A PLANTA DA DONZELLA
Glauco Mattoso
A PLANTA DA DONZELLA 2ª edição ampliada e actualizada conforme orthographia utilizada pelo auctor
São Paulo Casa de Ferreiro 2020
A planta da donzella Glauco Mattoso © Glauco Mattoso, 2020 Revisão Akira Nishimura Projeto gráfico/capa Lucio Medeiros
___________________________________________________ FICHA CATALOGRÁFICA ___________________________________________________
Mattoso, Glauco
A PLANTA DA DONZELLA/Glauco Mattoso
São Paulo: Casa de Ferreiro, 2020 280p., 14 x 21cm ISBN: 978-85-98271-28-4
1.Literatura Brasileira/Romance. 2. José de Alencar. 3. Fetichismo e sadomasoquismo. I. Título. CDD B869
SUMMARIO PÉ DE CONVERSA................................ 11
O ACHADO E O PERDIDO.......................... 15 A MENINA MIMADA............................... 23
A BOLINA DA BOTINA............................ 29 O SEGREDO PROFISSIONAL........................ 36
DOS PÉS À CABEÇA.............................. 44 A COLCHA DE RETALHOS.......................... 50 A CIRANDA DA CINDERELLA....................... 55
O THEATRO LYRICO.............................. 61
O PAVÃO E A GARÇA............................. 73
MADAME FRAGONARD.............................. 83 LAURA LAWRENCE................................ 93
DO PÉ PARA A MÃO............................. 107
O BAILE SEM MASCARAS......................... 119
LORD STEPPINGSTONE........................... 135
CHARTAS SOB A MESA........................... 167 MAIS UM POUCO DE THEATRO..................... 184 O METHODO DIDASCALICO........................ 194
O CLUB PROPEDEUTICO.......................... 208
O PAVÃO E O PALMIPEDE........................ 220
A CHINELLA CHILENA........................... 240
FICHA TECHINICA E PLANO DA OBRA.............. 257 FORTUNA CRITICA.............................. 275
PÉ DE CONVERSA
Os classicos da litteratura universal, que nada mais são alem de crystallizações bem lapidadas dos grandes themas do imaginario da humanidade, suscitam, por seu turno, novas leituras sob a forma de parodias, paraphrases ou adaptações ropteirizadas, realimentando assim a cadeia mythologica. Entretanto, as obras “menores”, ainda que assignadas pelos auctores maiores, tendem a permanescer na discreta obscuridade, cultuadas appenas nos circulos afficcionados. Assim, por exemplo, o livro de Daniel Defoe teve innumeras releituras, entre as quaes a de Michel Gall, que em A VIDA SEXUAL DE ROBINSON CRUSOÉ propõese a revelar tudo o que restava subentendido accerca das relações do naufrago com a fauna e a flora da ilha -- inclusive, é claro, o nativo Sexta-Feira. Mas ninguem se lembrou, no caso das lettras brazileiras, de reescrever a mais excentrica e “secundaria” obra do venerado patrono dos romancistas: A PATTA DA GAZELLA, de José de Alencar. Tractando-se duma novella fetichista -- mais especificamente retifista -- e manicheista, só mesmo um podolatra assumido ou um psychiatra castrador estaria apto a paraphraseal-a, seja para desvirtual-a duma vez, seja para enquadral-a nos padrões da “normalidade”. Eu me habilito no primeiro caso, ou seja, no papel do maniaco radical, para quem o revisionismo litterario está a serviço do vicio. Quando escrevi minhas memorias eroticas sob o titulo de MANUAL DO PODOLATRA AMADOR, analysei detidamente 11
o romance de Alencar. Reproduzo observações então annotadas:
aqui
algumas
{Eu fallava dos rastros que a podolatria tem deixado ao longo da historia litteraria. Dei exemplos, mas eram passagens, flagrantes, lampejos. Exsiste, comtudo, em nossa litteratura, o grande monumento ao pé, o classico da podolatria em sua concepção feminil, elevada ao status de these esthetica e ethica. Um romance inteiro gyrando em torno do pé e de sua mystica. Esse livro é A PATTA DA GAZELLA, de Alencar. Obra mais que curiosa, mysteriosa. Em vida do auctor, só teve uma edição, appesar da popularidade que IRACEMA e O GUARANY trouxeram ao cearense. Explicase: a edição de 1870 sahiu sob o pseudonymo de Senio, que,segundo a critica, visava ao mesmo tempo ironizar a “maturidade” (ou “velhice”) creativa do escriptor e appresental-o como um inseguro estreante, exposto ao julgamento rigoroso e portanto ao decisivo teste de talento. Sabe-se la. P’ra mim, elle não tava querendo testar talento nem estylo: tava era com vergonha do thema, isso sim.} {Por outro lado, si Alencar foi de facto podolatra tambem não vem ao caso. O que importa é exmiuçar um pouco a tonica do romance. Tracta-se mais duma fabula desenvolvida, com alguma pitada de conto de fadas, que duma chronica de costumes. A ambientação do enredo no scenario urbano da corte imperial é meramente circumstancial. O auctor pretende expor uma these, e p’ra isso traça o character dos personagens da forma mais estereotypada e symbolica: cada um com sua carga moral, advaliada pela commoda ballança do manicheismo. O mocinho & o bandido, o feio & o bonito, o certo & o errado, o bom & o mau, o vicio & a virtude, o castigo & o premio. Nada do “rigor scientifico”, dos “physiologismos” & “psychologismos” 12
que characterizariam mais tarde as “theses” da ficção naturalista. A de Alencar era só uma “these” romantica, para effeitos “edificantes”. Uma fabula, embora para adultos.} {A delicadeza do pé feminino é reduzida ao extremo, à caricatura do ideal esthetico. O argumento é simples: Horacio, mixto de don-juan e play-boy, se entedia das conquistas faceis, e encontra nova & exotica phantasia ao achar na rua um minusculo pé de botina, tamanho 29. Fica obcecado pelo pé que a calçava, e passa a perseguil-o por todos os meios. Ou a rastreal-o por todos os caminhos. [...] E a dona do tal pezinho (Amelia) se torna o centro das attenções do personagem e do auctor. [...] Por contraste, surge em seguida a segunda mulher (temporariamente confundida com a protagonista), cujo pé seria descommunalmente grande e, portanto, pela logica do auctor, feio e repulsivo. [...] Tambem por contraste, completa o quadro o segundo rapaz (Leopoldo), que ama a supposta dona do pé feio, appesar da deformidade. Supposta, porque os longos vestidos da moda imperial escondem tudo e nunca dão a chance de conferir (e nisso reside o crescente suspense do romance). [...]} Pincemos de toda a redundancia do discurso alencariano trez palavrinhas-chave: IDOLATRIA, MATERIALISMO, EXTRAVAGANCIA. [...] O antagonismo dos padrões proporcionaes, tanto physicos (tamanho do pé) quanto espirituaes (grandeza de sentimentos), fica tão evidente que Alencar nem precisava arremactar o romance fazendo referencia a La Fontaine. Mas ja que fez, façamos tambem a nossa, à tradição oral: “Uns gostam do olho, outros da remella.” Si todos desdenhassem da uva verde, quem desdenharia da amarella? Meu consolo é que, appesar dos euphemismos & moralismos, Alencar foi obrigado, nas entrelinhas, 13
a admittir que a botina tinha la seu chulezinho; que um pé grande e chato podia não ficar bem numa mocetona pudibunda, mas num mancebo desabbotinado até que passaria; e que, affinal de comptas, um sapato fino podia ser “voluptuoso” tambem prum homem, signal de que o macho pode perfeitamente sentir tesão em seu pé. Logo, alguem pode, em these, querer provocar tal tesão, com plena acquiescencia do tesudo... Pois é, como diria o Umberto Eco de Andrade, nada como ler uma obra aberta com olhos livres!} À parte o estylo colloquialmente irreverente que imprimi ao MANUAL, minha critica ao moralismo de Alencar suggeria a necessidade duma refutação mais practica e exemplar, que questionasse o argumento ethico (de que o fetichismo não passaria de mero capricho ou fogo-de-palha) e sustentasse o argumento esthetico (de que tamanho não é documento si a attracção erotica for mais forte que as apparencias), mas sobretudo contestasse o argumento machista (de que somente o pé feminino seria digno de attenção) -- refutação que ora se materializa sob a forma deste romance intertextual e metalinguistico. Conclua o leitor si o resultado demonstra o theorema de maneira ao mesmo tempo insophismavel e ludica, sem o que nenhum delirio onanistico redunda em orgasmo intellectual.
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1 O ACHADO E O PERDIDO
Refere o historiador que, por volta de 1870, o Rio de Janeiro -- que então não é Estado da Guanabara nem Districto Federal, mas sim “a Corte”, ou seja, capital do imperio -- attravessa uma phase de modernização, ja em clima de posguerra: si a população ainda não chega ao meio milhão registrado na virada para o seculo XX, está pelo menos duplicada em relação aos cem mil habitantes calculados à epocha da independencia. Quanto aos limites geographicos, a expansão urbana os attinge e desaffia neste momento: ao norte, os pantanos vão sendo atterrados e drenados pelo canal do Mangue, permittindo que areas suburbanas sejam occupadas e unam-se à planta chartographica; ao sul, o mar é vencido por linhas de barcas a vapor que ligam o centro aos bairros de São Christovam, de um lado, e Botafogo, do outro, bem como a Nictheroy, na margem opposta da bahia. Em terra, a rede ferroviaria alcança a baixada e os planaltos fluminense e mineiro, alem de communicar, por dois trens diarios, o isolado suburbio de Cascadura à Corte. Mas si no transporte interurbano a locomotiva é movida a vapor, nas ruas centraes o bonde é puxado a burro, chegando no maximo até São Christovam e Tijuca, na zona norte. Na zona sul, ao longo da orla os bairros passam pela Gloria e pelo Flamengo, extendendo-se no maximo até Botafogo, ja que a montanha forma uma parede que mantem despovoadas, do outro lado, as praias 15
de Copacabana, Ipanema e Leblon, até que se abra o primeiro tunnel. Mesmo assim, tolhida por barreiras naturaes, a Corte carioca cresce, palpita e brilha; à guisa de taxis, um serviço de tilburies de aluguel attende às necessidades dos mais endinheirados e appressados, congestionando, no centro, as travessas estreitas, onde se cruzam carruagens de todos os typos e modellos, de duas ou quattro rodas, um ou dois cavallos, algumas conversiveis, outras fechadas: coches, cupês, landaus, cabriolés, victorias... Vejamos, por exemplo, quaes são as duas passageiras daquelle imponente carro de quattro rodas a que chamam victoria, que se encontra estacionado na rua da Quitanda, perto da rua da Assembléa. São, ambas, damas da sociedade, sem duvida, a julgar por seus finos vestidos coloridos, e pelo ar solenne do cocheiro aggaloado. Nota-se nas duas a mesma elegancia de maneiras e a mesma belleza de rosto, mas naquella de menor estatura os traços ja estão marcados pela maturidade. Percebe-se que a mais alta e esbelta dellas é filha da outra, até pela impaciencia juvenil com que se debruça, de quando em quando, e olha para fora, na direcção opposta à dos cavallos. Naturalmente esperam alguem que ja se demora. Vestida de verde, a mãe, recostada nas almofadas, consulta um caderninho de annotações. Conversam sobre as compras feitas ou por fazer. A filha, que veste roxo-claro, pergunta para onde irão a seguir, e a mãe responde que para o escriptorio do pae, que talvez queira junctar-se a ellas na volta para casa, depois de passarem na rua do Ouvidor. A mais nova, cansada de esperar, se queixa do lacaio, mandado a retirar encommendas nas adjacencias, mas a mais velha paresce indifferente ao attrazo, 16
distrahida com sua caderneta. Os fogosos cavallos se solidarizam com a impaciencia da mais nova, pois o cocheiro perde um pouco da pose para manter a parelha sob controle nos momentos em que se ouve o castanholar dos cascos sobre os parallelepipedos. Ao debruçar-se novamente, a moça nota que está sendo observada da calçada. Recolhe-se para o fundo da carruagem e acconchega-se às almofadas, tentando esconder-se daquelle olhar indiscreto, mas seu observador caminha alguns passos a fim de manter bom angulo de visão. A mãe, entretida com seus apponctamentos, nem se dá compta da incommoda sensação experimentada pela filha, a quem não resta alternativa sinão virar as costas ao exterior e puxar conversa. Ao voltar-se, appós curta troca de palavras com a mãe, a moça torna a deparar-se com aquelle olhar fixo e perturbador, que sem disfarse ou accanhamento insiste em devassar o interior do vehiculo. O rapaz que della não tira os olhos tinha interrompido a caminhada quando vinha em sentido contrario ao do carro estacionado, fascinado que ficou pela belleza da moça. O romancista da epocha descrevel-o-ia como “simples no traje e pouco favorescido a respeito de belleza”, sendo os dotes naturaes que nelle chamavam a attenção “uma vasta fronte meditativa e os grandes olhos pardos cheios de brilho profundo e phosphorescente” que neste momento estão pregados naquelle magnetico perfil feminino. Passados alguns minutos naquella appaixonada contemplação, o extranho desiste de agguardar que a contrariada joven volte a encarar-lhe o vampiresco olhar, e decide proseguir caminho. 17
O romancista certamente repara que o rapaz traja “lucto pesado, não somente nas roupas negras, como na cor macilenta das faces nuas, e na magoa que lhe escuresce a fronte”. Mas se exquesce, ou se exquiva, de reparar que elle caminha lenta e pesadamente, não pelo effeito da solidão ou da carencia affectiva, mas pelo defeito physico que lhe difficulta os passos: pernas muito arqueadas e pés sem arco algum, voltados para dentro e expalhados em largos sapatos pretos. Emquanto a linda moça, irritada pela demora do lacaio, torna-se ainda mais inquieta sob a impressão deixada pelo penetrante olhar do desconhescido, este dobra a rua Septe de Septembro, rhumo a uma loja de calçados que hoje dir-se-iam orthopedicos, mas na epocha talvez meresçam a especificação de anatomicos ou artezanaes. Não sendo industrialmente fabricados, todos os calçados de então teem sua confecção encommendada sob medida, mas os daquella loja attendem a medidas excepcionaes, aquem ou alem dos padrões do pé brazileiro. Uma chineza ou um norte-americano que no Rio se tivessem radicado haveriam de mandar fazer alli seus sapatos, visto que nas lojas mais chiques dos mestres francezes, como nas sapatarias populares, as fôrmas adultas ou infantis não previam tal nivel de serviço personalizado. Aquelle rapaz é filho de fazendeiros paulistas mas vive na Corte desde os annos de estudante, quando perdera os paes. O romancista da epocha teria uma explicação para o facto de, ainda agora, estar enluctado: “o isolamento em que se ia excoando sua vida, depois da recente perda de uma irman a quem adorava. Nessa irman tinha elle resumido todas as affeições da familia, prematuramente arrebattada à sua ternura; o amor filial, que não tivera tempo de expandir-se, a amizade de um irmão, seu companheiro 18
de infancia, todos esses sentimentos cortados em flor, elle os transportara para aquelle ente querido, que era a imagem de sua mãe. Essa perda deixara um vacuo immenso no coração de Leopoldo; a principio enchera-o a dor, depois a saudade; agora essa mesma terna saudade sentia-se desamparada na profunda solidão daquelle coração ermo. O mancebo carescia de uma affeição para povoar esse deserto de sua alma, de uma voz que repercutisse nesse lugubre silencio.” Leopoldo, nosso funebre personagem, ainda tem na retina a figura da bella dama emquanto se vê reflectido na vitrine da loja, onde se acham expostos sapatos e botas de varios tamanhos e feitios: alguns pares servem de modello, outros são encommendas promptas que agguardam e serão retiradas pelos clientes. Quando o rapaz entra na loja, o sapateiro está attendendo um desses freguezes. Leopoldo approxima-se do balcão e, até que chegue sua vez, põe-se a observar a mercadoria e a ouvir o dialogo entre o dono e o freguez. Este é um lacaio de libré azul com detalhes em escarlate e branco, mas sua attitude é arrogante como a da patroa que o mandara: diz que não pode esperar, emquanto o sapateiro tracta de embrulhar em papel cor-de-rosa um par de botinas que accabam de sahir da fôrma. O rapaz disfarsa, fingindo examinar outros exemplares do mostruario, mas sua curiosidade é despertada pelas peças que o creado veio buscar. Juncto com as botinas novas, o sapateiro embrulha outro par, ja deformado e gasto pelo uso, mas habilmente restaurado. O que chama a attenção de Leopoldo é o pequenino formato do pé, embora paresçam botas de senhora. Não faz idéa do numero, mas o tamanho se lhe affigura minusculo, comparado ao de seu proprio pé, cujos sapatos 44 19
lhe causam constrangimento, alem do descomforto physico, tanto mais quando contrastam com aquellas finas botinas femininas. Tomando affobadamente das mãos do lojista o embrulho feito às pressas, o lacaio sae sem aggradescer. Alliviado por ter adviado o insolente comprador, o sapateiro dirige-se a Leopoldo, que lhe devolve o “Bom dia!” e indaga si suas botinas estão promptas. O sapateiro se desculpa, explicando que tivera de interromper o serviço para despachar a obra que accaba de ser levada pelo lacaio, cuja patroa é uma senhora muito exigente... e rica. Leopoldo sabe que não pode reclamar, pois pertence a uma classe de freguezes mais modestos, cujo poder acquisitivo se sacrifica aos preços do artezão, menos pelo luxo que pela necessidade, ao passo que a freguezia mais nobre não dispensa as melhores pellicas e sedas para accommodar seus delicados e aristocraticos pezinhos. Obtida assim, casualmente, a confirmação de que as intrigantes botinas são de mulher adulta, e não de menina, Leopoldo acceita, comprehensivo, o prazo addicional de mais alguns dias que lhe pede o sapateiro para entregar as botas novas que substituirão seus surrados sapatos pretos. Nesse interim, o lacaio, que apperta o passo a fim de não prolongar a impaciencia das senhoras que o agguardam na carruagem estacionada, exbarra, ao passar em frente a uma porta de escriptorio, com um moleque de recados que surge de dentro, correndo. Com o encontrão, cae-lhe das mãos o pacote e o papel de embrulho se rasga. Entre vociferar contra o negrinho (que torna a desabballar na carreira appós breve pausa para abrir um sorriso maroto) e abbaixar-se para apanhar o pacote, o lacaio vacilla attordoado; 20
mas logo se refaz e, na precipitação de seguir seu rhumo, não vê que um pé de botina sahiu attravés do papel rasgado e excorregou para a beira da calçada. A scena, porem, é presenciada por um cavalheiro que, tendo sahido de uma loja proxima, vem, mais desfilando que caminhando, pela mesma calçada. O romancista da epocha escreveria que o cavalheiro em questão é “um moço elegante não só no traje do melhor gosto, como na graça de sua pessoa: era sem duvida um dos principes da moda, um dos pavões da rua do Ouvidor; mas desse podemos assegurar, pelo seu parescer distincto, que não tinha usurpado o titulo.” Não appenas por estar bem vestido ou ser bem educado distingue-se aquelle rapaz: o que nelle attrae é sobretudo o facto de ser bem appessoado: olhos verdes, bocca esculpturalmente desenhada que se abre num sorriso de perfeita dentição, nariz affilado e bigode apparado com precisão millimetrica, todo o conjuncto de seu rosto se harmoniza com o corpo esbelto e desenvolto. O galan, que normalmente não prestaria attenção a tal accidente, muito menos se daria ao trabalho de dobrar as pernas para appanhar algo do chão, nota que, mais addeante, uma moça de amarello se volta, à porta de uma loja de tecidos, para ver o que está accontescendo. Como o lacaio vae na direcção dessa mulher, o cavalheiro julga que o objecto cahido pertence a ella e abbaixa-se para recolhel-o, na intenção de fazer uma gentileza e, quem sabe, um galanteio, pois que os rapazes de seu estylo jamais deixam excappar a chance de qualquer encontro casual que quebre a monotonia das relações sociaes programmadas e enseje eventual conquista. No instante seguinte, ao constatar que o lacaio passa 21
pela moça sem se deter e desapparesce de vista na primeira esquina, o galan vê frustrado seu gesto generoso e fica a segurar o pé de botina sem saber o que fazer com aquillo. Nessa attitude de indecisão é surprehendido por Leopoldo, que accaba de sahir da sapataria. Os dois se reconhescem: não são amigos, nem se pode dizer que haja alguma sympathia de parte a parte, mas costumam se cruzar nos ponctos mais frequentados da cidade e trocam fingidas cordialidades. Vendo na mão do galan a botina que havia pouco estivera a admirar, Leopoldo o interroga e recebe do ja empertigado cavalheiro a explicação do incidente. Sem dar importancia ao constrangimento do galan e a seu exforço para affectar pouco caso, Leopoldo suggere ao outro que entregue o calçado na loja em que estivera, cujo proprietario de bom grado o restituirá à dona... que, accrescenta com ironia, “paresce ser senhora rica e exigente”... “Senhora?”, admira-se o galan, deante do tamanho que lhe paresceu ser de creança. E emquanto Leopoldo se despede e parte, o joven conquistador segue na direcção da sapataria, pela qual passa sem entrar, depois de metter a botina no bolso do paletó.
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2 A MENINA MIMADA
Refere o historiador que “Desde 1853 pensava-se em reformar quanto possivel a topographia desordenada da parte central da cidade, arrasando montes e entulhando baixadas, lagoas e brejos. O morro de Sancto Antonio foi o primeiro que se projectou nivelar naquella epocha, tractando o governo para isso de desapproprial-o. Depois, o do Senado e o do Castello. Tambem se cogitou de ir corrigindo o plano primitivo do primeiro perimetro urbano, {traçado em uma epocha em que os seus primeiros habitantes cuidavam appenas de estabelescer uma colonia segundo o padrão de todas as colonias portuguezas}. Devia a reforma começar pelo allargamento da rua Septe de Septembro (então ainda rua do Cano); a seguir, viria o allargamento da rua Gonçalves Dias. Tractava-se agora de {abrir uma larga e directa arteria que fizesse penetrar no seio da cidade o ar puro do oceano}; e isso se conseguiria {prolongando a rua Gonçalves Dias desde a da Praiinha, em frente à casa do antigo Aljube; de modo que ao chegar à dicta rua Gonçalves Dias, o allinhamento do lado direito coincidisse com o actual cujos predios seriam conservados, e o do esquerdo abbrangesse os predios do mesmo lado até o largo da Carioca, seguindo dalli em direcção à rua de Sancto Antonio, que attravessará entre as da Guarda Velha e da Adjuda, até o largo da Mãe do Bispo}. Tudo isso se fazia, ou se projectava, com o duplo intuito 23
de sanear a cidade e dar-lhe apparencias de capital moderna. E o que é certo é que toda a acção, tanto do governo imperial como da municipalidade, nunca perdeu de vista essas que se consideravam como duas faces do mesmo problema.” Na carruagem ainda estacionada, estreitando o trafego da rua da Quitanda, a joven de vestido roxo, que se impacienta com a demora do lacaio (o qual accaba de apponctar na esquina), volta-se para a mãe e desaffoga sua irritação: “Até que emfim!” Ao que a senhora de verde dá aval: “Felizmente!” Segundo o romancista da epocha, “O lacaio approximavase a passos medidos; trazia na mão alguns embrulhos de differentes cores, entre os quaes aquelle de papel cor-de-rosa, que o attrito dos dedos e a oscillação dos objectos envoltos admarrotara, obrigando o portador a appertal-o de vez em quando.” “Julgando ao cabo de alguns instantes que o lacaio ja tocava o estribo da carruagem, Amelia, tomando um tom imperativo, disse para o cocheiro: {Vamos! Vamos!}” “Ao acceno que lhe fez o cocheiro o lacaio correu, chegando a tempo de appanhar o carro, que partia ao trote largo da fogosa parelha. Deitar os embrulhos na caixa do vehiculo, rodear em dois saltos e galgar o estribo da almofada, foi para o creado, habituado a essa manobra, negocio de um instante. Não percebera elle, porem, que o papel estava aberto e um dos objectos nelle contidos cahira na calçada e se perdera.” “Amelia, que se inclinara com vivo interesse para tomar os embrulhos das mãos do lacaio, tivera um 24
presentimento do accidente, ao ver o papel cor-de-rosa desenrollado. Fechando-o rapidamente e escondendo-o por baixo do assento da carruagem, ella debruçou-se ainda uma vez para verificar si com effeito alguma coisa havia cahido. Ao mesmo tempo accompanhava o movimento com estas palavras de contrariedade: {Como elle manda isto! Por mais que se lhe recommende!}” Amelia nada vê que houvesse ficado pelo chão e, emquanto a carruagem roda rapidamente sobre os parallelepipedos, verifica si estão damnificados os demais pacotes, retirados pelo lacaio em duas outras lojas depois de ter estado na sapataria. Passa às mãos da mãe o embrulho menor, de papel azul, e guarda o restante sob o assento, disposta a deixar para conferir mais tarde, em casa, o contehudo de cada volume. No escriptorio da rua Direita, um funccionario vem advisar ao Sr. Pereira Salles que D. Leonor e a filha agguardam no carro. O negociante de café manda dizer que continuará trabalhando e que ellas podem ir na frente. Horas mais tarde, em seu proprio cupê, Salles chega à chacara nas Laranjeiras, residencia da familia. A essa altura o lacaio ja fora reprehendido pela falta da botina, que se suppõe perdida. Amelia, filha unica do casal Pereira Salles, está mais temperamental do que nunca, de cara admarrada, expressão que lhe empresta à formosa physiognomia a dupla mascara de menina amuada e mulher empertigada. Eis como o romancista da epocha resume a situação domestica dessa privilegiada donzella, a quem pertence o calçado extraviado: 25
“O Sr. Pereira Salles habitava nas Laranjeiras uma bella chacara. Amelia era filha unica, e seu dote, convertido em cem apolices, só esperava o noivo. Quanto à mulher, tinha uma boa pensão instituida no Montepio Geral. Seguro assim o futuro, vivia o negociante com certa largueza, economizando pouco ou nada de seus lucros annuaes.” Por que será que Amelia, dispondo de tanto dinheiro e podendo encommendar quantos pares de sapatos quizesse, fica tão malhumorada com a perda de um pé de botina ja usada? Qual a razão da excessiva importancia dada pela moça a uma peça do vestuario que, na epocha, mal se distingue em publico, encoberta por vestidos extremamente compridos? O romancista reserva para o desfecho as palavras exclarescedoras, mas como ellas não encerram nem metade do inconcluso caso que iremos desvendar, podem perfeitamente ser aqui expostas: “A filha do Salles tinha dois pezinhos de fada, breves, arqueados, com uns dedos que paresciam botões de rosa. O desgosto e vexame que isso causava à moça, ninguem o imagina. Ella suppunha-se alleijada; appesar de seus dezenove annos, seus pés eram de menina! Assim, o mesmo cuidado com que os portadores de atrophias escondiam as suas monstruosidades, punha ella em occultar essa graça e prenda da natureza. Naquelle tempo não se tinha introduzido ainda a moda dos vestidos curtos; bem ao contrario, o tom era arrastar desdenhosamente pelo chão a longa fimbria do vestido.” “Abhorrescida de não encontrar nas lojas calçado que lhe servisse, Amelia tinha descoberto por suggestão da mãe o sapateiro da rua Septe de Septembro.”, explica o romancista. De facto, a habilidade do artesão vinha de encontro a duas conveniencias da moça: um producto personalizado e um profissional suppostamente 26
discreto, que lhe pouparia o transtorno de se expor nas sapatarias mais frequentadas da Corte. Foi graças a tal exclusividade que Leopoldo tivera occasião de appreciar, por coincidencia, a mesma obra-prima que, ja velha, servia de modello a novas copias (ligeiramente diversas na cor ou no typo do couro e da seda) e que, para infelicidade de Amelia e felicidade de Horacio, cahira nas mãos deste ultimo por causa de um embrulho mal feito e de um lacaio desattento. A botina, destarte, é de estimação por ter sido a primeira de uma serie que actualmente compta para mais de uma duzia de pares e, si não disfarsa o “defeito” de que Amelia se resente, ao menos compensa-lhe o complexo pela perfeição do desenho, pela qualidade do material e pelo appuro do accabamento. Perdel-a significa perder uma joia de familia, um livro raro, uma moeda preciosa, um diario intimo ou... um fetiche secreto. O lacaio meresce perder o posto por compta da incompetencia; meresce ter de pagar preço ainda mais alto, mas appesar da queixa da filha o Salles não julga os factos com tanta severidade e decide pela simples e ja vergonhosa reprimenda ao creado, para maior contrariedade de Amelia. Um estado de animo que Salles sabe ser passageiro e vir a dissipar-se tão logo a filha reencepte a luxuosa roptina de ver satisfeitas todas as suas vontades: passeios, viagens, jogos, festas, banquetes, bailes, roupas caras, livros importados, aulas particulares, espectaculos musicaes ou theatraes e visitas a uma divertida casa privada -- o sallão de madame Fragonard -- onde, sempre levada pela mãe, Amelia dansa, encontra as amigas e conhesce gente differente, personagens interessantes e intelligentes que sempre teem algo de novo para contar. Emquanto não se distrae experimentando ao espelho 27
o novo vestido com que irรก ao proximo compromisso
social, Amelia guarda num cofre de madeira a botina que restou, tendo-a beijado como si fosse uma reliquia
recem descoberta por um archeologo maravilhado, da
qual sabe que deve separar-se quando entregal-a ao museu onde permanescerรก para sempre.
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3 A BOLINA DA BOTINA
Refere o historiador que “Intenso como foi, no Brazil ainda patriarchal e ja urbano, o culto do pé pequeno, delicado e bonito de mulher e mesmo de homem, como evidencia de sua superioridade ou de sua situação social, e do sapato ou da botina que correspondesse a essas qualidades de pé, ou as accentuasse, ou resguardasse o pé fidalgo da agua das ruas ou da humidade dos caminhos -- como o sapato ou a botina de sola de borracha -- é natural que transbordasse tal culto da zona social para a de excessos de fetichismo sexual. Foi o que succedeu. Ao caso relatado pelo medico Alberto da Cunha, em {these inaugural} -- o do individuo que só se sentia apto para o acto venereo {quando ardentemente cobria de beijos a botina da mulher ambicionada} -- poderiam junctar-se varios outros de brazileiros obcecados pelo pé ou pela botina da mulher desejada, alguns dos quaes deixaram em sonnettos celebres a marca de sua obsessão. Tambem parescem ter sido -- e continuam a ser -- varios os casos, entre brazileiros de formação ainda patriarchal, de predispostos ao orgasmo ou à voluptuosidade, attravés do simples roçar de um pé no outro: a chamada {bolina} de pé. Os pés como que se tornaram em taes individuos zonas de particular sensibilidade talvez em consequencia dos bichos docemente extrahidos dos seus pés de meninos por mucamas ou mulatas de dedos ageis e macios.” 29
Um desses pés fidalgos é o de Horacio de Almeida, o joven janota que guarda em casa a botina achada na rua Septe de Septembro. Bem nascido e filho unico, teve elle a meninice mimada que os sociologos documentam nas familias patriarchaes, accostumado que foi ao regalo de receber nos pés a caricia manual (e buccal) duma bonita mucama -- não daquellas mucamas que, nas zonas ruraes, eram peritas na arte da extracção do bicho-de-pé, uma operação precedida de voluptuosa comichão, a que os dedos das mulatas sabiam dar allivio, abbrandando-a numa especie de coçação posoperatoria -- que, no caso de Horacio, manipulava-lhe o pé com a mesma habilidade empregada ao fazer cafuné no garoto. Uma das mais eroticas recordações do nosso galan é a scena roptineira em que, appós a lavagem de seus pés na bacia ou no alguidar, a escrava, com sua mão carnuda, os massageava e, attendendo à exigencia do sinhozinho, levava-os à bocca, imprimindo-lhes o contacto dos grossos labios e da linguona molhada -impressão que, gravada na memoria do conquistador, vem à tonna sempre que elle observa, na rua, a passagem de mulheres negras ou mulatas, emquanto que, deante das brancas, tal reminiscencia trazlhe à mente uma reciproca temptação de explorar identica sensibilidade naquelles delicados pezinhos das sinhazinhas, de solas ainda mais assetinadas que as delle, Horacio... O romancista da epocha assim relataria como transcorre aquelle dia na vida do nosso galan: “Horacio voltou a casa à hora do costume, quattro da tarde. Os successivos encontros da rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indispensavel ao alfaiate; as anecdotas do Alcazar na noite antecedente; a chronica anacreontica do Rio de Janeiro, chistosamente commentada; algumas rajadas de maledicencia, que é a pigmenta social; todas essas occupações importantes, que absorvem a vida do pavão, distrahiram Horacio a 30
poncto de se exquescer elle do objecto guardado no bolso do paletó.” “Como admittir que um principe da moda não approveitasse a adventura do lacaio desastrado, para sobre ella bordar um romance de rua, com que excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente é admiravel; e seria incomprehensivel si não fosse a circumstancia de ter poucos passos addeante encontrado uma das mais ricas herdeiras do Brazil, a quem o nosso pavão, ou antes o nosso gallo, arrastava a asa.” “Foi só quando, encostado em sua ottomana, descansava para o jantar, que Horacio, procurando a charteira de charutos no bolso do fraque, lembrou-se do objecto. Teve então curiosidade de examinal-o: sabia o que era; na occasião de appanhal-o reconhescera o pé de uma botina de mulher que, segundo as palavras de Leopoldo, era uma rica senhora; mas não fizera grande reparo, ou pelo menos não dera a Leopoldo a impressão de ter reparado em outro adspecto que não fosse a desproporção causada à primeira vista.” “Agora, porem, que de novo o tinha deante dos olhos, a sós em seu apposento e despreoccupado da idéa de o restituir, Horacio achou o objecto digno de seria attenção; e approximando-se da janella, começou um exame consciencioso.” “Era uma botina, ja o sabemos; mas que botina! Um primor de pellica e seda, a concha mimosa de uma perola, a faceira irman do lindo chapim de ouro da Borralheira; em uma palavra a botina desabbrochada em flor, sob a inspiração de algum artista ignoto, de algum poeta de ceiró e torquez.” 31
“Não era, porem, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso pavão; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pellica os contornos do pezinho desconhescido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva cor bronzeada e o esfrolamento da sola indicavam bastante uso.” “Si fosse um calçado em folha, sahido da loja, não teria grande valor aos olhos do nosso pavão, habituado não só a ver, como a calçar, as obras-primas de Milliès e Campás. Talvez reparando muito naquella peça que tinha nas mãos, notasse maior elegancia no corte e um appuro escrupuloso na execução; porem mais natural seria excappar-lhe essa minima circumstancia.” “Mas a botina achada ja não era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma belleza, o gentil companheiro de uma moça formosa, de quem ainda guardava a impressão e o perfume. O rosto estoffava mostrando o firme relevo do pezinho arqueado. Na sola se desenhava a curva graciosa da planta subtil, que só nas extremidades beijava o chão, como o sylpho que frisa a superficie do lago com a poncta das asas.” “Ha um aroma, que só tem uma flor na terra, o aroma da mulher bonita: fragrancia voluptuosa que se exhala ao mesmo tempo do corpo e da alma; perfume inebriante que penetra no coração como o amor volatilizado. A botina estava impregnada desse aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corolla de um lirio, derramava, como a flor, ondas suaves.” “O mancebo collocara longe de si o charuto para não desvanescer com o fumo os bafejos daquelle odor suave. Não havia ahi o menor laivo de essencia 32
artificial preparada pela arte do perfumista; era a pura exhalação de uma cutis assetinada, esse halito de sahude que perspira attravés da fina e macia tez, e como attravés das petalas de uma rosa.” “De repente uma idéa perpassou no espirito do moço, que o fez extremescer. Essa botina gracil, em que mal caberia sua mão aristocratica, essa botina mais mimosa do que sua luva de pellica, não podia ter um numero maior do que o de seus annos, VINTE E NOVE! Exactamente dez a menos que o numero calçado por elle agora, mas certamente o mesmo numero que o menino calçava quando a mucama lhe executava o pediluvio erotico tão accalentado na saudade...” Por um capricho do destino, o pé de botina perdido é o do par ja usado, que servira de modello ao sapateiro; graças a esse acaso Horacio dispõe de signaes mais propicios à reconstituição daquelle pezinho intrigante, que evoca algo differente dos demais pés femininos até então a seu alcance. “Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos os lados, appalpou docemente o salto e o bicco, dobrou a orla da haste, sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pezinho. Depois de alguns instantes deste exame profundo e minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horacio.” “Esta botina (diz comsigo) é de moça aristocratica e auctoritaria; e moça em todo o viço da juventude: a sola appenas roçada juncto à poncta, o salto quasi intacto, não estão descrevendo com a maior eloquencia a altivez do passo solenne? Eu sinto, posso dizer, eu vejo, esse andar autoconfiante, que manifesta a deusa, como disse o poeta; a deusa...” 33
“Nisto o moço descobriu na fivella do laço da botina alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegandose à luz, viu as voltas de um fio, que prendeu entre as brancas unhas affiladas, verdadeiras garras de gavião dos pombaes. Com alguma paciencia retirou um longo cabello castanho e muito crespo.” “Outra prova (segue dizendo) de que aliaz não carescia! Este cabello é de mulher vaidosa; não ha menina displicente que o possa ter. Quattro palmos, alem do que se partiu naturalmente! Bem se vê que é uma palmeira frondosa, e não um arbusto! Tem o cabello castanho e crespo, duas coisas lindas sem duvida, embora minha paixão seja a trança basta e lisa, negra como uma asa de corvo. Esse negrume dá à mulher o quer que seja de satanico: lembra que ella tambem gerou-se da terra; não é anjo somente; não é somente filha do céu. Eu não posso supportar a mulher-seraphim, que paresce desdenhar do mundo onde vive, e do pó de que é feita... Mas seja embora castanha, ou mesmo loura, que é uma cor insipida de cabello! Que me importa isto? Tenho alguma coisa com seu cabello? O que amo nella é o pé: este pé sylpho, este pé de anjo, que me fascina, que me arrebatta, que me enlouquesce!...” “Horacio, que até então se contentava com olhar e appalpar a botina, inclinou-se e beijou-a no rosto, timida e respeitosamente, a principio; depois com soffreguidão, demorando os labios em torno do bicco. Não era essa a imagem do pé seductor, que elle pretendia adorar como um idolo?” Descobrir a identidade da mulher a quem pertence aquelle objecto do desejo, esta a idéa que se appossa do galan, monopolizando-lhe as preoccupações. Deduz que, si não quizer recorrer àquelle intromettido 34
Leopoldo ou a um indiscreto sapateiro, difficilmente levantará a pista que procura; a vaga lembrança da libré de um lacaio não é sufficiente: ha tantos lacaios no Rio de Janeiro; e tantas librés que se confundem! Talvez nunca o reencontre, ou não o reconhesça... Emquanto não se decide a devolver a botina, Horacio tracta de manuseal-a o mais que pode. Não satisfeito, torna a beijal-a, desta vez por baixo. Tem impetos de lambel-a, mas refreia aquelle impulso, logicamente para protelal-o até a noite, quando estiver mais accommodado e puder sentir o aspero contacto do solado, não só contra o rosto, mas tambem sobre a nudez de sua pelle abdominal, extremescida por fremitos... porem não de frio, ja que o ar está abbafado, appenas deslocado por leve brisa que traz para o interior da alcova, pela janella aberta, o echo longinquo de um battuque, parescendo ritualizar a simulação feita pelo moço entre a botina e seu corpo, como si aquella estivesse calçada e este prostrado... Deixa Horacio, então, para o dia seguinte a reflexão accerca da armadilha que o acaso está preparando para o mais querido galan das bellas fluminenses, o Attila do Casino, o Genserico da rua do Ouvidor, o pavão dos gallinheiros imperiaes.
