me entendem nesta zona. Si dizem que o poeta finge e mente, talvez seja por isso que noção melhor tenha daquillo que dá dó nos outros. Não concorda, meu amigo?
Ainda que discorde destas minhas bobagens, com você sempre convivo...} [7984]
[16/08/2022]
[3] DA NOÇÃO DA DAMNAÇÃO
Glaucão, continuar queres o pappo de forma a não pararmos em Descartes? Então, duas premissas não deschartes. Primeira, a que lhe exponho como segue. Os velhos pensadores pessimistas entendem que, no mundo, um equilibrio jamais exsistirá quando sommamos as coisas dictas boas, comparadas às coisas dictas más, compta que nunca batteu nem batterá. Si em Schopenhauer a vida acção implica, fatalmente tambem implicará dor ou exforço. Portanto, um saldo sempre negativo. Ja Schiller relaciona às frustrações os nossos mais diversos ideaes: no caso da ancestral felicidade, estamos, desde Buddha, bem scientes dos prattos na ballança, que só pendem ao peso do que contra nós recae, conforme Leopardi tambem nota.
No caso da bondade, desde Paulo scientes mais ficamos de que, sem o nosso Deus christão, os homens perdem quaesquer noções de como bons possamos ser, para que este mundo melhor fosse.
No caso da belleza, a frustração esthetica acharás tu, por exemplo, num Oscar Wilde, fora tantos outros momentos litterarios no Occidente. No caso do vulgar conhescimento, ja desde Pyrrho observo o scepticismo, só para não citar as conclusões bastante irracionaes que em Hartmann lemos e, em termos de cultura, num Spengler. Estão esses auctores no que chamo listão dos pessimistas. Mas tambem opino que na lista jamais pode faltar um nome magico: o marquez de Sade, que desfaz dos ideaes aos quaes me referi, quando sustenta o culto da maldade, sempre em boa e franca syntonia com o culto da anal fecalidade, em syntonia, tambem, com a mais suja fealdade. Bem sabes, Glauco, como Sade encara os ethicos principios, ja que hypocritas os acha: a recompensa da virtude será sempre soffrer a punição por compta dos azares mais crueis, emquanto o vicio nunca castigado será. Pelo contrario, sempre vence. Fallar nem necessito dos dystopicos
romances, que num Orwell ou num Burgess, retractam futuristas sociedades, porem ja no presente e no passado veridicas em toda dictadura. Não achas, menestrel, que explicitei os obvios argumentos pessimistas? Emfim, outra premissa, a secundaria, se pode collocar neste momento. No caso de hypothetico optimismo, appenas registrar vou que quem quer fazer a apologia dessas boas e nobres intenções tambem concorda que, nesta vida, nada a fazer ha que possa melhoral-a. Appenas resta que, em outro plano, cada qual obtenha a sua recompensa pelos males soffridos, na devida proporção, conceito um tanto utopico, só para um termo menos digno não usarmos, o duma grande e mera sacanagem.
Poemas compuzeste, muitos, sobre teu grande pessimismo. Os que mais leio por gosto, porem, fallam com humor accerca dessa lei, dicta de Murphy, talvez mais philosophicos que muitos compendios metaphysicos. Por outra, serão "murphylosophicos". Dois delles
irei mostrar aqui, linhas abbaixo: {É lei: o pão do pobre sempre cae co'o lado da manteiga para baixo. Nós disso ja sabiamos, mas ai de quem se queixa, e nisso eu ca me encaixo!
Bem sei que algum leitor fallar ja vae na tal da "lei de Murphy", mas eu acho que sempre foi assim: a coisa sae errada porque o Demo quer, diacho!
A roupa que do advesso a gente veste, a acção que em alta estava e cae a zero, roubando o que na Bolsa a gente investe, o taxi que passou quando eu não quero, a chuva que só cae si estou na rua, o radio quando o ligo e só tem lero, o pau que brocha quando ella está nua...
O azar sempre tem sorte! Acaso mero?} [2138]
Mais este corrobora a mesma these:
{Com muitas variantes se enuncia a velha lei de Murphy: "Si haver pode a probabilidade, uma fatia que seja, de foder, a coisa fode."
Por outras palavrinhas: "Quem se fia na chance de dar certo, tire o bode da chuva, ou o cavallo!" Ja dizia o calvo: "Quem faz barba, faz bigode!"
Inutil discutir: o pão do pobre,
excasso ja na mesa dum christão, do lado da manteiga que o recobre, na certa cahirá, voltado ao chão! Duvidam? Quantas vezes for jogado, ainda que se inverta a posição, de novo vae cahir do mesmo lado e a Murphy accabará dando razão!} [2142]
Paresce brincadeira, appenas para leituras mais ligeiras, mas tu fazes analyse precisa, menestrel. Mais tarde voltarei àquella lei. Agora proseguir vou na questão.
Partindo do principio de que somos nós maus por natureza, ainda quando neguemos que exsistisse "essencia" numa humana natureza, a vida aqui na Terra poderá ser definida, comforme ja tu mesmo definiste nos teus "deshumanistas" dissonnettos, mais como um infernal presidio, um desses locaes que, como "campos de trabalho forçado", são historicos exemplos daquillo que é barbarie, si não for a "civilização" dos nossos sonhos, em feios pesadellos transformados. Ao "campo de trabalho" uma noção mais simples poderei eu adduzir:
um "campo de exterminio". Não concordas, Glaucão? A nossa vida, aqui na Terra, se enquadra num local de execução, digamos que não como uma colonia penal tão kafkiana, mas ao menos tal qual uma prisão do typo dessas que encontro nos teus proprios versos, Glauco:
{Ouvi fallar, Glaucão, que na Koréa do Norte exsistem campos de trabalho forçado onde elles chupam o caralho dos guardas, comem merda com platéa! Si for verdade, Glauco, horrivel é a vidinha desses presos! Si não falho na analyse, comer só bosta attalho é para a morte, em dupla diarrhéa!
Será que morrem mesmo? O ser humano é muito resistente e bem se adapta a tudo nesta vida, se constata!
Não creio que será tão feio o damno! Comer cocô? Não, disso não me uffano!
Mas, antes que um algoz desses me batta, melhor é degustar, na mais sensata
opção, o cagalhão dalgum tyranno!} [7128]
Tambem vale citar este sonnetto:
{Bons tempos, Glauco, quando se podia punir com castração e com cegueira alguem que, na segunda, até primeira
vez, tenha demonstrado rebeldia! Depois de cego, fica a autonomia do gajo reduzida a verdadeira prisão sem grade. Mesmo que elle queira fugir, não pode, noite sendo, ou dia.
Você bem sabe, Glauco. Um prisioneiro cegado obedescer vae, sem direito a queixa, ao carcereiro. Me deleito com isso. Do que rolla bem me inteiro. É pena que não rolle em brazileiro presidio, mas, emfim, acho bem feito.
Você não vae dizer que é preconceito, não é? Não fosse, Glauco, um punheteiro!} [6100]
Ainda citar devo um outro seu:
{Eu gosto de ver, vate, esse scenario de campo de trabalho, ou de prisão!
Eu gosto quando nunca dizer não alli me irá nenhum presidiario!
Adoro ver um homem (acho hilario) de quattro, rastejando pelo chão!
Eu mando e, de joelhos, elle então me chupa, appós sentir gosto urinario!
Um homem, quando fica adjoelhado na minha frente e chupa, satisfaz as minhas taras, Glauco! Sou capaz de nelle descomptar meu lado sado!
Me excita que elle esteja condemnado,
cumprindo pena! Até que você faz papel desse que nunca terá paz na vida, que lhe resta, de forçado!} [7215] Chamemos de emblematica a figura das torres de vigia, das quaes guardas observam, pelo pateo, os prisioneiros por outros guardas sendo submettidos, na marra, a todo typo de inclemencia, de indigno tractamento, de indiziveis acções, de imposições inenarraveis, de extrema crueldade, de espectaculo malvado ou deshumano, de scenario de torpe impiedade, de vexames e tantos mais surrados euphemismos daquillo que "sadismo" se chamou com muita propriedade de expressão. Mais tarde, explorarei essas imagens nos minimos detalhes, ja que tens fascinio por versões nuas e cruas. Agora concluir quero, Glaucão, o thema deste ensaio com as classicas e sacras allusões ao purgatorio christão, aos infernaes locaes aonde irão, segundo varios cultos, todos aquelles que, durante suas vidas terrenas, incidiram em peccado, noção que se tornou banal pretexto
àquelles phariseus de sempre, em todos os typos de regime, democraticos ou não, para dourar da vida a pillula. Ou seja, por mais triste e infeliz que esta vidinha nos paresça, ainda mais horrivel e medonha a vida pode ser, caso nós tenhamos que pagar peccados num inferno que, si for à Terra comparado, faz da vida terrena verdadeiro paraiso, portanto preferivel a qualquer hypothese dum sabio pessimista.
Àquelles que philosophos não são e engolem facilmente esses sermões de expertos sacerdotes, pode ser consolo um tal pappinho, que não vae em nada alliviar as dores delles. Mas, para nós, Glaucão, que vaccinados estamos contra magos, demagogos, gurus, videntes, clerigos, caudilhos ou estellionatarios, a noção da vida se resolve neste plano, ou nunca se resolve, por assim dizer, ja que philosophos não fazem questão de resolver nada, ao contrario daquelles scientistas que pretendem ser donos da verdade, tanto quanto
prophetas, antichristos e quetaes. O resto opinaremos pelos proximos capitulos, si estás 'inda disposto. Aqui só finalizo com mais dois sonnettos "murphologicos" da tua sarcastica auctoria, menestrel: {Nem com o fatalismo deve a lei de Murphy confundir-se, nem siquer com mero pessimismo. Constatei na pelle o que versejo por mester. É com o cayporismo, mesmo, eu sei, que está relacionado o que vier de bom ou de ruim: jamais serei feliz, nem quando a sopa é de colher.
Si a sopa vem quentinha, ou queimo a lingua, ou acho alguma mosca, quando pingo-a na bocca aos poucos, morta na colher.
E, caso venha fria, está provado: o lado positivo occulta o lado real de qualquer coisa, de qualquer...} [2294]
Mais este serve para arremactar:
{Si, mesmo na peor, um optimista quizer contrariar o que aqui vim tentando demonstrar, talvez insista fingindo que "nem tudo é tão ruim".
Ao cego, que perdeu, alem da vista, os brios e o cabaço, é nada assim
tão pessimo que appague qualquer pista de que 'inda não peore: é foda, emfim. Si um supersticioso na madeira quizer batter e a Murphy ainda queira tentar neutralizar, está fodido, pois tudo, neste mundo, actualmente, de plastico ou de latta, é resistente aos homens. Melhorar? Eu, hem? Duvido!} [2300]
[16/08/2022]
[4] PROLEGOMENOS DE EPISTEMOLOGIA COMPARADA
Agora, Glaucão, quero discutir comtigo um pouco sobre esse scenario que em pappos anteriores ja pinctei, a vida comparando com um campo daquelles de mortal "concentração".