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4 O SEGREDO PROFISSIONAL
Refere o historiador que “Foi só depois da transferencia da Corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro, que aos sapatos medieval ou orientalmente feitos em officinas de sapateiro, se succederam os fabricados em Londres: os sapatos feitos ja em machinas e alguns com pelles de animaes. E pardos, cinzentos, escuros, em vez de orientalmente de cor, como os obstentados até então pelas senhoras. Não nos paresce que se deva attribuir, como paresce querer Debret, à {anglomania dos cortezãos portuguezes}, que vieram então para o Brazil, o triumpho dos sapatos que poderemos considerar de feitio burguez e de fabrico mechanico, ou semimechanico, sobre os antigos sapatinhos de mulher feitos inteiramente a mão e com material incapaz de resistir a caminhadas longas e sobre ruas asperas. Evidentemente as novas condições de vida e de transporte -- a maior liberdade que foi sendo concedida às senhoras para attravessarem as ruas a pé, nos dias de missa ou de festa, e a substituição de palanquins (que as deixavam quasi dentro das sallas) por carruagens que, a trote de cavallo ou de mula, appenas as conduziam aos portões das casas -foram exigindo das senhoras o uso de calçados mais resistentes que os de seda.” A loja que Amelia e Leopoldo frequentam está longe de ser das mais granfinas ou famosas: por fora, 36
appenas duas portas e uma pequena vitrine; por dentro, o reduzido espaço attraz do balcão mal chega para dividir-se entre o cubiculo destinado aos dois officiaes, que alli trabalham, e a bancada do proprietario; ao fundo, uma porta estreita communica o recincto com um quarto privativo do patrão, que lhe serve de escriptorio e bibliotheca. Segundo o romancista, “a loja pertencia a um mestre fluminense, que trabalhara por algum tempo na casa do Guilherme e do Campás, e se iniciara portanto em todos os segredos da arte. Ninguem a exercia com mais habilidade, exmero e enthusiasmo do que elle; sua obra, quando queria, não tinha que invejar ao producto das melhores fabricas de Paris, si não o excedia na elegancia e delicadeza.” “A razão cardeal de toda a superioridade humana é sem duvida a vontade. O poder nasce do querer. Sempre que o homem applique a vehemencia e perseverante energia de sua alma a um fim, elle vencerá os obstaculos, e si não attingir o alvo, fará pelo menos coisas admiraveis. Mas para que o homem se entregue assim a uma idéa e se captive a um pensamento, é necessario ser attrahido irresistivelmente, ser impellido pelo enthusiasmo. É o enthusiasmo que faz o poeta e o artista, o sabio e o guerreiro; é o enthusiasmo que faz o homem-idéa differente do homem-machina.” “O Mattos tinha o enthusiasmo de sua arte; descobrira nella segredos e encantos desconhescidos aos mercenarios. Para elle o calçado era uma esculptura; copiava em seda e couro, assim como o cinzel copia em gesso e marmore. Os outros artistas da forma reproduzem todo o vulto humano ou pelo menos o busto; elle só tinha um assumpto, o pé. Mas que importancia não tomava a seus olhos esta parte do corpo! Era 37
preciso ouvil-o, em algum momento de arroubo, para fazer idéa de sua admiração por esse membro da creatura racional.” “Depois de trabalhar muitos annos em casas francezas, o mestre fluminense resolveu estabelescer-se por sua compta. Alugou uma pequena loja de duas portas, onde trabalhava com dois officiaes. A necessidade de ganhar o pão o obrigava a tornar-se mercenario, fazendo obra de carregação para vender barato. Mas no meio dessa tarefa ingrata tinha elle suas delicias de artista. Meia duzia de freguezes, conhescedores da habilidade do sapateiro, preferiam seu calçado ao melhor de Paris, e o pagavam generosamente. Essas raras encommendas, o Mattos as executava com enlevo; revia-se em sua obra, verdadeiro primor.” “Leopoldo não era um freguez daquella alta classe; elle não conhescia a voluptuosidade de um calçado macio, antes luva do que sapato; seu pé não era um {enfant gâté}, um benjamim accostumado a essas delicias; desde a infancia o habituara a uma vida rude e austera entre a sola rija e o bezerro. Alem de que seus haveres não chegavam para taes prodigalidades. O moço pertencia à classe dos freguezes da obra de carregação, e preferia a loja do Mattos pela modicidade do preço, e boa qualidade do cabedal, como do trabalho.” Sendo, como é, um saudosista das technicas artezanaes francezas, é natural que Mattos não veja com bons olhos a mechanização calçadista introduzida pelos britannicos. Ja no proprio anno da independência (segundo o historiador), James Clark, dono, junctamente com o irmão, de uma fabrica de calçados na Escocia, montava na rua do Ouvidor sua loja de sapatos, para vender no Brazil os productos 38
daquella fabrica. O calçado escocez ganhou fama. Foi-se tornando o calçado da gente mais polida -magistrados, advogados, estudantes e tambem dos militares... Tal era a determinação da casa Clark em sobrepujar o artezanato attravés da especialização technologica, que o desenho das fôrmas européas foi adaptado ao padrão medio do pé brazileiro, não sem alguma dose de empirismo. Para corresponder aos exaggeros de pé pequeno e de pé grande entre nós, de pé aristocratico e de pé de negro -- à proporção que foi sendo necessario calçar o negro soldado de exercito, soldado de policia, marinheiro -- os escocezes resolveram fabricar differentes tamanhos para cada modello. Mas para isso tiveram que treinar, no serviço de suas lojas, funccionarios peritos em tomar as medidas anatomicas dos pés dos freguezes a fim de calçal-os na sua largura e na sua altura exactas. Largura e altura variadissimas, neste paiz: a partir do momento em que a meia-raça foi se tornando classe media obrigada a andar calçada, cresceu a necessidade de fabricar-se sapato que servisse desde o pé largo e chato do negro, accostumado a andar descalço, até o pé fino e mehudo do mulato e do proprio branco aristocrata. Si, por um lado, Mattos lamenta que, como escreve o historiador, a arte de sapateiro tenha deixado de ser no Brazil uma industriazinha semidomestica, das muitas que quando sahiram da sombra das casas-grandes foi para florescer em patamar ou ao pé-de-escada de sobrados, quasi medievalmente; que a arte de sapateiro tenha se tornado uma industria de fabrica, e o fabrico tenha cahido no dominio da moda ingleza -- por outro lado inveja o tirocinio dos especialistas da Clark, os quaes talvez estejam mais proximos que elle, Mattos, daquillo que se poderia chamar de pé typico do brazileiro. Nas palavras do historiador, esse typo medio de pé seria um tanto relativo: “É verdade que 39
por essa epocha o pé que se calçava à botina era quasi exclusivamente o pé fidalgo de casa-grande ou o de doutor, bacharel ou burguez mais fino de sobrado -- o pé comprido e pequeno, que foi se tornando mais numeroso com a ascensão social do mulato”, cujo formato se assemelha ao dos “aristocratas de pés de moça que até decadentes e andando dentro de casa de ceroulas e nus da cinctura para cyma, conservavam as botas de montar a cavallo. Ou então as botinas inglezas. Por outro lado, com a incorporação à burguezia e ao proletariado brazileiros, de allemães, portuguezes, italianos, hespanhoes -- gente de pé grande, mas de altura consideravel -- o pé brazileiro deve vir se approximando do {standard} de calçado europeu, em varias zonas do litoral. O pé characteristicamente brazileiro pode-se entretanto dizer que continua, em largos trechos do Paiz, o pé pequeno que o mulato tem certo garbo em contrastar com o grandalhão, do portuguez, do inglez, do negro, do allemão. O pé agil mas delicado do capoeira, do dansarino de samba, do jogador de {foot-ball} pela technica brazileira antes de dansa dionysiaca do que de jogo britannicamente apollineo.” Quando, duas semanas antes, Leopoldo vem pela primeira vez à loja do Mattos, este o impressiona pela dedicação, mais minuciosa que a do joalheiro ou do relojoeiro, com que lhe toma as medidas do pé descalço. A principio o rapaz mostra-se constrangido por ter de exhibir o principal motivo de sua pouco attrahente apparencia e de seu sentimento de rejeição. Mas quando Mattos o adjuda a descalçar-se e lhe appalpa o pé com uma quasi ternura, perde momentaneamente a inhibição e passa a accompanhar com seus olhos vitreos os minimos gestos do mestre sapateiro. Por ser muito myope, Mattos approxima o rosto quasi 40
a poncto de tocar o pezão com a poncta do nariz. Leopoldo chega a ter a impressão de haver sentido sua sola roçar, entre o queixo e o nariz, alguma parte do rosto do Mattos, no momento em que toda a physiognomia do sapateiro desapparescia debaixo do pé erguido e appoiado sobre um escabello; mas talvez fosse appenas a cocega provocada pela respiração offegante do mestre, que se adjoelhara com algum sacrificio devido à edade. A descripção que mais adequadamente cabe ao pé de Leopoldo é aquella em que o romancista affirma ser “uma enormidade, um monstro, um alleijão. Ao tamanho descommunal para um mancebo magro e de estatura mediana, junctava a disformidade. Pesado, chato, sem arqueação e perfil, parescia mais uma base, uma prancha, um tronco, do que um pé humano e sobretudo o pé de um cavalheiro.” A sola, plana como uma tabua, allargava-se a tal poncto que os artelhos, affastados entre si, eram todos mais longos que o dedão, cujo vão parescia ainda mais espaçado. Agora, dias depois do incidente da botina, Leopoldo está de volta para emfim provar seus novos borzeguins. Dispondo-se a sahir ja usando as novas botas, Leopoldo pensa em pedir ao Mattos que lhe embrulhe os velhos sapatos, mas hesita entre leval-os de volta e jogalos fora, tal o estado de desgaste daquellas surradas chancas pretas. Percebendo-lhe a indecisão, o mestre se antecipa e indaga si ainda vae precisar dos usados ou si pode deixar que a officina fique com elles. Com a simples explicação de que o artezão costuma analysar, em exemplares muito lasseados pelo uso, os ponctos de maior attrito ou pressão a fim de apperfeiçoar os moldes e cada vez mais alliviar o descomforto do usuario, Leopoldo se satisfaz e, aggradescendo 41
ao mestre a opportunidade de livrar-se dos inuteis trastes, despede-se promptamente, anxioso por estrear, numa longa e triumphal caminhada, os mais macios supportes em que seus pés soffridos jamais se haviam appoiado. Mal o freguez se retira, Mattos corre a guardar em seu quarto o par deschartado, cuidadosamente depositado na mesma pratteleira em que se acham varios modellos masculinos refugados, num armario destinado exclusivamente a calçados alheios, cujas demais divisorias conteem somente peças femininas, entre as quaes o menor tamanho é o das antigas botinas que Amelia alli deixara no anno passado, quando viera encommendar o primeiro par das mãos do mestre, ou seja, a obra-prima que agora provoca as saudades da moça e as phantasias de Horacio. Desnecessario frisar que a botina doada por Amelia é de feitio muito inferior ao da mercadoria do Mattos, embora a rusticidade da primitiva confecção não lhe tire a delicadeza das proporções miniaturaes que são o xodó da peculiarissima collecção podologica do mestre. Na occasião em que alli estivera pela primeira vez, Amelia tambem sentiu-se inhibida pela incommoda necessidade de mostrar o pezinho que lhe causava vergonha, mas o Mattos tractou-a com uma naturalidade tão paternal que ella foi ficando à vontade para deixar que aquellas mãos callejadas lhe descalçassem e appalpassem os esculpturaes artelhos e calcanhares. Completamente relaxada pelo toque suave dos experientes dedos do Mattos, a moça respondera sem se offender a todas as perguntas do sapateiro. Um breve dialogo bastou para que Mattos se inteirasse do recalque da donzella e tractasse de minimizal-o com espirituosas allusões aos exoticos orientalismos 42
que valorizam as mulheres de pés pequenos. Vendo que Amelia mostrava-se vivamente interessada em taes informações, o mestre se approveita do lapso em que a mãe da moça vae até a loja ao lado para comprar luvas, e traz do quarto um livro britannico sobre “foot binding” na China, obra que Amelia folheia com compenetrada curiosidade, emquanto o artezão, de joelhos deante da banqueta almofadada, segue manipulando meticulosamente seus pés angelicaes para dimensionar a feitura do molde. Distrahida com as illustrações do livro, Amelia nem attenta para o facto de que o sapateiro, tendo ja tomado todas as medidas necessarias, continua a appalpar-lhe os pezinhos, como que a massageal-os de leve, sempre chegando-os bem proximo dos olhos e... da poncta de seu nariz adunco e resfollegante. Amelia sae da loja do Mattos profundamente impressionada com o que accaba de ver e ler, de passagem, nas paginas daquella intrigante obra que o sapateiro, sorrindo de si para comsigo, vae recollocar na estante, ao lado da edição franceza dos romances de Sade e Restif, e da ingleza dos tractados de Davenport e Holloway. Sim, o mestre fluminense é um subjeito lido... mas, alem dos compendios mais practicos e proximos de sua profissão, cultiva algumas leituras um tanto especiaes e de pouca applicabilidade, a não ser em ambientes reservados.
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5 DOS PÉS À CABEÇA
Refere o romancista que, por volta de 1870, “o Rio de Janeiro passava por uma transformação violenta, estava em guerra; e emquanto as provincias se despediam para cobrir com os seus filhos os sertões paraguayos, o Alcazar erguia-se na rua da Valla e a opereta franceza invadia-nos de cabelleira postiça e perna nua. Durante o dia ouvia-se o Hymno Nacional accompanhando para bordo dos vasos de guerra os voluntarios da patria; à noite ouvia-se Offenbach. E o nosso enthusiasmo era um só para ambas as musicas. A guerra tornava-nos conhescidos na Europa e uma nuvem de mulheres de todas as nacionalidades precipitavase sobre o Brazil, que nem uma praga de gafanhotos sobre um cafezal; as estradas de ferro desenvolviamse facilitando ao fazendeiro as suas visitas à Corte e o dinheiro ganho pelos escravos desfaziase em camellias e champanhe; abriam-se hoteis onde não podiam entrar familias; multiplicavam-se os botequins e as casas de penhores. Redobrou a lotteria e a rolleta, correram-se os primeiros cavallos no Prado; surgiram impostos e mais impostos, e o ouro do Brazil transformou-se em papel-moeda e em fumaça de polvora.” “Horacio está, pois, com o seu tempo; ja demandando todas as noites a Alcazar dentro do seu cabriolé que elle mesmo governa com muita graça; ja percorrendo 44
a cavallo as ruas da cidade em marcha ingleza; ja servindo de juiz de raia no Jockey Club ou madrugando nas ceias do Raveaux ao lado das Venus alcazarinas.” Outro romancista da epocha situa Horacio nesse ambiente mundano com palavras nada condescendentes: “Ninguem imagina que bellos talentos sorve essa voragem do mundo, que chamam a vida elegante. São como as arvores luxuriantes que se vestem de linda folhagem, e consomem toda a seiva nessa gala esteril e ephemera. Nunca ellas dão fructo, nem siquer flor. Horacio de Almeida era uma de tantas intelligencias desperdiçadas no incessante bullicio da moda. Muitos poetas, dos que teem seu nome estampado em rosto de livro, não empregaram na fabrica de seus versos o atticismo, a inspiração e a graça com que o nosso pavão torneava no baile um galanteio, ou aguçava um epigramma. Pintores são festejados, que não sabem o segredo dos toques delicados e do supremo gosto, que Horacio imprimia no laço de sua gravata, em suas maneiras distinctas, nos minimos accidentes de seu traje appurado.” O mais vaidoso playboy do segundo imperio orgulha-se de conhescer as mulheres no physico e no psychico, e de tel-as conquistado de todos os typos e classes, satisfazendo assim a maior variedade de phantasias sexuaes imaginaveis, desde deflorar solteironas até copular com mocinhas sem que percam a virgindade. Emfim, é o que no seculo seguinte se poderia chamar de refinado cafageste, alem de metrosexual. Ainda conforme o romancista, “Assim gastava Almeida a mocidade, desfolhando seu bello talento pelas sallas e ponctos de reunião. As riquezas de sua elevada intelligencia, as ia elle esparzindo nas elegantes futilidades de um ocio tão laborioso, como é o {dolce far niente} de um pavão. Consumir o tempo não se appercebendo de 45
sua passagem, livrar-se do fardo pesado das horas sem occupação: ha nada mais difficil para o homem que ignora o trabalho? Si o Almeida poupasse desse tempo tão experdiçado alguns momentos no dia para dedicalos a um fim serio e util, à sciencia, à litteratura, à arte, que bellos triumphos não obteria sua rica imaginação servida por um espirito scintillante?” Mas o galan desdenha das aptidões e vocações na mesma proporção em que cultiva o lazer e o prazer. Suas idéas sobre politica e sciencia bem reflectem tal desdem: da politica acha que quem a practica visa o poder como caminho mais facil para o prazer, mas que elle, Horacio, ja corta caminho sem necessidade de negociar com homens publicos para chegar às mulheres publicas; da sciencia acha que só serve para envaidescer os doutos, cuja sabedoria appenas lhes compensa a incapacidade de desfructar a vida, ou por outra, de attrahir as mulheres, coisa que elle, Horacio, consegue sem ser professor nem doutor. “Litteratura (diz elle, segundo o romancista) e arte são plagios; quem pode fazer poesia e romance ao vivo, não se dá ao trabalho de reproduzil-os; nem contempla estatuas, quem lhes admira os modellos animados e palpitantes.” “Com taes paradoxos, Horacio não achava emprego mais digno para a intelligencia, do que a difficil sciencia de consumir gradualmente a vida e attravessar sem fadiga e sem reflexão por este valle de lagrymas, em que todos peregrinamos.” “A mulher era para elle a obra suprema, o verbo da creação. Toda a religião como toda a felicidade, toda a sciencia como toda a poesia, Deus a tinha encarnado nesse mixto incomprehensivel do sublime e do torpe, do celeste e do satanico: amalgama de luz 46
e cinzas, de lodo e nectar. Mas o que sentia Horacio era appenas o culto da forma, o fanatismo do prazer.” O galan não está interessado em sentimentos nem sentimentalismos, mas em sensualidade, ou mais especificamente em sensibilidade e sensorialidade: sensibilidade para descobrir e explorar as tendencias eroticas de cada mulher a ser conquistada, e sensorialidade a ser descoberta e explorada em cada zona erogena, nas dellas e nas delle. “O mancebo admirava na mulher a formosura unicamente: appenas artista, elle procurava um typo. Durante dez annos attravessara os salões, como uma galleria de estatuas animadas e vivos paineis, parando um instante em face dessas obras-primas da natureza. Vieram uns appós outros todos os typos: da mulata à loura, da india à oriental, da nympheta à balzaquiana, da escrava à cortezan. Seu gosto foi-se appurando; e ao cabo de algum tempo tornou-se difficil. A belleza commum ja não o satisfazia; era preciso a obra-prima para excitar-lhe a attenção e commovel-o.” “Mas os sentidos se gastam; os mesmos primores da formosura cahiram na monotonia. Ja o pavão não sentia pela mais bella mulher aquelles enthusiasmos ardentes da primeira mocidade. Seu olhar era frio e severo como o de um critico.” “Então começou o moço a amar, ou antes a admirar, a mulher em detalhe. Sua alma embotada carescia de um sainete. Foi a principio uma bocca bonita, cofre de perolas, de sorrisos, de beijos e harmonias. Veiu depois uma trança densa e negra, como a asa da procella que se inflamma. Uma cinctura de sylphide, um collo de cysne, um pescoço de cegonha, uma pennugem 47
de arara, uns olhos de coruja, um requebro seductor, um signal da face, uma graça especial, um {não sei que}: tudo recebeu culto do nosso pavão. Nada, porem, lhe despertava mais attracção que um tornozello, um calcanhar, um artelho, depois de ja ter appreciado um nariz, um labio, um dente...” Mas mesmo essa zona mais appetescivel, essa iguaria mais saboreavel no chardapio do banquete, vae-se tornando trivial e insossa por força do habito e da facil disponibilidade. “O moço cortejava as senhoras como uma occupação indispensavel à sua vida, como o desempenho da tarefa diaria; mas sem a menor commoção. Amar era um entretenimento do espirito, como passear a cavallo, frequentar o theatro, jogar uma partida de bilhar.” “O pé ja não tinha novidades nem segredos para elle, que o gozara em todas as formas; na comedia e no drama; no idyllio e na ode. Como Richelieu, diziam até que elle ja lhe havia calcado o callo com o taccão da bota.” “Nestas circumstancias bem se comprehende a impressão profunda que nelle produzia a mimosa botina, achada na manhan anterior. Almeida tinha admirado a mulher em todos os typos de pé e em todos os seus encantos; mas nunca a tinha amado sob a forma seductora de um tamanho minimo. Era realmente para surprehender. Como lhe passara desappercebido esse condão magico da mulher adulta com pezinho de creança, a elle que julgava ter exgottado todas as emoções do amor?” “Succedeu, como era natural, que uma vez percutidas as energias dessa alma ennervada por longa apathia, 48
a reacção foi violenta. Inflammou-se a imaginação e especialmente com o toque do mysterio que trazia a adventura. Si o dono da botina, o sonhado pezinho, se mostrasse desde logo, não produziria o mesmo effeito; não teria o sabor do {desconhescido}, que é irmão do {prohibido}. Calcule, quem conhescer a sexualidade humana, a vehemencia dessa paixão, excitada pelo tedio do passado e alimentada por uma imaginação ociosa. De que loucuras não é capaz o homem que se torna ludibrio de sua phantasia? As extravagancias de Horacio, dormindo com a botina, verdadeiras infantilidades de homem feito, bem revelavam a agitação dessa exsistencia, embotada para o verdadeiro amor e gasta pelo prazer. Não se riam, homens serios e graves, não zombem de semelhantes extravagancias; são ellas o delirio da febre de materialismo que attacca o seculo. Essa paixão de Horacio, o que é sinão um arremedo da meninice numa alma consagrada ao culto da saciedade e da saudade? A voragem incontrolavel do desejo vae creando dessas obsessões incomprehensiveis.” “Succede a esta embriaguez do amor o mesmo que à embriaguez do alcohol. A principio basta-lhe o vinho fino e aristocratico; depois caresce da aguardente; e por fim ja não a satisfaz a infusão de gengibre em rhum, isto é, lava de um vulcão preparada à guisa de grogue e tragada como champanhe servida numa bota de prostituta.”
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6 A COLCHA DE RETALHOS
Refere o historiador, alludindo aos mulatos, que “A arte da capoeiragem mais de uma vez lhes permittiu supprir a falta de armas de fogo com movimentos de corpo que eram quasi movimentos de dansa. Dansando, esses bailarinos da capoeiragem enfrentaram com pés ligeiros, pequenos, delicados, às vezes quasi de moça e, como os das bahianas, geralmente calçados de chinellas orientalmente enfeitadas, soldados armados, nordicos vigorosos, marinheiros inglezes, portuguezes machões e cheios de si, europeus de pés grandes e bem calçados, destroçando-os e, de algum modo, desmoralizando-os. Compromettendo-lhes a superioridade technica de militares ou de homens armados de pistolas, de espadas, de reinoes. Talvez tenha se accentuado nesses embattes a antipathia dos reinoes pelos mestiços brazileiros -- geralmente de pés pequenos e ageis -- por elles chamados {pés de cabras}; e a dos mestiços pelos reinoes, que, geralmente homens de pés grandes, às vezes chatos e pesados, ficaram caricaturados no folklore como {pés de chumbo}.” A simultaneidade de estrear botina nova e perder a velha reaccende na mente de Amelia a reflexão deixada em seu diario quando da primeira visita ao mestre sapateiro. A moça retira da gavetinha mais secreta de sua alcova o volume referente ao anno passado; 50
deitada de bruços sobre a colcha multicolorida que reveste a larga cama de dossel, abre-o na pagina daquelle dia memoravel e relê o trecho allusivo aos livros dedicados a enaltescer a pequenez do pé feminino, seja na ficção, seja na historia, como os que Mattos collecciona e dentre os quaes Amelia tivera opportunidade de compulsar um exemplar sobre o pé miniaturizado das chinezas. Justamente naquella pagina do caderno está enchartada a folha de papel grosso em que Mattos transcrevera, numa desenhada calligraphia, um sonnetto de sua propria lavra, com o qual o sapateiro-poeta presenteava o pezinho que, segundo elle, mais folgadamente calçaria seus versos -- sonnetto que, annos mais tarde, apparesceria em livro, attribuido à penna de um illustre diplomata, e que Amelia até recita de cor, mas não em publico:
“A BORRALHEIRA” Meigos pés, pequeninos, delicados,
como um duplo lilaz, si os beijaflores
vos descobrissem entre as outras flores, que seria de vós, pés adorados?
Como dois gemeos sylphos animados,
vi-vos hontem pairar entre os fulgores
do baile, ariscos, brancos, temptadores,
mas -- Ai de mim! -- como os mais pés, calçados! Calçados como os mais! Que desaccapto! -disse eu... Vou ja talhar-lhes um sapato leve, ideal, phantastico, secreto... 51
Eil-o. Resta saber, anjo faceiro, si accertou na medida o sapateiro: Mimosos pés, calçae este sonnetto!
Em momentos como este, Amelia volta a perguntar aos seus botões si seu pé seria, de facto, uma anomalia a ser occultada ou, ao contrario, um trunfo a ser exhibido com orgulho. Sim, é verdade que as orientaes obstentam seus pés, artificialmente reduzidos ou naturalmente desproporcionaes... Mas ha um detalhe que não se harmoniza com a personalidade desta virgem tropical: aquellas mulheres são escravas em seus paizes; são objectos sexuaes à disposição das vontades masculinas -- ao passo que ella, Amelia, não nasceu para ser escrava, não nasceu para servir, mas para ser servida: nasceu para mandar! Quantas vezes D. Leonor ouvira do marido a confissão de que a filha tinha a quem puxar naquella tempera imperativa: a propria mãe... Ainda confusa entre ser portadora de um defeito ou de uma virtude, a moça torna a reflectir sobre os mysterios do desejo masculino, que vez por outra accabam transbordando da intimidade das alcovas para o papel impresso. De repente lhe occorre que a bibliotheca do pae talvez contenha algum compendio semelhante aos preferidos do sapateiro. Emquanto essa idéa lhe passa pela lembrança, uma outra passagem se associa ao thema do sonnetto composto pelo Mattos: aquella do romance de Macedo, em que o estudante se esconde debaixo da cama do quarto em que as donzellas se despem: “Pobre Augusto!... Não te chamarei feliz!... Elle vê a um palmo de seus olhos a perna mais bem torneada 52
que é possivel imaginar!... Attravés da finissima meia apprecia uma mixtura de cor de leite com a cor-de-rosa e, remactando este interessante painel, um pezinho que só se poderia medir a pollegada, appertado em um sapatinho de setim, e que estava mesmo pedindo um... dez... cem... e mil beijos; mas, quem o pensaria? Não foram beijos o que desejou o estudante outhorgar àquelle precioso objecto; veiu-lhe ao pensamento o prazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quasi que ja se não podia suster... ja estava de bocca aberta e para saltar... Porem, lembrando-se da exotica figura em que se via, metteu a roupa que tinha enrollada entre os dentes e appertando-os com força contra ella, procurava illudir sua imaginação.” Aliaz, aquelle livro fora lido, annos attraz, porque sua prima lh’o emprestara, e não porque pudesse constar da lista dos romances femininos mais assucarados e dieteticos recommendaveis. Hoje Amelia quer ler algo muito mais explicito e appigmentado; algo que certamente a prima lê, e que provavelmente o pae tambem possue, devidamente trancado na mais fechada estante de seu gabinete. A moça não tem como se appossar das chaves e abrir a estante, mas tem como penetrar no gabinete emquanto o pae está fora, e attravés da porta envidraçada do solido movel tenta identificar as inscripções gravadas nas lombadas daquellas encadernações de luxo. Nada que lhe recorde os nomes e titulos citados pela prima quando ambas conversam reservadamente; tampouco algo que se relacione com o thema incontornavel: appenas um volume traz, em lettras mehudas, um titulo suggestivo -- LE PIED DE FANCHETTE -- mas o nome La Bretonne, no topo da lombada, nada significa para uma menina que, antes de A MORENINHA, só havia lido coisas como as fabulas de La Fontaine. 53
Em todo caso, Amelia annota aquella referencia, disposta a consultar a prima na proxima occasião em que a encontre: no Theatro Lyrico ou em casa de madame Fragonard -- ja que à salla de visitas dos Salles essa prima raramente comparesce, sentindose admeaçada pela vigilancia de D. Leonor sobre os passos (e pensamentos) da filhinha querida.
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7 A CIRANDA DA CINDERELLA
Refere o historiador que “O transporte está intimamente ligado à evolução da cidade. Até a inauguração da primeira linha de bondes de burro, ou {tramways} no Rio de Janeiro, a Botanical Garden, em 1868 (bondes, como seriam chamados, do nome dos {coupons} ou {bonds}, do emprestimo então lançado), o perimetro urbano era humilde, circumscripto às zonas povoadas em 1820, separado dos arrabaldes por largos espaços incultos. Redundara em fracasso a empresa de ferrocarris da Tijuca, de Thomas Cochrane (a despeito de prender a gruppos de acções lotes de terreno, que seduzissem o subscriptor, em 1856). Mas os americanos, que compraram a Botanical Garden -com Charles B. Greenough, antigo gerente da Horse Car Company, de Nova York -- tiveram bom lucro com a linha da rua de Gonçalves Dias ao largo do Machado, o que levou os concorrentes a extenderem, dois annos depois, os trilhos do centro a São Christovam e Rio Comprido (1870), Villa Izabel, Sancta Thereza.” Naquelle inicio de tarde as calçadas estão ainda molhadas devido à forte neblina que tinha cahido sobre a cidade por toda a manhan. Horacio, decidido a conhescer a dona da feiticeira botina, appeia de um tilbury que accaba de estacionar a um quarteirão da loja do Mattos. Desta vez não caminha a passo lento, como quem desfila pela passarela, mas entra 55
e sae quasi que furtivamente da sapataria, tomando o mesmo tilbury que o agguarda durante os poucos minutos em que interrogava o mestre sapateiro. Este se promptificava a restituir o calçado à fregueza na primeira opportunidade, mas Horacio diz que prefere devolver pessoalmente e pede o endereço da affortunada senhora, informação que Mattos não possue, ou allega, por sigillo do officio, não possuir. Basta, porem, ao galan ficar sabendo que a mysteriosa figura se chama Amelia e é filha de D. Leonor, esposa de alguem sobrenominado Salles. Tractando-se de familia rica, será certamente gente conhescida nos salões frequentados pelo nosso pavão, que acha mais commodo investigar entre os de seu meio do que entrar em detalhes compromettedores num dialogo mais prolongado com aquelle artezão exquisito, de olhos glaucos e nariz aquilino, mais parescendo, à primeira impressão, um dissimulado devasso... ao menos pela perspectiva maliciosa do Almeida. Emquanto Horacio volta para casa de posse da botina e da pista de sua proprietaria, esta, coincidentemente, passeia pelos mesmos itinerarios, como que brincando de esconde-esconde com seu caçador. Completando o jogo das coincidencias, Leopoldo tambem percorre aquelle trajecto, ensimesmado e meditabundo como sempre. Tendo appeado do tilbury à rua Direita, caminha sem pressa em direcção à rua do Ouvidor, adspirando o ar humido da cidade e dividindo o pensamento entre a saudade da fallescida irman e as aulas que precisa repor appós ter faltado por alguns dias ao collegio onde lecciona. Nisso, um carro que sobe a rua do Ouvidor passa por elle: é o cupê do Salles. O rosto encantador 56
de Amelia apparesce-lhe a principio de relance na penumbra que azula o accolchoado de damasco, e depois em plena luz, emmoldurado pelo quadro do postigo. Accompanhando com o olhar a carruagem, Leopoldo a vê rodar por algum tempo vagarosamente, retida pelo engarrafamento no transito, e parar proximo à esquina da rua dos Ourives. O lacaio, com a mão na aldraba, espera naturalmente ordem para abrir. Leopoldo, que de prompto reconhesce aquella formosura, appressa o passo. Por duas vezes advistara a fronte de Amelia coroada com um chapeuzinho de palha da Italia, assommando no postigo, a fim de percorrer a rua com o olhar. A desvairada idéa de que a moça lhe desejava fallar passa pela mente do rapaz, que a repelle, sem comtudo consideral-a impossivel. Em todo caso elle accredita que mais ou menos tem parte naquella parada do carro, e não se enganna. “Para que mandaste parar?”, pergunta D. Leonor. “Quero comprar luvas no Masset!”, responde a filha. “Ficou attraz!”, observa a mãe. “Podemos ir a pé”, resolve Amelia. Quando Leopoldo chega a dez braças do carro, a portinhola abre-se, e Amelia, em companhia de sua mãe, salta na calçada. A moça traja um roupão cor de café, de extrema simplicidade, porem muito elegante; as luvas são da mesma cor de cinza das fitas do chapéu de palha. As duas senhoras dirigem-se para a casa de Masset. Leopoldo procura cortejal-as na passagem, mas ellas não lhe dão occasião. Comtudo o mancebo repara que Amelia disfarsadamente volta o rosto para olhal-o. 57
Emquanto as senhoras compram luvas, Leopoldo as espera em frente da casa do Valais, a alguns passos do carro. Pouco tardam. Amelia vem só na frente. Felizmente o movimento de transeuntes pela calçada diminuiu naquelle instante, de modo que o rapaz pode ver a gosto a moça approximar-se delle. Desviados pela timidez deante daquella belleza deslumbrante, os olhares do mancebo se abbaixam para os volantes do vestido, e rastejam no chão que a moça pisa. Amelia percebe a direcção do olhar, e um ligeiro sorriso foge-lhe dos labios. Imaginando que na calçada ha lama, colhe com ambas as mãos a frente da saia, e com tanto extouvamento que descobre os pés até o collo da perna. Leopoldo fica fulminado. Vira pousados na calçada dois pezinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas de merino cor de cinza. Paresciam um par de rollinhas, arrulhando na praia e beijando-se com o biquinho rosado. Durante o rapido instante em que seus olhos puderam admirar esses primores de graça e gentileza, não excapparam a Leopoldo as ondulações voluptuosas e os contornos suaves dos dois sylphos. Nunca elle observara no talhe elegante da mais formosa mulher requebros tão advelludados, como tinha aquelle dorso arqueado e aquella palmilha subtil. Tamanho é o pasmo de Leopoldo, que só dá por si quando a moça, passando por elle, entra na carruagem. Volta-se então precipitadamente, sem consciencia do que vae fazer; mas a parelha ja tinha partido a trote largo. Momentos depois o soturno professor desce a rua do Ouvidor completamente absorpto. Seu labio distrahido vae debulhando, sem o sentir, alguns trechos dos lindos versos do Conselheiro José Bonifacio: 58
“Padres, não me negueis, si estaes em calma, Um coração no pé, na perna um’alma!” Qual a razão daquelle repentino gesto de Amelia? Que lhe dera na veneta para abrir a guarda sobre um segredo tão zelosamente mantido, e logo perante um, por assim dizer, desconhescido reconhescido em plena rua? Sem que se tente desvendar os caprichos do psychismo feminino ou de qualquer creatura nas condições de Amelia, a explicação mais plausivel é a de que a moça, ao mesmo tempo em que identifica Leopoldo por sua figura sinistra, suas roupas pretas, seus cabellos arrepiados e sua barba rala, percebe immediatamente que aquelle passo claudicante é causado pelas pernas tortas e pelos enormes pés desengonçados. Num attimo, é expiccaçada pela temptação de confrontar o rapaz com seus pezinhos delicados, como para forçar um contraste do qual teria de resultar a vantagem de um dos lados em detrimento do outro, donde o menos anomalo tenderia a ser, por antithese, attributo da belleza contra o estigma da fealdade. Quem sabe? Si assim fosse, Amelia mactaria duma cajadada dois coelhos, attenuando seu sentimento de deficiencia e empregando o proprio defeito como instrumento de seducção. Naturalmente a menina crescida nem se importa caso aquelle admirador anonymo venha a sentir-se ainda mais alleijado ao se comparar com a Cinderella das rodas de alto cothurno... Quanto ao romancista da epocha, registra elle nestas linhas a sensação que envolve Leopoldo de Castro naquelle final de dia: “Ao cahir da tarde, quando o crepusculo ja desdobrava sobre a cidade o véu de gaza pardacenta, Leopoldo, sentado à janella de peitoril de sua modesta casa na Gloria, fumava um charuto, com os olhos engolfados no azul diaphano do céu, onde scintillava a primeira estrella. A seus 59
pés desdobrava-se a bahia placida e serena como um lago, com a sua graciosa cinctura de montanhas, caprichosamente recortadas.” “As palpebras do mancebo cerraram-se coando appenas uma restia de olhar, que se embebia nas alvas espiraes da fumaça do charuto. Percebia-se que naquella nevoa se debuxava à sua imaginação a seductora effigie, deante da qual elle cahia em ecstase de uma doçura ineffavel.” Agora seu sorumbatico platonismo tem mais de que se alimentar alem do desdenhoso rosto admarrado visto na rua da Quitanda: ja pode rememorar um olhar, um sorriso... e dois pezinhos tão angelicaes que elle até se exquesce das duas pranchas que, appoiadas nos calcanhares, arejam os artelhos refesteladas sobre o braço do sofá.