Primeiro, um teu poema analysar pretendo, do qual tomo boa parte:
[...] {Calculem, si o nazismo, appós guerreiro conflicto, triumphasse e a "solução final", mas não judaica e sim terceiromundista, confinasse os que visão normal não tenham, nesse captiveiro de cem milhões, um unico e grandão paiz! Um gigantesco e derradeiro ghettão, um territorio onde Sansão é o povo e philisteu o carcereiro reinante, ou commandante de plantão, zarolho zelador que, com ordeiro exercito zarolho, em condição canina manteria num puteiro
ceguinhas e ceguinhos que ao tesão dos guardas serviriam, sob o cheiro de mijo, a practicar a fellação submissa, obrigatoria, em roptineiro serviço e na total escravidão!
Não acham tal scenario o mais certeiro? Jamais um Saramago ou Orwell tão concreta dystopia achou, e eu beiro tal obra em minha lyra, ja que não me canso de cantar este cegueiro prognostico que os numeros me dão. Congresso ophthalmologico ou olheiro do mundo, seus participes farão dos dados estatisticos o argueiro...} [8470]
Vejamos. Descomptada a phantasia de serem todos cegos os que estão no campo confinados, os zarolhos vigias fazem bello parallelo com minha noção basica de como irão se comportar os que poder deteem sobre quem fica alli detido. Independentemente de quem seja cegado ou seja cego de nascença, exsiste hierarchia alli, Glaucão. Os presos entre si se pisam. Uns, mais fortes e pesados, são pisados appenas pelos guardas e nos presos mais fraccos pisarão, numa cadeia corrente de desforras, com perdão do reles trocadilho. Os guardas, por seu turno, obedescer irão aos seus agentes superiores, que estarão
às ordens de quem fica mais accyma appenas por pequena differença de escala, assim por deante. Esse scenario reflecte, em microkosmo, o nosso mundo inteiro, um sempre sendo por um outro pisado. Occorre, claro, que quem é um pouco menos cego, ou semicego, zarolho, myope, estrabico ou daltonico accyma vae ficando dos que enxergam ja quasi nada. A vida, nesses casos, terá significado differente conforme cada peso supportado debaixo de pés pouco ou muito grandes, de poucos ou de muitos pisadores. Emquanto não prosigo, cito como exemplo um teu poema, allusão dura ao caso orwelliano, nestes termos:
{"Si queres uma imagem do futuro, será a bota, pisando um rosto humano...", diz Orwell pela bocca do mais duro carrasco, que a seu preso inflige o damno. Si Winston entendeu, um tanto obscuro paresce, mas o poncto orwelliano mais nitido reside neste puro conceito, que o carrasco impõe, uffano:
"Um mundo de pisar ou ser pisado...", sem chances, antagonico, binario.
Assim será o futuro baseado em odio e humilhação! Que a gente encare-o!
Não faz o auctor nenhuma prophecia. De facto o vejo, caso aqui compare-o, parelho: ja o passado offerescia exemplos do poder totalitario.} [1705]
Aqui, faz cada qual o seu papel.
Eu, por exemplo, creio que, no quadro geral, occupo o posto dum dos guardas zarolhos. Tu, Glaucão, occuparia logar dum dos mais baixos prisioneiros. Ahi se estabelescem as angustias vitaes mais pessoaes, conforme suas menores ou maiores perspectivas, as grandes ou pequenas esperanças por parte dos que encontrem mais motivo ou menos para achar na vida algum consolo ou lenitivo. Tu te bastas com tua poesia, a qual, por sua vez, leva à putaria, hallucinada ou mesmo realista, a te servir de breve passatempo na comptagem dos annos, regressiva, até que chegue a hora de encerrares teu papel.
Meus annos maior prazo me concedem e como passatempo posso usar quaesquer dos prisioneiros para meu
prazer de expezinhar alguem mais fracco. Mas ambos estes nossos casos nos remettem e encaminham para a mesma e identica armadilha alli na recta final: nossa memoria appagará, de subito, qualquer registro disto que estavamos fazendo. Deixaremos, emfim, de exsistir como mentes, só restando os nossos corpos, que se egualam nas cellulas da carne, nas particulas menores da materia, que perduram em forma de poeira astral, ou kosmica. Das mentes, tua, minha, nada fica. Bem, para na questão não divagarmos às tontas, vou propor-te que pensemos num methodo objectivo para alguem tomar conhescimento do que esteja aqui fazendo, ou antes, "perfazendo", tractando-se daquella "perfeição" que nunca attingiremos na supposta e sempre inexsistente encarnação futura. Aqui, somente "imperfeição".
Voltemos às socraticas perguntas.
Te lembras da bimbinha que chupaste aos cinco? Tinha qual edade quem na bocca te fodeu sem erecção, no rosto te pisou, então? Uns septe?
Ja viste numa photo os dois meninos no tempo do pisão e da chupada?
Aquella photo crês que é verdadeira? Mas viste tu, tambem, a tua photo ainda bebezinho, com a cara de poucos amiguinhos, essa cara de bunda que 'inda tens... Não viste, Glauco?
E então? Inda accreditas que essa photo tambem é verdadeira? Mas tu não te lembras do teu tempo de bebê...
Te lembras? Não, é claro. Como podes, então, accreditar naquella photo si disso tu não tinhas a lembrança? Mas vamos admittir que consideres aquillo como prova de que estavas ja vivo nesse tempo de bebê.
Pudeste ver a photo por ainda alguma visão teres. Quanto tempo tem isso? Uns trinta anninhos? Uns quarenta?
Agora que não podes rever essa imagem, accreditas 'inda nella?
Ou achas que era tudo uma miragem?
Peor: Naquella photo dos meninos, com cinco tu, com septe esse que em ti pisara, ainda podes crer? Mas como, si ja não a revês quando quizeres? Confias na memoria? Muito bem.
Então é verdadeira aquella photo dos dois meninos... Outra, a do bebê, não, essa não seria verdadeira, pois disso não terias a lembrança. Agora te pergunto: Si exquesceres até daquella photo dos meninos, si dessa chupetinha não puderes lembrar-te, isso teria accontescido?
Emfim, qual o criterio que empregamos nós para acquilatarmos algum facto que nossa breve vida nos comprove ter sido verdadeira alguma vez?
Palavra só dos outros? Documentos escriptos? A memoria dos amigos?
Não basta, menestrel. Emquanto tu te lembras, tu confias que exsistiu. Mas, quando punhetinhas não puderes batter, daquellas scenas a lembrar-te, ahi nada daquillo terá sido verdade. Entendes, Glauco? Ou não entendes?
O mundo, um objectivo mundo, não exsiste, si não pode ser egual ao mundo subjectivo. Glaucão, é precisamente disso que se tracta. Percebes a verdade, essa verdade tão fragil, tão instavel, tão volatil?
A tua percepção do que é "real"
se chama, tão somente, intuição, mas não intuição husserliana, mais phenomenologica, mais "clara", e sim intuição dum "palpitometro" que temos na cabeça, apparvalhados que somos. O que intues é producto não duma racional observação, mas duma atroz e tosca confusão mental, que te impulsiona a mattutar. Nenhum dado concreto occupará logar do mais maluco devaneio. Assim occorrerá com todos nós.
Ninguem é testemunha de ninguem e todo documento, quer iconico, quer graphico, quer seja algo palpavel, não serve como prova ja de nada, pois, sendo peresciveis ou não, são inuteis, si ninguem estiver vivo a fim de se ver nellas, nessas provas ephemeras, fugazes e infructiferas.
Ainda te pergunto: O que pensaste da vida quando tua visão ja perdida para sempre estava, Glauco?
Querias te mactar? Si te mactasses, composto não terias toda a tua immensa producção e não serias lembrado por tal obra. Muito bem.
Mas nada addeantou, pois não serás lembrado por aquillo que deixares escripto, ou digitado, siquer algo impresso, menestrel. Mesmo que tenham algum valor esthetico ou erotico, que sirvam de punheta para alguem que irá gozar pensando na cegueira alheia como fonte do prazer mais sadico possivel (e é meu caso), são todas essas obras, como toda artistica tranqueira nesta Terra, tambem inexsistentes, si passados alguns poucos millennios e nós todos, humanos, habitantes do planeta nem formos mais, depois de exstincta a nossa especie... Entendes isso, menestrel? Qualquer conhescimento fica, assim, pendente de qualquer comprovação, subjeito, para todos os effeitos, ao crivo transitorio dos que estejam aqui para tal coisa approveitar. Então approveitemos, menestrel, aquillo que podemos, pelo tempo possivel, da maneira mais orgastica possivel, si taes gozos são momentos, appenas, só momentos, menestrel. E então? Inda respostas tens a dar?
Ainda a responder tu te dispões? Pois vamos proseguir nisto, Glaucão. Agora transcrever quero o teu proprio poema, "Manifesto nihilista", que illustra à perfeição tudo o que eu disse: {Sobrar não vae é nada! Nada, meu amigo! Você pensa que será lembrado? Mas ninguem se lembrará de nada, aqui na Terra, Glauco! Sabe por que? Da nossa raça, dos humanos, ficar não vae vestigio, nem siquer um livro, um disco, um quadro, um casarão!
Glaucão, vou lhe dizer, meu: va por mim! Desista! Rasgue tudo! Sim, delete ja todos os archivos! Pense só no doce, no torresmo, na pipoca, que em breve virarão mero cocô!}
A tal leitor supposto, retrucavas: {Talvez. É bem possivel que esse seu tristonho raciocinio, desde ja, se imponha. Mas a gente sempre está tentando se entreter. Até que accabe a vida no planeta, faço planos, projecto o meu futuro, por qualquer coisinha me emociono... Por que não? Adjuda a passar tempo... Tão ruim não é versos compor. Não nos promette
bellezas o porvir? Da nossa avó pensemos no docinho! Quem evoca um disco não se exquesce do vovô...} [7992]
[17/08/2022]
[5] HEDONISTICO ESTOICISMO OU ESTOICO HEDONISMO?
Glaucão, eu te confesso que te leio, por vezes, como quem endossa aquillo tudinho que escreveste em teus sonnettos. Agora analysar irei aquelle chamado "Condizente epicurismo", que está transcripto como consta abbaixo.
{Prazer não é fruição, não é pau duro, appenas, nem puddim, nem vinho fino: tambem é o que, na mente de Epicuro, idéa forme sobre seu destino.
Si evito o soffrimento, eu só procuro o gozo, é natural. Mas imagino gozar porque outrem soffre, e até torturo alguem, si sou mais forte e elle é franzino. Não basta que abbastado eu seja e sobre comida em minha mesa: quando um pobre se priva do que eu como, é mais gostoso jogar sobras no lixo, desdenhoso.
Si enxergo bem e alguem me chupa o pau, melhor que seja um cego, cujo mau destino tornarei mais desdictoso e assim desfructarei mais do meu gozo.} [2191]
Collocas tu, na bocca dos leitores, aquillo que elles querem, sim, ouvir dum cego masochista. Agora quero
jogar minha versão destas verdades. Primeiro, te pergunto, Glaucão, isto: Achavas tu que eu, como um carcereiro daquelle immenso campo de trabalho no qual os presos, cegos, se concentram, appenas desfructei cada momento das dores delles, cada chupetinha que deram no meu penis, sem siquer pensar, num postorgasmo, nos meus dias futuros, no destino que terei?
Si estavas a pensar que só me excito naquelle instante mesmo do pisão na bocca dum ceguinho, da bombada garganta addentro delle, estás suppondo errado, menestrel. Mas, si estiveres suppondo que elucubro tambem sobre um typo de prazer mais prolongado, mais firme e duradouro, te direi que estás suppondo certo, menestrel, pois nada do que faço nesta vida a meros momentinhos se limita.