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8 O THEATRO LYRICO
Refere o historiador que, dentre os novos serviços introduzidos na roptina da cidade, aquelle que terá sido o mais decisivo para a modernização da vida urbana é “o estabelescimento dos bondes, mudando de todo as condições de exsistencia, primeiro na parte central da cidade, e em seguida, em todos os arrabaldes. As primeiras empresas, que se organizaram, foram a Botanical Garden (1868), as de Villa Izabel, de Sancta Thereza (1872), a Ferro-Carril Fluminense, a CariocaRiachuelo, a Locomotora (1874). Em seguida, varias outras. Em 1878 funccionavam no municipio umas doze companhias de carris, algumas das quaes depois se fundiram. Não é difficil fazer uma idéa das mudanças que com esta facilidade de circulação se operam nos habitos e em toda a vida das populações. Encontramos, pois, ja em 1880 o Rio de Janeiro completamente transformado nos seus adspectos, no tracto de suas ruas (no centro urbano todas calçadas), de suas praças, umas com arborização opulenta, outras com jardins; a edificação na maior parte de portaes de cantaria: em summa -embellescida e movimentada, como si renascesse da antiga noite colonial para o grande dia que se lhe reserva. À noite, os jardins ja se enchiam de familias. A locomoção rapida, e a alcance de todos, estreitou o convivio geral. Ja os bairros não estavam separados, e a cidade como que se ampliou para todos os rhumos. De todos os arrabaldes ja se accorria aos festejos 61
publicos, aos saraus litterarios, às conferencias, aos clubes. Os theatros funccionavam todas as noites. Affluiam para aqui artistas extrangeiros de alta nomeada. Desde antes de 1852, vinham até companhias lyricas; e algumas aqui faziam largas temporadas.” Alguns dias depois dos encontros com a linda moça na rua da Quitanda e na rua do Ouvidor, o Castro, percorrendo distrahidamente os jornaes da manhan, dá com os olhos sobre os annuncios de espectaculo, coisa que desde muito tempo não exsistia para elle. Representa-se no Theatro Lyrico a opera LUCIA DI LAMMERMOOR, que de accordo com o romancista da epocha é “o mais sublime poema de melancholia, que ja se escreveu na lingua dos anjos.” O mancebo tem um desejo irresistivel de ir aquella noite ao espectaculo, appesar de conservar ainda o lucto pesado. Não comprehende esse capricho de seu coração; attribue-o ao encanto das reminiscencias daquella musica tão triste, e tambem “daquelle amor tão extremescido, que os homens quizeram romper, mas a fatalidade uniu para sempre no tumulo”, segundo o romancista. Leopoldo vae saturar-se de tristeza; não ha, portanto, prophanação de uma dor sancta. São perto de dez horas; canta-se o final do segundo acto da opera, e Leopoldo, sentado em uma cadeira do lado direito, está completamente absorvido no canto magistral de Lagrange e Mirati. Um momento, porem, ergue os olhos e, volvendo-os lentamente, ficta-os em um camarote de segunda ordem. Extremesce; o olhar morno e baço que se excappa de sua pupilla illumina-se de fogos sombrios e ardentes. Vira a mulher amada. Amelia está nessa noite em uma 62
de suas horas de inspiração, e conforme escreve o romancista “a mulher bella tem, como o homem de intelligencia, em certos momentos, influições energicas de poesia; nessas occasiões ambos irradiam: a mulher fica exsplendida, o homem sublime. O talhe esbelto da moça desenhava-se attravés da nivea transparencia de um lindo vestido de tarlatana com laivos escarlates. Coroava-lhe a fronte o diadema de suas bellas tranças, donde resvalavam dois cachos soberbos, que brincavam sobre o collo. Os cabelleireiros chamam esses cachos de arrependimentos, {repentirs}. Por que motivo? A alma que se arrepende envolve-se daquella forma; o pesar a confrange. Ja se vê que os cabelleireiros tambem são poetas.” Amelia, que appoia o lindo braço sobre a almofada de velludo da balaustrada, presta attenção à scena, recolhendo às vezes a vista para discorrel-a vagamente pelos camarotes fronteiros. Depois que o panno cae, conserva-se na mesma posição, conversando com sua mãe e a prima Laura, que alli está de visita. Então volta rapidamente o rosto, e deixa cahir sobre a platéa um olhar subito e vivo. É uma scentelha electrica, listrando no espaço, para logo appagar-se. Revela-se no semblante da moça alguma inquietação e visivel incommodo. Quer disfarsar, mas affinal erguese, para occultar-se no interior do camarote, por traz de Laura, a qual occupa o outro logar da frente. O olhar que deitara à platéa encontra o olhar vitreo e vampiresco de Leopoldo, que, battendo de encontro a esse raio brilhante, reage como estylete para feril-a no coração. Leopoldo nota vagamente esse movimento; mas como entre a columna e o busto de Laura elle vê a sombra da mulher a quem ama, não se interrompe seu enlevo. De vez em quando passa63
lhe pelo rosto um lampejo subtil, no qual presente o olhar furtivo da moça. Amelia, que foi colhida de surpresa pela presença do rapaz da rua, não está disposta a reviver àquella hora e naquelle ambiente sophisticado o flerte pueril da calçada: agora ella está performando seu papel pomposo e elitista; não pode pensar em mixturar-se -- embora troque a todo momento com Laura seus cochichos mais maliciosos e seus mexericos mais venenosos, nos quaes a vida publica e privada de nobres e plebeus se promiscue em meio à maledicencia. Volta a subir o panno. Amelia resolvera ficar onde está, e não tomar o logar da frente, appesar de Laura ter voltado a seu camarote, onde se acha à espera o phleugmatico cavalheiro que accompanha a prima. Mas essa resolução, tão solidamente calcada em seu coração, cae de repente: bastou um outro olhar. Vira na platéa, encostado à balaustrada da orchestra, um elegante cavalheiro. Era Horacio. O sorriso brando que mana dos labios da moça, como a onda pura e crystallina de um ribeiro, desapparesce então sob outro sorriso mais brilhante, que borbulha como a frol da cascata. É o sorriso da vaidade, como o outro era da innocencia. A moça colloca-se na frente, fazendo realçar com a graça de seus movimentos a suprema elegancia do talhe. Demora-se mais do que era preciso nesse acto; e, ao sentar-se, seu corpo desencadeia um impulso quasi imperceptivel de mysteriosa expansão. Dir-seia que ella se quer debuxar no quadro illuminado do camarote. A causa desse elance, não a adivinham? O pavão tinha 64
assestado seu binoculo de marfim, e a moça, com um irresistivel assommo de faceirice, abbandona-se ao olhar do mancebo. Durante o acto, Amelia magnetiza cada vez mais a attenção do semblante pallido de Leopoldo, emquanto enleia os olhos na figura elegante de Horacio; prendese ao fino buço negro que sombreia o labio desdenhoso do galan; embebe-se toda na graça de sua attitude, tentando assim resistir à curiosidade incommoda que lhe provoca a presença do importuno desconhescido. Termina o acto. Leopoldo, contemplando a moça, pela primeira vez lembra-se de saber quem era, na sociedade, aquella mulher que lhe pertence pelo pensamento. Como diz o romancista, “Tinha-se habituado a consideral-a como uma coisa sua; parescia-lhe que ninguem mais exsistia sinão elles dois.” Volve os olhos em busca de algum conhescido, a quem dirigisse a pergunta. Não encontra; mas ao cabo de alguns instantes descobre o galan em seu posto. “Ah! La está Horacio que pode me informar, elle conhesce todo mundo!”, commemora elle, justamente no momento em que o pavão posiciona o binoculo na direcção do camarote. Como desejava sahir, dirige-se para aquelle lado; mas o galan, inquieto e preoccupado, sahira açodadamente, e subia de um pullo as escadas que o separavam da segunda ordem. Ja planejando a nova adventura, Horacio chega à porta de um camarote, e pela fresta ficta com disfarse o olhar em Laura, cuja mão, excessivamente pequena e calçada por uma luva muito justa, custa a segurar o 65
binoculo de madreperola. O moço, appenas repara no tecido de seda violeta e na mãozinha que empunha o binoculo, faz immediata associação com o procurado pezinho, e abbaixa o olhar para a fimbria do vestido a ver si descobre alguma coisa, o peito, a poncta, a sombra ao menos do objecto de seu desejo, do idolo de sua alma. Mas não é possivel: o vestido arrasta no chão; nenhum movimento faz ondular a seda; e comtudo o mancebo alli fica immovel, palpitante de emoção, como si esperasse dos labios da mulher amada o monosyllabo que devia decidir de seu destino. A paixão que o mancebo concebera pela dona incognita da botina achada, longe de se desvanescer nas noites de onanismo, adquirira uma vehemencia extrema. Horacio, o feliz conquistador, o coração fogoso e inflammavel, nunca ardera por pé algum como agora arde por aquelle pezinho idolatrado. É um typico amor de maniaco, terrivel e indomito; é um delirio, uma tara. Verdade seja dicta que, de tempos em tempos, os amigos ja estavam accostumados com os surtos do galan, sempre que este scismava em observar nas mulheres menos os cabellos, os olhos ou o porte do que os pés -- e attribuiam tal preferencia appenas ao grau de difficuldade em admirar essa parte do corpo feminino, geralmente occulta pelo comprimento das vestes. Mas nos ultimos dias a mania de Horacio tem chamado a attenção, tal a insistencia do rapaz em dirigir a vista para o chão que cada dama pisa. Elle apparesce nos bailes, nos theatros, nos ponctos de reunião, de relance, como um meteoro, seguindo appós uma idéa fixa, ou uma sombra que foge deante de seus passos. Conversou-se muito na rua do Ouvidor a este respeito. Uns attribuiam o facto inaudito à primeira derropta. “Horacio (diz um de seus amigos), como Napoleão, 66
só devia ser derroptado uma vez. Mas essa vez foi Waterloo!” “Como assim?”, pergunta outro. “É que o pobre rapaz caminha para o seu rochedo de Sancta Hellena. Ou casa ahi com alguma mulher feia e rica, ou engorda como um cevado.” Outros lembravam-se de algum desarranjo de fortuna, de alguma velleidade politica, para explicar mais uma mudança de comportamento. Mas sabe-se que o moço tem bom e seguro rendimento; e quanto à politica, elle a compara a uma embriaguez causada pela mais ordinaria zurrapa de taberna. Muitas vezes disse, gracejando, aos companheiros de vida bohemia: “Quando me quizer embriagar, em vez de zurrapa, beberei champanhe. É mais fino, e tambem mais barato, porque não deixa uma irritação de estomago, cujo preço é muito maior que o de uma caixa de superior Clicquot...” A causa real da mudança do galan, ninguem pois a sabia ao certo, embora se suspeitasse. Como analysa o romancista, “Depois do achado da botina, sua vida tomara um adspecto muito differente. Naquella mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou appromptar o tilbury e voltou à cidade. Seu apparescimento àquella hora na rua do Ouvidor causou extranheza: um pavão de raça, como elle, não passeia ao escurescer, sobretudo no centro do commercio onde só ficam os que trabalham. Seria mixturar-se com os patos, que approveitam a ausencia dos reis da moda para namoriscar alguma perua retardataria.” “Naquelle entardescer correu Horacio todas as lojas 67
de calçado à procura de informações. Para disfarsar sua paixão, inventara uma apposta, como pretexto à sua curiosidade. A um freguez como elle, não se recusava tão pequeno favor, sobretudo quando levava o sainete de uma anecdota de bom-tom.” A todos elles o galan se dirigia mais ou menos nestes termos: “Fiz uma apposta com uma senhora: que em todo o Rio de Janeiro não se encontram trez moças de dezoito annos que calcem numero 29. Tenho todo o empenho em ganhar a apposta, não tanto pelos botões de punho, como porque, si ella perder, ha de ser obrigada a mostrar-me seu pé, para eu verificar si é realmente desse tamanho. Peço-lhe, pois, que me dê uma nota das freguezas a quem costuma vender calçado deste numero.” “Nesta pesquisa gastou Horacio o resto do dia, sem colher o menor resultado. Os poucos pares de calçado numero 29, vendidos pelas differentes lojas, eram destinados a meninas de doze annos. Tal constatação tranquilliza o conquistador, que precisava certificarse de que uma fregueza como a dona da botina era de facto incommum e só poderia recorrer à loja do Mattos.” “Em decorrencia da presente adventura, Horacio sentira-se de repente tomado de indefinivel inveja daquella classe profissional, de que antes só se lembrava para della se servir: a classe dos sapateiros. Agora, quando vê um subjeito de avental de couro e sovella, o pavão sente-se em desvantagem em relação àquelle individuo, que talvez conhesça melhor do que ninguem o segredo de sua felicidade, seu ideal, sua exsistencia. Nos accessos de ciume, Horacio se lembra de que aquelle operario talvez ja houvesse tomado medida ao adorado pezinho, que aquellas mãos 68
callosas teriam tocado a cutis assetinada do anjo de seus pensamentos; então o mancebo sente em si o furor de Othello e procura um punhal no seio; felizmente só acha a charteira, a adaga de ouro com que neste seculo se assassina mais cruelmente.” “Naquelles dias Horacio não teve sorte na busca incansavel. Correu os espectaculos e bailes, com o olhar rastejando para descobrir por baixo da orla do vestido o ignoto deus de suas adorações. Não dansava para observar melhor o arregaçado dos vestidos; de ordinario andava pelas escadas e portas, a fim de approveitar o ensejo da subida e descida; muitas vezes ia fumar juncto ao logar onde se collocavam os lacaios, na esperança de reconhescer o portador da botina.” “Ao recolher-se, Horacio accendia duas velas transparentes e collocava-as a um e outro lado da almofada de velludo escarlate, sobre uma mesinha de charão, embutida de madreperolas. Tirava de um elegante cofre de platina a mimosa botina, e com respeitosa delicadeza deitava-a sobre a almofada, de modo que se visse perfeitamente a graciosa forma do pé que habitara aquelle ninho de amor. Então accendia o charuto, sentava-se numa cadeira de expreguiçar, defronte, porem distante, para que o fumo não se impregnasse na botina, e ficava em muda e arrebattada contemplação até alta noite. Sobre aquella botina via elevar-se, como sobre um pedestal, um vulto de estatua, mas vago, indistincto; e comtudo esse esboço sem formas seductoras, aquella sombra sem alma nem calor, lhe parescia de uma belleza deslumbrante. Não era ella a mulher a que pertencia o mais formoso pé do mundo, o mimo, a obra-prima da natureza? Recordava-se das mulheres mais bonitas que tinha visto, das mais lindas senhoras a quem 69
amara com paixão, e sua memoria as trazia todas, uma appós outra, para as collocar ao lado daquella figura vaga e desvanescida, que planava sobre a almofada como sobre uma nuvem de ouro. Como ellas fugiam abbattidas e humilhadas deante de seu impetuoso desdem! {Não são dignas (murmurava elle) nem de beijarem o chão pisado pela fada desta botina!} Eis qual tinha sido a vida de Horacio até o momento em que o vamos encontrar no mesmo logar defronte da porta entreaberta do camarote de Laura.” Laura percebeu-o affinal, e sorriu-lhe com ternura. A attenção do rei da moda era uma fineza, um ar de seu real aggrado; cumpria-lhe aggradescer. Fictando com mais força o olhar na pupilla da moça como para hypnotizal-a, Horacio abbaixa lentamente esse olhar até a fimbria do vestido de chamalote com uma insistencia significativa. Laura retribuelhe o olhar com um sorriso machiavellico de cortezan traquejada, e a porta do camarote, rapidamente fechada, a subtrae às vistas ardentes do galan. “Será ella?”, pergunta-se Horacio, pulsando de anxiedade, emquanto desce as escadas. Pouco depois termina o espectaculo. Amelia, com um ressaibo de melancholia na fronte, embuça-se na pelliça e desce. Ella perdera Horacio de vista, e só o torna a ver parado em frente à porta do camarote de Laura. Na ausencia do encanto do gentil mancebo, soffrera todo o resto do espectaculo o desassossego que lhe incutia o olhar de Leopoldo. Por mais que voltasse o rosto, sentia a phosphorescencia desse olhar diabolico, que entretanto a prendia, mau grado seu. Leopoldo espera no corredor da entrada a passagem da 70
moça, quando advista a seu lado Horacio. O galan, soffrego e impaciente, volve o olhar em varias direcções; naturalmente procura alguem, e receia que lhe excappe. Mal os dois trocam cumprimentos, passa por elles um amigo commum, o Azevedo Camargo, filho de um politico grahudo, o barão de Baruery, influente senador do Imperio, com fama de indicar e derrubar ministros. Azevedo, que não tem grandes dotes physicos ou intellectuaes, emprega a opulencia de seus dotes pecuniarios, alem do prestigio paterno, para cercar-se da bajulação de todos os amigos, graças às retumbantes e concorridas festas que promove. Orça elle então pelos vinte e oito annos e paresce mais bem disposto que nunca. Menos bonito que sympathico, tem uma dessas caras gordas, bem barbeadas, sem rugas nem espinhas, bigode curto e retorcido à força, queixo redondo, olhos pequenos e vivos, nariz grosso, testa muito estreita e magníficos cabellos. Veste-se com inalteravel appuro, chegando a fazer disso uma preoccupação. É um luxo a roupa branca que elle usa durante o dia; gosta das calças de brim engommado e traz sempre boas pedras de valor no peito da camisa e nos dedos. Ao vel-o, Horacio tracta de sondar si conhesce a tal Amelia, filha do tal Salles, e obtem a confirmação de que ella está presente. Amelia apparesce nesse momento. Antes que Leopoldo indague de Almeida e de Azevedo si a conhescem, este ultimo identifica-a como a pessoa a quem Horacio se refere. “Obrigado, Caio!”, diz o galan, e sae pressuroso no encalço da moça, que ja descia o lanço da escada opposta. Com os olhos fictos na fimbria de seda, levanta mentalmente a orla do vestido. Debalde; nem a sombra do pé: o encorpado estoffo arrasta-se pesadamente pelo chão. 71
Chega a moça à porta, onde o carro a espera. Horacio tem um vislumbre de optimismo, porem nova decepção o agguarda. Não viu mais do que uma nuvemde sedas ondular e sumir-se. O galan faz um movimento de desespero, que o romancista interpreta nesta phrase poetica: “Senhor! Por que em vez de homem não me fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser pisado por aquelle pezinho!” Leopoldo, por sua vez, guarda para si a frustração de constatar que sua musa está na mira do invencivel rival, e deixa-se ficar por algum tempo a supportar a enfadonha e mediocre conversa do Caio, a cuja volta logo se forma a habitual rodinha de fingidos aduladores.
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9 O PAVÃO E A GARÇA
Refere o historiador que, “Quanto à esthetica da cidade propriamente, alem do que ja se viu, poderse-iam indicar outros signaes de que o exforço da administração, secundado pelo interesse dos habitantes, não era menos efficaz. Cuidava-se principalmente de attaccar velhos habitos inveterados, ultimos vestigios da incuria colonial. Desde 1865 tractouse de remover para bem longe do quadro urbano o mactadouro publico, até 1875 alli a dois passos, no começo do Atterrado. Completou-se o adjardinamento e arborização do Campo da Acclamação, do Passeio Publico, e de outras muitas praças, em algumas das quaes se levantaram as primeiras estatuas entre as muitas que em seguida embellesceram os varios bairros. Removeram-se de quasi todas as esquinas, da frente de muitos edificios, os barracões, espeluncas, {chalets} e kiosques que tanto desfeavam a cidade, extorvando o transito publico. Tractou-se de regular a habitação collectiva nos cortiços e casas de pensão; assim como o serviço de cavallariças e estabulos, de modo a pol-os em condições hygienicas. Prohibiu-se o plantio de hortas no centro urbano, a posse de cães soltos, de cabras, e até de aves fora de viveiros. Melhorou-se a circulação publica, regulando a parada de vehiculos nas ruas da cidade.” No dia seguinte, Horacio ja traça seu plano de attaque. 73
Cauteloso mas confiante, o estrategista arma o cerco, evitando arriscar-se numa investida precipitada e infructifera. Não quer queimar, de cara, seu melhor cartucho, que é a botina perdida, por isso não cogita devolvel-a ja. Com estas e outras idéas repassando na mente, o galan acha-se agora sentado em uma poltrona na casa de Bernardo, onde, tem certeza, advistou Amelia alguma vez. Fuma o seu conchita, com o olhar, ora na calçada, ora no espelho fronteiro, à expreita do menor vulto de mulher. Nas palavras do romancista, o pavão estaria pensando: “Choveu; as ruas ainda estão molhadas. Qual é a senhora que, tendo um pé mimoso e uma perna bonita, não approveitaria um destes dias para attravessar a rua do Ouvidor? Si deixarem excappar estes pretextos de mostrar semelhantes maravilhas, morrerão ellas desconhescidas, appenas vistas por um dono avaro, mas nunca admiradas, porque a admiração é sentimento que precisa de luz plena, da grande expansão. Si a Venus de Praxiteles exsistisse, mas só para mim, palavra de honra que sua belleza não excitaria em minha alma o menor enthusiasmo.” Nessa occasião Amelia passa deante da loja e, voltandose, recebe a cortezia do pavão, a quem responde com um sorriso amavel. Parando na vitrine, acha ella pretexto para entrar, e compra uma galantaria. Durante esse tempo Horacio, sem demonstrar a emoção de rever Amelia tão subitamente, recebe por diversas vezes o olhar e o sorriso da moça. Accompanhando com a vista o passo airoso e subtil de Amelia, Horacio exclama, dirigindo-se ao caixeiro do Bernardo: “Que passo gracioso! É o andar da garça!” Estas palavras foram dictas em voz bastante alta, para que a moça ouvisse; um ligeiro extremescimento 74
que se nota na suave ondulação do talhe revela que o pavão lograra seu desejo. A moça ouvira com effeito a fineza. Recostado de novo na poltrona, o pavão continua a pensar pela penna do romancista: “Realmente, que elegancia no andar! Eu seria capaz de appostar que esse andar era do pezinho, do meu adorado pezinho, si ja não tivesse certeza de ser ella mesma a dona do primor. E ella veiu!... O creado estava certo quando me disse que a vinda occorreria entre meiodia e uma hora! Mal posso crer que está a poucos passos de mim, coisa de que cheguei a duvidar: com aquelle zelo feroz que tem por sua joia, talvez não quizesse vir para não ser obrigada a mostral-a. Um avaro não fecha com mais cuidado a burra, do que ella esconde seu thesouro. Que peccado! Subtrahir ao mundo essa maravilha que Deus fez para ser admirada! Ah! Eu desejava ser uma nação; assim como ha demonioslegiões, por que não pode haver homens-povos? Si o fosse, daria um throno a essa mulher, somente para que ella instituisse o {beija-pé}. Como eu seria cortezão! Como eu a beijaria por minhas cem boccas de subdito!” Horacio está indeciso. Que devia fazer? Mudar de logar para ser visto pela moça, ou deixar-se ficar na poltrona para melhor descobrir o pé adorado? A attitude do pavão revela a hesitação de seu espirito; com o corpo lançado à frente paresce fazer um exforço para se conservar sentado. Nesse momento o galan advista uma sombra que assommava no espelho fronteiro. Era Laura, que de seu lado ja o tinha visto na imagem reflectida. Ella cochicha qualquer coisa ao ouvido do cavalheiro que a accompanha, o mesmo senhor de apparencia imperturbavel que estivera 75
sempre a seu lado no camarote do Theatro Lyrico. Appós lançar sobre Horacio seu costumeiro sorriso machiavellico, Laura juncta-se a Amelia, que ja se prepara para sahir. Por mais que o pavão se derreasse na poltrona, não logra ver coisa alguma: as senhoras arrastam a fimbria do vestido pelo assoalho ou pela calçada coberta de lama, indifferentemente, com o mesmo descuido que teriam si caminhassem sobre rico tapete. Horacio philosopha, pela bocca do romancista, sobre a inexpugnabilidade daquellas fortalezas de seda: “Mais que todas as outras, ella paresce ter-se preparado para o assalto, porque achei as avenidas da praça ja tomadas e vigorosamente defendidas. Nunca vi uma ferocidade egual; creio que a aguia da montanha não defende seus ovinhos com sanha egual à desta garça de sallão. Paresce incrivel; mas eu conhesço de quanto é capaz a vaidade da mulher. Todo este furor não é mais do que um assommo de faceirice; Paresce ter adivinhado que estou appaixonado pelo pezinho mimoso, e quer-me trazer aptado como um captivo ao seu carro de triumpho. Realmente uma moça bonita não pode ter maior satisfacção: ver-me a mim, Horacio de Almeida, o primeiro conquistador do Rio de Janeiro, curvar-se humilde, não a seu olhar, a seu sorriso, à belleza de seu rosto, ou à graça de seu talhe, mas à planta de seus pés divinos! Fazer-me tapete de seus passos!... Que pode mais desejar a rainha dos salões fluminenses?” O moço morde a poncta do bigode negro e fica alguns instantes muito pensativo. “É preciso estudar muito bem o plano de attaque! Comecei à maneira de Cesar, attaccando com impetuosidade. Vou contemporizar conforme a eschola de Fabio: simulo uma retirada; o 76
inimigo advança, eu o envolvo; corto-lhe a retirada, e elle rende-se. Arraso o Humaytá daquelle vestido que defende o meu pezinho adorado como uma casamatta. A indifferença é a serpente temptadora da mulher.” Em consequencia destas reflexões, Horacio deixa-se ficar onde estava, e não abborda a moça. Quando suppõe que ella ja ia distante, sae disposto a seguil-a. Entretanto, Amelia, descendo a rua do Ouvidor em companhia de Laura e do cavalheiro britannico, encontra pouco addeante, na casa do Masset, a sempre paciente D. Leonor, que estava à espera. As duas amigas não tinham vindo junctas, mas Laura decide voltar no carro da prima para poder actualizar com ella alguns mexericos, appesar da excolta materna. O mysterioso accompanhante despede-se, e as senhoras continuam seu itinerario pelas differentes lojas e casas de modas. Si vivesse um seculo appós, Horacio talvez se visse identificado com uma banda de rock da qual o accompanhante de Laura tambem seria fan, chamada Kinks, quando satyriza o “dedicated follower of fashion” que borboleteia de butique em butique, como um perfeito “dandy”, pelas ruas londrinas. Ao cabo de duas ou trez horas, as damas tomam o carro que estava parado proximo à rua dos Ourives e partem na direcção do Cattete. A poucos passos dalli, Amelia pergunta ao lacaio sentado na almofada: “Trouxe?” “Sim, senhora; está ahi dentro.” “Bem!”, satisfaz-se a moça. O carro approxima-se do largo da Lapa, quando Amelia diz: “Podiamos ir agora ao Passeio Publico?” 77
“Tão tarde!”, replica Laura. “Deixa-te disso!”, observa a mãe da moça. “Por que, mamãe? Ha tanto tempo que la não vamos!” “Não ha nada de novo por la.”, resiste a mãe. “Ora, eu queria ver a garça. Ainda não a vi.” “Viste, sim!” “Mas não reparei numa coisa!...” “Em que?” “Uma coisa. Depois direi.” Tanto insiste que a mãe cede a seu capricho, e dá ordem ao cocheiro que chegasse até o portão do Passeio Publico. As senhoras desapparescem na curva de uma das alamedas do parque, em direcção ao lago. Amelia quer ver o andar da garça, que Horacio tinha comparado ao seu. Nessa occasião passa pela carruagem estacionada o tilbury do nosso pavão, que vinha, guardando alguma distancia, seguindo a pista de sua caça para descobrirlhe a localização do ninho. O pavão manda parar o tilbury e entra no Passeio Publico; depois de percorrer inutilmente varias alamedas, affinal descobre entre as arvores, do outro lado do lago, as ondulações dos vestidos de algumas senhoras accompanhadas por um lacaio, e toma appressadamente aquella direcção. 78
O terreno está humido da chuva da manhan, e por isso o pé dos passantes deixa o rastro impresso na branca e fina areia das alamedas. Notando esta circumstancia, Horacio procura o vestigio de alguma botina irman da que achara e guardava como uma reliquia; fica ebrio de contentamento reconhescendo entre muitas pegadas o leve debuxo que deixara no chão o mimoso pezinho. Si não fosse a urgencia de não perder de vista o gruppo que ja desapparesce em meio à densa arborização do bosque, Horacio se houvera adjoelhado a beijar o rastro da fada de seus amores; mas as senhoras caminham rapidamente para o portão. Por mais que se appresse o pavão, chegando à sahida, appenas vê o carro que partia. Não deixa de reconhescer, comtudo, a libré do mesmo lacaio responsavel, semanas antes, pelo bemvindo incidente da rua Septe de Septembro. Pouco depois Horacio se certifica de que a moça reside numa apprazivel chacara nas Laranjeiras, e regressa a Botafogo com mais alguns indicios concretos no seu dossiê de investigador teimoso. No outro dia o pavão faz-se appresentar ao pae de Amelia, o Sr. Paulo Pereira Salles, abbastado consignatario de café, estabelescido à rua Direita. O encontro se dá na praça do Commercio. Horacio ahi vae a pretexto de comprar apolices, e um amigo, corretor de fundos, presta-lhe aquelle serviço. O negociante offeresce a casa ao moço, que acceita a fineza com effusão de contentamento, sabendo tractarse da mesma residencia até a qual tinha seguido a carruagem de Amelia. Ao tomar conhescimento da boa situação financeira dos 79
Salles, Horacio sorriu e, no dizer do romancista, considerou: “Bem! O meu pezinho tem um dote para seu calçado. Pode andar com luxo!” Em sua primeira visita à familia do negociante, Horacio encontra Laura na salla; a moça fora passar a tarde com a amiga, e conversa em tom jovial. Appenas vê o pavão, sorri machiavellicamente, piscando para a prima. Logo depois se retira, allegando ter, à noite, outro compromisso, e deixa Amelia à vontade para receber o galan, appesar das instancias desta para que fique e lhes faça companhia. Ainda que todas as attenções de Horacio estejam voltadas para a cobiçada dona do pezinho fatal, a marcante e breve presença de Laura não passa despercebida ao masculino faro do galan, e não é para menos: por traz daquella expressão dominadora e daquella bocca sardonica logo transparesce uma astuta intelligencia, que se communica por voz advelludada, porem firme e penetrante. Mesmo sem ter experiencia como didascalico, Horacio convive com varios amigos que frequentam o obscuro Club Propedeutico e ja os viu em companhia de mulheres que sorriem daquella maneira e fallam naquelle tom hypnoticamente persuasivo. Horacio é muito perspicaz para engannar-se: a prima de Amelia, que accaba de ser-lhe appresentada como Laura Lawrence, só pode ser uma experiente didascalica. Nem della, nem de Amelia, porem, o galan consegue vislumbrar siquer o bicco do sapato, pois ambas parescem estar de accordo e bem prevenidas quanto às intenções do bello rapaz. Mas desde que Laura não é a felizarda dona do seu objecto de culto, o mais lindo pé do mundo, Horacio pouca importancia dá àquella retirada repentina. Tanto mais quando sua alma de conquistador está alli 80
de rojo, beijando a fimbria de seda que lhe occulta o tão anxiado thesouro! Em Amelia, varias impressões produz a appresentação do moço. No primeiro momento accredita que o pavão viera attrahido por ella; mais tarde, lembrando-se do theatro, suspeitou que fosse appenas um meio de approximar-se de Laura; finalmente occorre-lhe que podia não passar de um encontro casual de seu pae, e de uma delicadeza da parte de Horacio. Em todo caso, os palpites de Laura costumam ser infalliveis quando se tracta do sexo masculino, e a prima ja lhe tinha confidenciado tudo quanto suspeitava, à primeira vista, daquelle exhibido galanteador: um arisco especime a ser domesticado e engaiolado. Teria ella razão ainda uma vez? Suas duvidas porem se dissipam poucos dias depois. Uma noite a moça, impellida por um movimento de faceirice, solta estas palavras, no meio de uma conversa com o pavão: “Laura está uma ingrata! Ha tanto tempo que não vem passar uma tarde commigo!” Ao mesmo tempo ficta os olhos no moço para ver a expressão de sua physiognomia. “É uma fineza de sua amiga, que eu aggradesço de coração!”, responde Horacio. “Uma fineza?...”, pergunta Amelia, presentindo laivos de ironia. “Quando sua amiga está aqui, a senhora sem duvida não a deixa!” “É muito natural. querida...”
Laura 81
é
minha
amizade
mais
“Ja vê pois que eu tenho razão. Si ella viesse...” “Diga.” “Eu teria ciumes, D. Amelia.” A moça enrubesce. “Pois admanhan Laura ha de passar a tarde commigo.” Estas palavras são dictas com o extouvamento da menina, que procura disfarsar um prazer sob a mascara da contrariedade. Mas a mascara é tão risonha, que não illude. “Quer-me tanto mal assim? (pergunta Horacio) Não admira; uma paixão ardente e impetuosa, como eu sinto pela senhora, não devia ter outra sorte. O verdadeiro amor foi e será sempre infeliz; não ha mulher que o comprehenda.” Amelia, com as faces a arder, não sabe o que faça; sua mão tremula brinca com as flores de um vaso, que vacilla sobre o consolo e cae no chão. O fracasso da porcellana, despedaçando-se, chama a attenção das pessoas que estão na salla; assim rompe-se o enleio de Amelia. A moça retira-se confusa para o interior da casa. Momentos depois entra de novo na salla, ja serena e prazenteira. Seus olhos procuram Horacio, para offerescer-lhe o meigo sorriso que traz nos labios. Esse sorriso diz, em sua eloquencia muda, o seguinte, de accordo com o romancista: “Si nunca a mulher soube comprehender a verdadeira paixão, serei eu a primeira.” Foi esta pelo menos a traducção de Horacio, que se julga perfeito philologo do amor, e habituado a deciphrar esses hieroglyphos dos labios de mulher. 82
10 MADAME FRAGONARD
Refere o historiador que “Os calçados fabricados em Londres, com machinas ou por meio de technicas que permittiam a sua uniformização de estylo e seu augmento de resistencia, vinham attender a essas condições novas de vida. A anglomania dos brazileiros mais addeantados da epocha terá sido appenas o excitante que aguçou o desenvolvimento, entre as senhoras, da moda dos sapatos fortes e de cores discretas, de preferencia aos frageis e de cores vivas. E, entre os homens, da moda das botinas burguezas que foram substituindo os antigos sapatos de fivellas de pratta, orgulho dos fidalgos da era colonial. Os annuncios de sapatos apparescidos nas gazetas brazileiras dos ultimos annos do Reino e dos primeiros decennios do Imperio nos deixam ver que foi principalmente nas fabricas inglezas que nossos antepassados se suppriram então de calçados de gosto burguez, ao mesmo tempo que de botas de montar a cavallo e de outros artigos de couro, fabricados na Inglaterra com grande superioridade technica. O proprio commercio de meias de seda, a principio dominado pelos francezes, não tardou a passar para as mãos dos inglezes. O estado de guerra entre Portugal e a França, nos primeiros annos do seculo XIX, contribuiu para o declinio desse commercio e para o quasi desapparescimento das meias francezas de seda nos mercados brazileiros.” 83
Não abbandonemos o pobre Leopoldo à sua amarga decepção. O moço chegara à casa mergulhado na tristeza profunda que sobre elle derramaram os accontescimentos do Theatro Lyrico. Talvez a morte de Amelia não lhe causasse tamanho pesar, como o daquella cruel decepção que estava presentemente curtindo. Nas palavras do romancista, “O alleijão excita geralmente uma invencível repugnancia, repassada de terror. A aberração da forma humana abbatte o orgulho do bipede implume, fazendo-o descer abbaixo do orangotango (como, aliaz, cantaria no seculo seguinte a banda Kinks em seu rock intellectualizado); ao mesmo tempo, é ameaça viva a uma das mais caras aspirações do homem: a esperança de renascer em outra creatura, gerada de seu ser. E si a fatalidade pesar sobre a prole querida?” Imagine-se que dor era a do mancebo, quando, confrontado com Amelia e Horacio, suppõe-se portador do alleijão, emquanto a mulher que elle adora, portadora duma dadiva da natureza, pode ser presa facil do insaciavel appetite de um conquistador inveterado como o pavão da Corte! Que chances teria elle, o patinho feio da historia, nesse triangulo que nem siquer chegara a ser delineado? Qualquer hypothese que exclua o mero platonismo só pode ser adventada para exmagar em seu coração a imagem da mulher amada, da virgem de seus castos sonhos... O contraste accentua-se ainda mais quando Leopoldo, deante do espelho, compara sua sinistra figura com a do galan. Si estivesse na era cinematographica, certamente elle se veria como um Frankenstein contrascenando com uma Greta Garbo e um Rodolpho Valentino, parallelo aliaz pouco appropriado àquelles que attentam para o facto de, por exemplo, os pés da 84
deusa das telas nada terem a ver com as proporções duma Gatta Borralheira, à parte o detalhe de que, em todo caso, a belleza de Amelia está longe de parescer nordica... Nessa angustia passa Leopoldo o resto daquelle dia e os que se lhe seguiram. O romancista põe na bocca do rapaz uma reflexão bem ao gosto romantico, com que o personagem tenta se consolar: “Não amo a sua belleza material, oh, não! O que eu adoro nella é a belleza moral, a alma nobre e pura, a creatura celeste, a luz, o anjo. Qualquer que fosse o involucro de seu espirito immaculado, creio que havia de adoral-a tanto, como a adorei desde o momento em que primeiro a vi!” “Fosse ella feia para os outros, que chamam formosura o que lhes encanta os sentidos, para mim seria sempre bella, porque meus olhos haviam de vel-a attravés de seu exsplendido sorriso. O que é o corpo humano no fim de comptas? O que é o contorno suave de um talhe elegante, e a cutis assetinada de um rosto ou de um collo mimoso, e o arco arredondado de um pezinho angelical? Um pouco de materia a que a luz transmitte a cor, o espirito a vida. Tirem-lhe esses dois alentos, e verão que lodo impuro e nauseante ficam sendo aquellas formas seductoras!” Outras vezes Leopoldo deixa-se convencer por suggestões que o romancista vae buscar nas mais teratologicas theorias: “Assim como a belleza de Amelia ou seu pequenino pezinho, minha physiognomia ou meu alleijão são um facto natural. Essa aberração do principio creador, esse desvio da forma primitiva, indicam sem duvida um vicio na essencia do organismo. Não se tem verificado que nos corpos mal conformados de nascença habita sempre 85
uma alma enferma? Nos corcundas sobretudo, porque a espinha dorsal é o tronco da intelligencia. A deformidade de um membro, de um ramo appenas, não denota eiva tão profunda do espirito, é certo, mas revela que a alma não é nobre e superior. Não se concebe o anjo dentro de um alleijão, como o pé deformado, por exemplo.” “Pensem os physiologistas como quizerem, o pé é a parte mais distincta do corpo humano; sem elle a estatura não teria a nobreza que Deus só concedeu à creatura racional. O pé revela o character, a raça e a educação. Cada uma das feições e dos gestos desse orgam de nossa vontade tem uma expressão eloquente. Ha quem não adivinhe em um pé delicado e nervoso a alma de fina tempera? Ao contrario, um pé chato e pesado é a prova infallivel de um genio tardo e pachorrento.” Mergulhado nestas distorções do raciocinio, Leopoldo se exquesce de que elle proprio foi dotado de um intellecto fertil e mystico, capaz de sublimar baixos instinctos e sentimentos negativos, como de potencializal-os. O resultado de taes cogitações é a gotta de fel expremido, que vae filtrando a pouco e pouco no coração e accabaria por saturar todas as doces reminiscencias dos ultimos dias. Leopoldo convence-se que não devia amar a desconhescida; mas, ao contrario, deve arrancar de sua alma os germes da paixão nascente. Tomando esta resolução, o moço, que vivia muito retirado depois de suas desgraças de familia, esteve a lembrar-se de algumas antigas relações. Vem-lhe o desejo de cultival-as de novo. Um instincto lhe diz que, para gastar as primicias de um coração virgem, não ha como o attrito do mundo. 86
Entre as casas que outrora frequentava, excolhe para a primeira noite a de madame Fragonard, amiga intima de sua irman. Clementina Fragonard é uma senhora ja no declinio da edade e da formosura; viuva de um pianista francez, gosta muito de dansar, e por isso reune constantemente em sua salla as moças de seu circulo. Logo que se acham presentes quattro pares, a dona da casa dá o signal, o filho, menino de quinze annos, senta-se ao piano e... “Chassé-croisé!”, grita D. Clementina. O sarau dansante é sempre às quinctas-feiras; às sextas a amphitryan promove saraus litterarios, aos quaes não comparescem as mesmas amigas, mas outras, mais liberadas e dispostas a entrar pela noite numa sessão maldicta, accompanhadas de cavalheiros ainda mais liberados, ou mesmo libertinos, si quizermos advalial-os pelo crivo negativo dos conservadores e liberaes da politica; talvez libertarios, si os advaliassemos pelo crivo positivo dos anarchistas da philosophia... mas essa discussão era levantada e suspensa de tempos em tempos, sem que ninguem esboçasse alguma conclusão de consenso. Na quincta-feira a dona da casa quer ser chamada de D. Clementina, tractamento mais familiar; na sexta-feira ella é Mme. Fragonard. Durante as sessões musicaes servem-se refrescos de fructas, cujas cores opacas e vivas ganham corpo em jarras e coppos largos e lisos; ja nas sessões litterarias as bebidas são licorosas e translucidas, filtrando as cores attravés dos decantadores e calices de crystal lapidado. Uma vez por mez a hospitaleira senhora offeresce um jantar, quando a sopa fumega da bojuda terrina, em torno da qual os convivas se confraternizam, alguns da quincta com outros da sexta. 87
Nesta casa Leopoldo tem certeza, não só de ser bem recebido, como de encontrar bastante arruido para atturdir-se e abbafar uns gemidos que sente às vezes repercutirem no coração. Tinham decorrido varios dias depois da decepção; às oito horas da noite entra o moço na salla de D. Clementina, que o recebe com surpresa, cheia de amabilidades. Alem de estimado, accontesce que elle completa justamente o quarto par. Tirando o actual marido da dona da casa, o Sr. Adolpho de Campos, typo muito discreto e cordato, o filho Alfredo, e trez velhas, invalidas para a dansa, ha na salla cinco senhoras para dois cavalheiros; servindo uma senhora de cavalheiro, ainda falta metade de um par. Quando a campainha annuncia mais uma visita, D. Clementina, de olhos fictos na porta da salla, dispõese a receber o recemchegado com o seu mais affavel sorriso. Vendo Leopoldo, corre a elle, e desfolhandolhe um ramalhete de attenções, trança-lhe o braço; antes que o moço tome pé na salla, é arrebattado pela quadrilha, a compasso de galope. Realmente ella não podia excolher melhor. A agitação daquella dansa rapida, sem pausa; a confusão que os pares criam de proposito para augmentar a animação; os risos e gracejos que provocam os menores incidentes da quadrilha; todo esse rumor e attropelo saccodem por tal forma o espirito de Leopoldo, que as idéas e recordações tristes lhe caem, como as folhas seccas de uma arvore abballada pelo vento rijo do outomno. Uma particularidade que não excappa aos olhares clinicos das velhas mexeriqueiras é a desenvoltura de Leopoldo nos passos da dansa: ao contrario do andar claudicante e desadjeitado que se nota na rua, os pés tortos do mancebo, em seus sapatos pesados, transformam-se em ageis bailarinos, como 88
que envoltos por lepidas sapatilhas -- dextreza da qual o mancebo é de todo inconsciente e descuidado. Leopoldo sente o coração vazio, porem tranquillo; o prazer vivo e scintillante daquella reunião appenas roça-lhe pela superficie; não penetra, mas tambem ja não transsudam no intimo as amarguras de que nos ultimos dias se tinha saturado. De repente opera-se na perspectiva da salla uma transformação inesperada. Laura, que frequenta o sarau das sextas mas raramente apparesce às quinctas, accaba de entrar; e sua presença diffunde-se como um influxo magico, no meneio de seu talhe elegante, na severa suavidade de sua voz, na irradiação de seus olhares hypnoticos. Leopoldo embebe-se naquella magnetica apparição, não da mesma forma terna como da primeira vez que viu Amelia, mas sob o effeito physico desse vulto aggressivamente sensual. Ao mesmo tempo, percorre em um apice as phases de seu amor, e cae de novo na exmagadora realidade da decepção. Nessas adversas condições psychologicas, Leopoldo está incapacitado para reparar que se estabelesce uma correspondencia de magnetismos. Laura congela seu mais fulminante olhar sobre aquelle typo gothico que pela primeira vez vê por alli, e passa a dissecal-o dos cabellos eriçados aos pés expalhados. A principio sem resultado algum, visto que o mancebo attravessa um de seus surtos de introspecção. Debalde a moça se obstenta no fulgor de sua belleza, retocada pelos inequivocos arreboes do amor; debalde as ondulações de seu corpo debuxam formas seductoras, e o sorriso de seus labios destilla uma fragrancia mystica de 89
beijos impuros; os olhos de Leopoldo não vêem nenhum desses encantos temptadores. Attravés dos folhos do vestido roçagante, sua vista ficta-se, ora no phantasma fugaz da irman, ora na imagem celestial e inattingivel de Amelia. Laura sente esse olhar cruciante e extremesce, tomada de um vago e sobrenatural receio, mas logo se recompõe em sua postura desinhibida. Senta-se, e ao arranjar as dobras do vestido deixa propositalmente expostos os pés calçados em reluzentes botinas pretas, sobre as quaes não demoram a pousar os olhos vitreos de Leopoldo, que nesse momento se recorda de Amelia suspendendo as vestes na rua para não se sujar de lama. “É D. Laura, filha de um almirante inglez chamado George Lawrence. Não conhesce?” Estas palavras são dirigidas a Leopoldo por D. Clementina, que, sentando-se a seu lado, accompanha-lhe o olhar ficto. “Não, minha senhora.” “Então vou appresental-o.” “Obrigado, D. Clementina, depois.” “Não acha muito galante?”, especula a matrona. Leopoldo hesita: “Oh! Muito!...” O mancebo sente-se fragilizado demais para entabular conversação com moça tão segura de si e de sua classe. Por aquella noite acha que ja se distrahiu o sufficiente, ou o maximo que pôde. Approveitando 90
um momento em que a dona da casa está occupada em receber novas visitas, toma o chapéu e exquiva-se sem que o percebam. Laura, porem, o vê; seus olhos permanescem por algum tempo presos na porta por onde accaba o moço de sahir. Quando, passado um instante, cae em si, fica surprehendida. Que tinha ella com aquelle desconhescido? A presença de Leopoldo em casa de D. Clementina a impressionara, e agora seu olhar paresce sentir a ausencia do mancebo. “Laura!” A moça volta-se para ouvir D. Clementina que a chama. “Quero appresentar-lhe um moço, que a acha muito bonita.” Dizendo estas palavras, a dona da casa corre os olhos pela salla à busca de alguem. “Não o vejo agora.” “Quem é?” “O Castro... Conhesce?...” “Não, senhora.” “Querem ver que ja se retirou?” Laura pôde reter o monosyllabo que ia cahir-lhe do labio, confirmando a supposição da dona da casa. Tinha adivinhado que se tractava do seu desconhescido. “Então elle me acha bonita?” “O Castro?... Muito. Creio que ficou appaixonado! Si visse os olhos que lhe deitava quando a senhora chegou!” “Então foi de paixão que elle fugiu?” 91
“Quem sabe? A paixão é como o vinho, que em uns dá para rir e em outros para chorar. Ha namorados que perseguem, e outros que fogem!” Laura julga prudente desviar a conversa daquelle assumpto compromettedor, no qual D. Clementina se compraz, porque lhe recorda sua mocidade ja desvanescida.
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11 LAURA LAWRENCE
Refere o historiador que “É tambem da primeira metade do seculo XIX o apparescimento, no Brazil, de sapatos de macia e prophylactica sola de borracha -- capazes de resguardar o individuo dos resfriamentos devidos a pés molhados -- e que, como novidade technica, talvez devam ser considerados antes um brazileirismo do que um anglicismo. Em 1849 eram os sapatos desse typo annunciados como {sapatos de gomma elastica com sola para livrar da humidade, para homens e senhoras}. É o que diz um annuncio, no JORNAL DO COMMERCIO de 10 de julho, da sapataria que havia então na rua do Ouvidor nº 72. Sabe-se que os prophylacticos de borracha, aos quaes se attribue na Inglaterra origem franceza e, na França, origem ingleza, foram primeiro fabricados, ainda no seculo XIX, com materia-prima brazileira -borracha do Pará -- da qual foram tambem fabricados -- ao que paresce dentro de inspiração oriental e segundo technica chineza -- os primeiros phallos ducteis e malleaveis de caucho, que tornaram famosos os nomes brazileiros do Pará e do Maranhão. Pires de Almeida refere-se ao Pará como a primeira região que fornesceu {à industria nacional e extrangeira, materia-prima para esses artefactos}. Para esses artefactos e para os sapatos de {gomma elastica}.” Emquanto não surge nova opportunidade de rever Laura em casa de D. Clementina, Leopoldo conserva da moça a 93
mesma impressão que lhe causara o primeiro contacto com ella. Paresce-lhe de facto uma figura bem provocante, a um tempo delicada e energica, suggerindo forte personalidade sob uma compleição fragil. Dir-se-a que leva, como muitas damas da Corte, uma vida tão dupla quanto as contradicções de sua apparencia. Num desses dias, o mancebo retorna à loja do Mattos disposto a encommendar mais um par de botas, daquellas de sola de borracha, mas a jornada lhe reserva alguns dissabores addicionaes. Para começar, vem-lhe à lembrança, ao passar pela calçada da rua Septe de Septembro, o incidente da botina achada por Horacio, desta vez para associar o facto ao gesto de Amelia a exhibir seus pezinhos na calçada da rua do Ouvidor, e por fim para deduzir que o interesse de Horacio por Amelia no theatro pode ser o elo exclarescedor -suspeita que se corrobora quando, ao conversar com o sapateiro, Leopoldo faz um commentario sobre pés grandes como os seus e pés pequenos como os daquella senhora... “Como é mesmo o nome? D. Amelia?” Ao que Mattos, irreflectidamente, confirma, dando ao mancebo a pista definitiva para a amarga conclusão. Como para aggravar-lhe o despeito, Leopoldo encontra, ao deixar a loja, o despreoccupado e sempre sorridente Caio de Azevedo Camargo, que o convida para o proximo baile a realizar-se no palacete do barão de Baruery. Irresistivelmente, occorre a Leopoldo perguntar ao Caio si tem visto Horacio, para obter a informação de que o galan tem estado fora de circulação desde que começou a namorar a filha do Salles. Ao regressar à casa pela rua dos Ourives, Leopoldo caminha sob a mesma sensação de desamparo que lhe opprimia o peito no dia do funeral da irman. A recahida na phase depressiva torna a levar Leopoldo à unica therapia a que pode recorrer: os saraus de D. 94
Clementina. Passados alguns dias, quando seu estado de animo ja lhe dá melhor disposição, volta elle à festiva casa. Nesta noite ha uma pequena partida; Leopoldo compta, pois, encontrar Laura. Alli está, com effeito, vestida de escarlate e branco, e adornada com a sua graça arrebattadora. Quando o moço entra, ella dansa com as costas voltadas para a porta e não o vê; porem, momentos depois vira o rosto como si obedescesse a um impulso extranho, e encontra o olhar ardente e vampirico de Leopoldo. A moça faz insensivelmente um movimento e seu corpo se retesa sob o calafrio; no seguinte ja esboça seu mais diabolico Naquelle momento começa a terceira figura da contradansa, que a distrae de sua emoção.
convulso instante sorriso. marca da
Está ella outra vez parada conversando com o par, quando sente outro calafrio; sem ver, conhesce que o mancebo se approxima, que seus lábios se abrem para dirigir-lhe a palavra: “Minha senhora, terei a honra de dansar com Vossa Excellencia a seguinte quadrilha...” Contem uma pergunta ou uma asseveração estas palavras? Fora impossivel dizel-o. O tom paresce mais affirmativo do que interrogativo, porem o olhar do mancebo espera, si não exige resposta. Laura faz uma leve inclinação com a cabeça, como um gesto de submissão ja ensaiado, mas que agguarda reciprocidade. A confusão da dansa faz com que os dois se exquivem, mas quando, terminada a quadrilha, volta a seu logar, ella fica perplexa. O mancebo age como um authentico didascalico, impondo sua vontade na entonação das perguntas, que soam como ordens em vez de pedidos. Será Leopoldo um membro do Club? Mas ella não se recorda de tel-o visto antes por la... 95
Quando um de seus innumeros admiradores vem pedirlhe a próxima quadrilha, ella responde sem hesitação que ja tem par. Nessa recusa, muitas vezes repetida, passa o intervallo. O piano dá o signal da quadrilha; Leopoldo, que ja tinha interpretado o movimento de cabeça da moça como um signal de assentimento, approxima-se de Laura e, inclinando-se, sente no seu braço extremescer o braço tepido da parceira. Passada a primeira confusão da quadrilha, Leopoldo, fictando o olhar no semblante da moça, dá expansão aos sentimentos que lhe tumultuam dentro d’alma. Sustentando-lhe o olhar mortiço e cadaverico, Laura paresce absorvida e reconcentrada emquanto o moço falla. Leopoldo paresce ter anxiado por aquella opportunidade de desabbafar. “A senhora accredita, D. Laura, na attracção irresistivel, que impelle duas almas entre si, e as chama fatalmente a se unirem e absorverem uma na outra?... Eu accredito...”, começa elle, e desfia seu rosario, retrocedendo aos factos de semanas attraz. Leopoldo falla ainda por muito tempo de seu amor por Amelia, sem que Laura se anime a interrompel-o. Aquella palavra ardente, impetuosa, embora vendada por certo pudor d’alma, a subjuga; ella não tem coragem, nem mesmo vontade de subtrahir-se à sua influencia. No entanto é sempre ella, Laura, quem faz todas as perguntas que dão a Leopoldo o ensejo de se abrir; e a cada resposta ella comprehende melhor aquelle subjeito ambiguo, capaz de inspirar tanto a extranheza quanto a affinidade, bem como de nutrir tanto o amor espiritual pela mulher idolatrada quanto o rancor selvagem contra o rival privilegiado. 96
Quando Laura, conduzida por Leopoldo, se dirige a uma cadeira, D. Clementina approxima-se: “Ah! Eu queria appresental-o (diz a Leopoldo), mas não teve paciencia para esperar.” Depois, reclinando ao ouvido de Laura, pergunta-lhe: “Então? Não lhe disse que a achava muito bonita?” Até que a alcoviteira dê-se por satisfeita e se affaste para deixar que o casal estreite por si mesmo as relações, são ambos reappresentados repetidas vezes, e a origem britannica de Laura foi tão enaltescida por D. Clementina quanto os antepassados bandeirantes de Leopoldo. Si descomptadas as imposturas e enscenações, Laura teria conhescimento da ruina financeira dos Castro, cujas terras foram tomadas ao único herdeiro; e Leopoldo, de sua parte, estaria sciente de que o pae da moça nunca fora almirante, mas appenas ex-capitão de navio mercante, e que a mudança da familia para o Brazil nada teve de voluntaria migração, mas tudo a ver com uma retirada estrategica: envolvido no escandalo da Academia de Flagellação dirigida pela notoria proxeneta de nome Sarah Potter, o casal Lawrence excappara do alcance da policia londrina e, trazendo comsigo a filha de dezoito annos e um primo de trinta, encontrara o conveniente refugio no Rio de Janeiro, onde vivem os quattro cumplices desde 1863, sem que ninguem suspeite de seus excentricos antecedentes. Hoje nos seus vinte e cinco annos, Laura é quasi sempre vista em publico na companhia do primo Roger, que se faz passar por lorde sem ter qualquer titulo nobiliarchico, e que muitos julgam ser seu marido; com elle a moça frequenta o sallão litterario de Mme. Fragonard, mas como o impassivel Roger não dansa, jamais a accompanha ao sarau das quinctas-feiras, dando assim a Laura a eventual opportunidade de 97
descontrahir-se num ambiente bem mais familiar que o fechado Club Propedeutico presidido pelo primo, no qual suas funcções de mestra didascalica chocariam até mesmo as velhas mexeriqueiras do circulo de D. Clementina. Vista agora ao lado de Leopoldo, que lhe é mais velho appenas um anno, Laura apparenta ser muito mais joven, talvez porque as roupas escuras, a barba descuidada e o ar de insomnia emprestem ao accabrunhado mancebo a mascara da maturidade precoce aos olhos das senhoras que o encontram nos mesmos ponctos onde Horacio é visto. Nas rodas da rua do Ouvidor os commentarios recaem inevitavelmente no parallelo entre rapazes tão dispares. Um, altivo e extrovertido, tem todas as prendas que seduzem a imaginação feminina: é formoso, traja com exmero, conversa com muita graça. O outro, cabisbaixo e taciturno, não possue nenhum desses attractivos; seu exterior alheia as sympathias; quando falla, diffunde a tristeza no espirito dos que o escutam. Horacio attrae; Leopoldo se retrae. O pavão se exhibe; o patão se exime. Somente quem enxerga neste um mal-amado, como D. Clementina está accostumada a identificar, vota-lhe sympathia e procuralhe a proximidade. Laura, experiente em disciplinar a epiderme masculina, tambem sabe interpretar os conflictos internos dos homens. Por isso Leopoldo lhe causa tão forte impressão. Um seculo depois, a inglezinha, si viva fosse, reconhesceria nas letras das canções dos Kinks todas as differenças entre Horacio e Leopoldo que propiciam à banda tantas allusões à inveja e ao ciume. Dalli a uma semana D. Clementina recebe, para o jantar mensal de “convivencia fraterna” (como ella propria diz), seus mais especiaes convidados, entre os quaes Laura e Leopoldo. 98
Dos frequentadores do sarau dansante, só trez outros comparescem ao jantar: duas velhas mexeriqueiras e um subjeito muito gordo que, alem de bom dansarino, só sabe comer e sorrir, mas que esconde algo de lubrico e inconfessavel naquelle sorriso baboso. Os demais são pessoas assiduas ao sallão litterario, em cujo meio a dona da casa quer introduzir Leopoldo: Rosa de Albuquerque, pianista e poetiza, uma solteirona empertigada, de rosto triangular e dentes cavallares, que, no seculo seguinte, seria fatalmente considerada prototypica da feminista “avant la lettre”; Solano Vargas, um rapazelho esqualido e espigado, de ar pernostico e traços mestiços dos quaes dá impressão de não ter tanto orgulho quanto obstenta de seus conhescimentos das lettras francezas; Plinio Pederneiras, medico e bibliophilo, cuja collecção de edições particulares é reputada como a mais volumosa e thematica das Americas, superior em genero e numero até à eclectica bibliotheca de José Bonifacio Mendes Alvim; Vicentina de Paula Guedes, sobrinha do visconde de Itaquera e viuva de um heroe da guerra do Paraguay, uma baixota attarracada e bochechuda, que soffre das chordas vocaes e quasi não falla, limitando-se a economicos gestos verticaes e horizontaes de cabeça, cuja aptidão para as lettras (dizem) é notavel e cujas memorias sentimentaes, a serem publicadas algum dia, trarão revelações piccantes sobre muitos figurões da Corte; e, finalmente, o primo de Laura, sempre appresentado como Lord Steppingstone e como um “gentleman” -- com a mesma naturalidade de D. Clementina ao fazer-se tractar por “madame”. O mancebo é appresentado ao gruppo pelo marido desta, o pacato Sr. Campos. Trocam-se bonitas palavras de ethiqueta; fazem-se os costumeiros protestos da cortezia e cada um toma à mesa o seu logar competente. Mme. Fragonard, como é de praxe, occupa a cabeceira, defronte de uma pilha enorme de prattos fundos, os 99
quaes vae enchendo de sopa, um a um, paulatinamente, depois de rodar a concha trez vezes no fundo da terrina; e, à proporção que os enche, passa-os ao marido, que nesse dia lhe fica à esquerda, visto que a direita, seu logar favorito, cede-o elle ao novo conviva. Na occasião de conferir a Leopoldo semelhante honra, o Campos batte-lhe carinhosamente no hombro e diz-lhe baixinho: “Ficas bem! Ficas juncto a Memê!” Mme. Fragonard, que ouve estas palavras, accrescenta sorrindo: “O Sr. Castro preferia talvez ficar entre as moças...” “Oh, minha senhora!... (balbucia Leopoldo, vergandose para o lado da franceza) Estou muito bem aqui; não podia desejar melhor vizinhança!...” E volta o olhar para a sua direita, onde Laura accaba de tomar assento. Estando à mesa seis mulheres e cinco homens, e ao tempo em que as colheres sobem e descem, quasi nada se conversa e muito se observa de parte a parte. Olhares, ora directos e frios, ora disfarçadamente fogosos, cruzam-se em todas as direcções sobre a toalha repleta de travessas servidas pelo coppeiro, um preto alto de pernas compridas e cabellos longinquamente grisalhos. Leopoldo, de seu lado, não precisa dissimular seu olhar que, quando não relampeja a paixão subita, paresce sempre estar, por natureza, distante e indifferente a tudo e a todos, e pode dar-se ao luxo de examinar com paciencia cada um dos commensaes, comparando, por exemplo, o rosto redondo do sorridente Sr. Oliveira com a cara quadrada do lorde. A impressão que de prompto vae formando não poderia ser mais alentadora, ainda que negativa. Com excepção de Laura, exsplendorosa em seu apogeu physiognomico, e da propria Mme. 100
Fragonard,ainda encantadora em sua maturidade, todas as mulheres são horriveis, e a velhice das duas commadres appenas lhes accentua a falta daquillo que nunca tiveram na mocidade: traços harmoniosos. Nos homens os desequilibrios caricaturaes são ainda mais realçados: o hedonismo do gordo, o estoicismo do Campos, o sadismo do lorde e o exhibicionismo do mulato sarará. Rodeado por figuras tão heterogeneas no estereotypo e tão homogeneas na fealdade, o mancebo sente-se recomfortado e até acha plausivel que D. Clementina e mesmo Laura possam ver, em seu ar macambuzio, algo de attrahente nelle, Leopoldo... Aos poucos, exquenta a discussão do outro lado da mesa, levantada por uma das velhas. Falla-se a respeito de uma senhora casada, a quem o marido causara serios desgostos. D. Severina, a velha mais pallida, que sabe das particularidades dessa familia, explica o facto à sua maneira: “Ella era muito linda, o marido a adorava; casou-se por paixão. Poucos dias depois de casada, teve ella uma grave molestia que a reduziu àquelle estado. Não ha paixão que resista!» “Com effeito, sabe ser feia!”, diz D. Thereza, a velha mais morena, pousando a colher no pratto. Entretanto o jantar se anima. A conversa, accalorada, explode ja de varios ponctos da mesa com mais frequencia; ouvem-se tinnir os garfos de encontro à louça, e os coppos exvaziam-se e de novo se enchem, sem ninguem dar por isso. Leopoldo presta attenção às respostas dadas pelas duas senhoras às perguntas curiosas de D. Rosa. Insiste D. Thereza: “Ninguem accreditará que foi bonita!” 101
“Pois foi uma belleza!”, confirma D. Severina. D. Rosa accode exemplificando com outro caso de esposa trahida depois de mutilada por um accidente: “Tornou-se repulsiva! Estava irreconhescivel! Como podia continuar a ser amada? Como esperar que ainda fosse desejada?” Leopoldo, que ouve calado, intervem: “O marido nunca a amou!” “Asseguro-lhe que teve uma paixão louca!”, diz a velha pallida. “E eu affirmo-lhe que não (sustenta Leopoldo), que elle nunca teve paixão pela mulher. O que elle adorava era unicamente a sua belleza, a forma; isto é, um accidente. O homem que ama a mulher destinada a ser companheira de sua exsistencia, o complemento de seu ser imperfeito, não despreza essa mulher só porque a desgraça a feriu no involucro material de sua alma. Elle pode soffrer com aquella desgraça; mas deve redobrar de amor e adoração, para que nem seus olhos vejam o defeito, nem ella, a mulher amada, se lembre nunca de que o tem para elle, embora o tenha bem claro para os indifferentes.” “É bonito de dizer!”, opina o Pederneiras, appreciador das mulheres formosas. “Eu não teria dó nem piedade!”, affirma o Vargas, affectando desdenhosa superioridade. Mme. Fragonard, sempre conciliadora, pondera que cada caso é um caso, que a fidelidade espiritual 102
e carnal nem sempre se confundem. E, voltando-se rapidamente para Leopoldo: “O Sr. Castro não se serve de vinho?...” “Todos dizem o mesmo, mas fogem das feias”, observa D. Rosa, talvez por experiencia propria. “O que eu digo, minha senhora, ja o experimentei em mim mesmo.”, replica Leopoldo. “Ah!”, interessa-se a poetiza. O mancebo crava em Laura um olhar eloquente, e diz com a palavra lenta e calma: “É verdade; ja o experimentei em mim. Por que hei de occultal-o? Minha alma ja passou por esta dura prova, e sahiu triumphante. Hoje sei que tenho forças para amar até os defeitos da mulher que Deus me destina.” Leopoldo occulta, comtudo, estar nesse momento pensando na fallescida irman que, embora linda e muito parescida com Amelia, era rhachitica de corpo e alleijada nos braços; Mme. Fragonard, que a conhescera, paresce adivinhar a quem o mancebo se refere e procura amenizar o tom da conversa. Maternalmente, não se descuida delle um segundo. Apponcta-lhe os prattos preferiveis, puxa as garrafas para juncto delle, sempre a fallar da relatividade das paixões, do character transitorio de toda ligação amorosa. Laura, que ja sondou o rapaz o sufficiente para desconfiar de sua relação incestuosa, diz entender perfeitamente a posição que elle sustenta, mas que ha outros adspectos a levar em compta. “As fraquezas carnaes, por exemplo...” Ao que o rubicundo Oliveira, 103
do lado opposto da mesa, mostra appoio com movimentos de cabeça e dos grossos lábios arreganhados. “Não é mesmo, primo?” emenda a moça, voltando-se para o lorde, que se assenta à sua direita. Roger, que accompanhara toda a questão sem interferir, externa finalmente seu palpite, ao qual os presentes por certo darão aval, qualquer que seja o argumento, visto que o inglez exerce forte ascendencia sobre a opinião geral: “Well... Quando não se ama por instincto, ama-se pelo apprendizado. Ao bello é tão facil que se ame, como que se odeie, seja por instincto, seja por despeito. Ao feio apprende-se a amar, seja por compaixão, seja por imposição.”, sentencia o lorde. “A qual imposição Lord Steppingstone se refere? Social? Familiar? Ou... disciplinar?”, pergunta Rosa em tom malicioso, ja prevendo a resposta. “Sobretudo disciplinar, of course!”, confirma “gentleman” com seu sorriso de cantho de bocca.