Segundo ja affirmaste em teu sonnetto, assim que exporro dentro da garganta dum cego, me masturbo muitas vezes ainda, a posteriori, collocando-me, na mente, em logar delle, e me deleito pensando que elle nunca mais verá
as cores que eu bem vejo, que elle nunca de paz desfructará quando dormir, que nunca approveitar iria a vida tal como qualquer normovisual. Não, nunca me illudi sobre meu breve periodo de carrasco, sobre minha tão curta vida como capataz, mas quero optimizar a minha sorte, às custas dos azares dos ceguinhos, na practica, tal qual na theoria. Curtir esses azares delles vale na hora da chupeta tanto quanto na hora da punheta posterior, nas horas de repouso ou nos momentos dum ecstase em que fico, na audição dos classicos symphonicos, pensando em como sou feliz, emquanto os cegos chafurdam na maior das provações, chupando o meu caralho toda vez que eu quero, sem ouvirem o que eu ouço, sem mesmo o meu puddim ou o meu bollo poderem degustar como degusto.
Passar irei, tal como passarão os cegos, mas terei approveitado melhor minha passagem. Percebeste?
Naquillo que respeita a ti, transcrevo, primeiro, um teu sonnetto que pretendo,
depois, analysar, intitulado "Penitente estoicismo", como segue.
{A logica, em Zenão, rege o subjeito, e só serei feliz caso eu acceite, pacifico, o destino que, perfeito, traçou-me um tosco esboço, sem enfeite. Feliz não é quem tira seu proveito das coisas materiaes. Nenhum deleite, Zenão preconizou, deste conceito faz parte: appenas paz, quando eu me deite. Dormir tranquillamente não é tudo: terei de, na vigilia, aguentar mudo si alguem de mim gozar porque estou cego e disso não descanso nem sossego. Acceito meu destino. O masochismo, comtudo, me consola, pois eu scismo que fello um phallo emquanto a cruz carrego e assim, estoicamente, attendo ao ego.} [2187]
Não, vate, este sonnetto não lhe faz justiça. Teu destino, tudo bem que devas acceital-o. Todavia, tu soffres ja de insomnia ha muito tempo, insomnia da qual tiras energias de sobra a teus poemas, fora as scenas tiradas dos terriveis pesadellos que, quando tu consegues dormir, tens. Não venhas, menestrel, dizer que paz
almejas ao deitares, si de dia padesces da cegueira mais atroz em cada minutinho que transcorre dos annos que te restam. Por favor, não penses que me engannas com o teu estoico discursinho de consolo. Tambem não me convence essa conversa de coisas materiaes que para traz deixadas ja seriam. Impossivel deixarmos de gozar de taes delicias. É tudo que nos resta, ja que espirito não serve para nada, siquer para o nosso paladar entreter com puddins, tortas e bollos, fora alguns quitutes salgadinhos bem crocantes.
Tu sabes disso, tanto que fizeste innumeros sonnettos sobre coisas gostosas de comer, principalmente manjares prohibidos aos que teem teu quadro diabetico, Glaucão.
Portanto, não me venhas com tal pappo. Consola-te saber que 'inda apprecias da mesa as boas coisas, inclusive bebidas tão amadas por poetas, taes como os vinhos finos, os licores?
Pois tracta de beber emquanto podes, emquanto o teu estomago, o teu figado
ainda tudo podem supportar. Naquillo que respeita ao erotismo, porem, tu me paresces consciente da tua condição de invalidez, submisso que estarás, aqui no campo dos cegos internados para sempre, a todos os caprichos dos zarolhos vigias, carcereiros e carrascos. Te resta appenas, Glauco, consolar-te fazendo o que tiveres de fazer com toda a paciencia, a habilidade, uns pés massageando com a lingua, uns paus abboccanhando com total empenho, no serviço da chupeta.
Si dessa actividade 'inda puderes tirar as phantasias que te irão, mais tarde, povoar as tuas bronhas, no lucro certamente estarás, Glauco. Com isso passarás o tempo para, um dia, te exstinguires deste mundo. Espirito? Ora, tracta de exquescer! Não ha sobrevivencia dos espiritos, siquer dos que tiveram boas coisas das quaes se recordarem. Sim, consola-te com este meu lembrete: exquescerás, assim que tu morreres, essa tua cegueira. Fique claro que "exquescer"
é força de expressão, ja que se exstingue a mente com a vida material.
Em summa, menestrel, não és estoico. Não, nunca foste estoico. O que és eu sei. És mesmo um hedonista, approveitando o pouco que tu podes neste pouco tempinho que 'inda passas por aqui. Correcto foste, então, no teu sonnetto "Correntes philosophicas", que diz: {Estoico, o cego sabe que não é. Jamais se conformou: perder a vista lhe fora duro golpe. Em nada a fé christan lhe dá motivo a que resista. Ja o joven, bello e rico, cujo pé ao cego inspira o verso fetichista, deleita-se em pisal-o e chega até ao gozo o escravizando, epicurista.
O cego é fracco e morbido, appesar do genio creativo. Escravizar alguem assim é ludico ao rapaz.
O genio philosophico do joven permitte que as botinas só lhe escovem seus servos, não o cego, si lhe appraz.} [2171]
O joven de quem fallas no sonnetto podia ser eu mesmo, mas não sou.
Sou sadico, confesso, mas não rico.
Que importa? Não direi que importa pouco
ter grana, si hedonismo significa saber approveitar cada momento e nisso quem tem grana approveitar melhor irá. Mas para, aqui no campo, alguem ser um zarolho capataz importa mesmo o sadico poder de em todo prisioneiro pisar. Certo?
É disso que se tracta: de quem fica por baixo, por ser cego, ou de quem fica por cyma, por ser normovisual, ou, como no proverbio, o rei, por ter um olho, pelo menos. Concluindo, si estoico ninguem é, dizer se pode que somos hedonistas, cada qual conforme seu poder de decisão e suas naturaes limitações. Com Hegel concordando neste poncto, affirmo que hedonistas somos todos, até quando fazemos sacrificios, pois algo mais à frente exploraremos, ao menos por pathetico pretexto da atroz masturbatoria phantasia.
O resto, vate, é cynico sophisma, assumpto que explorar iremos mais à frente neste ludico colloquio. Por ora, aqui me basto com os teus sonnettos sobre dois velhos proverbios.
Primeiro, o do peor cego, transcrevo. {Um cara, analysando para mim o sadico proverbio, foi bastante feliz, ao fallar tudo o que me encante, embora alguns contestem. Falla assim:
"Um cego, para mim, será ruim si nada ver quizer, pois se garante na sua teimosia, na constante vontade de ir assim até seu fim.
O cego bom será quem ser refem não queira da cegueira, quem se faça rebelde contra a sua van desgraça, sabendo que dó delle ninguem tem. Ahi, sim, mais gostoso o tesão vem, pois, vendo um impotente, no que passa de extrema dor, ainda mais devassa é minha picca, que elle chupa bem!"} [5714]
Agora, a tua terra sendo o thema. {Tambem outro dictado um gajo leu à sua firme e sadica maneira, na qual, tirando sarro da cegueira, papel faz do mais puro philisteu:
"Em terra de ceguetas, se fodeu aquelle que beijar o pé não queira de quem for rei caolho, ja que inteira razão todos lhe deram!" Fallei eu:
Qual é, pela visão de quem só tem
um olho, o tractamento que deseja o rei daquella terra, sem que eleja
o povo livremente, emfim, alguem?
O gajo respondeu: "Quererá, sem pudor nenhum, punir quem não rasteja a seus pés, quem gostinho de cereja não acha no seu pau, nem diz amen!"} [5715]
[18/08/2022]
[6] PYRETICO DELIRIO EMPIRICO
Ainda te indagar quero, Glaucão, partindo deste teu sonnetto, sobre as tuas descobertas philosophicas mais practicas, mais uteis na cegueira. Chamar de "nauseante" esse empirismo que titulo deu para teu sonnetto foi uma solução das mais felizes.
Então vou transcrever aqui teus versos:
{O cego, tacteando, reconhesce o espaço em que se encontra. Na medida daquillo que tacteia, idéas tece accerca do universo e desta vida.
Apprende, ao se ferir: jamais se exquesce da chamma quente a arder, da dor sentida. Constata ser inutil sua prece si está à mercê dum sadico homicida. Fará o que lhe ensignarem. Caso alguem, gabando-se de como enxerga bem, mandar que o cego chupe, não vacille, engula sem ceder ao fel da bile!
A practica lhe mostra por que está no mundo: ser escravo de quem dá as ordens, de quem brilha no desfile, ainda que um ceguinho o fel destille.} [2192]
Appós esta leitura, a perguntar
ja passo. O que pensavas da cegueira emquanto de visão ainda tinhas um pouco? Suppuzeste que estarias immovel, sem poder siquer andar tu dentro do teu proprio lar? Na rua ainda menos? Tudo o que sabias da vista dependia antes de estares definitivamente cego? Ou tu ainda accreditavas que podias, depois de ter perdido todas essas antigas referencias visuaes, talvez reapprender a viver numa prisão domiciliar, dicta "perpetua"? Eu, como teu leitor, ja me inteirei de todos os detalhes dessa tua total inaptidão para a cegueira. Por isso te pergunto: Quantas vezes queimaste tu teus dedos no fogão, tentando cozinhar alguma coisa, ao menos uns trez ovos, ou ferver teu leite de manhan? Hem? Quantas vezes cortaste esses teus mesmos dedos com a faca, a serra, a aguda tesourinha usada, sem successo, para as unhas?
Algum saber empirico ja tinhas que, desde sempre, indica quaes perigos tu corres, ao usares essas laminas,
ao teres duma chamma muito perto chegado... Precisavas de mais provas?
O simples raciocinio não bastava ja como prevenção dos accidentes domesticos? Não, claro. Nunca basta. Bastasse, quem enxerga normalmente jamais se queimaria, nem nas mãos taes cortes soffreria. Tu pensavas que, em pouco tempo, certa habilidade podias adquirir quando, sozinho, em casa te encontrasses? Que illusão! Não só tu dependias de terceiros nas coisas mais banaes, como tambem naquillo que terceiros com um cego quizessem fazer para algum proveito tirar desse indefeso otario, Glauco. Lambias tu sapatos antes dessa definitiva perda? Solas tu lambias, ja descalças? Rollas sujas chupavas? engolias sebo ou mijo?
Até que isso tudinho tu fazias, mas era por vontade propria, não por força da vontade de terceiros.
Os rostos, os nus corpos dos que tu lambias ou chupavas eram ja do teu conhescimento ou tua propria excolha, menestrel. Porem, depois
de estares totalmente cego, quem à tua casa fosse, entrar podia, de extranhos em maldosa companhia, chegar para as mais sadicas sessões de estupro ou divertida zoação. Passaste, que eu fiquei sabendo, uns maus boccados em poder desses extranhos, até comendo merda, sem quereres comer, bebendo mijo sem quereres beber, soffrendo dores sem quereres soffrer. Ou me engannei, Glaucão? Me diz! Responde, então: O simples raciocinio, a mera precaução dum consciente e intelligente cerebro, tal como o cerebro que tens, não bastaria, Glaucão, para taes curras evitar? O lado racional, porem, não foi bastante para aquillo concluir por antecipação e foi preciso passares por aquellas coisas todas. Aos poucos, percebeste que nem mesmo à força precisava recorrer quem vinha te currar, ja que imploravas de rastros, de joelhos, piedade pedias e farias certas coisas, bastando que na cara te jogassem algumas philosophicas verdades,
alguns incontornaveis argumentos, alguns insophismaveis theoremas.
Eu, por exemplo, caso tua casa um dia visitasse, não seria comtigo camarada, menestrel.
Tapões nas fuças, chutes e pisões, ao lado de eruditos commentarios, seriam minhas solidas razões a fim de convencer-te de que deves fellar sem discutir, degluttir fezes, si forem minhas ordens essas, sem siquer titubear, meu caro bardo.
Talvez, nos meus momentos mais febris, eu fosse violento um pouco mais, appenas para ver-te em desespero, mas, para meu deleite corriqueiro, bastava adduzir, para cada gommo de merda que engolisses, cada coppo de mijo que tomasses, um de meus cabaes e irrefutaveis syllogismos, taes como o que empreguei ja, num momento de sobrio raciocinio, sem estar de todo delirante e ethylizado:
{São todos os cegados inferiores aos normovisuaes. Ora, Glaucão, ja cego tu ficaste e eu vejo. Logo, tu deves fazer tudo o que eu quizer.}
Tu deste syllogismo queres prova? É facil. Só te indago uma coisinha.
Melhor maneira para convencer um cego de que esteja a fallar serio quem queira approveitar-se delle é qual?
Appenas argumentos lhe lançar ao rosto? Ou desferir-lhe dois tapões bem dados nas bochechas? Quaes funccionam melhor? Cultas palavras ou tabefes?
Não achas que somente por temer algumas bofetadas o ceguinho ja fica de joelhos? Isso prova que só com racionaes demonstrações ninguem descobrirá que sente dor levando umas porradas. É preciso que empiricas medidas alguem tome, lascando-lhe na cara aquelle tapa que estalla, deixa a pelle vermelhona e causa, alem da dor, humilhação. Assim patente fica aquillo que eu te venho, vate, expondo nesta nossa conversa affectuosa, porem franca.
Sabemos ambos, caro menestrel, que, estando ja no campo um cego, não terá nenhuma duvida mais sobre a sua condição de escravo otario e expõe-se, conformista, a todo typo
de eroticos abusos dos zarolhos vigias. Eis, na practica, a certeza de como uma licção de vida affecta quaesquer comportamentos dos internos. Depois de este empirismo termos nós passado bem a limpo, poderemos fallar de racionaes conceitos, Glauco.
Estás disposto para novos pappos?
Então, antes de entrarmos no capitulo seguinte, transcrever irei o teu sonnetto magistral, "Sensorial": {Dos planos do sentir pouco sabemos.
Sensiveis todos somos, mais ou menos, mas nunca attingiremos os extremos.
São seres sensitivos só os pequenos.
Alem das dimensões ha que suppor?
Sentir é propriedade material.
A gente sente a forma, o peso, a cor, aromas e calores, doce ou sal.
Philosophos entendem que a verdade não passa de illusão. Pensamos nella appenas como quem adspira, anhela:
delirios dum recluso attraz de grade.
Tambem são mensuraveis odio, amor?
Sentir é perceber o que é real, mas é tambem querer, seja o que for, alguem ou algo, intenso, especial.
Espirito é vital para que amemos?
Si somos sensuaes, quem sabe é Venus, ou falta ainda ouvir os nossos demos?
Serão sentimentaes somente os plenos.} [0418]
[19/08/2022]
[7] IRRISORIO RACIONALISMO OU IRRACIONAL CYNISMO?
Terei que submetter-te, caro Glauco, a algumas sabbatinas si quizermos chegar a conclusões mais advançadas naquella direcção da racional noção de que exsistir deve, talvez, um ente superior a todos nós, emfim, um Deus, supremo, omnipotente, capaz de ter creado, ou inventado, as raças mais diversas, deste mundo creado, tambem este, por tal Deus. Mas vamos, sem maiores prolegomenos, àquelle teu sonnetto que se chama, alem de "coherente", termo bem banal, "racionalismo", outra palavra bastante discutivel para nós, philosophos. Aqui transcrevo os versos:
{Si soffre um cego e para p'ra pensar, deduz por que é tão negra a escuridão.
Descobre, no universo, seu logar, cartesianamente: ao rés do chão.
Si exsisto, logo penso: meu azar tem uma elementar explicação.
Com quem tem sorte venho contrastar; meu olho cego é antithese do são.
Preciso estar privado p'ra que alguem
desfructe da visão e, com desdem, me faça a bocca abrir ao seu caralho que, para ser chupado, dê trabalho. Serei util, no mundo, na directa razão de como cumpro minha meta, mostrando, emquanto chupo, quanto valho e para qual funcção, na vida, calho.} [2193]
Bem, antes da ballança que propões tu para contrastar o teu azar à sorte dos que enxergam normalmente, nós temos que encontrar origem para a antithese que exsiste em relação
a duas noções basicas: dum Bem, do lado do qual haja algum Deus nisso, e, doutro lado, um Mal, representado, nas lendas theologicas, por quem satanico julguemos e chamemos
Satan ou Satanaz, fora alguns nomes que em outro momentinho citaremos. Por isso lembrar quero outro sonnetto
teu, Glauco, o "Theologico", que diz:
{Si exsiste Deus, de onde é que vem o mal?
Si não exsiste, de onde vem o bem?
Resposta: exsiste o Demo, e Deus tambem, e aqui reside o poncto principal.
Divide-se o poder de egual p'ra egual e omnipotente ja não é ninguem.
Colloca-se o dilemma: orar a quem? Quem vae nos proteger do seu rival?
O jeito é accender vella para os dois, uma p'ra cada um, sinão dá briga, e piccuinha a gente não instiga.
O resto a gente deixa p'ra depois. Na hora do suspiro, é fazer figa, orando sem dar nome, em vão, aos bois, p'ra que o placar nos seja dois a dois e que ninguem de fora faça intriga.} [0176]
Ja lido o teu sonnetto, um tanto comico, algumas questões basicas te quero
propor, vate. Então vamos la, responde: Nasceste com glaucoma. Certo? Quem no mundo te poz, Glauco? Tua mãe?
Teu pae participou? Mas quem no mundo, doente, te poz, Glauco? Foram elles?
Quizeram os teus paes que tu nascesses doente, menestrel? Si elles quizessem, teriam tal poder? Claro que não.
Quem pode decidir si qualquer um ja nasce com defeito ou com doença que nunca tenha cura, fatalmente levando o portador para a cegueira?
Ou seja, a questão basica não é saber si exsistes, Glauco. Si teu mal congenito deixou-te cego um dia,
sem duvida que exsiste consciencia, ao menos provisoria, tua, sobre teu tragico glaucoma progressivo. Um dia si enxergaste, essa visão na certa alguma vez exsistiu. Certo?
Si estás cego, si sabes o que é ser um cego desgraçado, fica claro que exsistes como um cego desgraçado.
Portanto, não ha duvida que exsistes -- em termos provisorios, fique claro.
Comtudo, o teu destino de ceguinho traçado foi por quem? Pela cigana?
Ou foi pela cegonha, porventura?
Não, Glauco. Um superior ser te marcou.
Precisas questionar si Deus exsiste?
Não, claro que não. Deus exsiste, pela razão elementar de que precisa, exacto, que PRECISA alguem, que tenha poder tal, exsistir, pois um culpado terá que exsistir para responder por todos esses males de que somos as victimas inermes e indefesas.
Mas isso não é tudo, menestrel.
Digamos que exsistamos, todos nós, no mundo, uns mais doentes, outros menos.
Digamos que tambem um Deus exsista.
Si formos admittir premissas taes,
teremos que indagar: Mas esse Deus será mesmo um do Bem, um bemfeitor?
Não sendo, terá sido um creador?
Talvez um syllogismo mais adduza ao caso. Vou propor este, Glaucão:
{São todos os humanos imperfeitos, pois nascem ja doentes. Ora, fomos creados por alguem. Logo, quem nos creou incapaz foi de crear seres perfeitos, elle proprio um imperfeito.}
Ainda não é tudo, menestrel, pois, sendo um imperfeito Deus, jamais será Deus da justiça, do perdão, do bello, da amizade, dum amor fraterno, filial, siquer materno, emfim, dessas virtudes todas, tidas por symbolos daquillo que é ser "bom".
Não sendo um Deus do Bem, só pode ser do Mal, symbolizado por Satan, por Lucifer, tambem pelo Cappeta, Tinhoso, Satanaz ou Belzebuth, affora Mephistopheles, si formos uns nomes incluir mais litterarios.
Creados fomos como semelhantes
àquelle que creou, conforme imagem supposta do semblante que teria?
Pois muito bem: nós somos um producto
perfeito dum artifice imperfeito, portanto coherentes com a sua malefica, malvada natureza -- e emprego "natureza" de proposito, um termo que Spinoza amava muito, aquelle polidor de lentes, dado às suas mathematicas propostas, discipulo que fora de Descartes. Mas quero retornar ao que interessa. Não vamos digredir, meu caro, pois aqui surge este incommodo porem: Será que esse Deus "mau", o verdadeiro Deus, unico possivel numa mente humana, à guisa duma deducção, em vez de creador, não foi creado?
Sim, Glauco, um creador que tenha sido producto deste nosso raciocinio só pode ser um falso Deus, portanto um Deus inexsistente, imaginario, appenas. Uma prova a mais, assim, daquella minha antiga affirmação. Jamais nós exsistimos. Somos mero
lampejo da memoria da materia, ephemera, fugaz phosphorescencia interna dos humanos craneos, Glauco. Por isso, quando vamos pensar num provavel Deus, do Bem como do Mal,
pensamos só num falso Deus, creado appenas pelas mentes imperfeitas que temos. Um inutil exercicio será qualquer estudo philosophico, qualquer pesquisa, seja scientifica, artistica, até mesmo no poetico terreno das vanguardas radicaes, tão caras aos ousados menestreis... Inverte-se este nosso probleminha, Glaucão. Temos, portanto, o syllogismo: {Os homens, imperfeitos, necessitam dum Deus mais poderoso que elles. Ora, puderam só pensar num Deus egual às suas mentes toscas. Logo, o Deus dos homens não exsiste, como os proprios humanos que idolatram esse Deus.} Irás me perguntar, ja sei. Então, si somos só materia que, durante um breve tempo, pensa ser espirito mas morre, inutilmente elucubrando, si somos (eu repito) só materia, seremos, porventura, creação
da propria, desta mesma astral materia?
Materia que procria, por assim dizer, paresce coisa razoavel
a alguma mente espirita, Glaucão?
Paresce razoavel ao christão,
buddhista, mussulmano ou judeu isto?
Seria appenas coisa dum atheu pateta, hallucinado, um pensamento anarchico ou chaotico do typo?
Emquanto não entramos nesse campo mais mystico, o das crenças pessoaes, teremos que entrar noutro campo, o proprio campinho de trabalho no qual eu dos cegos prisioneiros sou feitor.
Faltou examinarmos estes termos usados por ti, Glauco, no sonnetto: antithese, contraste elementar da alheia (a minha) sorte com o teu azar, ou seja, a sorte de quem vê contraria ao teu azar de cego otario. Segundo o nosso methodo de estudo, teremos que indagar qual a razão de serem uns videntes, outros cegos, aleatoriamente, porventura.