o
Mme. Fragonard attalha, bemhumorada, que não esperava outra sahida para o assumpto, e todos caem na gargalhada, excepto Leopoldo e o proprio auctor das phrases de effeito. Mudando de tom, a dona da casa batte no braço de Leopoldo, segredando-lhe com um sussurro: “Não se exquesça de provar daquelles camarões. São especiaes!...” “Vejo que nesta mesa temos prattos para todos os gostos...”, observa mordazmente o mancebo, agora mais descontrahido, servindo-se dos affamados camarões. 104
“Queres sopa, Alfredo?”, pergunta affinal Mme. Fragonard, com ternura. O filho, que accaba de chegar, toma assento ao lado do padrasto. O Campos passalhe um pratto cheio. O adolescente sorve-o todo, a colheradas, e pede mais. A mãe acconselha-o a que coma antes outra qualquer coisa. “Então, publicou seu livro? (volta-se o Pederneiras para D. Rosa) Eu a felicito!” E leva o coppo àos labios. “Appenas uma segunda edição daquelles poemas da juventude...”, corrige a bellettrista, levando à bocca uma garfada e attrahindo o olhar cobiçoso do Oliveira sobre sua beiçola e sua dentuça. “Agguardem para breve o meu, sobre a historia dos salões parisienses!”, annuncia o Vargas, apparteando o dialogo. D. Thereza, preoccupada com recommendações medicas, choraminga com D. Severina, apponctando melancholicamente para um pratto, onde fatias transparentes de abacaxi nadam em calda de vinho. “Paciencia! Serve-te ao menos de doce!”, acconselha a velha pallida. O Vargas appressa-se a passar à velha morena a compoteira. Vem o café. Alfredo levanta-se da mesa e vae distrahir-se com partituras a um cantho da salla. Mme. Fragonard quer saber si estão todos satisfeitos; ella, quanto a si, jantara perfeitamente, confessa. E, com um adspecto regalado, deixa-se ficar prostrada na cadeira, entorpescida no bem-estar do seu estomago. O coppeiro levanta a toalha e traz curaçau e conhaque. Rosa beberica o seu calice de licor e levanta-se logo 105
para ir à janella. Affastam-se as cadeiras da mesa, e a conversa reapparesce com mais força. Vibra então o piano no sallão de visitas. “É melhor irmos todos para la”, alvitra a dona da casa. O Pederneiras e o Vargas acceitam logo a idéa, e Leopoldo, sem interromper a sua conversa com Laura, a esta dá o braço e segue o exemplo daquelles. Laura caminha aos cochichos com elle, fallando-lhe em tom mui vagaroso, com accentuações firmes de persuasão. A salla illuminada tem uma atmosphera imponente. O “gentleman” encaminha a conversa geral para a musica, e acconselha a Leopoldo que sollicite da Sra. D. Rosa um pouco do recem-estreado GUARANY, que ella toca admiravelmente. Duas horas depois tornam à salla de jantar. Servemse as torradas. D. Severina resomna profundamente na mesma preguiçosa em que a tinham deixado. Mme. Fragonard chama o coppeiro e ordena-lhe que leve cha à velha para accordal-a. D. Severina expreguiça-se, abre vagarosamente os olhos, mas torna a fechal-os, bocejando. É mais de uma hora quando se dispersa a roda e cada um, depois de novos protestos e offerescimentos, se retira. Leopoldo despede-se de Laura e do lorde com uma familiaridade que o surprehende a si proprio, promettendo revel-os no sarau litterario, ou até antes, no baile do Azevedo Camargo, ao qual todo mundo certamente comparescerá. Sae dalli refeito e disposto a tirar melhor proveito das novas amizades, compensando tantos mezes, ou annos, de fastidioso isolamento. Quer expairescer o espirito... e os sentidos. 106
12 DO PÉ PARA A MÃO
Refere o historiador que, “Admittido o facto de que, em remotos dias coloniaes, os reinoes tenham sobrepujado os brazileiros no cuidado com os pés ou no luxo dos calçados, a situação paresce ter se modificado no sentido de verdadeiro culto aos pés e aos sapatos e às botas de montar a cavallo da parte dos brazileiros de formação ou condição patriarchal. Ja nos referimos ao costume do lavapés não só nas casas-grandes como nas proprias casas pequenas de lavradores do interior: liturgia de hospitalidade e practica hygienica de origem talvez oriental a que os viajantes se submettiam num como reconhescimento do facto de que os lares patriarchaes eram recinctos puros aonde não devia chegar a immundicie das ruas ou dos caminhos. Liturgia e practica hygienica a que se submettiam as proprias pessoas de casa antes de se recolherem às suas camas ou às suas redes, nas casas-grandes e nos sobrados nobres, havendo mucamas que se especializavam na arte não só de lavar os pés dos yoyozinhos como na de livral-os dos bichos causadores de comichões, a principio voluptuosas, depois irritantes ou incommodas. Si voltamos ao assumpto é para accentuar o facto de que a distancia entre classes, no Brazil, teve no cuidado com os pés e com os sapatos uma das suas expressões mais characteristicas, fazendo-se dos pés dos homens senhoris uma especie de pés de montar a cavallo e dos 107
pés dos homens servis, pés de andar nua e cruamente pelas ruas ou pelas estradas.” É domingo. Amelia, envolta em seu roupão alvo, com os cabellos soltos pelas espaduas, encosta o rosto à vidraça da janella. Affastando a cortina de cassa branca, pode enxergar perfeitamente a rua, sem que de fora vejam o seu gracioso desallinho. Não tarda que se ouça um tropel de cavallo. É o galan que vae dar seu passeio matutino. Vendo agitar-se a cortina e desenhar-se no vidro a poncta de uns dedos cor-de-rosa, Horacio corteja enviando um sorriso à janella. À noite o moço dirige-se à casa do Salles; Amelia o espera. A salla está cheia de visitas. Entrando, o olhar de Horacio encontra um olhar terno que o sahuda de longe. Mas do sorriso da moça excorre uma provocante malicia, tão logo ella percebe que a vista do pavão tinha descido até o tapete e se fixara com uma insistencia visivel na fimbria do vestido, ligeiramente arregaçada. Horacio julga que poderia lobrigar a poncta do pezinho que idolatra. A moça concerta as dobras da saia de modo a interceptar o olhar curioso; e disfarsa conversando com uma amiga. Desde o principio notara Amelia aquelle sestro de Horacio. Quando ella o suppunha mais embebido em seus encantos, mais rendido à sua belleza, surprehendia o olhar do moço a rastejar pelo chão, procurando insinuar-se por baixo da orla de seu vestido. Muitas vezes ella perdia os seus mais ternos sorrisos, porque o moço, em vez de procurar-lhe no rosto a esperança de ser amado, exquescia-se a catar sobre o tapete alguma idéa que não se animava a revelar. Ja 108
tinha succedido, nos momentos em que ella tocava, distrahir-se o pavão, e com a attenção presa no pedal, nem ouvir a peça de musica. Laura ja a tinha allertado: Horacio ama-lhe o pé, sem duvida; ja lhe tinha dado provas de que sente por ella uma paixão fetichista. Elle, o rei da moda, o festejado conquistador, para quem todas as portas e todos os corações abrem-se como a grutta encantada de Aladdin, a uma só palavra; elle alli está captivo da vontade della e aptado ao seu carro triumphal! Que prova mais eloquente de profundo amor de que essa submissão espontanea do altivo pavão? Amelia comprehende que homenagem eloquente à sua belleza ha naquella adoração do elegante cavalheiro; sente-se orgulhosa com esse amor, que tantas mulheres lhe invejam; considera-se rainha, desde que vê a seus pés subjugado e humilde o rei da moda. Mas la no intimo alguma coisa lhe remorde quando nota a pertinacia com que o olhar de Horacio procura a barra de seu vestido. Nesses momentos sente n’alma um alvoroço; chega a suspeitar que Horacio não lhe tem amor, e está buscando unicamente satisfazer uma phantasia passageira. A verdade, porem, é a que sabemos. Horacio tem paixão louca pelo pezinho de que só conhesce a botina e o rastro; fazendo a corte a Amelia, elle presta culto ao deus ignoto, que adora sob aquella forma encantadora. Pelo cuidado que tem a moça em não desconcertar os babados de seu vestido comprido demais, conhesce elle o zelo com que a dona recapta o thesouro. Comtudo não desespera; o cuidado da moça 109
ha de addormescer um momento; pode mesmo sobrevir um accidente inesperado que realize a sua mais cara esperança. Até aquella noite todos os exforços se tinham frustrado; à sua insistencia a moça tinha opposto a pertinacia do capricho feminino. Quanto mais attento elle está para approveitar qualquer descuido, mais allerta ella fica para não commetter a minima falta. Horacio porem resolve dar o golpe e, com essa intenção, veiu à casa de Salles, no domingo em que estamos. Quando se offeresce occasião, trava com recostada à janella, o seguinte dialogo:
Amelia,
“Como é bonita!”, diz elle contemplando a moça com enlevo. “Ainda não tinha percebido?”, ironica faceirice.
pergunta
ella
com
“Não, D. Amelia, não; porque de cada vez a acho mais bonita; todos os dias a senhora muda a meus olhos; torna-se outra, mais linda, mais formosa, do que era aquella que eu conhescia anteriormente. Como hoje, accredite, nunca a vi.” “Que tenho eu de mais?” “Não sei; tem uma aureola de belleza! Seus olhos desferem raios de luz tão pura; sua bocca sorri como a flor em botão, que abriu com a frescura da noite. Os anneis de seus cabellos castanhos parescem impregnados de um fluido mysterioso, que se derrama em torno. Mas de toda a sua formosura ha uma coisa 110
sobretudo que eu admiro, que eu adoro. Não é, nem seus olhos brilhantes, nem seus labios mimosos, nem seu talhe elegante, nem suas tranças tão opulentas; não é nada disto!” “O que é então?” “Para que dizel-o? Para que revelar a minha paixão a quem della excarnesce? Si eu o confessasse, cessariam o supplicio que tenho soffrido, as anxias que estou curtindo? Não; haviam de augmentar si isso fosse possivel. A senhora teria prazer em torturar-me ainda mais.” “Explique-se: confesso que não supplicio tem o senhor soffrido?”
o
entendo.
Que
“A mulher é caprichosa, muitas vezes faz padescer aquelle que a ama sinceramente, e só por espirito de contradicção. Uma coisa innocente, um favor pequenino... permitte aos extranhos e indifferentes, e entretanto recusa ao homem que morre de paixão por ella. Não é uma crueldade? A senhora pergunta, D. Amelia, que supplicio tenho eu soffrido. Este, de ser consumido a fogo lento por um desejo, que um gesto seu podia tornar em gozo infinito!” A moça, saboreando seu triumpho, finge estar confusa e encabulada. “Entende agora, D. Amelia?” “Não!”, murmura, falsamente perturbada. “Pois não percebeu ainda, que ha uma coisa que eu 111
sobretudo amo na senhora? Tanto percebeu, que fez o proposito de escondel-a a meus olhos, cansados de a procurarem a cada instante. Não está contente ainda de ver-me arrastando assim a alma pelo pó, no vão intento de entrever de longe o objecto de minhas adorações?” O galan ficta um olhar fascinador no semblante da moça. “Para que negar, D. Amelia? A senhora o sabe, e finge ignorar para mais torturar-me.” “Eu? Não!” “A senhora sabe por quem deliro de paixão, por quem darei a minha vida sem hesitar. Si não soubesse, ja eu teria visto e admirado esse pezinho mimoso, que me macta com seu rigor.” Uma visita que entra na salla dá a Amelia um pretexto para fugir, disfarsando sua vaidade de menina mimada , no affan da recepção das senhoras que chegam, e que são as habituaes convidadas que, tambem nas tardes da semana, frequentam o cha de D. Leonor, algo distincto dos “afternoon teas” rememorados nas canções dos Kinks, tão caros ao lorde e a Laura, em suas reminiscencias dos costumes da patria longinqua... Assim que as visitantes se accommodam e trocam mexericos, Horacio acha ensejo de voltar ao assumpto com a moça, emquanto as conversas se manteem à parte: “Não seja cruel! Me deixa ver?” 112
“Não!”, responde a moça com vivacidade, brincalhona. “Quando cessará este capricho?” “Quando eu quizer.” Horacio tem um assommo de impaciencia. “Bem. Não me quer mostrar a mim, Horacio de Almeida; pois ha de mostral-o a uma pessoa.” “A quem?”, pergunta a moça, desaffiadora. “A seu marido.” Amelia torna-se pallida, e sente passar-lhe nos olhos uma vertigem; mas recobra-se logo à idéa de que as palavras de Horacio não passam de um galanteio a mais. “Si algum dia me casar (replica ella sorrindo), ha de ser com a condição de só mostrar quando eu quizer.” “Havemos de discutir essa condição.” “Vamos mudar de conversa?” “Como quizer; temos muito tempo para continual-a.” Emquanto Amelia o olha surpresa, Horacio, voltando-se para o gruppo das senhoras, toma parte na conversação geral. “Ja sabem da novidade, minhas senhoras?” 113
“Qual dellas? Ha tantas!”, falla a filha do marquez de Tatuapé. “Algum casamento, apposto!”, accode a filha do visconde de Poá. “E eu sei de quem!”, replica a irman do marquez de Utinga. “Não adivinhou. Talvez que a novidade de admanhan seja algum casamento; quem sabe? (responde Horacio, relanceando um olhar para Amelia) Mas a novidade de hoje é appenas um baile, um baile de extrondo.” “Aonde?”, pergunta a filha do marquez. “No Casino?”, pergunta a filha do visconde. “No clube?”, pergunta a irman do outro marquez. “Em casa de Azevedo.” “É verdade! Eu ja tinha ouvido dizer!” “Será um grande accontescimento! Portanto, minhas senhoras, preparem-se!” “Quando é mesmo o dia?” “No primeiro do mez proximo. Ponham desde ja em contribuição as lojas e modistas; eu, o que posso, é offerescer-me com muito gosto para admiral-as a todas, e achar a cada uma de per si mais elegante do 114
que as outras junctas.” Amelia escuta a palavra voluvel do moço com um sentimento indefinivel de duvida; paresce-lhe que o amor de Horacio é algo que pode, a qualquer momento, ser rasgado aos pedacinhos, como uma pagina de diario que se descharta ao sopro do vento, ao sabor de uma conversa. No pensamento da moça robustesce a idéa, ja proposta por Laura, de que é preciso submetter o galan a durissimas e humilhantes condições para testar-lhe os limites da adoração que elle declara a seu pezinho... A filha do visconde, reparando na expressão compenetrada da filha do Salles e no olhar que em certa occasião lhe deita Horacio, diz ao ouvido da irman do marquez, sentada a seu lado: “Amelia paresce decepcionada!” “Como?” “Creio que Horacio está justo com outra...” “Quem lhe disse?” “A tristeza de Amelia, e o olhar que o subjeito lhe deitou, quando fallava de um casamento que se ha de saber admanhan.” “É verdade. Com quem será?”, pergunta a filha do marquez de Tatuapé. “Naturalmente com alguma fazendeira de mil comptos. Depois que sahirem da egreja, o marido leva-a para o collegio do Hitchings; e deixa-a la como pensionista, emquanto elle vae a Paris apperfeiçoar-se no methodo 115
didascalico da Eschola Preparatoria de Maridos...”, adventa venenosamente a irman do marquez de Utinga. Segundo o romancista, “Esta ultima senhora é uma satyra viva; sua conversa paresce um fogo de artificio; dir-se-ia que o seu gracioso traje é todo composto de alfinetes, que ella vae deixando em sua passagem envoltos em sorrisos assucarados, como confeitos de carnaval.” O romancista occulta o nome de D. Dolores da Costa “porque é muito conhescida na boa sociedade do Rio de Janeiro, e não quero compromettel-a com os noivos presentes e futuros das fazendeiras ricas.” Depois de ter durante alguns instantes ainda polvilhado a conversa com sua palavra elegante e chistosa, Horacio toma o chapéu e retira-se. Ainda não são nove horas; esta circumstancia mais intriga Amelia, e mais excita a attenção da maledicente D. Dolores. À porta da casa de Salles encontra Horacio seu tilbury. Manda o cocheiro esperal-o no largo do Machado, e elle, tendo accendido o charuto e vestido o sobretudo, segue a pé. Quer pensar. Chegara a fallar em casamento, como um desaffio a Amelia, lançado em um momento de despeito. Deve voltar a tocar em assumpto tão grave? Até que poncto estaria disposto a fazer concessões para alcançar a sonhada permissão de tocar o pezinho da moça? E si ella, sendo amiga de uma didascalica como Laura, resolvesse tirar proveito da situação e impor condições adviltantes à sua honra de galan irresistivel? É sobre tão importante questão que o pavão quer 116
reflectir, fazendo a pé o trajecto entre as Laranjeiras e o largo do Machado. “O casamento é o supplicio de Prometheu (pensa elle, segundo o romancista); um homem aptado ao rochedo da familia com o coração devorado pelo tedio; uma creatura dividida em duas metades, que se contrariam a cada instante, porque estão ligadas. Em vez do romance, do idyllio, do drama, da phantasia erotica variada e inexgottavel, a prosa monotona de uma historia que se lê todos os dias. Esse prazer incomparavel de sentirse todo dentro de si, de resumir-se no seu unico eu, de dispor livremente de sua pessoa e vida, de seus organs e orgasmos, não o tem o marido, a menos que... seja capaz, como elle, Horacio, de sahir com quem queira, em qualquer hypothese. O casamento dilata a superficie da alma; em vez de soffrer-se no seu coração appenas, soffre-se na mulher, no filho, e em cada um dos fios dessa grande teia humana que se chama familia. Mas nada é irreversivel neste mundo...” Horacio recorda-se de alguns de seus amigos que haviam casado, e acha nessas reminiscencias a prova de sua opinião. “O casamento é tudo isso; mas talvez não seja necessario chegarmos a tal grau de compromisso, desde que haja outro meio de realizar o meu desejo e satisfazer esta paixão ardente e impetuosa... Faço qualquer sacrificio para attingir a felicidade que eu sonho. Por que não posso pedir-lhe a mão, si ja lhe pedi o pé? Si obtenho o pé antes da mão, tanto melhor; caso contrario, fico com ambos os dotes e mais tarde verei o que me convem...” Tendo chegado ao Largo do Machado, o moço entra no tilbury, que o conduz à casa. Ahi, contemplando e accariciando a mimosa botina, guardada como uma reliquia, enche-se cada vez mais da resolução 117
que accaba de tomar. Antes de chegar ao ecstase, comprimindo os labios contra o solado gasto e provando-lhe a aspereza com a poncta da lingua, imagina que aquella botina está calçada pela dona e que elle, o supposto senhor de si, jaz immobilizado por correntes e grilhões matrimoniaes, e que, sob a vigilante supervisão de Laura, obedesce a todas as ordens que occorrem à caprichosa creatividade da menina frivola, talvez sua futura esposa na vida real... Todas as ordens, todas! Ah! Nessa mesma noite, em sua alcova, emquanto desfaz o penteado, soltando os lindos anneis do cabello castanho, Amelia recorda-se das palavras queixosas de Horacio. A linguagem do galan tem o encanto da seducção: vem envolta em um sorriso gracioso, sombreado por um bigode fino e elegante... mas caresce da sinceridade, da profundidade do sentimento, que vem do intimo. A palavra de Horacio é uma apposta inconsequente. Darlhe ouvidos pode ser um jogo emocionante e divertido, e pol-a a prova será certamente, como suggere Laura, um delicioso passatempo. Muito melhor que as innocentes brincadeiras que, poucos annos antes, ella inventava com suas amiguinhas... Emballada por essas elucubrações, Amelia appoia o infantil pezinho descalço sobre uma almofada de veludo e move os dedinhos repetidamente, como si algo muito macio lhes fizesse cocegas... Ella sorri e commanda, sussurrando comsigo mesma para convencer-se da espontaneidade de seu tom imperativo: “Continue! Assim! Continue!”
118
13 O BAILE SEM MASCARAS
Refere o historiador que, “Ja para os fins do regime transacto, em 1887, cogitava-se de completar o afformoseamento da capital por meio de empresa particular. Notava-se principalmente depois de 1867, {grande tendencia, da parte dos proprietarios e constructores, para darem às casas, tanto na cidade, como nos arrabaldes, mais elegancia e comforto}; e desd{aquelle tempo começaram a reformar-se as construcções em toda parte. Aliaz, muitos annos antes, em 1857, ja se havia constituido aqui uma Companhia Architectonica, com alguns favores do governo; a qual tomava a si grandes obras para remodellamento da cidade. Entre os edificios publicos mais notaveis que se construiram por aquelles tempos podem citarse: o palacio da Prefeitura; o Hospicio Pedro II; a Casa da Moeda; e muitos outros, sem comptar os que foram reformados ou inteiramente reconstruidos.}” A nobre mansão dos Azevedo Camargo resplandesce. A melhor sociedade da Corte concorre ao sumptuoso baile. Toda a aristocracia, a belleza, o talento, a classe, a posição e até a decrepita fidalguia, estão dignamente representadas nas ricas e vastas sallas, addereçadas com luxo e elegancia: duas coisas que nem sempre se encontram reunidas. São nove horas. Ainda o baile não começou, e nota119
se na reunião a gravidade solenne, o grande ar de ceremonia, que serve de prologo às festas de gala. Os cavalheiros percorrem lentamente as sallas, observando o iris deslumbrante que formam os lindos vestidos das senhoras; mas admirando especialmente as estrellasque brilham nessa via-lactea. No sallão principal, algumas rodas de pessoas mais edosas se destaccam, cada uma a um extremo do recincto: são padrinhos politicos, patrocinadores de cargos, defensores de interesses, protagonistas e coadjuvantes daquillo que no seculo seguinte será chamado de “lobby” ou “traffico de influencias”; emfim, gente que transita com a mesma desenvoltura entre a situação conservadora e a opposição liberal. De um desses gruppos affastase momentaneamente a figura alta e gesticulante do marquez de Tatuapé, que por mero acaso occupa no momento uma pasta no gabinete do marquez de São Vicente e sob cuja protecção, septe annos attraz, pôde o casal Lawrence radicar-se no Rio de Janeiro sem ser importunado por auctoridades brazileiras ou britannicas. A razão desse favorescimento não é outra sinão o parentesco entre Julia, esposa do “almirante” e carioca de nascimento, e Leonor (cujo nome de familia é Leonor Treadmill), mulher do Salles, que, por sua vez, é parente do actual ministro. É justamente para ir ao encontro dos Salles, que accabam de entrar, que o marquez se addeanta, saudando effusivamente a “querida Nonô”, o “querido Paulo”, a “querida Melinha”... Amelia accaba de sentar-se quando Horacio vem saudal-a, cumprimentando-a pelo bom gosto e delicadeza de seu traje. Realmente não se pode imaginar um adorno mais gracioso. O vestido é de escumilha rubescente, formando regaços onde brilham aljofares de crystal; nos cabellos castanhos traz uma grinalda de pequenos botões de rosa, borrifados de gottas de orvalho. Nas palavras do romancista, “Um poeta diria que a moça 120
tinha cortado seu traje das finas gazas da manhan; ou que a aurora, vestindo as nevoas rosadas, descera do céu para disputar as admirações da noite.” “Dansaremos a primeira?”, diz Horacio. A moça sorri: “Sim.” Laura passa. Amelia chama-a, mostrando-lhe um logar a seu lado. Horacio affasta-se para deixar as duas amigas em liberdade; mas principalmente para se poupar daquelle machiavellico sorriso que Laura sempre lhe dirige. Desde a noite do theatro o pavão comprehendera que a moça olhava para elle com morbido interesse. Mas não deixa de aguçar a curiosidade do galan o assumpto daquella conversa confidencial que as duas costumam entabular, pois presente que algo de inexoravel lhe está reservado. Conversando com a amiga, Amelia descobre defronte, no vão de uma janella, o vulto de Leopoldo absorvido em contemplal-a com um olhar profundo e intenso, mais vampiresco do que nunca, que serve de válvula às exuberancias de sua alma lugubre. Sentindo-se sob a influencia desse olhar, a moça inclina a fronte, como um signal de submissão, e abbandona-se à contemplação do mancebo. Está, naturalmente, jogando sua isca para advaliar a reacção do rapaz nessa reversivel troca de papeis entre dominador e dominado, que characteriza o methodo didascalico de que lhe falla Laura. De vez em quando procura ler de relance no rosto de Leopoldo as impressões de seu espirito, os movimentos de sua alma. Presente que o moço deseja approximar-se della para lhe fallar, mas não se anima; a solennidade da festa, a grande concorrencia, a proximidade de Laura, tolhem o mancebo, cujo character fora da 121
intimidade se confrange, por uma especie de pudor, proprio das almas introspectivas. Amelia sente um desvanescimento, descobrindo aquella fraqueza no homem cujo olhar a domina, e lembrandose que ella pode nesse instante protegel-o. Não ha para a fragilidade da mulher maior orgulho e prazer, do que observar a fragilidade no homem. Vinga-se da tyrannia do sexo forte. “Vamos sentar-nos do outro lado, Laura?” “Para que? Estamos tão bem aqui!” “Dalli vê-se melhor a salla; e deve estar mais fresco.” “Como quizeres.” As duas moças attravessam a salla, indo tomar logar justamente no vão da janella onde Leopoldo se acha. Amelia conserva-se algum tempo de pé, com o pretexto de arranjar a cadeira, mas para dar occasião a Leopoldo de fallar-lhe. O mancebo addeanta-se, com effeito, e cumprimenta Laura, que lhe appresenta a famosa prima de quem tanto se fallou. Amelia extende-lhe a mão com interesse, para animal-o. “Terei a felicidade de dansar uma quadrilha...” “Qual?” “A ultima!” “A ultima?”, repete Amelia rindo-se. 122
“Sim; depois que tiver dansado com todos...”, replica o moço completando seu pensamento com o olhar. “Então a sexta.”, concede Amelia, manifestando boa vontade. A orchestra abre o baile com uma brilhante symphonia, depois da qual dão o signal da primeira quadrilha. Rompe-se então a symmetria, e forma-se o turbilhão. Durante a contradansa, Horacio não se exquesce do pezinho adorado, e procura todos os meios de o descobrir nalgum momento de confusão ou descuido. Chega até a fingir extouvamento em algumas das marcas com o fim de embaraçar o vestido da moça. “Eu me sento!”, diz-lhe Amelia irritada. “Barbara, non hai cor!”, replica-lhe Horacio com as palavras do romance. “O seu coração está no botim?”, pergunta-lhe a moça com despeito. “O meu, a senhora bem o sabe, ja não me pertence, pois lh’o dei ha muito tempo; e ando-o agora procurando no chão, onde creio que o deixou exmagado um tyranno que eu adoro e me repelle. Mas compto com a senhora para movel-o em meu favor. Sim?” “Por emquanto não.” “Então quando?” “Ainda não decidi.”, responde a moça aggastada. 123
“Realmente eu não comprehendo. Será possivel que a senhora tenha ciumes delle?”, pergunta Horacio gracejando. A moça olha-o com expressão. “Tenho sim, tenho ciumes! E o senhor terá mais ciumes ainda, si depender de mim. Será que é capaz de supportar?” “Tudo o que a senhora quizer...”, fraqueja o galan, perdendo momentaneamente o autocontrole. Terminada a quadrilha, Horacio, depois de algumas voltas de passeio pela salla, deixa a moça no seu logar e desce a escada de marmore que leva ao jardim, illuminado com lampeões de diversas cores. Ha ao lado da casa, e ao longo de uma lattada, mesas de ferro para tomar sorvetes e refrescos. Horacio, dirigindose para esse logar, advista Leopoldo sentado a uma das mesas. “Oh! Por ca tambem, Leopoldo?” “É verdade; contra meus habitos.” “O baile está exsplendido! Não achas?” “Sem duvida. Mas paresce que não tem grande interesse para ti.” “Por que pensas assim?” “Vens te esconder aqui, quando se dansa. Devias deixar 124
isso para mim, que sou uma especie de misanthropo, uma alma errante neste mundo de conto de fadas.” “Para ser franco, devo-te confessar, que neste baile, onde se acham reunidas as mais bonitas mulheres do Rio de Janeiro, onde nada falta do que pode tornar brilhante uma festa, nem o luxo, nem a riqueza, nem a concorrencia, nem as notabilidades de toda especie, neste baile só ha uma coisa que me interessa; uma coisa bem pequenina, e por isso mesmo de um encanto inexprimivel.” “Que condão será esse tão poderoso?” “Disseste a palavra. É um condão, um verdadeiro condão de fada, que me transformou de repente, e fez de um senhor um escravo humilde e submisso.” “Mas no fim de comptas o que é?” “Um pezinho!” Horacio abre-se com Leopoldo, não appenas pela necessidade de desabbafar e compartilhar sua anxiedade com alguem, mas porque viu quando Laura appresentou o mancebo a Amelia, e tambem porque está bem lembrado de que foi Leopoldo quem lhe deu a informação sobre a loja em que a moça encommendara a botina perdida. Portanto, será este o momento de defender o territorio, aliaz ainda não conquistado, e obter do possivel rival o reconhescimento diplomatico da superioridade do pavão sobre o patinho feio, como sobre qualquer gallo naquelle terreiro. Momentos antes de haver surgido uma opportunidade 125
para que Horacio sirva-se de Leopoldo e marque sua posição, Laura está no terraço, accompanhada dos paes e do lorde, que por sua vez accabam de junctarse aos Salles. O filho do barão, todo sorrisos e rapapés, vem saudar o gruppo, fazendo as honras da casa, e, emquanto convida Amelia para dansar, Laura percebe a furtiva retirada de Leopoldo em direcção ao jardim. Dispõe-se então a seguil-o, na intenção de conversar com elle a sós, e sae a procural-o na area onde, pelas clareiras entre caramanchões e lattadas, a luz dos lampeões permitte reconhescer algum rosto. Quando advista o rapaz sentado, Laura vae a seu encontro, mas detem o passo ao notar a chegada de Horacio. Protegida pela folhagem, a moça pode approximar-se o sufficiente para ouvir a conversa dos dois, algo que na certa interessará muito aos propositos da calculista didascalica, para não fallar da mulher appaixonada. “Pois para mim tambem (diz Leopoldo) só ha neste baile como neste mundo uma coisa que me illumina a exsistencia.” “Alguma solteirona rica, apposto.” “Um sorriso, appenas.” Horacio não pode reprimir um gesto desdenhoso. O sorriso é para elle uma das coisas mais triviaes; tem-os colhido tantas vezes, e em labios tão puros e mimosos, que ja não lhe excitam a attenção. São como as flores de um vaso que todos os dias se substituem. “E por acaso eu conhesço a dona desse sorriso tão importante?” 126
“Conhesces. É a mesma dona do pezinho que tanto admiras.”, revela Leopoldo, consciente de não ter chances de conquistar Amelia mas recomfortado pelas chances de se consolar com Laura, e ao mesmo tempo inspirado pela chance de attingir os brios do rival, nem que seja por um momento. Horacio accende o charuto, approveitando a pausa para disfarsar o rancor e recuperar o velho ar de superioridade. “Perdes teu tempo, amigo. (responde affinal o pavão) Conhesço essa moça, que é realmente encantadora; diversas vezes achei-me com ella em sociedade, e nunca sentira à sua vista a menor commoção. Mas quando soube que a ella pertencia o thesouro, adorei-a. Para ter o pezinho que sonhei, estou disposto a fazer a maior das loucuras, casar-me!...” “Pois, si me permittes franqueza, dir-te-ei que realmente o desenlace que pretendes dar será uma loucura. O casamento, quando não une duas almas irmans creadas uma para a outra, é uma especie de grilheta que prende dois galés; o supplicio de duas exsistencias condemnadas a se arrastarem mutuamente. Tu não amas essa moça, Horacio.” “Não a amo?” “Não!” “Quando vou fazer por ella o sacrificio que nenhuma outra mulher obteve de mim? Quando sou capaz de passar por cyma de qualquer outro que lhe arraste a asa?” 127
“Não passa de um capricho. Essa moça é para ti um pé e nada mais.” “A mulher que amamos tem sempre um encanto, uma graça especial. Às vezes são os cabellos; outras os olhos; tu amas o sorriso; eu o pé.” Leopoldo levanta os hombros: “Sem duvida. A alma da mulher, como a do homem, se revela em cada pessoa por uma feição mais distincta, por uma expressão mais eloquente. Mas não é isto que succede comtigo. Tu sentes a idolatria da belleza material; procuraste sempre na mulher a forma, o amor plastico; à força de admirar os mais lindos rostos e os talhes mais seductores, ficaste com o sentido embotado, precisavas de algum sainete que estimulasse teu gosto. Viste ou imaginaste um pezinho mimoso e gentil: tornou-se logo para ti o typo, o ideal da belleza material, que te habituaste a adorar.” Horacio solta uma risada: “Olha, Leopoldo, ca para mim o platonismo em amor será um absurdo incomprehensivel si não fosse uma refinada hypocrisia. Esses mesmos que adoram a mulher como um anjo, de que se nutrem sinão de contemplação de belleza material que tractas com tamanho desprezo? É possivel que uma mulher feia seja amada por aberração do gosto; mas fazer disso uma regra geral!... Tu não tens condição de chegar aos meus pés em materia de mulheres e de experiencias amorosas; não serves para engraxar-me as botas, e vens compensar teu despeito com essa philosophia moralista?! Não te enxergas, Leopoldo?” 128
Estas ultimas palavras, carregadas de extremo desdem, são proferidas de cyma para baixo, pois Horacio ja se levantou e põe-se em guarda, prevendo alguma reacção brusca de Leopoldo. Mas não ha tempo para novas offensas nem revides, desde que Laura intervem como quem chega naquelle momento. “Leopoldo! Ainda aqui? Logo começa a sexta quadrilha! Vamos?” E Laura lança, lateralmente, seu mais diabolico sorriso sobre o pavão. Horacio affasta-se e retorna ao interior da mansão. Leopoldo e Laura dão algumas voltas no jardim, fallando de amenidades e, entrando nas sallas, separam-se. Horacio procura Amelia durante algum tempo; affinal, passando pela porta do toucador, vê a mão da moça que entreabre a cortina de velludo verde. “Está triste...”, diz-lhe o mancebo conduzindo-a ao sallão. “Estou fatigada.”, responde a moça com frieza. Horacio conhesce profundamente a psychologia da mulher que ama; tantas vezes tem lido e relido o livro mysterioso do coração feminino, que não pode excappar-lhe a menor alteração do texto. O tom de Amelia o surprehende; alguma coisa ha. O que será? O que pode ser? Poucos momentos antes elle a deixara risonha e espirituosa; uma hora depois vem encontral-a fria e indifferente. Enciumado e scismado, o moço resolve sondar o coração 129
daquella que pode vir a ser sua noiva:
“A senhora tem mais alguma coisa alem da fadiga, confesse.” “Illude-se!” “Talvez! Concordo, para não contrarial-a ainda mais.” Dão alguns passos silenciosos. “Va admanhan jantar comnosco, sim?”, diz Amelia, voltando-se para o cavalheiro com um sorriso ineffavel. A transição não pode ser mais brusca: uma aurora no seio da noite, tal é aquelle sorriso orvalhado de meiguices e graças encantadoras. “Admanhan?”, pergunta o pavão, desconfiado. A moça faz com a cabeça um gentil acceno. “Não sei si devo ir...” “Por que?” “Si eu fosse, pediria ainda uma vez aquillo que lhe tinha pedido tantas, e que a senhora me tem recusado tão cruelmente.” “Ah! Sempre aquelle nosso assumpto, não é?” “Bem vê!... Iria contrarial-a, abhorrescel-a...” 130
“Cuida?...” Esta palavra tem uma reticencia, e essa reticencia é um sorriso que entreabre o céu de uma alma candida. “Então admanhan?...”, diz Horacio. “Vae?” “E si eu pedir?” “Experimente!” Amelia senta-se, e Horacio, ebrio de ventura, desce outra vez ao jardim para desaffogar as exuberancias de sua alma. Nunca a primeira entrevista da mulher que mais amara produzira nelle tão profunda emoção. Para achar alguma coisa comparavel com o que então sente fora necessario remontar aos dias da juventude, aos tempos das primeiras pulsações de um coração virgem, às primeiras erecções de um phallo adolescente. Sua paixão por Amelia tem realmente algo de virgindade. O conquistador havia amado na mulher todas as graças e encantos do pé, mas nunca até então havia adorado um pé tão especial. Deve pois experimentar realmente as sensações inebriantes de um primeiro amor. Na salla dansa-se a sexta quadrilha. “Acho-a pensativa, D. Amelia...”, diz Leopoldo, reparando que o lindo rosto de seu par, ordinariamente animado por uma gentileza vivaz, está agora admortescido pela reflexão. 131
Amelia ficta ingenuidade.
nelle
seus
grandes
olhos
e
simula
“Tenho minhas razões...” Leopoldo cala-se, tentando comprehender o pensamento de Amelia. Quem sabe si ella não está tão disposta, como faz crer Horacio, a acceitar um pedido de casamento? A mulher deve ter desses instantes de indecisão. A duvida agita-se no seio da fé mais profunda, o receio no amago da esperança mais risonha. Segundo o romancista, “As flores do coração, como as da natureza, teem um verme, que as babuja.” Que pode Leopoldo dizer a essa alma perplexa? Augmentar-lhe a duvida, dar força às vacillações, não seria digno; paresce-lhe uma tentativa de seducção. Comfortal-a em sua fé, animar-lhe a esperança, apponctar-lhe para um futuro cheio de venturas, fora nobre e gentil; mas falta-lhe abnegação para phrases generosas, depois da humilhação que Horacio lhe impoz. O pato prefere abster-se de qualquer intromissão no relacionamento entre o pavão e a garça. Terminada a quadrilha, Amelia, pelo braço do par, dá uma volta ao longo da salla. A um acceno de seu leque, Horacio, que está conversando em um gruppo, chega-se. Seus olhos, que durante toda a contradansa accompanharam os passos saltitantes de Leopoldo com o mais profundo desprezo, voltam a brilhar de orgulho. “Chame papae, Horacio. São horas!” Emquanto o pavão procura o Salles para prevenil-o do desejo de sua filha, esta dirige-se ao toucador. Leopoldo fica resentido de ver a moça fallar a Horacio 132
naquelle tom bem expressivo de intimidade. Amelia, por sua vez, repara no ar de indisfarsavel decepção do mancebo, e sorri para elle com ternura. Permanesce por algum tempo na companhia do desconsolado subjeito, a quem, para melhorar o animo, faz algumas perguntas pessoaes, demonstrando grande interesse nas respostas. Nada, porem, que ja não saiba pela bocca de Laura. Approxima-se Horacio dando o braço a D. Leonor, e seguido pelo negociante. Amelia separa-se de seu cavalheiro, e levantando a cortina de velludo do toucador, volta-se: “Havemos Amelia.
de
continuar
a
conversa...”,
promette
“Será um prazer...”, murmura Leopoldo, e seu olhar desce timidamente do rosto da moça à fimbria do vestido. Amelia se regozija, um tanto encabulada; a cortina, excappando de sua mão tremula, occulta-a. “Amelia é muito attenciosa, não achas?”, pergunta Horacio com mordacidade, emquanto espera que as senhoras saiam do toucador. “Estás abhorrescido, por acaso?”, devolve Leopoldo seccamente. O pavão ficta no rival um olhar hostil; mas occorrelhe de repente uma idéa, que lhe traz aos labios um sorriso de ironia. Lembra-se dos pesados sapatões do mancebo martellando o soalho ao som da quadrilha. 133
“Abhorrescido por que? Estou mais é admirado de que aquelle pezinho tenha excappado de ser pisado por essa prancha...” Amelia, que sae do toucador, embuçada em sua cappa de caxemira escarlate, toma o braço do namorado e desce as escadas. Quando parte o carro de Salles, Leopoldo, que tambem se retira, encontra Horacio na porta. Para evitar maior attrito, appressa o passo, constrangido pela idéa de que o pavão accompanha o movimento de seus pés tortos com olhar zombeteiro e um sorriso de triumpho...