Bem, Glauco, te pergunto: Tu quizeste ser cego? Tu quizeste ser currado, na tua meninice, pelos outros meninos? Tu quizeste ser poeta?
Quizeste tu compor tantos poemas narrando os infortunios que soffreste?
Quizeste? Não quizeste? Eis a questão. No fundo, tu querias ser poeta.
Traçaste teu destino, sem siquer suppor, precocemente, qual seria.
Sim, creio que inventaste essa maneira de, em tua condição ophthalmologica, trocar pelo prazer o teu azar.
Não queres ser um cego, mas preferes ser cego masochista a ser um cego appenas infeliz e desgraçado.
Compensas teu azar com algo menos terrivel que estar cego, só chorando. "Acceita, que dóe menos", como diz o povo. Ja commigo occorre coisa opposta. Não consigo ser poeta?
Quiz eu ser escriptor, sem conseguir?
Um intellectual sou, mas frustrado?
Tentei alguem nas artes ser, em vão? Sem crise. Sem problema, pois compenso a minha frustração, o meu fracasso, bastando-me naquillo que bem sei fazer aqui no campo: ser carrasco, usar os prisioneiros para meu prazer carnal, mental e philosophico.
Sim, cada vez que chupam meu caralho os cegos internados neste campo, é como si meu gozo numa bocca
trouxesse-me esse esthetico prazer que sentem os poetas quando um novo
poema accabam, Glauco, de compor. As minhas exporradas na garganta dum cego correspondem aos poemas compostos por John Milton, por Homero, até mesmo por ti. Compenso, pois, aquillo que eu quiz ser e nunca pude, assim como compensas a cegueira com tua poesia. Agora a coisa paresce-te mais clara, menestrel?
Nós somos, nesta vida, a somma dessas vontades que tivemos e dos nossos fracassos, quer dizer, a somma das vontades satisfeitas e frustradas que, postas na ballança, totalizam a nossa "missão" numa vida futil, voluvel e volatil, talvez frivola, às vezes, mas intensa, alem de breve. Nem todos cumprir sabem tal papel, casando o que não querem com aquillo que querem, compensando um mal por um bem, 'inda que menor. Mas nós dois somos zelosos, conscientes, nesse poncto.
Não somos, menestrel? Ahi, responde! Concluo transcrevendo um manifesto teu, "Irracionalista", nestes termos que punhas tu na bocca dum leitor: {Quem disse que preciso deduzir
que exsiste um Deus appenas porque eu penso?
Nem sei si exsisto, Glauco! Ja pensou?
A gente perde tempo defendendo conceitos e direitos dum humano ser vivo que siquer nem vivo seja!
Talvez sejamos sonho dum insecto, pensou nisso, Glaucão? Talvez vapor sejamos dum cometa? Que tal isto? Agora tem você que responder!}
Ahi tu respondeste nestes termos:
{Alem de cego, mago, ou de fakir, virei tambem philosopho? Um immenso problema cê me arrhuma! Mas eu sou capaz de responder. Pelo que entendo, não somos só delirio dum insano propheta, dalgum lider duma egreja. Prefiro crer que, quando me interpreto, poeta sonhador finjo ser, por algum tempo, não só crendo que exsisto, mas crendo que terei certo poder.}
Insistes tu na these e exemplificas:
{Não posso fabricar um elixir
bebivel, nem pro pranto tenho um lenço. Mas posso lhe dizer que cego estou appenas aos que enxergam. Estou vendo aquillo que ninguem vê. Si me enganno de porta, não me enganno caso veja
as cores quando sonho. Não me inquieto tentando ser aquelle pensador que irá regras cagar. Appenas visto a minha phantasia por prazer.} [7924]
[20/08/2022]
[8] CANTICO DOS KANTICOS
Glaucão, anarchizar quero um pouquinho aquelles dois conceitos kantianos, razão "pura", alternada à razão "practica". Naquelles bons dialogos que nós tivemos, ficou claro que razão nenhuma adjudará ninguem a ter noção de que exsistente é neste mundo, nem mesmo de que exsista alguem que Deus possamos admittir que seja. Certo? Mas, antes de no pappo proseguirmos, transcrevo o teu sonnetto, que tu chamas, Glaucão, de "Vacillante criticismo": {Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A praia, segundo Kant, é o symbolo da cuca humana: nada, nada... e, caso caia alli, morre exgottada. É a tal sinuca: Si somos racionaes, toda a gandaia paresce improductiva e em nada educa o espirito; si empiricos, ensaia o corpo sempre a dansa mais maluca.
Perdido entre o tesão e a disciplina, o cego exerce a critica ferina em verso, emquanto o publico o critica e zomba delle, e zurze sua zica.
Punhetas, batte muitas, mas, na hora
do somno, a escuridão não collabora e mais tristonho, à noite, o cego fica: é a vida dura contra a dura picca.} [2201] Fazer alguma synthese nós sempre tentamos, entre empiricas noções e tantas racionaes deducções, mas appenas ao redor do mesmo poncto gyramos, menestrel. Sinão, vejamos... À practica razão ja recorremos partindo do principio de que estamos no mundo um tanto pegos de surpresa, tentando, uns mais às tontas, outros menos, viver fazendo o minimo de exforço. O simples sacrificio de viver suggere que exsistimos como seres pensantes, conscientes dessa dura "missão" a ser cumprida, sob algum perigo de castigos nós soffrermos no caso de insuccesso. Uma noção bem practica de como contingentes nós somos por aqui. Mas da razão mais pura nos servimos quando, nos momentos de interior e solitaria pesquisa, fé perdemos num Deus "bom", sublime e protector dos mais carentes, capaz de perdoar quaesquer peccados e tal e coisa. Agora, convenhamos:
Algum dos criticismos resolveu o tragico problema dos que estão a mesma ladainha aqui cantando? Não, vate. Esses philosophos que indagam si somos racionaes demais ou somos empiricos demais estão perdendo um tempo precioso, pois a vida passando vae, mais rapida que nosso mais agil pensamento, menestrel. Si formos dansar como toca a banda, mal temos um tempinho de cantar a lettra da canção, lettra, aliaz, mais longa do que deve, eis que composta por gente que erudita demais é.
A alguma sabbatina ainda quero, Glaucão, te submetter, si nós quizermos fazer aquella synthese mental. Pergunto, pois: Emquanto tu não eras ainda totalmente cego, qual idéa tu fazias da cegueira?
Achavas tu que ler conseguirias em braille, caso um dia precisasses?
Que coisa tu pensavas desse tal de braille? Era possivel ler aquillo?
Passar, naquelles ponctos em relevo, o dedo... Que impressão te dava, Glauco?
Grãozinhos expalhados no papel,
sem ordem nem criterio? Um obsoleto, archaico, horrivel methodo para algo grapharmos, illegivel a quem ja bem alphabetizado fosse? E então?
Depois de teres tu ficado cego, ainda mantiveste idéa tal?
Tu nunca adaptação àquillo, para teu uso, conseguiste? Continuas achando que jamais acceitarás tal methodo de escripta? Muito bem. Conhesces outros cegos que se deram bem com esse systema typhlographico?
Os cegos de nascença acceitam isso sem grandes afflicções? Todos acceitam?
Alguns nunca acceitaram nada, Glauco?
Pois muito bem. E então? O que fizeste? Somente conseguiste escrever algo, ou "ler" por auditiva narração por via dum programma digital chamado de dosvox? Ainda tens usado tal programma? Alguns ceguinhos preferem outros methodos? Exsistem
alguns mais advançados? Um chamado orcam-myeye qualquer coisa traduz em voz perfeitamente descriptiva?
Ja basta. Agora vamos perguntar aos normovisuaes qual deveria
ser, para todo cego, um alphabetico recurso. O que tu pensas que elles dizem?
Exacto. Todos acham que devia ser mesmo obrigatorio que qualquer ceguinho lesse em braille. Ninguem quer saber si é de nascença que este gajo é cego, si perdeu a visão 'inda creança, si perdeu depois de velho. Àquelles que enxergando bem estão, os cegos serão sempre eguaes em tudo. Por outros termos, Glauco, uma noção de escripta para cegos ja differe de cego para cego, sem fallar de cego para normovisual.
Façamos outra breve indagação, agora approximada do teu gosto. Gostavas tu de pés desde pequeno?
Beijavas e lambias, 'inda quando podias ver, que typo de pés, Glauco?
Pés grandes? Masculinos? Chatos? Gregos?
Suados? Chulepentos? Muito bem. Ja cego, como fazes, caso não
conhesças a pessoa a ser lambida nas solas? Saberás, só com a lingua, si tal ou qual pé grande é de mulher ou homem, si chulé tem, masculino, si é joven ou si é velho quem tal pé
colloca à tua frente? E si estiveres, por vezes, engannado? Não suggiro que sejas tão inhabil. Só pretendo mostrar que nossos methodos são todos precarios, muito frageis, para alguem obter conhescimento de qualquer objecto que, em si, pouca differença faz, Glauco. O raciocinio nada vale, tampouco, pois é cada caso um caso, conforme ja tu mesmo comprovaste. Proponho um syllogismo para tal analyse exgottarmos, menestrel:
{Nem todos os que estão cegos conseguem as coisas pelo tacto sentir. Ora, uns ouvem, outros cheiram. Logo, o cego é bicho que se estuda a cada caso.} Em summa, não podemos ser dogmaticos emquanto dos ceguinhos em geral fazemos um conceito qualquer. Nem podemos ser tão scepticos a poncto de nunca concordarmos com nenhum possivel e bom methodo pensante que para alguma forma de saber conduza a gente, neste ignoto mundo. Nem regras absolutas, nem total ausencia de parametros. O nosso banal conhescimento, no que tange
à lucta quotidiana, tem que estar ligado nas pessoas e nos factos, mas sempre, em cada caso, ponderando um typo de individuo, um singular exemplo, nunca a regra decorrente da generalizada deducção. Paresce elementar, até prosaico, aquillo que te exponho, menestrel, mas isso, bem tu sabes, foi motivo de immensas controversias, desde Kant.
À toa não foi, Glauco, que fizeste a critica das criticas em dois sonnettos, que transcrevo para ja: {Profunda e philosophica, a questão de extrema sensatez que se colloca: ninguem consegue achar puddim de pão, em meio aos mais puddins, numa padoca! Paresce um contrasenso! Por que não botarmos na cabeça essa minhoca?
Mais longe vou: indago da razão de não se achar puddim de mandioca! Si pão, na padaria, é coisa certa que esteja, ja, a sobrar, eu imagino que um serio raciocinio nos desperta accerca de seu logico destino.
A mandioca adduz philosophia mais alta sobre nosso fino tino:
por certo, o puddim della feito amplia o alcance do que penso e raciocino.} [2133]
Agora, aqui colloco o complemento: {Romanos que "o deleite é a variedade" diziam. Tal verdade não implica, comtudo, em que a mixtura nos aggrade naquillo que se salga ou se addocica.
O exemplo do puddim à saciedade comprova esta assertiva: mexerica, limão, cenoura até, me dão vontade si forem sabor puro; a mais, complica! Puddim não é salada! Alguem calcula que vale chocolate e melancia, que coco com banana alguma gula desperte em quem manjares apprecia? Assim exemplifico o pensamento daquelle que evitar quer uma azia: si varios themas junctos botar tento, mais van se torna a van philosophia.} [2134]
Aquillo que interessa resaltar no nosso pappo, Glauco, será sempre o facto de que estamos, neste mundo, appenas tacteando, todo o tempo, tal como um cego toda coisa appalpa, sem nunca, com certeza, acharmos boa e solida noção de cada coisa. Empiricas maneiras são mais practicas.
Maneiras racionaes são as mais puras. Nenhuma será sempre essencial nem sempre deschartavel, ja que importa bem pouco si sabemos o que somos ou como nos sentimos, uma vez que, em breve, não seremos nada, alem de kosmica poeira, desprovida de senso ou de intellecto, menestrel. Estás, para mais pappos, disponivel? Depois proseguiremos. Por emquanto, transcrevo dois sonnettos teus. Um delles nos conta como o braille te impressiona:
{São quattro ou trez as folhas que, num trevo, tacteio? Quantas ponctas tem um xiz, um ypsilon? Percebo os seus perfis bastando-me appalpar-lhes o relevo. O braille é, pois, inutil. Por que devo achar que aquelles ponctos imbecis são lettras? Poncto é poncto! Eu nunca quiz, por isso, usar o braille quando escrevo.
Usei, por algum tempo, uma prancheta com lettras imantadas: no confronto é como comparar penna e canneta. Depois que com teclados me defronto, achei como que a pedra da Roseta.
Ao micro me refiro: agora, apprompto um texto num instante! E não se metta
ninguem a vir com braille! É poncto, e poncto!} [4522]
Num outro, maior ira tu revelas:
{Com odio fico quando acham que leio usando o braille! Cego totalmente fiquei ja quarentão! Lendo com lente ainda estava! Odeio braille, odeio! Ao cego de nascença exsiste um meio de se alphabetizar: o braille a gente acceita, neste caso! Mas não tente alguem me convencer que é bello o feio!
Recordo-me das lettras: teem seu traço de recta e curva feito, não de poncto, que nada significa e que eu rechaço! Passar o dedo em ponctos, que eu nem compto, de tantos que são, frustra! Cansa o braço!
Só noto que um inutil jogo eu monto si fico tacteando! Meu espaço agora tem, num "cyber", contraponcto!} [5071]
[20/08/2022]
[9] DESESTRUCTURA DA RAZÃO PURA
Eu hoje estou um tanto mais abstracto, Glaucão. Tomei mais doses dum absintho de casa, artezanal, que meu amigo, tambem um carcereiro, preparou. Por isso não extranhes si estou sendo anarchico demais para quem quer appenas as noções desconstruir de tudo que é chamado de estructura, ou seja, das minhocas que encontramos nas nossas cabecinhas e pensamos que fossem parafusos bem fixados, mas eram só phenomenos fecaes ainda não de todo constipados. Mas vamos la. Primeiro, observarei um typico sonnetto teu, chamado (um titulo legal) "Desconcertante", ao estructuralismo dirigido: {Na logica da lingua, o que a cegueira provoca na visão nada mais é que um jogo estructural: a verdadeira antithese ideal, sublime até.
Ao cego essa conversa não lhe cheira nem fede: a conjunctura em que a ralé chafurda é egual à treva em que se exgueira alguem que tenha tara por chulé.
Ao povo o que interessa é circo e pão; a quem soffreu a perda da visão, somente o que elle cheira, o que degusta e quanto cada bonus desses custa. Chulé, que é salgadinho, lhe assegura o gozo fetichista, uma estructura vital, ante uma sorte tão injusta, que menos exclaresce do que assusta.}
Aquellas perguntinhas de costume farei, sempre socraticas, Glaucão:
Tu, quando pensas numa aranha, fazes idéa de que typo de bichana?
Enorme? Cabelluda? Venenosa?
Talvez caranguejeira? Talvez uma chamada de Golias? Mas faz teia?
Tem toca? Que tamanho tem a teia?
A toca maior é que, em formigueiros gigantes, esses tunneis que conduzem ao centro, onde está a cama da rainha?
Tu sonhas, quando podes dormir, com aranhas gigantescas? Que te fazem as lindas creaturas? Que farás, si fores pego, Glauco, por alguma?
Procuras defender-te? Exmagas com teu velho chinellão a coitadinha?
Ou della foges feito um covardão? Pensaste ja que, como um aranhão
chamado Boris pela banda Who, a aranha que tu temes pode ser carente, coitadinha? Ja tiveste idéa de passar os dedos nella, seus pellos escovar com umas cerdas bem molles, duma dessas escovinhas de dente, infantis, vate? Essa bichana será, provavelmente, estressadissima por tudo que passou, ja, nesta vida e espera algum comforto duma mão humana, menestrel. Basta que tenhas um sangue mais gelado que qualquer pessoa normal, vate, e... tudo bem! Tu ganhas uma amiga, até, quem sabe, amiga para a vida toda, Glauco. Por que te perguntei isto, meu caro? É simples. Porque quero que tu penses na "practica" razão e na mais "pura".
Na practica, as aranhas não se deixam tão facil pentear, como um macaco.
Na pura conjectura, a aranha pode querer uma amizade fazer com a gente, desejar carinho, ter vontade de, talvez, retribuir teu gesto com beijinhos das cheliceras colladas bem junctinho de teus labios... Agora, si levares dum ferrão
aquella piccadella aguda, aquella ponctada que dor causa, te garanto que nunca mais irás confiar numa aranha venenosa, menestrel.
Precisas, pois, pensar que ella, no sonho, te possa bem querer, Glaucão? Precisas sonhar com cabelludas, venenosas aranhas, que formigas mais paresçam?
Precisas? Mas tu sonhas, sim, com ellas!
Não podes fazer nada para dellas fugires, nesses tantos pesadellos que tens, com os ferrões e com os pellos...
A vida, menestrel, é feita dessas noções que nós jamais desconstruimos, mas sempre iremos dellas duvidar. Digamos que essa aranha, numa noite tranquilla de verão, pelo teu braço esteja a passear, te provocando gostosas sensações, como si tu ganhasses o carinho dum gattinho mimoso, ultrafofinho, um amoreco. Si estás bem accordado, certamente porás, Glaucão, em duvida a noção do gatto, simplesmente porque gatto não tens como o mascotte mais querido. Mas, caso ja dormindo tu te encontres, talvez aquella aranha te paresça
amiga, carinhosa que está sendo comtigo. Não é mesmo? Sem siquer pensares, instinctivo movimento farás com tua mão, para appalpar os pellos da bichana. Ahi, fodeu! As dores mais atrozes sentirás emquanto tu despertas nesse instante. Que podes concluir das estructuras que, em nosso pobre cerebro, nos dão erradas impressões do que nos cerca?
Estamos é fodidos, menestrel. Não bastam scientificas noções, quer physicas, quer mesmo psychologicas, accerca do que somos ou sentimos.
Aquillo que vivemos no momento é tudo de importante que teremos ao longo duma vida toda, Glauco.
Alguma boa coisa addeantou sabermos que esse gatto nunca foi um gatto, mas, talvez, uma lycosa?
Piccados nós seriamos, sabendo ou não sabendo, Glauco! Tu percebes?
Tomemos um possivel syllogismo:
{São todas as aranhas venenosas, excepto si são gattos mansos. Ora, dormindo ninguem sabe si são gattos os bichos que em nós roçam. Logo, só
sabemos quando formos, e si formos, piccados, que essa aranha não é gatto.}
Agora te pergunto, menestrel:
O gatto significa, affinal, qual noção? A de meiguice e de carinho?
A aranha significa qual noção?
De phobico perigo? De lethal piccada? Duma physica aggressão?
Saussure e Lévi-Strauss terão resposta?
A minha, menestrel, te dou agora:
Um gatto tem as unhas affiadas e pode, numa dessas, arranhar alguem, causar lesões que, infeccionadas, se podem aggravar. Uma aranhinha, por outro lado, pode nem fazer nenhum mal, si tocada de repente, appenas a fugir se limitando. Portanto, um radical significado não pode exsistir para nada, nunca.
Symbolicas, somente, serão essas figuras de linguagem, essas forças chamadas "de expressão", que mais suggerem que, em synthese, descrevem impressões bastante corriqueiras entre nós.
Só para concluir, quero dizer que tudo o que, ideal, nós construimos tambem desconstruido pode ser.
Os mesmos mechanismos cerebraes usados nos conceitos que formamos accerca dos phenomenos, concretos ou mesmo uns mais abstractos, são aquelles identicos e mesmos mechanismos que irão desconstruir esses conceitos assim que for possivel ou provavel alguma revisão ou correcção. Importa appenas que isso não affecta as nossas exsistencias, ou melhor, totaes inexsistencias, pois, piccados ou não, nós, arranhados ou não, vamos morrer bem rapidinho, junctamente com todos esses gattos e essas gordas aranhas, que tamanho teem de gattos. Ficou exclarescido, menestrel? Então, para as noções corroborar de bichos tão identicos, farei de versos teus, abbaixo, o meu desfecho:
{"No dia em que tivermos uma aranha do tamanho dum gatto, a humanidade está perdida!" A phrase persuade por causa do contexto que a accompanha.
Não falla um personagem qualquer: ganha destaque porque em seria faculdade formou-se o scientista, embora brade um outro que essa hypothese é "patranha".
Um unico problema, eu creio, affecta a credibilidade dessa phrase: a fonte é que não era tão selecta. Mas toda a midia deixa que isso vaze!
Não é, porem, só thema p'ra poeta. Que importa, emfim, que a these não se embase ou passe na tevê? Sei que é concreta!
Fallou de aranha, em panico entro eu, quasi.} [3096]
[21/08/2022]
[10] QUANTIFICANDO RIDICULAS PARTICULAS
Estive ca pensando, menestrel... Do mundo material necessitamos fazer umas primarias reflexões que, embora philosophicas, não deixem de lado o saber technico, o saber de cunho scientifico, no qual a physica que "quantica" se chama exerce essencial papel nos dias que correm, dias esses, aliaz, comptados por um velho kalendario que em nada representa a duração do tempo nas espheras do universo. Mas, antes de ingressar nessa questão, transcrevo o teu sonnetto que chamaste, feliz, de "Inebriante", em relação à antiga philosophica corrente que chamam "atomismo". Os versos são: {Democrito e Leucippo não teem nada de bobos: perceberam, ja naquella remota Antiguidade, o que revela a physica, que está tão advançada.
Particulas minusculas, em cada ser vivo ou cada coisa inanimada, se aggruppam ou dispersam, e quem zela por toda essa bagunça é um mattuschella.
Si Zeus e si outros deuses permissão concedem que o chulé me dê tesão, seus atomos são optimo farello e por um cheiro olympico eu appello. Si, cego, não percebo mais as cores, mas dou valor aos cheiros e aos sabores, tambem pelo universo, um pouco, eu zelo e espirito hellenistico revelo.} [2207]
Tirante esse teu genio mais satyrico, que brinca com fetiches e com taras, tocaste tu num poncto delicado. Os atomos, ou nome equivalente que possa às mais minusculas particulas ser dado, não seriam as menores, talvez. Mas, para nós, são tão pequenos que mesmo os microscopios mais potentes detectam-nos sem muita precisão, si é mesmo que detectam ou si somos appenas illudidos pelas lentes.