134
14 LORD STEPPINGSTONE
Refere o historiador que “Profundas eram tambem as differenças entre inglezes e lusobrazileiros quanto ao typo de calçado predominante entre as classes medias e proletarias dos dois povos e tambem quanto aos seus habitos de cuspir, de tractar do cabello e dos dentes: habitos tão difficeis de ser conciliados na convivencia dos hospitaes. É celebre o horror britannico não só ao muito cuspir, às muitas excarradeiras e ao palito de dentes como aos tamancos de origem portugueza e rural que, no Brazil, tornaramse, com a frequente transformação de portuguezes de origem rural em homens urbanos, o typo predominante de calçado nas cidades entre pequenos e até medios e grandes commerciantes portugueses e brazileiros; e entre operarios, maritimos de caes, negros e pardos livres de mercado e de rua. O commercio de tamancos chegou, no meado do seculo XIX, a ser um dos mais importantes nas cidades brazileiras... Que de tamancos iam à missa negociantes e não appenas caixeiros do Rio de Janeiro, de Salvador e do Recife. Que de tamancos montavam a cavalo antigos commerciantes transformados em senhores de engenho -- em contraste com aquelles decahidos da opulencia rural que, mesmo dentro de casa e nus da cinctura para cyma, conservavam-se de botas de andar a cavallo.” “Eram tamancos que estalavam nos pés dos caixeiros 135
e dos próprios commerciantes, pelas duras pedras do calçamento do Recife, de Salvador, do Rio de Janeiro, com um estridor que muito deve ter doido aos ouvidos delicados dos inglezes estabelescidos com armazens e escriptorios nas mesmas cidades, explicando-se, talvez, por sua reacção de gente quasi fanatica do silencio a essa especie de barulho, o facto de ter se generalizado entre nós como invenção ingleza -quando paresce ter sido appenas um apperfeiçoamento inglez de technica brazileira -- o sapato de sola de borracha, por algum tempo fabricado principalmente pelos escocezes da Fabrica Clark. Era o sapato de sola de borracha a verdadeira antithese do tamanco que, nos pés de doentes e serventes de hospital, tornava a melhor das casas de sahude brazileiras verdadeiro inferno para enfermos ou convalescentes inglezes e talvez para os proprios sertanejos, habituados a alpercatas macias.” Na semana seguinte, Leopoldo reapparesce em casa de D. Clementina, disposto a dansar à vontade naquelle ambiente mais informal e menos preconceituoso. O mancebo compartilha com a dona da casa a impressão de ser discriminado nos salões aristocraticos, em que a vaidade privilegia pessoas bellas e elegantes. Aqui o que importa é a descontracção e -- por que não? -- a desrepressão. D. Clementina não iria ao baile do Azevedo, mesmo que fosse convidada; Leopoldo la estivera a contragosto, appenas para poder ver Amelia, e sahira humilhado. Agora precisa recuperar a auto-estima. Dansa até sentir-se physicamente fatigado mas mentalmente revigorado, e volta para casa decidido a frequentar com a mesma assiduidade o sallão de Mme. Fragonard. Sendo o sallão litterario uma instituição typicamente franceza, madame sabe que jamais conseguiria 136
introduzil-a no Brazil, nem é essa a sua intenção. O que ella pretende é congregar os interessados em generos e estylos que não sejam cultivados pelas escholas em voga -- especificidades cujos auctores e editores se quotizem em limitadas tiragens destinadas a colleccionadores. De ordinario as sessões são abertas pelo Dr. Pederneiras, que introduz o thema da noite e appresenta o palestrante. Nesta sexta, pela enésima vez, o rodizio recae sobre o Lord Steppingstone. Estão presentes D. Rosa, o Vargas, D. Vicentina, os poetas Mauro de Moura e Dirceu Amoroso Lyra, alem de Laura, do Campos e do unico convidado novo, appresentado como o Prof. Leopoldo de Castro, adepto da eschola byroniana. De facto, o mancebo traz comsigo um surrado exemplar de NOITE NA TAVERNA, de Alvares de Azevedo, do qual lerá algumas passagens quando lhe couber a vez. Appós ter dedilhado ao piano uns exercicios nervosos para crear clima, Rosa de Albuquerque senta-se com os demais ao redor de uma bandeja de canapés. Roger Steppingstone propõe um “toast” e tilintam os coppos. Plinio Pederneiras abre um estojo de couro e retira uma de suas raridades. Explica tel-a adquirido do proprio lorde, logo que este chegara ao Rio. A edição particular vae circulando de mão em mão, emquanto o bibliophilo descreve-lhe as characteristicas. Tracta-se de uma plaquette intitulada HISTORY OF FLOGGING, publicada no mesmo anno em que os Lawrence deixaram Londres, fugindo às implicações do rumoroso caso Potter. Na cappa, a gravura entalhada em madeira representa uma garota despida e admarrada, tendo de um lado um velho e do outro uma mulher, cada um empunhando uma vara de betula, trazendo ainda o homem, na mão esquerda, um pedaço de chorda; ao fundo, 137
vê-se uma escada dobradiça, utilizada para manter a victima admarrada, à mercê dos que a açoitam. Pederneiras informa que o livro dá um quadro superficial da Historia da Flagellação desde as edades mais primitivas, e que noticia particularmente alguns dos mais notaveis estabelescimentos de Londres, entre outros a “Casa Branca”, a “Caverna de Mãe Cummins”, o “Elyseu”, a “Sociedade dos Flagelladores Aristocraticos” e a propria “Academia” de Sarah Potter. Informa ainda que o exemplar que os presentes podem compulsar é um dos dois exsistentes no Brazil. O outro, diz Plinio com ironia, “pertence, vejam só, a um sapateiro chamado Glycerio de Mattos, cujo acervo tem coisas que eu proprio não possuo!...” Leopoldo, que bem conhesce o tal sapateiro, recordase do sobrenome e sorri com seus botões. “É sobre este thema que o Lord Steppingstone proferirá sua conferencia de hoje”, adverte o colleccionador, como si a pauta ja não fosse conhescida, e passa a palavra a Roger. Este pigarreia, accommoda-se recostado no alto espaldar da poltrona de cabedal capitonado, leva à bocca o calice e desdobra algumas folhas de papel contendo versos escriptos a mão. São de auctoria de um poeta bahiano, e foram declamados em São Paulo, dois annos attraz, com grande repercussão litteraria e politica, explica o lorde. “O poema chama-se {Navio negreiro}. Peço que ouçam appenas estas estrophes...” E lê pausadamente os trechos assignalados:
Era um sonho dantesco... O tombadilho Que das luzernas advermelha o brilho, Em sangue a se banhar. 138
Tinnir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dansar...
E ri-se a orchestra, ironica, estridente... E da ronda phantastica a serpente Faz doudas espiraes...
Si o velho arqueja... si no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais...
No entanto o capitão manda a manobra
E appós, fictando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: “Vibrae rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dansar!...”
Quem são estes desgraçados, Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba Que excita a furia do algoz?
Roger suspende a leitura neste poncto. Emquanto seu sotaque britannico ainda vibra com gravidade aos ouvidos attentos, o silencio é cortado pela gargalhada estridente do Vargas: “Ja imagino a scena! Perfeito!” O lorde emenda: “Well... Quero chamar a attenção dos amigos para este detalhe: a flagellação como estimulo à dansa, e, por conseguinte, ao entretenimento do 139
espectador...” Prosegue emphatizando o adspecto ludico do supplicio. Mesmo quando o açoite tem finalidade utilitaria -- isto é, a punição de quem commetteu delicto -- a applicação do castigo em publico dá ensejo ao divertimento da assistencia. Portanto, mantem seu character ludico. “O pellourinho, meus amigos, não é appenas um monumento à correcção: é tambem um monumento à recreação!” Vargas e os poetas manifestam appoio. Antes de voltar a fallar do chicote, Roger pede aos ouvintes que lhe permittam fazer pequena digressão para apponctar as differenças entre o pellourinho inglez e o brazileiro. Segundo o “gentleman”, na colonia portugueza o pellourinho é menos um poste de madeira que uma columna de pedra, tendo a imponencia e a importancia de um verdadeiro marco municipal, erguido ao centro da praça. “Aquillo que nós, britannicos, conhescemos como {pillory} não tem a mesma configuração centralizadora, e, ao invés de um só pilar, é constituido de dois pilares parallelos, entre os quaes se assentam duas vigas horizontalmente superpostas a certa altura do chão, formando um H. A funcção dessas vigas é semelhante à daquillo que, no Brazil, os senhores chamam de {tronco}, e que nas colonias hespanholas leva o nome de {ceppo}. Emquanto no pellourinho o condemnado tem as mãos presas à columna por meio de argollas, no {pillory} não só as mãos como a cabeça ficam presas, de modo que o subjeito encare a multidão que vae appedrejal-o com immundicies. O tronco brazileiro, como ja nos informou o Sr. Vargas ao ler apponctamentos de Debret, é formado por dois blocos de madeira que se unem como as metades de uma peça, na qual os pés, as mãos e a cabeça se prendem attravés de buracos redondos na largura 140
dos tornozellos, dos pulsos e do pescoço. Numa das extremidades, as metades se unem por dobradiça de ferro; na outra poncta, por cadeado. Pois bem: o pellourinho britannico nada mais é que um tronco suspenso e sustentado por dois moirões; ao invés de cinco buracos, tem appenas trez, ja que os pés não ficam presos.” Para illustrar a utilidade do pellourinho inglez, evoca o lorde o caso de um estabelescimento londrino não mencionado na historica plaquette: o clube sodomitico conhescido como “Conventiculo”, onde, alem da prostituição masculina, celebravam-se matrimonios simulados entre travestis e clientes -- prenunciando, com secular antecedencia, algo bem mais explicito que a embaraçosa situação retractada na canção dos Kinks que fallava de Lola... A tal “instituição privada” fora, sessenta annos attraz, desmantellada pela policia, e seus socios, antes de cumprir sentença nos carceres, foram condemnados à exsecração publica. Levados ao pellourinho, transformaram-se em alvo da multidão (na maioria composta de mulheres e creanças) que, em delirio, lhes attirava toda sorte de projecteis repugnantes: fructas e legumes podres, refugo e esterco de mactadouros, entranhas de peixe e detritos de hospital -- material que os vendedores ambulantes offeresciam à populaça por alto preço. Mesmo num caso de clamor publico como aquelle, exclaresce o lorde, não se castigava com açoite na civilizada capital britannica, ao contrario do tractamento dispensado aos escravos nas Americas. “A flagellação (emphatiza Roger) tem sido apanagio de associações cultas e selectas em meu paiz, e não um espectaculo popular.” Roger vê vantagens e desvantagens, do poncto de vista 141
didascalico, na cultura escravocrata brazileira: “Ainda no inicio deste seculo era commum o castigo de escravos na praça. Não tive o privilegio de presenciar tal roptina, como Sade e Casanova puderam testemunhar a lenta execução de Damiens; mas tenho sufficiente experiencia privada para projectar certas comparações. Em publico, o carrasco está a serviço da platéa; esta folga, aquelle trabalha. O espectador pode dar-se ao luxo de gozar o que lhe appraz. O carrasco deve concentrar-se no perfeito desempenho do seu officio. O publico não está alli appenas para ver o soffrimento do condemnado: está tambem para advaliar a habilidade do carrasco. Ja na privacidade é o proprio carrasco quem goza e quem dosa o castigo de accordo com seu prazer. A habilidade, assim como a excolha do instrumento, subordina-se ao desfructe do algoz.” “Fosse eu um appreciador do pittoresco, em visita ao Brazil dos primeiros decennios deste seculo, observaria a solennidade com que, em meio ao logradouro, ergue-se o pellourinho, velha tradição romana, aquella columna de pedra munida de hastes de ferro recurvadas com argollas nas ponctas; e como, nessas argollas, admarra-se a poncta da chorda que apta os pulsos da victima; quando não, esta é mandada abbraçar a columna à qual admarram-na com varias voltas de chorda, prevenindo-se, dessarte, sua immobilidade ao receber o castigo. A execução transforma-se em espectaculo annunciado a toque-de-caixa, como si fora uma funcção circense, para attrahir curiosos e adjunctar compacta assistencia ao local onde se desenrollará a barbara, posto que fascinante scena. Os circumstantes distribuem-se em circulo, ao deredor do pellourinho, consoante a preferencia de cada um: ou às costas do suppliciado, donde melhor podem appreciar o estrago feito pelo latego, ou no sitio fronteiro, donde observam as reacções faciaes do 142
merescedor da punição. O relho desce veloz, deixando ouvir o estalo da lambada, aquelle ruido typico produzido pelo couro ao contacto com as carnes do réu, riscando nestas lanhos escarlates onde batte. A habilidade do carrasco é foco das attenções: ao levantar o braço para applicar o golpe, elle arranha de leve a epiderme deixando-a em carne viva depois da terceira chibatada. Conserva o braço levantado por alguns segundos entre cada golpe, tanto para comptalos em voz alta como para economizar suas forças até o fim da execução. As recommendações officiaes são para que o castigo não exceda as cincoenta chibatadas nas penalidades mais corriqueiras, podendo chegar às cem nos delictos mais graves.” “Naturalmente o typo de latego corresponde a taes funcções punitivas. Na execução publica emprega-se o chicote de cabo curto e de tiras de couro; um cabo de madeira, medindo um pé de comprimento, do qual saem finas tiras de couro cru, às vezes retorcidas, às vezes ennodadas, tiras que podem sommar até septe ou oito, segundo o que o Sr. Vargas lera em Debret. Quanto mais resequido o couro, mais as tiras maltractam as carnes do suppliciado; e, sendo esse o objectivo maior do castigo, tão logo começam as tiras a admollescer, embebidas no sangue que brota dos lanhos, o carrasco substitue o chicote usado por um novo, que para tanto ha um estoque delles à mão.” Conclue o lorde sua palestra enaltescendo as virtudes, no caso de funcções privadas, do chicote de equitação e, mais especificamente, das flexiveis e resistentes varas de marmelo, communs em terras brazileiras, ou de betula, empregadas pelos londrinos. “O effeito didascalico é identico ao de pesados azorragues e vergalhos, com a vantagem de, graças à leveza e à agilidade de movimentos que propicia, prestarem-se 143
ao manuseio das delicadas mãos femininas enluvadas em couro, como é de praxe nas sessões do nosso accolhedor clube... Thank you!” Sendo os panegyricos ao Club Propedeutico o fecho habitual das conferencias de Steppingstone, descontraem-se os presentes em risos, ja esboçando as primeiras palmas. Tão logo D. Clementina tece os invariaveis commentarios à “soberba rhetorica” do lorde, este encaminha o uso da palavra, que se revezará a partir da pianista, como sempre. Rosa se appruma na poltrona e endireita um maço de folhas annotadas, battendo-as de leve contra o tampo da mesa lateral. Varios tomos encadernados passam de mão em mão, entre goles de vinho e mordiscadas nos petiscos offerescidos pela dona da casa. Leopoldo faz circular entre os participantes seu maior thesouro, a brochura clandestina de NOITE NA TAVERNA, da qual Pederneiras certamente guarda em casa outro exemplar em melhor estado de conservação; a obra posthuma do auctor maldicto só viria à luz officialmente dalli a oito annos, mas ja é divulgada entre os iniciados desde a decada de 50. Emquanto não chega a vez de Leopoldo, a versatil D. Rosa, que tem algo de argentina por parte de mãe, informa que lerá, para começar, a traducção de sua lavra de um poema gauchesco do tempo das guerras cisplatinas: “O Sr. Vargas tem lido muita coisa do marquez de Sade, mas, como ha sempre quem conteste a veracidade de taes textos ou os accuse de exaggerados, quero que todos vejam de que maneira um poeta sulamericano retracta o prazer de torturar. Note, meu caro lorde, o sarcasmo com que se associam actividades recreativas, como a musica e a dansa, ao acto de lynchar o inimigo capturado!” E passa à leitura, conduzida sob falso sotaque portenho: 144
Tu, gaucho cavallar,
não perdes por esperar: vou mostrar-te como soa esta musica tão boa! Repara na partitura
e consolo em Deus procura,
pois teu fim não ha quem chore-o nem quem reze em teu velorio!
Quando aggarro um unitário
dou-lhe tractamento hilario:
peço adjuda aos companheiros,
que tambem são “mazorqueiros”; admarramol-o até vel-o, cotovello a cotovello
pendurado, e desnudado
fica, para nosso aggrado!
Immovel como uma estacca, piccado à poncta de faca em desespero elle berra,
mas cantamos “guerra é guerra” e sem acompanhamento
fazemos um barulhento
concerto, animando a festa a que a victima se presta!
Cutucado de cutello,
seu contorcionismo é bello e risadas nos desperta;
quando a ponctaria é certa 145
a pedra lhe attinge um olho; mas alvo diverso excolho
e os colhões, com que sucesso por estrepes attravesso!
Emquanto o chicote estala
e a perna é varada a balla, abbafamos o seu choro
cantando refrões em coro! Si estivesse com a gente, nosso amado presidente cahia na gargalhada
ao ver o que mais lhe aggrada!
É momento, finalmente,
em que cremos conveniente, depois que nos divertimos inventando tantos mimos,
dar-lhe um ultimo carinho e à tarefa me encaminho:
posto de gattas, ao lombo
monto-lhe e do azar lhe zombo.
Alegra-nos que elle brade aos sanctos, por piedade,
que seu fim lhe chegue breve mas em versos quem descreve a scena não pode dar idéa de quanto esgar
de dor o rosto lhe entorta emquanto a lamina corta!
146
Abbaixo da orelha cravo meu punhal, e escuto um “Bravo!” da bocca dos companheiros, e com dois golpes certeiros a veia a fundo lhe furo do pescoço, e nesse appuro revira os olhos ja cegos pelos espinhos e pregos! O selvagem se exvahindo em sangue, que quadro lindo! Logo extende-se e estertora ao approximar-se a hora! Exspirando, ‘inda nos serve de motivo para a verve si pisassemos-lhe a face para que mais se humilhasse! Como vês, bugre covarde, não excappas, cedo ou tarde, de teres cortada a orelha que, de sangue ‘inda vermelha, servir-nos-a de troféu E, antes de no belleléu ires dar com o costado, darás “Viva!” ao Federado...
Roger commenta laconicamente: “Excellente, D. Rosa! Permitta-me resalvar, entretanto, que será sempre preferivel a desnecessidade de mutilações e execuções, pois, na nossa perspectiva, o meio é o fim...” 147
“Digamos que seria desnecessario quando fosse conveniente...”, accapta, em termos, o mulato, piscando para a declamadora. Durante a appresentação de D. Rosa, o volume de NOITE NA TAVERNA demora-se nas mãos de D. Vicentina, que pouco falla mas sabe bisbilhotar. Não é que a memorialista, folheando a manuseada edição, percebe que, alem da pagina marcada no poncto em que Leopoldo irá abril-a, outras passagens estão gryphadas e annotadas? Detendo nestas os olhinhos clinicos, ella se depara com o trecho mais caro ao mancebo, cuja leitura elle tem motivos pessoaes para evitar. Tracta-se do conto “Johann”, cujo protagonista viola a propria irman e depois macta o irmão, sem reconhescel-os no escuro:
{Adjoelhou-se. À vista daquelle moço de joelhos -talvez sobre um tumulo -- lembrei-me que eu tambem tinha mãe e uma irman... e que eu as exquescia. Quanto a amantes, meus amores eram como a sede dos cães das ruas, saciavam-se na agua ou na lama... Eu só amara mulheres perdidas. Aquelle homem -- sabeil-o!?... era do sangue do meu sangue, era filho das entranhas de minha mãe, como eu... era meu irmão! Uma idéa passou entre meus olhos como um anathema. Subi anxioso ao sobrado. Entrei. A moça desmaiara de susto ouvindo a lucta. Tinha a face fria como o marmore. Os seios nus e virgens estavam parados e gelidos como os de uma estatua... A forma de neve eu a sentia meia nua entre os vestidos desfeitos, onde a infancia assellara a nodoa de uma flor perdida. Abri a janella, levei-a até ahi... 148
Na verdade que sou um maldicto! Olá, Archibald, dáme um outro coppo, enche-o de conhaque, enche-o até à borda! Vede!... Sinto frio, muito frio... tremo de calafrios e o suor me corre nas faces! Quero o fogo dos espiritos! A ardencia do cerebro ao vapor que tonteia... quero exquescer! -- Que tens, Johann? Tiritas como um velho centenario! -- O que tenho? O que tenho? Não o vedes pois? Era minha irman!}
Outro fragmento assignalado está no conto “Claudius Hermann”, no poncto em que o raptor, appós ter narcotizado e tirado proveito de uma joven aristocrata, pede-lhe perdão nestes termos:
{Perdoae-me, senhora, aqui me tendes a vossos pés! Tende pena de mim, que eu soffri muito, que ameivos, que vos amo muito! Compaixão! Que serei vosso escravo, beijarei vossas plantas, adjoelhar-me-ei à noite à vossa porta, ouvirei vosso resomnar, vossas orações, vossos sonhos... e isso me bastará... Serei vosso escravo e vosso cão, deitar-me-ei a vossos pés quando estiverdes accordada, velarei com meu punhal quando a noite cahir, e, si algum dia, si algum dia vós me puderdes amar... então... então...}
Entrementes, o mestiço toma a palavra e explica o contehudo da folha de papel que tem nas mãos: “Amigos, bem lembra D. Rosa que tenho insistido na leitura de Sade. Desta vez, para variar mas sem me 149
affastar da questão, trago aqui um excerpto de rara obra gentilmente indicada pelo Dr. Pederneiras: intitula-se MANUEL THÉORIQUE ET PRATIQUE DE LA FLAGELLATION DES FEMMES ESCLAVES, e foi impressa no seculo passado a partir de um manuscripto hespanhol vertido para o francez. Observem, caros ouvintes, que na privacidade, como quer Lord Steppingstone, o carrasco tem condição de usufruir mais satisfactoriamente da sensualidade despertada pela subjeição da victima, do que si esta fosse sacrificada numa festividade publica. É disto que tracta o referido manual: de como os senhores de escravos podem, por meio do açoite, obter a complacencia sexual das negras. Eis o trecho em que o autor recommenda que a escrava recalcitrante seja açoitada, à razão de duas vezes ao dia, durante um mez, até que execute, sem reclamar, os favores buccaes que a mais appaixonada das cortezans recusaria conceder ao amante preferido.” E Vargas profere as palavras com estudada affectação:
{Ainsi au bout de peu de jours la jeune fille était domptée et elle m’accordait tout ce que j’attendais d’elle, y compris certaines faveurs bucales que les femmes refusent à leurs amants les plus adorés. J’aurais appelé des négresses à corriger mon indocile esclave que, certainement, nous en serions restés à l’usage insuffisant du fouet ordinaire, alors que les autres fouets m’ont rendu le plus heureux des maîtres de chair servile.}
Prosegue Vargas: “Appenas mais um paragrapho, amigos: notem como, appós a fellação, o senhor apperfeiçoa o processo de submissão da mulher empregando este methodo que considera efficaz: 150
{Le plus souvent, la femme reçoit le fouet sur le chevalet, maintenue dans une position telle que sa pudeur en est atteinte cruellement. Il n’est aucun de ses charmes qui ne soit ainsi mis en évidence, bien malgré elle, et elle sent parfaitement que l’étalement de sa croupe rebondie provoque les convoitises de ses bourreaux. Or rien n’est plus pénible pour une femme que de faire naître des désirs contre sa volonté.}
Segue-se um ligeiro debatte. D. Clementina, alli a unica a fallar francez fluente e que mentalmente sempre corrige a pronuncia do Vargas, troca em mehudos o sentido de alguns termos que provocam o interesse do lorde. Conforme as palavras vão sendo acclaradas, pipocam as gargalhadas, nenhuma tão expalhafactosa quanto a do proprio mulato, empenhado em mostrar-se familiarizado com o idioma. Dalli a pouco é Mauro de Moura quem entra a declamar seus próprios poemas, todos pertinentes ao thema e vazados no mediocre teor deste:
“MEU FLAGELLO” Som mais typico e excitante
não conhesço, nem mais bello que na carne toque e cante: os estalos do flagello!
Quando está sob o meu guante, com seus golpes desmantello o orgulho mais arrogante,
que se humilha ao meu flagello! 151
Heroes choram num instante quando a seu recurso appello: são covardes ja, perante as lambadas do flagello! Seja o couro que eu levante, seja a vara de marmelo, não ha valente ou gigante quando desce o meu flagello! Eis por que sou governante, este algoz que me revelo: não achei lei que suplante o poder do meu flagello!
D. Vicentina dá-se compta de que o Moura ja conclue sua intervenção; interrompe nesse poncto o exame da obra de Alvares de Azevedo e passa-a addeante. Quando o livro volta às mãos de Leopoldo, é aberto na pagina marcada e lido com a voz cavernosa que o mancebo não precisa forçar demais para que saia convincente: “Lerei primeiro o conto que leva o nome do personagem Bertram; em seguida, o conto narrado pelo personagem Gennaro. Peço que reparem na attitude perfida de ambos, que corneiam os homens que os protegem e ainda lhes tramam a morte, depois de confrontal-os com a humilhação. Não encontraremos aqui allusões ao açoite, visto que o punhal é o instrumento favorito do auctor, mas podemos constatar que, como tem sido resaltado nesta reunião, a desgraça de uns serve ao regozijo de outros...” 152
E o mancebo alteia o tom nesta parte de “Bertram”, quando os personagens são ja naufragos:
{Dois dias depois de accabados os alimentos restavam trez pessoas: eu, o commandante e ella. -- Eram trez figuras macilentas como o cadaver, cujos olhares fundos e sombrios se injectavam de sangue como a loucura. O uso do mar -- não quero dizer a voz da natureza physica, o brado do egoismo do homem -- manda a morte de um para a vida de todos. Tiramos a sorte... o commandante teve por lei morrer. Então o instincto de vida se lhe despertou ainda. Por um dia mais de exsistencia, mais um dia de fome e sede, de leito humido e varrido pelos ventos frios do norte, mais umas horas mortas de blasphemia e de agonia, de esperança e desespero, de orações e descrença, de febre e de anxia, o homem adjoelhouse, chorou, gemeu a meus pés... -- Olhae, dizia o miseravel, esperemos até admanhan... Deus terá compaixão de nós... Por vossa mãe, pelas entranhas de vossa mãe! Por Deus si elle exsiste, deixae, deixae-me ainda viver! Oh! A esperança é pois como uma parasita que morde e despedaça o tronco, mas quando elle cae, quando morre e appodresce, ainda o apperta em seus convulsos braços! Esperar! Quando o vento do mar açoita as ondas, quando a escuma do oceano vos lava o corpo livido e nu, quando o horizonte é deserto e sem termo e as velas que branqueiam ao longe parescem fugir! Pobre louco! 153
Eu ri-me do velho. Tinha as entranhas em fogo. Morrer hoje, admanhan, ou depois... tudo me era indifferente, mas hoje eu tinha fome, e ri-me porque tinha fome. O velho lembrou-me que me accolhera a seu bordo, por piedade de mim, lembrou-me que me amava... -- e uma torrente de soluços e lagrymas affogava o bravo que nunca empallidescera deante da morte. Paresce que a morte no oceano é terrivel para os outros homens: quando o sangue lhes salpicca as faces, lhes ensopa as mãos, correm à morte como um rio ao mar, como a cascavel ao fogo. Mas assim... no deserto das aguas... elles temem-na, tremem deante dessa caveira fria da morte! Eu ri-me porque tinha fome. Então o homem ergueu-se. A furia se levantou nelle com a ultima agonia. Cambaleava, e um suor frio lhe corria no peito descarnado. Appertou-me nos seus braços amarellentos, e luctamos ambos corpo a corpo, peito a peito, pé por pé... por um dia de miseria! A lua amarellada erguia sua face desbotada, como uma meretriz cansada de uma noite de devassidão, o céu escuro parescia zombar desses dois moribundos que luctavam por uma hora de agonia... O valente do combatte desfallescia... cahiu: puz-lhe o pé na garganta, suffoquei-o e exspirou... Não cubraes o rosto com as mãos -- farieis o mesmo... Aquelle cadaver foi nosso alimento dois dias... Depois, as aves do mar ja baixavam para partilhar 154
minha presa; e às minhas noites fastientas uma sombra vinha reclamar sua ração de carne humana... Lancei os restos ao mar... Eu e a mulher do commandante passamos um dia, dois, sem comer nem beber... Então ella propoz-me morrer commigo. -- Eu disse-lhe que sim. Esse dia foi a ultima agonia do amor que nos queimava: gastamol-o em convulsões para sentir ainda o mel fresco da voluptuosidade banhar-nos os labios... Era o gozo febril que podem ter duas creaturas em delirio de morte. Quando soltei-me dos braços della a fraqueza a fazia desvairar. O delirio tornava-se mais longo, mais longo, debruçava-se nas ondas e bebia a agua salgada e offerescia-m’a nas mãos pallidas dizendo que era vinho. As gargalhadas frias vinham mais de entuviada...}
Na leitura de “Gennaro”, Leopoldo põe emphase nestes paragraphos:
{O velho assentou a lanterna num rochedo, despiu a cappa e disse-me: -- Gennaro, quero contar-te uma historia. É um crime, quero que sejas juiz delle. Um velho era casado com uma moça bella. De outras nupcias tinha uma filha bella tambem. Um apprendiz -- um miseravel que elle erguera da poeira, como o vento às vezes ergue uma folha, mas que elle podia reduzir a ella quando quizesse... 155
Eu extremesci, os olhares do velho paresciam ferirme. -- Nunca ouviste essa historia, meu bom Gennaro? -- Nunca! -- disse eu a custo e tremendo. -- Pois bem, esse infame deshonrou o pobre velho, trahiu-o como Judas ao Christo. -- Mestre, perdão! -- Perdão! E perdoou o malvado ao pobre coração do velho? -- Piedade! -- E teve elle dó da virgem, da deshonrada, da infanticida? -- Ah! -- gritei. -- Que tens? Conhesces o criminoso? A voz de excarneo delle me abbafava. -- Vês pois, Gennaro, disse elle mudando de tom, si houvesse um castigo peor que a morte, eu t’o daria. Olha esse despenhadeiro! É medonho! Si o visses de dia, teus olhos se escuresciam e ahi pullarias talvez de vertigem! É um tumulo seguro; e guardará o segredo, como um peito o punhal. Só os corvos irão la ver-te, só os corvos e os vermes. E pois, si 156
tens ainda no coração maldicto um remorso, reza tua ultima oração, mas que seja breve. O algoz espera a victima, a hyena tem fome de cadaver... Eu estava alli pendente juncto à morte. Tinha só a excolher o suicídio ou ser assassinado. Mactar o velho era impossivel. Uma lucta entre mim e elle fora insana. Elle era robusto, a sua estatura alta, seus braços musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo secco. Demais, elle estava armado. Eu... eu era uma creança debil: ao meu primeiro passo elle me arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava... Só me restaria morrer com elle, arrastal-o na minha queda. Mas para que? E curvei-me no abysmo: tudo era negro, o vento la gemia embaixo nos ramos desnuados, nas urzes, nos espinhaes resequidos, e a torrente la chocalhava no fundo escumando nas pedras. Eu tive medo. Orações, admeaças, tudo seria debalde. -- Estou prompto, disse. O velho riu-se: infernal era aquelle rir dos seus labios estalados de febre. Só vi aquelle riso... Depois foi uma vertigem... o ar que suffocava, um peso que me arrastava, como naquelles pesadellos em que se cae de uma torre e se fica preso ainda pela mão, mas a mão cansa, fraqueja, sua, exfria... Era horrivel: ramo a ramo, folha por folha os arbustos me estalavam nas mãos, as raizes seccas que sahiam pelo despenhadeiro estalavam sob meu peso e meu peito sangrava nos espinhaes. A queda era muito rapida... 157
de repente não senti mais nada... Quando accordei estava juncto a uma cabana de camponezes que me tinham appanhado juncto da torrente, preso nos ramos de uma azinheira gigantesca que assombrava o rio. Era depois de um dia e uma noite de delirios que eu accordara. Logo que sarei, uma idéa me veiu: ir ter com o mestre. Ao ver-me salvo assim daquella morte horrivel, pode ser que se appiedasse de mim, que me perdoasse, e então eu seria seu escravo, seu cão, tudo o que houvesse mais abjecto num homem que se humilha -- tudo! -- comtanto que elle me perdoasse. Viver com aquelle remorso me parescia impossivel. Parti pois: no caminho topei um punhal. Ergui-o: era o do mestre. Veiu-me então uma idéa de vingança e de soberba. Elle quizera mactar-me, elle tinha rido à minha agonia, e eu havia ir chorar-lhe ainda aos pés para elle repellir-me ainda, cuspirme nas faces e admanhan procurar outra vingança mais segura?... Eu humilhar-me quando elle me tinha abbattido! Os cabellos me arrepiaram na cabeça, e suor frio me rollava pelo rosto.}
Leopoldo conclue a leitura, referendada pelo lorde com um laconico “Not bad!”. Por alguns minutos todos se empenham em considerações sobre a inevitavel presença do impulso sexual em todas as situações narradas, como a querer dizer que o prazer, assim como a dor, nunca prescinde do gozo venereo. Rosa é quem mais insiste nessa these. Agora a palavra está com o Lyra, outro dos poetas habituaes nessas reuniões. Um de seus poemas é o sonnetto que vae transcripto a seguir. 158
“ORAÇÃO AO LATEGO” Uma por uma, do chicote as dores supporto, cada qual mais dolorida! Uma por uma, no correr da vida, despiram-me dos brios e pudores! Extranho-te, ó chibata, si não fores cruel, e cada vez mais, à medida que minha rouca voz ja não revida teus golpes com meus odios e rancores! Do mundo as illusões perdi, funestas, Ao noitejar da edade, na tortura... Só tu, severo latego, me restas! Comtigo a vida eterna em mim perdura! Ninguem traz cicatrizes que nem estas que guardo e levo alem da sepultura!
Chega emfim o momento de trazer à berlinda o novo integrante. Leopoldo é convidado pelo lorde a relatar alguma experiencia pessoal de castigo physico, soffrido ou applicado por elle. “Com uso do açoite?”, pergunta o entrevistado. “Preferencialmente.”, responde o inglez. O mancebo pensa um pouco, talvez não para procurar na memoria, mas para excolher, e se reporta a uma scena de infancia, ainda na fazenda paulista dos paes -certamente menos litteraria que a do livro de Orwell ou da canção dos Kinks: 159
“Bem, lembro-me de muitas daquellas desculpaveis malvadezas da meninice, que para os humanistas seriam provavelmente irreparaveis crueldades, mas para um, como direi... didascalico (olha para Laura, que sorri significativamente) não passa de precocidade vocacional, não é certo? Pois bem, desde os cinco annos até a adolescencia fui um verdadeiro cappeta. Meus jogos e brinquedos eram mactar passarinho, maltractar animaes domesticos, torturar insectos e, principalmente, judiar dos moleques. Mesmo nas brincadeiras mais innocentes minha crueldade infantil ja se manifestava, como no jogo do belliscão, que me offerescia a opportunidade de aggarrar de rijo a irman, as primas e os crias da casa. Creio que todos se lembram da cantiga:
Uma, duas, angolinha, finca o pé na pampolinha! O rapaz, que jogo faz? Faz o jogo do gamão! Manda la Mané João que retire o seu pezinho, que la vae um bel-lis-cão!