Digamos que particulas menores ainda que esses atomos exsistam.
Digamos que jamais uma particula é minima, pois outra, até menor, está sempre contida nessa mesma particula, a qual infima suppomos. Si, successivamente, for assim, não ha no kosmo nada que impedir
irá, na direcção opposta, alguma sequencia, semelhante e successiva, de escalas bem maiores, nas quaes este espaço que enxergamos, desta vez usando um telescopio, possa ser um atomo que, dentro de maiores espaços, em maiores proporções, nos torne, nós tambem, meros microbios vivendo num grãozinho de poeira chamado de planeta, simplesmente. Um tal relativismo, confirmado por quanticos conceitos, levaria ao chaos qualquer estudo philosophico em torno da materia que, centrada no ser humano como creação divina, pretendessemos fazer.
Proponho um opportuno syllogismo:
{É tudo, no universo, de particulas composto. Ora, as particulas compõem objectos de qualquer tamanho. Logo, podemos ser, ou micro, ou macrokosmo.}
Tambem opportunissimo será
relermos outro desses teus sonnettos:
{Será que este universo, ao telescopio visivel, não está todo contido num atomo que, visto ao microscopio dum outro mundo, até passa battido?
E o tal mundo, inteirinho, nem entope o minusculo furinho no encardido sapato do habitante! Caso ensope-o na poça colossal, teremos ido. Si tudo é relativo, o micro e o macro são kosmos transitorios, e o que é sacro prophano ja se torna na poeira. Que faço de meus livros si descubro que, em annos-luz, não dura o mez de outubro trilhões com lua cheia em sexta-feira?} [1459]
Passemos ao que importa neste caso. Não quero confirmar nem desmentir banaes conhescimentos astronomicos, tampouco rever uma theoria da relatividade. Este capitulo me serve de pesquisa appenas para poder reaffirmar aquillo tudo que, noutras circumstancias, ja apponctei. Mas, Glauco, relativo não é só um micro, um macrokosmo, comparando espaços ampliados, reduzidos ou desproporcionaes para parametros humanos de tamanho. Relativo será tambem o tempo, uma noção ainda mais difficil de entender.
Medimos como, o tempo? Ja difficil é termos uma regua que dê compta
de espaços entre estrellas e galaxias! Calcula quaes as reguas chronometricas que meçam as distancias comparadas a alguma habitual velocidade, não só com annos "luz" mas talvez com uns annos "treva", Glauco. Te pergunto: O tempo universal é differente do tempo chronologico? O que pensas? Alguns bilhões de seculos querias viver, alem dos teus septenta anninhos?
Mas e si eu te disser que ja viveste alguns trilhões de seculos, medidos no breve kalendario das bacterias que estão no teu chulé? Faz differença?
Nenhuma. Ja fallei que essas medidas não passam de illusão. Tudo o que rolla na mente dos humanos illusorio será sempre, Glaucão. Elles inventam um monte de bobagens, que nem mesmo um Einstein, pelas redes, endossava, taes como o "metaverso", o "multiverso", uns campos parallelos ao que estamos, às cegas, occupando. Mas de nada lhes serve essa mania de inventar, pois tudo continua sendo um mero suspiro de esperança no porvir, um futil e frustrado observatorio
de quinctas e de sextas dimensões, até de quinquagesimas e enesimas, mas tudo sem o minimo objectivo. Pois podem inventar o que quizerem. Serão sempre productos duma mente humana, quer dizer, mente imperfeita. Em breve, morreremos, ambos nós.
Mais tarde, morrerão as gerações futuras, até quando o planetinha não tenha condições de vida alguma. Grãozinho de poeira, a Terra até que pode se exstinguir, mas outros grãos talvez por mais alguns trilhões de seculos estejam polluindo o kosmo, si não for o proprio kosmo uma noção fajuta, fraudulenta, appresentada por homens aos humanos, sem qualquer indicio de exsistencia verdadeira. Fiquemos, por emquanto, Glaucão, com o fragil argumento de que estamos faz tempo no planeta, ainda quando não foram completados dez millennios da nossa macacal especie, vate.
Ainda falta alguma coisa acharmos accerca das fés mysticas, que impõem principios de conducta aos peccadores e punem com castigos infernaes
quem caga sobre tabuas dictas sacras. Mas isso fica para logo mais, no proximo capitulo, Glaucão. Encerro, por aqui, com teu sonnetto.
{Papae Noel? É claro que accredito!
E até no lobishomem, no vampiro!
Você não crê nos astros? Eu prefiro ainda mais da lua cheia o mytho!
Não dizem que ha galaxias no Infinito?
Não dizem que ha bacteria, germe, viro?
Podia eu responder que não adhiro, que lendas são tambem, que as não admitto!
Exsiste, sim senhor! Exsiste tudo: sacy, buraco negro, homem da neve, a charta que é um espirito que escreve, a quantica, o dragão, o ogro pelludo! Si nada disso houvesse, da mais breve piada, do mais serio e novo estudo, dos quadros que retractam Deus desnudo, ninguem se lembraria! Exsistir deve!} [3093]
[22/08/2022]
[11] DESQUALIFICANDO RISIVEIS DIZIMISTAS
Philosophos catholicos tentaram, Glaucão, condicionar a antiga logica, chamada "aristotelica", às suppostas verdades theologicas, em vão. Tocaste, em teu sonnetto, nesse poncto, por isso transcrever "Edificante thomismo" quero, Glauco, como segue. {Da mente aristotelica se tira a logica que faz Thomaz de Aquino tomar conhescimento do que gyra em torno deste mundo pequenino: a dadiva sagrada! Consentira a fé christan que o Verbo, antes divino, se torne racional e que a mentira se apparte da Verdade pelo tino. Perfeito raciocinio, mas um cego chegou para dizer: "Thomaz, não nego seu credo, appenas toco num detalhe que, caso não lhe aggrade, não expalhe: Emquanto você pensa, eu sinto e canto o cheiro que a sandalia tem dum sancto e ao faro dum podolatra bem calhe, ainda que o sermão eu advaccalhe..."} [2208]
Pensemos no seguinte, menestrel: poder divino. Pode quanto, um Deus
supremo, omnipotente, redundante e, claro, omnisciente, redundancia ainda maior, visto que ninguem conhesce nada, aqui neste planeta.
Suppondo que tu tenhas tal poder, é claro que não foste por ninguem creado, do contrario um Deus maior teria que exsistir. Ora, Glaucão, tu, sendo omnipotente, te creaste a ti mesmo Ou eterno ja serias?
Suppondo que esse eterno Deus és tu, que typo de Deus és? Do typo grego, com todas as virtudes, mais os vicios dos homens? Ou do typo dos hebreus, o Pae, o Creador, que estabelesce as regras mas permitte que seus filhos descumpram cada regra para, appós, punil-os duramente? Que Deus és?
Suppondo que terias o poder total, perfeito fosses, que farias do mundo? Um zoologico jardim? Tu gostas de jardins? Achas bonitos os bosques verdejantes e floridos, as arvores fructiferas, as aguas limpinhas, crystallinas, os bichinhos terrestres, voadores, os peixinhos nadando, os lindos passaros cantando?
Então, um paraiso tu creaste... Não achas algo falho nessa tua sortida fauna, nessa tua flora tão multicolorida, menestrel?
Especies venenosas, predadoras, uns bichos que se comem uns aos outros, um clima tão instavel, de intemperies repleto, fora as taes calamidades, catastrophes do typo geologico, emfim, tudo de extranho que nos cerca.
Quizeste tu crear mesmo o tal mundo horrivel no qual todos nós vivemos?
Mas tu não és perfeito? Como podes fazer tal porcaria, sancto Deus?
E, como não bastasse, tu creaste a raça dos humanos, esta merda de especie, esta titica de gallinha!
Não achas que fizeste, propriamente, aquillo que se chama de cagada?
Ainda tu pretendes exigir da tua creação que se comporte direito, que não peque, que não foda, não macte, não guerreie, não cobice, não roube nem torture ninguem, porra?
Moral queres impor? Mas qual exemplo tu deste? Não me venhas com desculpas, não venhas me fallar de liberdade
de excolha, dum "arbitrio" consciente e livre, menestrel! Ora, caralho!
Então tu crias gente que excolher bem pode livremente e depois achas que erradas as excolhas são? Errado, de facto, foste tu, que não soubeste crear gente perfeita, à tua linda imagem, tua bella semelhança... Deixemos, pois, de inutil brincadeira, Glaucão. Fosses perfeito, só creavas perfeitas creaturas. Não é mesmo? Passemos, pois, àquillo que interessa.
Um Deus christão, catholico, não serve, portanto, de nenhuma referencia. Pensemos num Deus logico, provavel, que seja, ao mesmo tempo, um Deus possivel.
O Deus que imaginamos é bondoso?
Não pode ser, sinão impediria que males exsistissem entre nós.
Preciso repetir esta pergunta:
O Deus que imaginamos é bondoso?
Não pode ser, por causa dos castigos que todos nós soffremos, peccadores ou não, castos ou não, justos ou não.
O Deus que imaginamos é bonito?
Não pode ser, pois somos todos feios.
O Deus que imaginamos é cheiroso?
Não pode ser, si somos fedorentos. O Deus que imaginamos nos incute o senso de justiça, de equidade, de solidariedade e de empathia?
Não pode incutir nada disso, pois são todos os politicos injustos, classistas, egoistas e insensiveis.
O Deus que imaginamos nos inspira o genio creativo, o thema artistico, as obras que ideaes teem de belleza?
Não pode inspirar nada disso, pois são todos os poetas pornographicos, os idolos da musica são todos tarados, psychopathas e bebuns. Pinctores, esculptores, cineastas, actores e demais artistas idem.
O Deus que imaginamos immortal seria? Não nasceu nem morrerá? Não pode immortal ser, pois nós não somos.
O Deus que imaginamos representa, ao menos, dos humanos, uma admostra?
Nem isso, pois em cada cultural segmento um Deus se mostra differente.
O Deus que imaginamos, emfim, é alguem que necessario se faz, ou não passa duma anonyma figura, inutil e, portanto, deschartavel?
Não sendo nada disso que esperamos que fosse, não fazendo nada disso que deva algum supremo Deus fazer, pergunto: Por que cargas d'agua nós achamos que exsistir deva algum Deus?
Não basta que em demonios nós creiamos?
Não basta que Satan nos apparesça a fim de nos temptar quando peccamos?
Não basta que exorcismos lhe façamos nas horas de remorso, si estivermos da vida arrependidos e cansados? Não, Glauco. Um pappo destes não nos leva a nada. Appenas serve de consolo àquelles que em egrejas se reunem durante certo tempo, mas, depois de muitas decepções, se desilludem. Àquelles que philosophos se julgam, perder tamanho tempo com questões assim tão byzantinas só seria signal de idiotice e consequente signal de incoherencia com a nossa mental capacidade. Não concordas?
Si fossemos tão trouxas, menestrel, a poncto de em egrejas nós entrarmos, pagarmos mensalmente, em ouro, um dizimo, melhor seria pormos no nariz aquella vermelhinha bolla, sermos
chamados de palhaços e, no circo, algumas gargalhadas provocarmos.