Por traz destes singellos versinhos estava uma terrivel gana de attingir qualquer um na roda que me cahisse nas unhas. Si da parte dos crias o belliscão era medroso e respeitoso, da minha parte era dado com toda a força, e bem torcido. Ora, certa vez um dos negrinhos, pouco mais velho do que eu, quiz revidar quando o bellisquei, e desde então me encarnicei contra elle, que virou meu leva-pancada, meu manégostoso, meu arre-burrinho, meu gatto-sapato, em quem desforrei de tudo que me contrariava: deveres, 160
castigos, remedios, vontades não satisfeitas pelos meus paes... Todo filho de fazendeiro ganha um moleque por companheiro de folguedos, mas o meu foi mais judiado que um escravo adulto nas mãos do feitor deshumano. O galho de goyabeira fazia o papel de chicote no jogo de carro-de-cavallo: com as mãos e os joelhos no chão, o moleque levava um chordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao lombo, com a varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas por toda a casa, e elle obedescia, -- algumas vezes gemendo -- mas obedescia sem dizer palavra, ou, quando muito, um {Ai, nhonhô!} -- ao que eu retorquia: {Cala a bocca, besta!} Algum tempo depois, elle se rebellou de novo, e desta vez, admeaçando denuncial-o a meu pae, obriguei-o a lamber tudo o que excarrei no chão; emquanto elle obedescia, puz-me a pisar em sua nucha e a vibrar-lhe a varinha nas costas... Naquella tarde devo ter ficado com a bocca secca de tanto cuspir, e sempre que me recordo disso tenho vontade de rir-me, como me ri naquella occasião...” Applausos. Laura abre um sorriso enternescido; Rosa ergue o coppo, enthusiasmada; Vargas, refestelado na poltrona, ballança com satisfacção o pé direito appoiado no joelho esquerdo; Vicentina appressa-se a fazer novas annotações. “E na adolescencia? (quer saber D. Rosa) Quem foi sua victima predilecta?” “Ja não fui, naquella phase, tão endiabrado. (responde o mancebo) Appenas me iniciei, como era natural, practicando pequenos abusos sobre as escravas...” “Que especie de abusos?”, insiste a poetiza. “Digamos que eram precisamente aquelles que lhes 161
mantinham a bocca calada...” E Leopoldo timidamente, emquanto os demais gargalham.
sorri
“Mas Sr. Castro... Mais recentemente, nenhum caso semelhante ao episodio da infancia?”, indaga o lorde. Leopoldo nada tem desse teor para relatar, que lhe venha à lembrança a partir de quando chega à Corte... mas occorre-lhe uma alternativa: “Posso narrar uma anecdota envolvendo instrumento de castigo corporal?” “Qual instrumento?”, interessada.
pergunta
Rosa,
outro
vivamente
“A palmatoria.” “Well... Paresce interessante. (diz o inglez) Como foi ella utilizada?” “Na salla de aula. Como sabem, sou professor. Hoje ensigno historia, geographia e outras materias em um collegio de bom nivel, mas ha alguns annos, logo que cheguei à Corte, fui mestre em escholas de arrabalde, leccionando para meninos com edade ao redor dos septe annos. Era preciso ser bruto para educar creanças daquella especie. Batter é um habito do officio, mas confesso que batti por gosto.” “Ah! Magnifico! Este é o poncto!”, appoia o Vargas. “Para impor auctoridade (prosegue Leopoldo), eu costumava então fallar aos berros na aula, como si 162
dirigisse uma boiada. Quando me excedia um pouco no vinho, ficava mais impiedoso. Todos os pequenos da aula me tinham birra. Em mim enxergavam o carrasco, o tyranno, o inimigo e não o mestre; mas, visto que qualquer manifestação de antipathia redundava fatalmente em castigo, as marotas creanças fingiamse satisfeitas; riam muito quando eu dizia alguma chalaça, e affinal, coitadas, iam-se habituando ao servilismo e à bajulação. Os paes severos, viciados pelos costumes barbaros da terra, accommodados pelo habito de lidar com escravos, entendiam que eu era o unico professor capaz de endireitar os filhos. Elogiavam-me a rispidez, recommendavam-me sempre que {não passe a mão pela cabeça dos rapazes} e que, quando fosse preciso, dobrasse por compta delles a {dose de bollos}: mais tarde os meninos haviam de aggradescer aquellas palmatoadas, no entender desses paes. Ora, um dos alumnos da minha turma, chamado João Miranda, era tido e havido pelo peor dos meninos da classe, pelo mais attrevido e insubordinado; por isso inspirou-me exemplar tractamento. Um de seus colleguinhas era rapazito egualmente implicante e levado dos diabos; assentava-se ao lado do Miranda, com quem vivia sempre de turra. Um dia pegaramse mais seriamente. Creio que ambos teriam então seus oito annos. Estava a coisa ainda em palavras, quando entrei na salla, e os dois contendores tomaram à pressa os seus competentes logares. Fezse respeito. Todos os meninos começaram a estudar em voz alta, com affectação. Mas, de repente, ouviu-se o estalo de uma bofetada. Houve rumor. Levantei-me, toquei uma campainha, que usava para esses casos, e syndiquei do facto. Joãozinho foi o unico accusado. {Sr. Miranda! (gritei-lhe) Por que expancou aquelle menino?} Miranda respondeu humildemente que o menino insultara sua mãe. {É mentira!} (protestou o novo accusado) {Que disse elle?!} (perguntei) Miranda repetiu o insulto que recebera. Toda a classe 163
rebentou em gargalhadas. {Cale-se, attrevido! (berrei enfurescido, a tocar a campainha) Mariola! Dizer tal coisa em pleno recincto de aula!} E, puxando a pura força o delinquente para juncto de mim, ferrei-lhe meia duzia de palmatoadas. Miranda, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva. {Ah! Elle é isso? (exclamei) Tens genio, tractante?! Ora, espera! isso tira-se.} E voltando-me para o rapazito que levou a bofetada, entreguei-lhe a ferula e disse-lhe que applicasse outras tantas palmatoadas no Miranda. Este declarou formalmente que não se submettia ao castigo. Tentei submettel-o à força; Miranda não abriu as mãos. Os dedos paresciam collados contra a palma. Impaciente com tal contrariedade, fiquei nervoso e deixei excappar uma phrase comparavel ao insulto que pouco antes provocara tudo aquillo. Miranda recuou dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora na cara do proprio mestre! Em seguida, deitou a fugir, correndo. Um {Oh!} formidavel encheu a salla. Encholerizado, ordenei que prendessem o attrevido. A turma ergueu-se em peso, com grande desordem. Cahiram bancos e derramaram-se tincteiros. Todos os meninos abbraçaram sem hesitar a causa do mestre, e Miranda foi aggarrado no corredor quando ia alcançar a rua. Mas quattro ponctapés puzeram em fuga os dois primeiros rapazes que lhe encostaram a mão. Dois outros accudiram logo e o seguraram de novo, depois vieram mais trez, mais oito, vinte, até que todos os quarenta ou cincoenta estudantes o trouxeram à minha presença, alegres, victoriosos, risonhos, como si houvessem alcançado uma gloria. Miranda soffreu novo castigo; serviu de excarneo aos seus condiscipulos e, quando chegou a casa, o pae, informado do que succedera na eschola, deu-lhe ainda uma boa sova e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, a mim e ao menino da bofetada!” Approvação geral. O caso narrado por Leopoldo é 164
objecto de commentarios accalorados, entremeados de risos e interjeições euphoricas. Rosa volta-se para o narrador e inquire, melliflua: “Qual foi a impressão que lhe ficou desse episodio, Sr. Castro?” Leopoldo usa de franqueza: “A partir daquelle instante, reconsiderei todo o resquicio das noções de justiça e de honra que ainda nutria com relação a qualquer actividade pedagogica. Percebi que desde a edade escholar ja se manifesta alguma forma de odio systematico dos meninos pelos seus semelhantes e superiores. Pudera! Pois si até o proprio pae do Miranda, directamente offendido na questão, abbraçara a causa mais forte!...” O lorde approveita a conclusão offerescida pelo professor para encaminhar o thema até o previsivel desfecho: “Well... A crueldade sempre triumpha sobre a fraternidade, e a crueldade do mais forte sempre triumpha sobre a do mais fracco, visto que, alem da fraternidade, tambem a egualdade e a liberdade estão subjeitas ao interesse da auctoridade. Comtudo, meus amigos, jamais percamos de vista que os limites da crueldade residem precisamente na linha divisoria entre a vida publica e a privada. Em publico a crueldade se restringe ao socialmente acceito; na privacidade, a crueldade pode ser exercitada mais espontaneamente... mas ainda assim sob alguma regra. Eis por que mantemos nosso Clube, de cujo quadro social o Sr. Castro ja está convidado a fazer parte.” Leopoldo, que appenas agguarda aquella proposta formal para ingressar no mundo de Laura, aggradesce commovido, sob o olhar maternal e cumplice de Mme. Fragonard, que dá ordem ao coppeiro grisalho para que sirva o cha. Emquanto se troca a bandeja vazia por outra bem abbastescida de torradas, Rosa de 165
Albuquerque senta-se novamente ao piano e retoma os nervosos exercicios que abriram a noite com aquella sugestiva atmosphera de desinhibição estudada.
166
15 CHARTAS SOB A MESA
Refere o historiador que “A Debret impressionara o facto, no Rio de Janeiro que elle conhescera em 1816, de haver tanta loja de sapateiro numa cidade onde cinco sextos da população eram, então, formados por individuos que caminhavam pelas ruas sem sapatos. Explicava-se o apparente absurdo: as senhoras brazileiras usavam sapatos de seda extremamente delicados. Postos em contacto, mesmo breve, com as calçadas asperas, rompiam-se facilmente, exigindo consertos das mãos dos sapateiros. Ou novos sapatos. Notou o francez que as mulheres brazileiras tinham de ordinario lindos pés: {(...) les femmes généralement favorisées d’un très joli pied...} Pés que ellas ou os homens, seus donos ou senhores -- paes, maridos, amantes – tinham extremo gosto em revestir de seda. Os sapatinhos das yayás da era colonial tinham sido principalmente brancos, roseos, azues; depois de 1823, notou Debret que tornaram-se moda os verdes e amarellos: cores imperiaes ou nacionaes.” São onze horas da manhan. Amelia estuda ao piano os exercicios de Hertz. As janellas cerradas deixam entrar frouxa claridade, coada pela cassa transparente das cortinas. Nesse crepusculo artificial a belleza da moça toma uns tons suaves e meigos, que mais seduzem. Os lindos cabellos, ainda humidos do banho, cobrem-lhe as espaduas de uma tunica de 167
velludo castanho. O baju de cassa, que traz no seu desallinho matutino, conchegado à cutis, colore-se com os reflexos rosados do collo mimoso. Tanta graça e formosura, realçadas pela singelleza do traje e pela naturalidade da posição, ficam alli occultas na doce penumbra da salla e recaptadas à admiração. Às duas horas Amelia costuma subir à sua alcova para se pentear; e o gracioso desallinho desapparesce, substituido por um traje mais appurado e elegante. O romancista da epocha assim se refere ao flagrante da intimidade de Amelia: “Tantas moças despendem um advultado cabedal de sorrisos, de olhares e gestos, e põem em contribuição a seda, a renda e a moda para realçarem sua formosura! Mal sabem, entretanto, que nunca são ellas tão bonitas e feiticeiras como em certo momento de seductora negligencia, quando paresce que a belleza desabbrocha de seu gracioso botão.” A porta da salla abre-se e dá entrada ao Sr. Salles. O adspecto do negociante é grave; mas da gravidade serena que annuncia uma preoccupação aggradavel. Traz na mão uma charta aberta. Amelia assusta-se vendo entrar na salla o pae, que ella suppõe na cidade. Como todos os negociantes, o Sr. Pereira Salles passa a manhan em seu escriptorio; parte logo depois do almosso e só volta à hora do jantar. A surpresa da moça é pois natural. “Ah! Papae! (exclama ella, voltando-se ao rumor da porta) Ja veiu do escriptorio?” “Ainda não fui. (responde Salles sorrindo) Recebi uma charta, que me obrigou a demorar-me até agora 168
para conversar com tua mãe e... comtigo, a quem o objecto mais interessa.” “A mim? O que será, papae? Algum convite de baile?” “Lê!”, diz o negociante appresentando-lhe a charta. Amelia corre os olhos pelo papel, e seu rosto cobrese de vivos rubores. O coração palpita-lhe com tanta força que debuxa no linho o contorno dos lindos seios. A charta pede ao negociante a mão da filha. Accabando de a ler, a moça, de olhos baixos e corpo tremulo, paresce vendar-se com sua innocencia para subtrahirse ao olhar terno e curioso de seu pae. Nesse momento ella deseja, si possivel fosse, esconder-se dentro de si mesma. “Que devo eu negociante.
responder,
Amelia?”,
pergunta
o
“O que papae quizer!”, balbucia a menina. “Estás bem certa de que meu desejo é o teu? Si eu não acceitar a honra que elle nos quer fazer?” As palpebras da moça erguem-se, desvendando seus olhos limpidos. “Papae não acha bom?” “Si elle te for indifferente, eu por mim não tenho grande empenho. É um excellente moço; tem familia respeitavel; tem posses; mas anda em tantas rodas...” 169
“Que rodas, papae?” “De moços da moda.” “Porque é solteiro. Mas são sempre frequentadas, de gente distincta...”
rodas
bem
“La isso é... Então, o que decides?” “Desde que papae e mamãe desejam, eu...” “Nós não desejamos coisa alguma; queremos saber tua vontade.” Amelia emmudesce. “Bem, ja vejo que não é de teu gosto. Vou responder ao homem com um {não}...” Salles encaminha-se para a porta. “Mas, papae!...”, murmura a moça. “Que temos?... Falla, que ja me demorei muito. Quasi meio-dia!” “Vae responder ja?” “Ja.” “Deixe para admanhan.” 170
“Nada; são coisas que se decidem logo.” “O que vae responder então?” “Que não.” “Mas eu não disse isto!” “Tu nada disseste.” “Pois si eu não gostasse, diria logo.” “Ah! Neste caso, gostou?” Amelia sorrindo accena com a cabeça. “Não entendo esta linguagem. Vamos a saber. Amas o rapaz?” A moça faz um supremo exforço: “Amo!”, diz ella escondendo o rosto no seio do pae. O negociante beija-a na fronte com ternura e carinho. “Ah! Minha sonsa, não querias confessar o que tinhas aqui dentro deste coraçãozinho! E eu que pensava que elle só nos visita porque é amigo da familia...” “Oh! Papae!” “Bem, bem, não tenho objecção! Vae consolar tua mãe, 171
que eu vou responder ao homem mais feliz deste Rio de Janeiro.” O negociante volta para o gabinete, e Amelia dirigese ao interior da casa. Sua mãe está no quarto, com os olhos ainda humidos de lagrymas. “Quem não conhesce essas lagrymas abbençoadas, que a mãe derrama pelos filhos, e que são balsamos para as afflicções e orvalhos para as flores da ventura?”, commenta o romancista. D. Leonor beija a filha e estreita-a ao seio como receosa de que lh’a arranquem dos braços. Seu coração ora alegra-se com a felicidade proxima da moça, ora se entristesce com a lembrança da separação. De repente Amelia sobresalta-se com uma idéa que lhe accode; e deixando a mãe, corre ao gabinete do negociante. Acha-o sentado à escrivaninha, passando, por cyma da charta que terminara, um rollete de mactaborrão. O pae sorri vendo entrar a filha. “Curiosa!” “Ja accabou?”, diz a moça, recostando-se com gentileza à poltrona capitonada. “Vê si está de teu gosto.”, diz o Salles cingindo-lhe a cinctura com o braço. Amelia lê a charta rapidamente; ella ja sabe de antemão que falta alguma coisa. “Então, que tal?”, pergunta o negociante com certo desvanescimento. 172
“Está muito boa, papae. Só acho uma coisa.” “O que?” O negociante soffre uma decepção. Pensa ter feito uma obra-prima com aquella charta, escripta em seu mais bello estylo commercial, mas recheada de alguns rasgos sentimentaes. “Não acha, papae, que elle ficará todo cheio de si, obtendo logo, assim com tanta facilidade, o que deseja? A charta é de hoje; responder no mesmo dia... mostra muita vontade demais.” “Que mal ha nisso? Para que deixal-o na duvida, quando podes tornal-o feliz desde ja?” “Papae pensa que elle duvida?” “Ah! Ja sabe então! Muito bem!” “Eu não lhe disse nada, papae.” “Então como sabe elle? Adivinhou?” “Não adivinhou nada. Papae bem sabe como são esses senhores da moda; cuidam que todas as moças andam morrendo por elles, e que a difficuldade está somente em excolher. Como eu não quero que elle me julgue uma de suas conquistas, estou resolvida, papae, a pensar bem durante quinze dias, antes de dar a resposta.” “Portanto esta charta não serve...”, diz o Salles com um suspiro. 173
“Ha de servir, mas daqui a quinze dias. Agora papae deve dizer unicamente que, tendo-me consultado, eu pedi algum tempo para dar a resposta.” O negociante escreve, e Amelia espera até que siga a charta, confiada a um creado. Momentos depois, Salles sae para a cidade, e Amelia entra em sua alcova, descantando trechos de arias e romances. Não se pode dizer que esteja alegre, appesar do tom garrido com que modula, e do fresco riso que trina em seus labios. O que ella sente é um alvoroço intimo, uma soffrega agitação, estado indefinivel d’alma prurida por mil desejos e contida por mil receios. Vejamos si é possivel descobrir o que passa alli, dentro daquelle seio mimoso. Desvanescida a primeira commoção produzida pela charta, Amelia recorda-se do que tinha occorrido na vespera, e sobretudo das palavras insistentes de Horacio. Sua vaidade revolta-se, como é natural. “Hei de mostrar-lhe que não basta querer, para ter meu pezinho; e que não basta querer casar-se commigo para ter o direito de beijal-o...” Foi machinando uma licção para Horacio que ella se dirigiu ao gabinete do pae e addiou a resposta definitiva ao pedido de casamento. Eis qual é o estado de animo de Amelia: orgulho de ver subjugado a seus pés o rei da moda; prazer de o ter captivo de uma palavra sua durante muitos dias; arrependimento do que fizera; susto do que pode accontescer; gozo da ventura que sorri; incerteza de ser feliz com o marido, um homem que mal conhesce... 174
Taes são os sentimentos desencontrados que vibram na alma da moça. Nessa tarde Amelia prepara-se com maior exmero do que si fosse a um baile. Seu adorno simples, um modesto vestido branco com fitas azues, toma-lhe mais tempo do que não levaria a compor um traje sumptuoso. Ella espera Horacio para jantar... e para uma conversa reservada e decisiva. Passa boa parte da tarde, indo do sofá à janella, e da janella ao consolo, onde está a pendula de alabastro. As horas se excoam lentamente até que o tilbury do moço pare à porta do negociante. São perto de quattro horas. Amelia, ja prompta para o jantar, espera o moço trabalhando em um bordado de tapeçaria. A seu lado, em uma linda banca de costura forrada de pau-setim, ha, alem dos utensílios necessarios, uma profusão de seda frouxa de varias cores. No setim branco, extendido pelo elegante bastidor de mogno, vê-se o risco de um par de sandalias, que parescem destinadas a alguma fada, tão pequena, mimosa e delicada é a forma do pé. Um dos esboços está ainda intacto; no outro, porem, vê-se ja um florão de rosas bordadas a seda frouxa, e no centro a lettra A, feita com torçal de ouro. É naturalmente a inicial do seu nome, em cuja tenção a moça trabalha, talvez ja pensando no enxoval. Amelia está nesse dia mais formosa e seductora do que nunca. Certa expressão languida, ou de cansaço ou de melancholia, embota a flor de sua habitual lindeza, desmaiando o matiz dos labios e das faces, velando o brilho dos olhos pardos. Seu traje branco ainda mais admeiga a sua physiognomia. Segundo o 175
romancista, “Não ha para arrebattar os sentidos como essa languidez da mulher amada. Paresce que ella verga com exuberancia do amor, como a planta muito viçosa, quando concentra a seiva que não brota em flor. O homem querido se regozija, pensando que suas palavras e suas caricias podem, como os orvalhos celestes, reanimar e expandir o coração da mulher amada.” Talvez em Amelia não seja esse desmaio sinão o effeito da fadiga do baile, e das scismas decorrentes da charta recebida. Emquanto borda, o ouvido da moça attento espera algum rumor que lhe annuncie a chegada do galan. Um carro para à porta; e momentos depois soam na salla de visitas os passos de alguem. É Horacio. Vendo a moça na salleta proxima, o pavão dirige-se a ella, com a familiaridade a que lhe dá direito sua condição de supposto namorado... e pretenso pretendente, ja que a esta altura a resposta à charta terá sido entregue em mãos. Trocados os cumprimentos usuaes, senta-se juncto ao bastidor. “O que está bordando?” Amelia faz um gesto para cobrir o bordado: “Deixe ver!”, insiste o moço. “Não vale a pena!” “Ah!” 176
Esta exclamação desfaz-se nos labios do mancebo em um sorriso de jubilo. “É um presente...”, diz Amelia. “Não são para a senhora?” “São. Resolvi dar-me um presente, para commemorar...” “Commemorar o que? Anniversario?” “Não. Ainda não sei si será um casamento... ou uma brincadeira que estou planejando.”, responde a moça com ar de mysterio. “Está zombando commigo!” “Veja! Está bonito?” A unha de nacar da moça mostra o A bordado a ouro. “A senhora faz assim para me torturar?” “Eu? Só quero que imagine coisas...” “Lembra-se do que me prometteu hontem à noite?” Um raio de alegria attravessa o lindo semblante da moça; com a fronte erguida e os olhos a luzir, paresce tomada por uma excitação intima. “Lembro-me,
claro!
Daqui 177
a
pouco
fallaremos
a
respeito. Mas agora deixe-me perguntar uma coisa. Quero tirar uma duvida...” “Diga!” “Sabia que ja senti vergonha de ter um pé deste tamanho?”, diz a moça mostrando o bordado. “Vergonha? De possuir um thesouro, um primor!?” “Mas, fallando serio: não é natural que uma moça tenha o pé de uma menina de septe annos...”, insiste Amelia, sondando o rapaz. “Não sei si é natural; mas sublime, asseguro-lhe que é. Ha certas graças na mulher que devem ficar sempre meninas; as huris, as fadas, as deusas, são assim.” “Com effeito! Então posso me envaidescer, não é?” Horacio sustenta esta conversa com interesse extremo, attento aos movimentos da fimbria do vestido. A saia, arregaçando gradualmente com a inflexão do talhe gentil da moça reclinada sobre o bastidor, promette brevemente descobrir o thesouro, tão extremescido pelo mancebo. Amelia, que continua occupada com seu trabalho, faz-se de distrahida com a conversa, e exquesce daquelle constante cuidado que ella tinha em compor a orla do vestido. Durante a conversa appenas uma vez tira os olhos do bordado, para lançar uma vista furtiva ao pavão. “Pois accredita que eu me incommodava muito quando tinha de comprar botinas? Custava achar um par que me servisse. As de senhora eram muito grandes; as de menina 178
eram muito baixas. Affinal encontrei um sapateiro, que trabalha tão bem como os melhores de Paris...” Horacio sabe que Amelia se refere ao Mattos, mas não sabe si este ja informou a ella sobre quem achou a botina perdida. Em todo caso, prefere agir como si não fosse elle e esperar para ver até onde a moça quer chegar. “A senhora falla do Campás?”, diz Horacio um tanto perturbado. “Não, senhor.” “Pensei.” “Fallo do Mattos, que tem loja na rua Septe de Septembro. Outro dia fui à cidade buscar uma encommenda de botinas novas, mas quando o creado a trazia para o carro, onde o esperava, cahiu um pé de botina ja usado, que fora para modello. Fiquei muito abhorrescida com a perda, e agora resolvi presentearme, para compensar, com umas chinellas bordadas por mim, que pelo menos nisto sou sapateira, embora não tão habilidosa como o Mattos... Entendeu o significado deste trabalho?” Proferindo as ultimas palavras, Amelia, sempre occupada com seu bordado, debruça-se completamente sobre o bastidor para desembaraçar o fio de seda frouxo. Este movimento produz o que Horacio espera. A saia, retrahida pela travessa do bastidor, descobre até o tornozello o pé da moça. O galan extremesce com a forte emoção; e fecha os olhos, attordoado. O que vê é uma coisa indefinivel, estupenda. Embora minusculo, o pé de Amelia nada tem de deformado, como o das chinezas 179
do livro do Mattos: é absolutamente esculptural, contornado com a perfeição de um desenhista fanatico pela esthetica. E aquella maravilha Horacio a tem alli em face, deante dos olhos e a poucos palmos de seus labios, excarnescendo do seu amor, provocandolhe a immediata tumescencia do membro por dentro da roupa, obrigando-o a disfarsar para que a moça não perceba o volume. “Diga-me uma coisa: hontem, depois que sahimos, o senhor conversou com aquelle moço que dansou commigo? O Leopoldo, não é?” Não recebendo resposta, Amelia ergue a cabeça para interrogar o galan com o olhar. O adspecto demudado de Horacio, o sorriso pungente que admarrota seu bigode artistico, a vista anxiada que elle tem fixa no objecto sexual, lhe revelam subitamente o que succede: exatamente aquillo que planejara, ao fingir que o pezinho se mostra por descuido. Affinal Horacio levanta-se e dá alguns passos a esmo. Amelia approveita-se desse movimento para convidal-o a passar à outra salla: “Ja devem ser cinco horas. Papae chega a qualquer momento. Vamos?” Com effeito, o Salles, accompanhado, accaba de entrar. Pouco depois reunem-se todos na salla de jantar. Tomam assento, alem da garça e do pavão, uma perua (D. Dolores), um casal de rapinantes (o corretor de fundos e sua dignissima) e os donos do viveiro, digo, da vivenda. Trincha-se o assado; tilintam os talheres contra a 180
louça, contraponcteando com o riso cantarolado de D. Dolores. O jantar é animado pela conversa viva e espirituosa de Horacio, que ja recuperou seu sanguefrio. Sentado à esquerda de Amelia, acha sempre algum momento para trocar com ella uma palavra em particular, para pedir que fallem a sós mais tarde. À mesa, ninguem toca no assumpto casamento, obviamente. A conversação geral mantem-se dispersiva e superficial. Especula-se, ora si a libra esterlina sobe, ora si o partido conservador cae, ora si o vinho sobe, ora si a temperatura cae. De repente Amelia se lembra de uma expressão ingleza ensignada por Laura: “playing footsie”, que significa bolinar com o pé, por baixo da mesa, algo que a moça resolve fazer só para ver a cara de Horacio. Esticando o pezinho temptador, toca a pantorrilha do rapaz e deslisa suavemente o dedão até encontrar o cano da botina que elle calça. Horacio, que mal pode accreditar no que accontesce, engasga e leva rapidamente o coppo aos labios, emquanto Amelia ri por um motivo e os demais por outros. Terminado o jantar, Horacio acha um pretexto para o tal assumpto reservado, antes de retirar-se a tempo de evitar o tedioso discurso economistico do corretor e a morbida curiosidade de D. Dolores accerca da vida intima, pregressa ou futura, de todos os pavões da Corte. “O que se passou à mesa, D. Amelia, é mais do que uma covardia! Quer ver-me perder a compostura?” “Quero que se debatta em agonia! Quero vel-o fazer sacrificios, soffrer privações, para alcançar o que deseja!” “Faço qualquer coisa! Mas preciso de uma garantia 181
concreta de que serei recompensado, caso contrario... creio que não supportarei mais!” “Qualquer coisa? Muito bem! Vou expor-lhe minhas condições. É pegar ou largar. Está disposto?” “Estou às suas ordens, D. Amelia! Estou disposto a todos os constrangimentos...” “Moraes e physicos?” “A senhora decide!” “Então ouça: terá de ir todas as noites, durante uma semana, à casa de Laura, onde nos encontraremos. La deverá passar por um periodo intensivo de treinamento para que se comporte, perante meus pés, como elles merescem. Advirto que soffrerá castigos corporaes, portanto esteja preparado.” “Laura estará presente?” “Decerto! Não appenas ella, como alguns eventuaes espectadores, interessados em contemplar o quadro ridiculo a que o senhor estará exposto... Terá o senhor forças para uma provação dessas?” “Não posso recuar agora, que cheguei tão perto do objectivo. Onde mora Laura?” “Em Sancta Thereza.” Dado o endereço, Amelia pede licença para attender as visitas. Tocando appenas na mão que a moça lhe 182
extende, Horacio sae. Appoiando-se ao recosto do sofĂĄ, Amelia permanesce immovel, a escutar os passos do galan atĂŠ que se percam ao longe.
183
16 MAIS UM POUCO DE THEATRO
Refere o historiador que “Por esse tempo abre o Casino Fluminense os salões para os famosos saraus a que o imperador preside: é a phase do baile, numa epocha em que novas palavras, significando outras formas de galanteria, apparescem no noticiario: {jockey}, {turf}, hippodromo, regatas, {flanar} (de referencia aos passeios {romanticos}, para ver o mar)... Começam, em 1854, no Derby, as corridas de cavallos; em seguida, as dos remadores, na enseada de Botafogo, com palanque na praia e a aristocracia, de binoculo, incentivando o... {sport}. A valsa no Casino e o {bel canto} no Lyrico habituam-na ao espectaculo nocturno, que populariza o Rio, como cidade de requinctes francezes – appaixonada pela arte. Pertencem a esse cyclo de theatro culto as temporadas celebres, de grandes cantoras, de principes da opera, que, numa sequencia de visitas felizes, desfilaram pelo scenario fluminense. A Baderna, (cuja alegria deixou no vocabulario, como succedera no século anterior em Lisboa com a Zamperini, o seu nome), a Candiani, a Stolz, a Casaloni, a Donizetti, Adelaide Ristori, a Dalmatro, Thalberg, Cardinale...” Marcado o proximo sabbado para a iniciação de Leopoldo no Club, este decide agguardar relaxando o corpo no sarau dansante e, na quincta, vae à casa de D. Clementina, onde está reunida a roda do costume. 184
Laura alli se acha tambem e cumprimenta-o com um modo ja intimo e carinhoso, sem perder a pose dominadora. De accordo com o romancista da epocha, “Deve exsistir uma corrente magnetica entre os homens, um fluido que serve de vehiculo ao pensamento recondito e ainda não divulgado. Não se explicam de outro modo certas revelações de um facto somente conhescido de poucas pessoas e por estas recaptado. A emoção, que desperta esse facto n’alma de alguns, repercute n’alma de outros, e produz uma especie de intuição.” Laura pouco apparesce em casa de Amelia, para não ter de se defrontar com a cara desconfiada de D. Leonor, que, mesmo havendo collaborado para a vinda dos Lawrence ao Brazil, quer manter a filha affastada desses rituaes iniciaticos, meio clandestinos e pouco civilizados, que os britannicos tanto cultuam. Por isso, ou porque Amelia nada quer commentar emquanto corre o prazo para a resposta, Laura ainda não foi informada a respeito do noivado da prima. Mesmo assim, na casa de D. Clementina sabe-se ja que Amelia foi pedida em casamento, embora se ignore o nome do pretendente, talvez por não ser conhescido das pessoas presentes. Salles, a mulher e a filha não disseram a menor palavra sobre o objecto da charta; mas a impressão produzida por essa correspondencia, a preoccupação que deixara nas pessoas da familia, as conversas intimas e recaptadas, não excapparam aos escravos. Dahi gerou-se o boato, que ja tinha passado à casa de D. Clementina por intermedio de D. Severina e de D. Thereza. “Ah! Chegou o amigo de Laura! Sabia que a prima della vae casar-se? Ja foi pedida!”, cochicha D. Thereza a outra senhora. O bochicho é passado addeante, dá a volta na salla e, estando Leopoldo ja sentado, chega185
lhe aos ouvidos pela conversa das mexeriqueiras mais proximas. Uma dellas pergunta a Leopoldo si está sabendo da novidade. “Não, senhora, não sabia...”, responde o moço com magoa mas sem denotar perturbação. “Laura vae se casar? Com quem?”, pergunta outra moça. “Não é Laura; é a prima della, uma moça lindissima, muito rica! E vae casar-se com um moço tambem bonito e rico. Disseram-me o nome, mas ja não me lembro.” Nisso Laura se approxima e a conversa muda de assumpto. Mais tarde, ao pedir-lhe uma contradansa, Leopoldo não resiste e toca no poncto, depois de terem dansado a primeira marca sem trocar palavra. Affinal o mancebo rompe o silencio: “É verdade que Amelia foi pedida em casamento?” Laura quer desconversar, mas ante o olhar fixo de Leopoldo, mostra certa indifferença. “Estão dizendo. Mas a mim ella não participou, por isso acho que é só especulação. O que sei é que ja marcamos outro typo de ceremonia...” E Laura abre aquelle conhescido sorriso malevolo. “Si for verdade, estimo que ella seja muito feliz.”, falla Leopoldo em voz baixa. 186
“Eu tambem. Ella meresce.”, resume Laura. “Quando comecei a amar Amelia (diz Leopoldo depois de alguns instantes), accreditei na felicidade, e esperei alcançal-a neste mundo. Minha alma presentiu a approximação da irman que perdi e que Deus me destinara... Mas essa illusão se desvanesceu logo. Soube qual era a posição de sua prima, e comprehendi que ella não me podia pertencer. Resignei-me, pois, a amar unicamente sua alma; essa, ninguem me pode roubar, nem mesmo a senhora, D. Laura, porque Deus a fez para mim. Eu estava desde muito preparado para a noticia de seu casamento; ella não me surprehendeu, embora me entristescesse. Até agora adorei a alma de Amelia, como se adora a imagem da Virgem no templo; de agora em deante terei de adorar essa alma querida, como se adora uma sancta no sepulchro.” Leopoldo falla por algum tempo ainda, e Laura, que a principio se melindrara com a expansão viva desse amor tão puro, agora bebe as palavras ardentes do mancebo como si fossem um fluido magico e aphrodisiaco. Sente que elle está sob seu poder, que elle se entrega à penitencia, à disciplina do corpo para manter purificada a alma que se dedica à prima virgem. Mas ella, Laura Lawrence, nada tem de casta, e Leopoldo terá occasião de comprovar a materialidade da dor sobre a pelle e do couro sobre os labios... Ao despedirem-se, alguem commenta a opera que está em chartaz no Theatro Lyrico, e Leopoldo accerta com Laura que irão junctos. Amelia, que tambem fica sabendo da boa fama do espectaculo, vae com os paes. Subindo a escadaria do Theatro Lyrico, advista Horacio que vem do lado 187
opposto. É com fria altivez e indifferença que ella corresponde ao cumprimento do pavão, sem demorar o passo emquanto elle troca um apperto de mão com o Salles. Esta indifferença, porem, e sobretudo o gesto que Amelia faz para arregaçar o vestido quando sobe o segundo lanço de escadas, têm a finalidade didascalica de manter aptado o galan ao jugo do pezinho delicadamente embotinado, que apparesce e desapparesce sob as dobras do tecido. “Ah, si eu pudesse me transformar naquelle degrau de marmore... Si eu pudesse ao menos transformar-me por um momento no escravo que vae lavar essa escada! Não duvido que fosse capaz de laval-a com minha propria lingua, de exfregal-a até deixar brilhando de brancura!” Horacio delira com essa idéa, e mesmo quando lhe occorre que lamberia no mesmo degrau o pó deixado por outras botas, femininas e masculinas, continua inebriado pela hypothese, pois presente, no intimo, que algo provavelmente analogo espera por elle em casa de Laura, que, por signal, accaba de entrar accompanhada de Leopoldo. Para não cruzar com aquelle subjeito desprezivel e impertinente, Horacio sae do caminho e procura seu logar na salla. Logo depois o moço sobe até a porta do camarote da familia e demora-se ahi a conversar com o negociante. Entretanto, Amelia, sem dar-lhe a minima attenção, percorre com o binoculo os camarotes, trocando com a mãe observações a respeito das moças e seus lindos addereços. Horacio, magoado, volta a seu logar na platéa. Durante o resto da noite, a moça mostra a mesma calculada 188
indifferença, a poncto de irritar o mancebo. Appesar de se ter rendido, sente elle um impeto de revolta, e deixa sua cadeira juncto à orchestra com intenção de visitar um camarote fronteiro ao do Salles. La está uma linda moça de seu conhescimento, uma das estrellas de sua coroa de rei da moda. Sentar-se-a juncto della, e estabelescerá um dialogo entretecido de sorrisos, de olhares e meias confidencias como por ahi se dão tantos nos bailes e espectaculos: verdadeira scena mimica de amor representada perante o publico. Com esse entretenimento, Horacio pretende vingar-se de Amelia, excitando-lhe ciumes. Chega ja o pavão à porta do camarote quando advista logo addeante um gruppo formado por Laura, Leopoldo, Amelia e Caio de Azevedo Camargo, o expalhafactoso filho do barão de Baruery. Para não ser visto (e certamente chamado pelo Caio), dá meia volta e desiste da pirraça que ia fazer. Falta appenas um acto para terminar a opera; si elle mostrar affastamento, Amelia irritada persistirá em seu desdem durante o resto da noite; e quem sabe que resolução tomará sob a influencia desse despeito? Horacio tem medo e recua. Ja se tinha submettido; agora a unica solução é manter-se humilde até o fim. Naturalmente Amelia, ao termino do espectaculo, abbrandará o seu rigor. Começa o acto. Horacio deixa passar algum tempo, e dirige-se ao camarote de Amelia. A moça, que ja tinha reparado na ausencia do pavão, cuja cadeira está desoccupada, adivinha-lhe a presença, ouvindo abrir-se a porta. Seu primeiro movimento é voltar o rosto; mas reprime-se a tempo, e disfarsa dirigindo o binoculo para o fundo da salla. Appesar do imperio que tem sobre a situação, Amelia resolve conceder 189
ao submisso galan um pouco de attenção. Horacio, por sua vez, resolve esperar a sahida para trocar algumas palavras com a moça. Termina o espectaculo affinal. Horacio offeresce o braço a Amelia: “Muito lhe offendi com minha presença, D. Amelia? Não lhe meresço nem uma palavra?” “Não quero desperdiçar minha palavra agora. O senhor irá recebel-a, de ora em deante, como ordem inquestionavel, a ser cumprida sem esses argumentos ensaiados que sempre traz na poncta da lingua...” “Mas si minha lingua mal chegou a se manifestar...” “Sua lingua, Sr. Horacio, nada tem a manifestar; tem appenas que obedescer, e não é para fallar coisas bonitas que pretendo fazer uso della. Comprehendeu?” “Sim, senhora. decisões.”
Agguardarei
“Muito bem! E Laura combinadas. Addeus.”
o
pacientemente
agguarda
na
data
e
suas
hora
O carro do negociante approxima-se. A familia embarca. Na calçada, Caio accena para elles. Começa a chuviscar. Horacio vê passar alguem que sorri maldosamente. É Laura, juncto a outras pessoas que tambem embarcam para partir. Horacio tracta de recolher-se. Em casa, mettido num 190
robe de chambre, emquanto philosophicamente espera que seu creado lhe prepare uma chicara de café, abre um livro, que accerta ser o mais recente do poeta Dirceu Amoroso Lyra. Lê ao acaso: é o sonnetto intitulado “O camarim”, que apparescerá, daqui a poucas decadas, reescripto por algum parnasiano de reputação nacional:
A luz do Sol affaga docemente as bordadas cortinas de escumilha; penetrantes aromas de baunilha ondulam pelo tepido ambiente. Na estante do piano reluzente repousa a partitura da quadrilha; e do leito francez nas colchas brilha de um cão de raça o olhar intelligente. Ao pé das longas vestes, descuidadas, dormem nos arabescos do tapete duas leves botinas delicadas. Sobre a mesa emmurchesce um ramalhete, e entre um leque e umas luvas perfumadas scintilla um caprichoso bracelete.