Nos resta adoptar este syllogismo: {Humanos são otarios, todos. Ora, otarios accreditam em Deus. Logo, o Deus delles será sempre impostor.}
Concordas que não passa Deus dum grande, tremendo charlatão, Glaucão? Não é ninguem, portanto, ou seja, não exsiste.
Pascal teria dicto que quem crê dispensa argumentinhos; quem não crê jamais crerá si escuta argumentinhos.
Não somos, nós dois, desses crentes. Certo? Então, argumentinhos para crermos serão tão dispensaveis quanto o pappo dum Deus que seja aquelle charlatão. Supponho que estejamos satisfeitos com esta conclusão e que podemos passar, assim, ao proximo capitulo.
Appenas, Glauco, para remactar, da tua "Miscellanea theologica"
transcrevo os versos todos, a seguir:
{Quem é que responsavel foi por isto?
Alguem precisa estar por traz de tudo que pode accontescer si eu não me adjudo. Mas nem por isso um deus será bemquisto.
Appenas por ser Pae, que foi de Christo,
não acho omnipotente esse marrudo Senhor que nos opprime. Não me illudo.
Em seitas doutrinarias não invisto. Não posso responder pelo que quero mas nunca realizo, ou por aquillo que evito mas occorre. O risco zero jamais exsiste, como o mar tranquillo.
Si penso no poder dum deus severo, eu temo; si não penso, me horripillo.
Si fallo como bardo, sou sincero, mas algo eu exaggero, ao meu estylo.} [5989]
[23/08/2022]
[12] QUINCTESSENCIA DA INEXSISTENCIA
Si Kierkegaard fallou, não sei, mas dizem que disse isto que quero repetir. Si Sartre disto falla, tambem não terei certeza. Ainda assim, repito: {A gente não exsiste. Exsiste gente que pensa que exsistimos, isso sim.} Si nesses simples termos nenhum delles fallou, a phrase é minha, menestrel.
A coisa me paresce simples por um minimo detalhe, que consiste na synthese impossivel entre essencia "humana", perescivel, e, dum Deus supremo, universal, sublime essencia, "divina", a saber, sempre immortal, como si fosse dialectica a questão. Não pode "essencial" ser esta nossa tão fragil natureza, aqui na Terra.
De duas, uma, Glauco: ou quem exsiste exsiste eternamente, sem ter sido creado por ninguem, ou não exsiste.
A vida, para ser real, precisa ser vida desde sempre. Do contrario, não passa de illusão do pensamento.
Ou somos infinitos, ou não somos siquer uma vidinha a mais no kosmo.
Ou somos immortaes, ou nada somos. Si somos immortaes, seremos deuses.
Si fossemos nós deuses, não teriamos a angustia desta nossa finitude, a perda da memoria, da visão, ou mesmo do tesão, como um factor de estresse "essencial" na nossa vida.
Si fossemos eternos, ou, por outra, si fossemos nós deuses, só teriamos prazer, aqui na Terra. Aliaz, nem na Terra viveriamos, mas sim num mundo bem melhor. Não te paresce?
Então, a consciencia subjectiva de cada qual de nós nos dá, Glaucão, um unico signal consideravel: não temos um poder divino. Logo, não somos immortaes. Portanto, não podemos "exsistir", somente "estar" no mundo, de passagem, brevemente. É heideggeriano, tambem, este conceito de presença "temporal", ou antes, "temporaria", neste mundo.
Não ha contradicção no que eu te digo, ou seja, dum estado de "estar" para a abstracta noção mesma de "exsistir", tal como si, nos termos que empreguei, só fosse hegeliana a dialectica.
Me explico: nós, humanos, somos mesmo uns poços de total contradicção em tudo que pensamos ou fazemos. Porem, no que nós SOMOS, propriamente, não ha contradictoria condição, ou seja, ao mesmo tempo que entendemos as nossas vidas como consciencias de "estarmos" de passagem por aqui, achamos que "exsistimos" neste curto espaço, ou neste tempo reduzido. Poema que chamavas "Absoluto absurdo" transcrever vou mais abbaixo:
{Ouvi philosophia -- Quem diria? -no radio, sobre a vida e seu vão drama. "Viver, então, tem logica?" -- reclama um culto professor da academia. De facto, falta a minima alegria no tempo do viver, mas dessa chamma queremos: "Não se appague!" -- pois a cama da morte não paresce ser macia.
Por que não nos mactamos, si abbrevia o prazo o suicidio? Quem nos ama
meresce que vivamos? Si Zeus chama mais cedo, nós achamos covardia...
Sim, quando de morrer vem vindo o dia, saudade nós sentimos e da mamma ja morta nos lembramos. Mas a fama,
que é posthuma, será sempre tardia. Buscar "felicidade", eis a valia da vida. Mas, finita, ella só trama, pois, contra nós. Somente seu programma se explica si em "missão" astral se fia...} [8558]
Palavras bem medidas são as tuas nos versos supra. Agora ponderemos... Te lembras tu daquillo que eu te disse la attraz, iniciando o nosso pappo?
Emquanto recuperas o contexto, transcrevo o teu sonnetto pertinente ou mais "Conveniente, como o chamas:
{Si sabe cada qual onde lhe apperta o tennis, o sapato, ou a botina, infere-se em que poncto Sartre accerta: a nada a humanidade se destina.
Bem obvia, por signal, a descoberta que a especie humana, às claras, descortina: não somos como rotulo em offerta, de succo ou de cerveja, alli na exquina.
Só "somos" quando "estamos": si "sou" cego, é claro que "fiquei", que não carrego commigo esta cegueira como essencia nem cura alcançarei pela sciencia.
Podolatra me faço a cada dia.
Jamais exsistirá philosophia que a tara substitua, ou que dispense-a,
ou algo que preencha a sua ausencia.} [2202]
Voltemos ao que eu disse. Só teremos alguma consciencia de que "estamos" aqui na Terra "vivos" si tivermos algum registro disso na memoria. Portanto, recuamos até nossa infancia, a partir duma meia duzia de tenros annos. Caso não percamos memoria mais nenhuma até morrermos, teremos completado o nosso cyclo possivel de exsistencia provisoria, que, como ja dissemos, nem siquer se pode chamar mesmo de exsistencia. Aqui tambem se impõe outro detalhe cabal: Será que tudo o que ficou retido na memoria corresponde àquillo que de facto se passou? Ou fomos, com o tempo, distorcendo, talvez phantasiando, um facto ou outro?
É coisa a se pensar, considerando que, em teus poemas, fallas muito disso.
Ainda achei em Heidegger um elo bastante interessante entre estas duas turminhas de emmerdados pensadores: poetas e philosophos, Glaucão. Por isso um companheiro te julguei e encontro nos teus versos um estimulo.
Tu, neste infinitilho, ja puzeste na bocca dum pivete estas palavras:
{Babacas! Elles dizem que ladrão eu sou por ter roubado! Tambem dizem que sou estuprador e violento bandido, Glauco! Veja que injustiça! Não sou porra nenhuma! Sartre disse que não exsiste essencia! Ninguem é nadissima de nada nesta vida!
A gente tão somente exsiste, e prompto! Eu faço o que quizer! Si fizer bem aquillo que costumo fazer, sou é digno de elogios! Mau ladrão é só quem se arrepende de roubar! Estou certo, Glaucão? Você me endossa?}
Por tua vez, tu mesmo respondeste: {Endosso. Nada assigno, porem, não. Bandidos bons serão caso nos pisem na cara, alem do roubo. O que sustento é tal explicação. Assim a missa entende você? Fallo uma tolice?
Philosophos explicam, mas si fé puzermos muito nelles, accolhida não sobra a Allan Kardec. Eu dou descompto em tudo. Nesta vida sou refem dos deuses e dos demos. Do meu show faz parte a luz e a perda da visão.
Portanto, tenho sorte e tenho azar ao mesmo tempo. O opposto tudo roça...} [7948]
Pois é, Glaucão. Criticam muito o Sartre por ter enaltescido uns bandidões, alem dalgumas putas, mas tu sabes que putas e bandidos são appenas exemplos de individuos que fizeram, na vida, aquillo tudo que puderam, quizeram e souberam fazer para completos serem como verdadeiras pessoas oriundas duma classe, dum povo, duma gente sem poder nenhum na sociedade, gente pobre, impossibilitada de excolher, porem bem consciente, em certos casos, daquillo que, explorada, tem a dar em troca à sociedade que lhe tira as chances de subir a patamares mais altos. Talvez isso sirva como patente explicação. Illustra bem teu verso os pessoaes casos do typo. Porem, o que importante é nesta nossa conversa não ficou restricto só a casos de excepção nem casos mais explicitos de gente que, excluida das chances mais communs de ter prazer (o caso dos cegados, por exemplo),
consigam pelo menos ser alguem fazendo o que bem podem e bem sabem. Dos cegos um exemplo de efficaz postura, appós a perda da visão, é serem felladores mais capazes ou habeis do que muitas prostitutas. Eis como os vejo, neste extenso campo penal para forçados servicinhos, metaphora que, desde nosso pappo primeiro, propuz para a vida aqui na Terra, aonde todos nós viemos parar, emquanto pó não nos tornemos ou, noutros planetinhas, não possamos, talvez, reencarnar. Mas resalvando que reencarnações não são provaveis destinos. Mais provavel é que, emquanto aqui nós vegetemos, consciencia teremos, mas, depois do nosso prazo vital, nossa memoria appague tudo e, desse modo, nós inexsistamos.
[24/08/2022]
[INDICE DOS POEMAS CITADOS]
ABSOLUTO ABSURDO [8558]
APPONCTAMENTOS E DESAPPONCTAMENTOS [4522]
AZAR ELEMENTAR [2138]
COHERENTE RACIONALISMO [2193]
CONDIZENTE EPICURISMO [2191]
CONFUCIONISMO [6844]
CONVENIENTE EXSISTENCIALISMO [2202]
CORRENTES PHILOSOPHICAS [2171]
CRITICA DA RAZÃO PRACTICA [2133]
CRITICA DA RAZÃO PURA [2134]
DESCONCERTANTE ESTRUCTURALISMO [2203]
EDIFICANTE THOMISMO [2208]
ENTREVISTAS ALLARMISTAS [3096]
ENUNCIADO ADMANTEIGADO [2142]
GENUINA DISCIPLINA [6100]
HARMONIA COMPTABIL [2012]
INEBRIANTE ATOMISMO [2207]
MANIFESTO EXSISTENCIALISTA [7948]
MANIFESTO INDIVIDUALISTA [7984]
MANIFESTO IRRACIONALISTA [7924]
MANIFESTO NIHILISTA [7992]
MISCELLANEA THEOLOGICA [5989]
MIXTOS MYTHOS [3093]
NÃO ESCREVO EM RELEVO! [5071]
NAUSEANTE EMPIRISMO [2192]
OBVIO PROGNOSTICO [1705]
ONTOLOGICO [0173]
PARTICULA RIDICULA [1459]
PENITENTE ESTOICISMO [2187]
PEOR CEGO [5714]
PORORÓ [7111]
REPETITIVA "MURPHILOSOPHY" [2294]
SANITARIO SANATORIO (VIII) [7128]
SENSORIAL [0418]
TEIMOSIA NA UTOPIA [2300]
TERRA DE CEGO [5715]
THEOLOGICO [0176]
TRABALHOS FORÇADOS [7215]
TRIUMPHANTE TOTALITARISMO [8470]
VACILLANTE CRITICISMO [2201]