“É verdade, tudo paresce um theatro!”, murmura, soltando uma fumarenta baforada de seu charuto comprado na casa do Bernardo. Recolhido, tira do cofre a botina de estimação, 191
quando lhe vem uma idéa subita e impulsiva. Appanha o sapato que accaba de descalçar, ainda humido da chuva, e exfrega-lhe o solado contra a sola da botina. Occorre-lhe comparar, kabbalisticamente, os numeros e as proporções: ella, nos seus dezenove, calça 29; elle, aos vinte e nove, calça 39. No peitoril da janella, carimba a botina contra a lage branca, de modo que o couro attritado deixe alli uma leve marca de sujeira repisada. Em seguida, adjoelha-se deante do altar improvisado e contempla o signal escuro sobre o marmore, julgando ver nitida a impressão do pé da moça contornada num degrau. Então approxima o rosto da falsa pegada e, como si ouvisse uma voz interior, começa a lamber aquella pedra lisa, porem recoberta por granulos de terra, que vão adherindo à lingua. Offegante, o galan geme e se contorce: com o prazer, mixtura-se a dor da caimbra que lhe trava o movimento da coxa. Emquanto não vem o allivio, imagina ter limpado uma escadaria publica, pela qual accaba de subir a rainha de seus sonhos eroticos, mas não se exquesce de suppor que aquelle piso é utilizado por outras pessoas, anonymas, extranhas... ou até por alguem conhescido, mas não estimado. Ja deitado, uma apprehensão paira-lhe na consciencia. “E si Amelia não mantiver segredo sobre o que fará commigo? E si Laura deixar que outros, Leopoldo ou Caio, por exemplo, saibam disto? E si as pessoas que presenciarem minha degradação não forem discretas? Si a rapaziada souber disto, estou deshonrado. Como posso eu mais appresentar-me na rua do Ouvidor, quando a coisa divulgar-se?” Horacio começa a reflectir si fizera bem acceitando tão precipitadamente as condições appresentadas por Amelia. Mas accaba por tranquillizar-se considerando que a moça tambem não quereria expor a reputação, e saberia resguardar o jogo no ambito de um simulacro sigilloso. 192
Momentaneamente affastado o sentimento de culpa, masturba-se com mais commodidade e goza de novo -orgasmo penoso, que lhe arranca um grunhido rouco e animalesco, irremediavelmente indigno de um cavalheiro fino como elle.
193
17 O METHODO DIDASCALICO
Refere o historiador que “Os pés, tambem, foram para o mulato um elemento de ascensão social: pés compridos, bem-feitos, finos, {nervudos} -- dizse de alguns que passam aristocraticamente pelos annuncios, em forte contraste com os pés de grande numero dos negros.” Si estes teem pés largos e chatos, “Os mulatos, não; bem-feitos de pé pelo criterio europeu -- os pés finos e compridos -puderam adaptar-se mais facilmente ao uso dos sapatos, que mais de um observador europeu repara ter se constituido no Brazil do seculo XIX um dos signaes de distincção de classe: o individuo calçado em contraste com o descalço ou de pé no chão. Pode-se accrescentar tambem que num signal de distincção de raça. Os proprios pretos bonitos, elevados a pagens no serviço domestico dos sobrados ricos e vestidos pelos donos a rigor -- chapéu de oleado com pluma, libré toda enfeitada de dourado, as mãos enormes calçadas de luvas -- andavam pela rua e dentro de casa, descalços, os grandes pés inteiramente nus. Descalços, embora vestidos dos pés para cyma, é como os retracta Koster, num dos seus flagrantes de rua colonial. Viu-os o inglez nas ruas do Recife, carregando palanquins de brancas finas, das taes que quando mostravam a poncta do pé era um pezinho de nada, de menina pequena. Quasi um pé de chineza. Quanto menor o pé, e mais fino, mais aristocracia.” 194
Em torno da mesa posta, Laura, Leopoldo e o lorde servem-se de peixe assado nadando em molho, de mayonnaise de camarões e de bollinhos de bacalhau. Jantam em casa da filha dos Lawrence, endereço que tambem Steppingstone informa a todo mundo como sendo delle. Os paes de Laura, hoje desinteressados das actividades didascalicas, habitam alli em Sancta Thereza uma chacara proxima, onde a moça passa os dias em que pretende restabelescer-se das noitadas no Club. Saboreados os primeiros boccados e erguidos os calices, Roger desvia a conversa dos triviaes chistes de espirito britannico para formalizar a palavra que dirige a Leopoldo. “Sr. Castro, deixe-me ir directo ao poncto. Ja nestes trez primeiros dias o senhor irá participar de eventos com os quaes não está habituado no diaa-dia da sociedade. E não me refiro appenas à elite que frequenta o baile do Sr. Azevedo Camargo: fallo inclusive do sallão litterario de Mme. Fragonard. Alli discutimos em these; aqui experimentamos na practica. Quando digo {aqui} quero dizer nesta casa e em todas as demais onde o Club Propedeutico ministra nossos cursos didascalicos. Alguma pergunta?” Leopoldo, como professor que é, sente-se à vontade deante da objectividade do lorde. “Sim. Visitarei os outros endereços do Club?” “Depois desta phase introductoria as sessões terão logar em nossa sede.” “Na terceira noite ja estarei apto a conhescer a sede?” “Of course. Estou certo de que o senhor sahir-se-a 195
muito bem. Não costumo engannar-me quando analyso as tendencias de alguem. Laura é testemunha do que affirmo.” “O senhor tomará parte nas sessões?” “Não, pelo menos instructora.”
por
emquanto.
Laura
será
sua
O mancebo sorri com certo allivio, mas Laura devolvelhe o sorriso com aquelle seu ar demoniaco e Leopoldo se retrae. Terminado o jantar, Roger advisa que está de sahida e deixa que Laura e Leopoldo passem à camara reservada às sessões, indirectamente illuminada por focos de luz azulada que emprestam ao ambiente uma atmosphera phantasmagorica. Emquanto o mancebo vae-se integrando às vibrações ethereas do recincto, perscrutando desde os detalhes do mobiliario até as gravuras emmolduradas representando scenas da Inquisição, o lorde, que appenas fingira retirar-se, accommoda-se no apposento contiguo, de onde pode espiar tudo o que se passa na camara attravés de um orifício estrategicamente disfarsado no desenho do papel de parede, entre dois prattos ornamentaes. Desse observatorio voyeurista o cavalheiro, comfortavelmente installado, sacia a curiosidade e tambem o appetite venereo, principalmente nos momentos em que algum rosto novo, como agora, exprimirá suas reacções aos actos alli practicados. Mais que outros movimentos e sons, são taes alterações physiognomicas o grande estimulo ao prazer do impassivel inglez, sabe-se la por quaes tortuosas razões... Neste momento os olhos de Leopoldo reflectem, melhor 196
que os de um animal nocturno, essa especie de irradiação lunatica, como que hypnotizados, para deleite de Steppingstone. Leopoldo está deante de um authentico pellourinho inglez, tal como fora descripto pelo lorde no sallão litterario: duas traves fixas na vertical, entre as quaes sustentam-se dois caibros moveis na horizontal, um appoiado sobre o outro, dando ao conjuncto o adspecto de um H. Ao centro dos caibros, abre-se um buraco onde cabe o pescoço da pessoa, ladeado por dois orificios menores para os pulsos. Ha, porem, uma engenhosa particularidade, que Laura faz questão de demonstrar a Leopoldo, elogiando o cerebro que a projectou, ninguem menos que o proprio Steppingstone: cada um dos pilares é sulcado por uma canaleta, de cyma a baixo, e as extremidades dos caibros se encaixam e deslisam nesse trilho vertical, movidas por um mechanismo provido de manivella, graças ao qual o “tronco” sobe ou desce a uma altura regulavel conforme a vontade do carrasco. A victima tanto pode ficar em pé, como adjoelhada ou prostrada de bruços, a criterio de quem a manipula e ao talante do momento. A convite de Laura, o mancebo experimenta a manivella e comprova a mobilidade da engrenagem. Ao notar a qualidade no accabamento das peças de madeira, constata Leopoldo o quanto aquelle instrumento differe do rustico tronco que havia na fazenda do pae, cujas pranchas mediam duas braças de comprimento por pé e meio de altura e trez pollegadas de espessura. Aqui as proporções são mais economicas, mas a carpintaria mais luxuosa. “Sente-se aqui! (ordena Laura, indicando ao mancebo um sofá posicionado em excellente angulo de visão para o pellourinho) Vamos ter uma sessão de abertura. Relaxe e desfructe!” 197
Laura toca uma sineta, e a cortina da porta lateral affasta-se para dar passagem a um casal bastante esdruxulo: elle tem a cabeça raspada e veste couro nas poucas partes em que não está nu; ella nada veste, excepto o cappuz que lhe molda o craneo, abrindo-se appenas no nariz e na bocca. Leopoldo tem um sobresalto ao contemplar, naquella luz mortiça, a pallidez da moça contrastando com o negro tufo de pelos pubianos. Os seios são os de uma virgem, mas as costas estão marcadas por cicatrizes, bem como as nadegas e coxas. Leopoldo não reconhesce o homem, que, pelas tattuagens, paresce-lhe marinheiro. A mulher é conduzida ao pellourinho, com o qual o subjeito mostra-se bem familiarizado: abre os caibros como si fossem as ponctas de um enorme alicate; a mulher colloca os braços sobre a parte inferior e appoia o pescoço no semicirculo central; elle fecha o tronco e prende o ferrolho, immobilizando-a nesse poncto. Leopoldo repara que ella, mesmo vendada, caminha e tacteia com certa desenvoltura, como quem conhesce a topographia da salla. Quer perguntar a Laura sobre o casal, mas esta corta-lhe as palavras: “Fique calado e observe. Fallarei quando for o momento.” A mulher está em pé quando recebe os primeiros golpes. Esta posição é chamada por Laura de “graduação admissiva”, de accordo com a nomenclatura cunhada por Steppingstone. Até então não se ouve a voz de nenhum dos dois, mas ao applicar a terceira chibatada o marinheiro faz as vezes de vaqueiro e passa a bradar seu repetido “Ya! Ya!”, até que, sem conseguir conter as lagrymas, ella alterna um soluço grave a um berro agudo. Laura cae na gargalhada e olha para Leopoldo, que, entre estupefacto e maravilhado, julga reconhescer aquelle tymbre choroso. “Será ella?” Mas appenas guarda a duvida, abrindo para Laura um sorriso ecstasiado. 198
Agora o pellourinho está descido a meia altura (na posição de “graduação remissiva”, segundo Laura) e a mulher teve, portanto, de adjoelhar-se. As coxas, ligeiramente entreabertas, tremem e exsudam sob o chicote. Laura faz coro ao “Ya! Ya!” do algoz e manda que este abbaixe mais um pouco o mechanismo. A mulher continua de joelhos, mas o torso ja se dobra na horizontal, como na posição de quem engattinha. Laura diz que essa é a “graduação permissiva”, e accrescenta: “Preste attenção, Sr. Castro, e veja só como faço!” Levanta-se e vae até o logar do marinheiro, que lhe passa às mãos uma vara de marmelo. Laura appoia um pé sobre o ceppo, deixando que o mancebo visualize o couro negro de sua botina reluzindo logo accyma da cabeça da mulher. Como esta pende, abbattida pelo cansaço e pelo descomforto, para não fallar da dor causada pelos golpes, Laura levanta-lhe o queixo com a poncta do pé e annuncia: “Achas que ja basta? Pois eu acho que não! Vaes provar um pouco da minha energia, queridinha!” E passa a fustigar a outra com extrema vitalidade e enthusiasmo, visando-lhe as partes mais sensiveis e soltando gritinhos estridentes que fazem melodico contraponcto aos gemidos da sacrificada, cujos seios oscillam saccudidamente ao rhythmo do braço experiente de Laura. O careca não pode reprimir o riso e arreganha os dentes, sempre mantendo seu duetto de “yas” com Laura. Leopoldo, contagiado pela comicidade da brincadeira, da qual appenas a açoitada paresce não achar graça, desapta a rir-se com franca expansão, sentindo que o membro não encontra espaço para tambem expandir-se por dentro da roupa. Finalmente a desaffinada symphonia de gritos tem seu encerramento, com a fadiga de Laura e o affrouxamento das gargalhadas de Leopoldo. A mestra auctoriza o 199
marinheiro a libertar a cobaya e dirige-se a Leopoldo para mostrar-lhe a vara que accaba de empregar. “Tome, Sr. Castro, examine bem e veja que nobreza tem este material.” Emquanto appalpa e allisa o rebenque, o mancebo accompanha de relance a retirada da mulher, que sae cambaleante, appoiada no braço do carrasco. Elle seria capaz de jurar que aquella femea reduzida a condições quadrupedes não é outra sinão Rosa de Albuquerque, mas não ousa pedir tal confirmação à dominadora, que está empenhada em explanar as propriedades do ramo de marmeleiro. Na segunda noite Laura ja recebe o mancebo sem a presença de Steppingstone, que tracta de postar-se juncto ao habitual olho magico. Desta feita Leopoldo terá que tomar parte activa na mesma enscenação de que fora espectador passivo. Supervisionado por Laura, empunha o chicote e desfere as competentes lambadas sobre o corpo de uma mulher desconhescida, apparentando seus trinta annos. Pelo tom da voz que rouqueja ao estalo do latego, o mancebo tenta identificar alguem que tenha conhescido em casa de D. Clementina ou em algum poncto de encontro da rapaziada, mas tudo indica tractar-se de alguma mundana, quando não de mais uma daquellas damas da sociedade que, incognitas, fazem-se passar por prostitutas vulgares a fim de experimentar novas emoções. Falla-se, na rua do Ouvidor, de casos escabrosos envolvendo até uma baroneza ou uma marqueza, mas é difficil separar o boato do fundamento. A pelle da mulher não traz signal de tantos vergões quantos havia nas costas da victimada na vespera, mas Leopoldo tem consciencia de que não é a quantidade de cicatrizes que dirá da vida pregressa desta ou daquella didascalica. Ha methodos de açoitamento que pouco lesam, e methodos outros 200
que não o açoite para condicionar o comportamento, como attesta Laura ao demonstrar-lhe a simplicidade com que se maneja o mechanismo do pellourinho a cada graduação. A principio bisonhos, os golpes applicados por Leopoldo vão-se tornando precisos e proficuos. De vez em quando Laura, com sua mãozinha tão pequenina que ninguem diria manejar com tal pericia aquelle instrumento, segura a manopla do mancebo, corrigindolhe a postura. Pausadamente, Leopoldo visa na mulher os ponctos que mais lhe despertam reacção erectil, e a inevitavel lembrança da nudez da irman lhe traz morbidas associações. Na graduação permissiva, a victima paresce convidar Leopoldo a uma canina penetração trazeira, mas o mancebo limita-se ao consolo manual, entre uma e outra chibatada. Laura percebe aquella masturbação disfarsada e precipita os accontescimentos, abrindo, ella mesma, a braguilha do rapaz para que, azulado pela meia luz da camara, seu penis recurvo e cabeçudo, incontido pela phimose, imite os movimentos empinados das ancas da punida. Então o Prof. Castro, repentinamente inspirado pelo manual francez lido no sarau, acciona a manivella e suspende o pellourinho até a graduação remissiva, na qual somente as cannellas da mulher permanescem na posição horizontal. Ainda genuflexa, arfando para recuperar o follego durante a pausa na surra de relho, a paciente respira pela bocca, como que convidando ao abuso. O mancebo, ja expiccaçado pela vontade inappellavel, posta-se defronte ao rosto encappuzado e simplesmente empurra o membro para dentro da cavidade resfollegante. A mulher, colhida pela offensiva surpresa, faz menção de recuo, quem sabe bloqueada por algum escrupulo olfactivo, porem seu asco de nada addeanta naquellas circumstancias. A 201
glande, cujo perfil paresce exaggeradamente allongado pelo bicco do prepucio, desapparesce entre os labios carnudos, e a cabeça da mulher é forçada para traz, comprimida contra a madeira. Ella tenta engrolar um gemido de soccorro, mas Laura só faz batter palmas e desilludil-a de qualquer abbrandamento ao dizer risonhamente: “Então, queridinha? Por esta não esperavas, não é mesmo? Tracta de chupar, anda! Quero ver esses beiços a mexer! Approveite, Sr. Castro, mostre a ella que o uso do relho não foi em vão!” Leopoldo, sentindo que a lingua não offeresce resistencia mas sim estimulo, imprime rhythmo à penetração e em questão de segundos descarrega a substancia cremosa e abundante appós tantos dias de accumulo. A mulher, engasgada e nauseada, não tem outra coisa que fazer: “Si cuspires, queridinha, tiro-te o couro! Anda, engole!”, ordena Laura. E ante a expressão rudemente saciada do mancebo, a estuprada, exhausta e vencida, resigna-se a degluttir o producto da aggressão, que talvez lhe seja mais doloroso moralmente que o caustico effeito das vergastadas. Laura exsulta de satisfacção, seja porque Leopoldo desinhibe-se a contento, seja porque sabe que aquella senhora, do alto de sua posição aristocratica, certamente não comptava que as coisas chegassem a tal poncto quando se offeresceu ao lorde como voluntaria para que um novato se exercitasse. A terceira noite promette a Leopoldo a superação de uma barreira em seu rito de passagem: a troca de papeis. Laura ja o havia prevenido de que, para conhescer por completo os sentimentos e impulsos que envolvem todas as partes numa relação didascalica, é necessario que vivencie a situação do torturado. Mas tranquilliza-o quanto possivel: “Esteja descansado, Sr. Castro. Serei eu mesma quem lhe ha de administrar 202
o castigo...”, advertindo porem que “Prepare-se appenas para o caso de nos estarem a observar...” “Si tantas raparigas supportam estoicamente a flagellação, e mesmo della obteem satisfacções intimas, physicas ou psychologicas, por que não hei de supportal-a, si sou mais forte? (pergunta-se Leopoldo, para appaziguar o espirito nos instantes que antecedem a sessão) Quanto ao prazer... bem, ainda que não seja capaz de encontral-o na condição de torturado, sei que nada me obriga a repetir a dose!” Com taes reflexões a servirem de justificativa, o mancebo deixa-se preparar pelas mãos de Laura, que adjusta-lhe o cappuz e manda que deixe as roupas no quarto de toucador antes de accompanhal-a à camara de disciplina. Bem diversa é agora sua sorte: pelo braço da dominadora, caminha como um cego feito prisioneiro de guerra, ou como um condemnado em direcção ao patibulo. Ouve o rangido da dobradiça e appalpa a tora em que appoiará os pulsos. Inclina a cabeça e suppõe-se prestes a ser guilhotinado, tal a analogia entre as traquitanas punitivas. Estivesse ainda vestido em seu costume preto, Leopoldo paresceria ainda mais vampiresco, mascarado que está com a sinistra venda a tapar-lhe até a percepção da pouca claridade do ambiente e dos ruidos em deredor. Emquanto o pellourinho se fecha sobre si, o mancebo escuta, alem da voz firme de Laura a fallar de estoicismos de uns e epicurismos de outros, cochichos e risadinhas à socappa vindos do sofá em que ja estivera refestelado: são duas pessoas que 203
adentram a camara e se accommodam para accompanhar o admestramento. O mancebo distingue uma voz feminina que sussurra e outra, masculina, que mais ri do que conversa. Pelo farfalhar das roupas, Leopoldo sabe que ao menos a mulher conserva-se vestida. Mas ja não ha tempo para elucubrações: os primeiros golpes do appetrecho penal ardem-lhe sobre as espaduas. Novos risos, que affinal Leopoldo identifica como sendo do Vargas. Corroborando o que Laura lhe dissera, a iniciação didascalica não chega a ser tão angustiante no physico, mas no moral a presença de alguem debochado como o mulato aggrava as circumstancias damnosas. Superada a graduação admissiva, é durante a remissiva que o mancebo ouve nitidamente os commentarios excarninhos do outro: “Veja a senhora, D. Dolores, que engraçado: elle é um perfeito pé-de-chumbo! Vamos reviver aquella folklorica estrophe, quem diria, e serei eu o pé-decabra a dar-lhe a merescida licção!” Leopoldo não sabe de que falla o Vargas; comprehende appenas que o mottejo allude a seus pés descalços que, na posição genuflexa, expõem as solas e salientamse pela feição desproporcional. Evidentemente a expressão “pé-de-chumbo” soa tanto mais pejorativa quanto é arrogante otom de quem se diz “pé-de-cabra”. A explicação, que todos alli conhescem excepto Leopoldo, tem origem numa palestra proferida pelo sapateiro Mattos no sallão litterario, algum tempo attraz. Occasião rara, visto que o mestre é por demais solipsista para participar de tertullias e confrarias. Naquelle sarau, todavia, fora levantada a questão racial brazileira, e para equacional-a em 204
termos de superioridade ou inferioridade o artezão se soccorreu da tradição popular, fazendo sociologia sem o saber. Mattos esboçou a these que será depois abbraçada e documentada pelos academicos da estatura de Gilberto Freyre: o formato dos pés, e consequentemente os modellos de sapato, são, desde tempos coloniaes, symbolo não só da distincção de classe, como de raça. Assim, o pé do negro contrasta com o do branco, e ambos com o do mulato. Quanto ao negro, tem elle pés “rebeldes aos sapatos e às botinas de molde europeu”: exparramados, expalhados, “de alguns reponctando calombos, joannetes, dedos grandes separados; noutros, faltando o dedo mindinho ou o grande, talvez comido pelo ainhum; varios com aristim”; o branco, de origem portugueza ou ingleza, possue pés grandes, pesados e chatos, accostumados aos sapatões de sola de borracha e às botas de montaria; ja o mulato, curiosamente, é conhescido por seus pés pequenos e estreitos, quasi femininos, calçados de alpercatas macias ou de “chinellas orientalmente enfeitadas”, ageis e ligeiros, proprios portanto para a practica da capoeira, arte marcial usada como arma para derroptar e desmoralizar adversarios bem calçados e equipados, inclusive policiaes, soldados e marinheiros extrangeiros, estes symbolizando o colonizador grandalhão contra o franzino mestiço brazileiro. Dahi as expressõesvulgares que para cada um se perpetuariam: “pé-rapado” para o escravo descalço, a casta mais baixa; “pé-de-cabra” (mais tarde appenas “cabra”) para o mestiço mettido a branco mas discriminado por este; e “pé-de-chumbo” para o proprio branco bronco, como o commerciante portuguez em seus tamancos ou o marinheiro inglez em seus botinões, os quaes, mesmo não sendo aristocratas, menosprezam tanto os negros quanto os mulatos. Entre o negro renegado e o branco invejado, 205
o mestiço affirma-se pela differença nas semelhanças -- biotypo no qual desponcta como characteristica mais pittoresca o malandro pezinho, ao mesmo tempo delicadamente orgulhoso e aggressivamente vingativo. Dahi tambem os versos desaffiadores que, anonymamente transmittidos, accabariam recolhidos pelo Mattos. Este illustrara sua exposição recitando-os, para jubilo do sarará Solano:
Marinheiro pé-de-chumbo, calcanhar de frigideira, de ensignar-te ja me incumbo com surra de capoeira: vaes appanhar do solado dum pé-de-cabra escholado que mais fede do que cheira!
Esta é a tradicional septilha registrada pelo Mattos e invocada pelo Vargas, o qual, sendo um mestiço nordestino e calçando 37, investe-se com a maior naturalidade nas funcções do pé-de-cabra que irá excarmentar um pé-de-chumbo que, si não é marinheiro, é interiorano mas descende egualmente do bandeirante e do conquistador europeu. Com effeito, ainda que taes theorias não se tenham processado na mente do mancebo, intue elle que a clara intenção do Vargas, sob orientação de Laura, é humilhal-o exemplarmente. E nem é preciso descer à graduação permissiva, pois o pé do capoeirista manifesta sua agilidade justamente ao erguer-se para golpear o adversario. Nova serie de chibatadas, applicadas com enthusiastico vigor, dão compta de que o relho mudou de mãos e que Laura agora appenas enumera os golpes. Leopoldo sente 206
que a comptagem será breve, visto que o objectivo está no vexame e não no vergão. Não tarda que uma alpercata lhe exbofeteie ambas as faces e, num terceiro momento, lhe pouse de encontro aos labios. “Então, pé-de-chumbo? Vaes lamber ou não?”, commanda o molecote. Leopoldo exforça-se para manter dominio dos nervos e accaptar a ordem de Laura: “Que está esperando, Sr. Castro? Não ouviu? Obedesça!” A lingua do mancebo projecta-se para fora e se dobra contra a sola da alpercata. Vargas solta uma risada, mas desta vez é o cacarejante gargalhar da senhora sentada que echoa mais alto. “Muito bem, ja basta! (determina Laura) Agora é minha vez!” E a dominadora encerra a noitada em grande estylo: baixando o pellourinho à graduação permissiva, faz com que o mancebo perceba pelo olfacto, pelo tacto e pelo paladar que sua botina é de couro muito liso, porem de sola aspera e salto alto o sufficiente para magoar-lhe o céu da bocca. O tempo que a lingua do rapaz (“Ponha a trabalhar essa lingua de papoula, vamos, tracte de lustrar!”, exige ella) leva a percorrer a superficie e o contorno do calçado é, com justiça, bem maior que a duração da lambida no solado do mulato. Leopoldo está, portanto, didascalicamente recompensado de toda a degradação, e redimido de quaesquer peccados, passados ou futuros. 207
18 O CLUB PROPEDEUTICO
Refere o ficcionista da epocha que “A chinella de que se tracta vale algumas dezenas de comptos de réis; é ornada de finissimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas tambem pela origem. A dona, que é uma de nossas patricias mais viageiras, esteve, ha cerca de trez annos, no Egypto, onde a comprou a um judeu. A historia, que este alumno de Moysés referiu accerca daquelle producto da industria mussulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa.” “A chinella vinha a ser pura metaphora. A chinella não foi roubada; nunca sahiu das mãos da dona. A famosa chinella não tinha nenhum diamante, nem fora comprada a nenhum judeu do Egypto; era, porem, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. A chinella era de marroquim finissimo; no assento do pé, extuphado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas lettras bordadas a ouro. {Chinella de creança, não lhe paresce?} {Supponho que sim.} {Pois suppõe mal; é chinella de moça.} {Será; nada tenho com isso.} {Perdão! Tem muito, porque vae casar com a dona.}...”, dialogam, em sonho, os personagens do contista. Na
manhan
do
dia
fatal, 208
accorda
Horacio
muito
prostrado pela noite passada entre a insomnia e a bolinação fetichista e masturbatoria. Sem animo de deixar o colchão sobre o qual chafurdara na mais hallucinada das phantasias adviltantes, ainda de olhos fechados, chama pelo moleque. Quasi sempre, em vez do negrinho, é o fiel creado quem accode ao seu primeiro chamado, e hoje não será differente. Emquanto o pavão se prepara defronte do toucador, o creado põe-se a escovar a roupa que elle quer vestir. Antes de descer para o café, Horacio passa ao banheiro e demora-se enxugando o corpo deante do espelho. Está preoccupado com sua apparencia, a que antecede e a que succederá a ceremonia didascalica. Sahirá illeso? Acceitará submetter-se a alguma lesão corporal? E os damnos moraes? O pezinho obsessivo volta-lhe à idéa, e mais uma vez a hesitação cede logar à exspectativa. Passa o tempo entretido na leitura dos jornaes, sempre a se perguntar em que condições seu nome eventualmente apparescerá impresso, si na columna social ou na policial. (Ou ainda, sabe-se la, na necrologica, caso elle pudesse prophetizar, cem annos à frente, o thema que na patria de Laura aquella banda de rock chamada Kinks usaria numa de suas canções...) Quando pensa em ver as horas, é quasi meio-dia. Por almosso toma dois ovos quentes, um calice de vinho Malvasia; feito o que, sae logo, sem destino, o pensamento preso ao compromisso da noite que se approxima. Roda a esmo pelas ruas de Botafogo. Chegando em certa altura da praia, manda abbaixar a cappota do carro e affrouxar o passo dos animaes; em dado momento, estaciona debaixo de uma arvore, como quem espera por alguem ou pretende descobrir alguma coisa; depois, salta em terra e entretem-se dando uma pequena volta pelo caes. De posse do endereço de Laura, não se contem de 209
anxiedade e manda o cocheiro passar por aquelle trecho de Sancta Thereza. Quer ver, ainda à luz do dia, onde reside a extranha dominadora que tanto influencia a cabeça de Amelia. Pelas trez horas está deante do logar marcado, observando de dentro do carro que roda lentamente e estaciona por alguns minutos; é uma casa discreta, de janellas britannicamente enquadradas na fachada de tijolos vermelhos, muito adjardinada e coberta de trepadeiras, escondida entre meia duzia de arvores gigantescas, que lhe dão um adspecto mysterioso. Transpondo com o olhar o portão da chacara, Horacio advista o caramanchão sob o qual Laura se assenta ao lado da prima quando conversam a sós. Ao galan, como aos proprios moradores do bairro, é difficil imaginar que aquelle sossego possa um dia ser perturbado pelas obras de implantação da futura linha de bondes e que, inaugurado tal serviço de transporte, o pacato silencio das sinuosas ladeiras seja quebrado pelo ruido dos cascos dos burros e das rodas attritando contra a fenda dos trilhos. Mais difficil ainda seria imaginar de que maneira aquelles pesados carros, com lotação para mais de vinte passageiros, venceriam a parte mais ingreme do itinerario até chegar ao morro de Paula Mattos. O que se commenta, e que na practica accabará occorrendo, é que haverá duas linhas, uma na parte baixa e plana da cidade (a cargo da Companhia de Carris Urbanos) e outra na parte alta (entregue à Companhia FerroCarril Carioca); a connexão entre ambas dar-se-a por um plano inclinado com extensão de meio kilometro, a partir da rua Riachuelo, no qual os dois unicos vagões serão movidos por tracção a vapor, attravés de uma machina elevatoria fixa; chegando ao alto, os passageiros que baldeassem tomariam outros bondinhos puxados a burro, que subiriam vagarosamente as ruas do bairro até o poncto final, e na volta desceriam sem 210
os “motores”, só com a adjuda das declividades. Nem passa pela cabeça dos habitantes que no fim do seculo, com o advento da electrificação, esse ja arrojado plano inclinado possa ser substituido pelo viaducto natural sobre os arcos da Lapa, algo mirabolante demais para as projecções dos usuarios de tilburies e charrettes ou dos audazes cavalleiros urbanos... Nessa tarde Horacio viaja mais alto que qualquer projecto futurista, à espera da hora decisiva. O encontro está previsto para dar-se no restaurante do Versalhes. Ao annoitescer, quando o pavão chega ao hotel, não lhe passa despercebido um magnifico landau tirado por duas eguas de raça, estacionado à porta; mas não faz maior caso e sobe a escada. “É aqui.”, diz-lhe um creado discretamente, mal o vê, fazendo-o entrar para um gabinete particular. O lorde está à cabeceira da mesa, ladeado pela irman do marquez de Utinga, que accaba de chegar; do outro lado, Laura e a prima. Horacio toma assento para ser informado de que não jantará alli; seguirá com as primas para a casa de Laura, emquanto Roger ficará fazendo companhia a D. Dolores, com quem compartilhará a ceia ainda não servida. Ao ver que Horacio accapta as instrucções sem perguntas, Laura entrega-lhe os hombros, e o galan envolve-a na cappa, uma grande cappa alvadia e orlada de arminhos; em seguida accompanha as bellas mulheres até um cupê que os espera à porta, no mesmo poncto onde pouco antes se achava o luxuoso landau de D. Dolores, que chamara a attenção do rapaz. Terá chovido quando chegam os trez à casa que Horacio 211
ja conhesce por fora. Vem recebel-os um creado inglez, que os faz entrar para uma pequena salla, caprichosamente mobiliada. “Espere um pouco por mim!”, diz Amelia ao rapaz, fugindo para o interior da casa, emquanto Laura lhe transmitte algumas praxes do Club a serem seguidas, e tambem se retira, deixando-o momentaneamente a sós. Horacio attira-se sobre um divan e põe-se a fazer intimas considerações accerca dos actos que está por practicar. Ainda é tempo de desistir, mas a presença de Amelia é nada menos que magnetica, e a de Laura magistral. Cabe a elle, o conquistador imbattivel, portar-se agora como um prisioneiro, docil e sollicito. Então abre-se uma porta almofadada, que communica com o interior da casa, e as duas reapparescem ja em trajes domesticos, os cabellos a meio despenteados e os pés em chinellas chilenas. Horacio fica visivelmente perturbado ao notar que os tornozellos de ambas estão à mostra e que, mais do que nunca, é possivel comparar o pé inglez de Laura com a mehuda maravilha calçada por Amelia, deante da qual a chinella da prima paresce um tamanco de tão grande. “Então, Sr. Horacio, vae impaciencias, entendido?”
se
comportar?
Nada
de
“Entendido, D. Amelia...”, repete elle com serenidade, mas sem tirar os olhos do chão. “Muito bem! (diz Laura) Passemos para a salla de jantar.” 212
E accrescenta, puxando-o pelo braço: “Entre por aqui mesmo.” Os trez attravessam uma pequena antecamara, depois uma grande alcova, que Horacio considera de relance, e affinal, tendo ainda passado por um quarto de toucador, acham-se na salla de jantar. Não ha duvida, pensa o pavão, de que os commodos teem uma disposição algo labyrinthica naquella residencia. “Estamos a sós por emquanto. (observa a rapariga ingleza, mostrando a ceia ja servida) Dei ordem ao coppeiro que se recolhesse, e ninguem nos fará companhia à mesa.” “E depois? Teremos companhia?”, quer saber o rapaz. “Logo o senhor saberá. Quer uma fatia de presunto?”, offeresce Laura. Horacio serve-se de Chianti, seu vinho predilecto, e brinda às donas de seu destino. Pouco depois está accommodado, ao lado de Amelia, no mesmo sofá que ja conhescemos, favoravelmente situado a pouca distancia do indefectivel pellourinho. Laura permanesce em pé, empunhando a vara que lhe serve tanto de rebenque quanto, neste momento, de accessorio didactico, para apponctar as partes do mechanismo e as respectivas funcções. Horacio quer prestar attenção à demonstração da professora, mas Amelia não se cansa de provocal-o, appoiando o pezinho sobre um escabello e ballançando-o displicentemente. Logo, porem, os factos fallam mais alto e mobilizam o 213
olhar do fino cavalheiro, deixando-o boquiaberto ante a desenvoltura com que Laura traz a encappuzada Rosa até o pellourinho, prende-lhe os pulsos e o pescoço, e constrange-a, successivamente, às graduações admissiva, remissiva e permissiva, entre sessões de açoite proporcionalmente dosadas. Sob os lamentos da voluntaria, o galan exquesce-se temporariamente do temptador pezinho em sua chinellinha artezanal, e fixa toda a sua curiosidade sobre a nudez pallida, agora listrada de vergões como os flancos de uma zebra. Quando o rapaz ja crê que a mulher não pode mais supportar e terá que ser libertada, Laura revela que ainda falta uma graduação a ser exemplificada: a “submissiva”, na qual a victima fica inteiramente prostrada de bruços, tendo o pellourinho descido até o chão. Nessa posição o açoite pode attingir por egual qualquer poncto posterior do corpo suppliciado, desde a nucha até os calcanhares, ponctos que tambem jazem à mercê do expezinhamento. É o que Laura practica neste instante, interrompendo a serie de golpes para, descalçando as chinellas, subir às costas de Rosa e tripudiar sobre suas feridas, equilibrando-se e caminhando como si fora uma massagista oriental. De repente, Laura salta para o lado e annuncia: “Agora, Sr. Horacio, vou lhe mostrar uma interessante variação: a graduação submissiva inversa! Observe só!” E abre o pellourinho, obrigando a exhausta paciente a virar-se de barriga para cyma, recollocando os pulsos e o pescoço nos buracos da madeira. Vendo-a totalmente exposta, os seios arfando, subindo e descendo, e o excancaro vaginal a brotar corrimentos líquidos por entre os crespos pellos, Horacio extremesce e muda de posição no sofá; olha para o lado, a ver si a expressão de Amelia denota algum signal de choque, mas a moça appenas ri candidamente, appreciando a scena com superior desdem. 214
Então Laura approxima-se da cabeça de Rosa, contempla-a de cyma para baixo em attitude de profundo desprezo, e pisa-lhe o rosto de chofre, como quem se appoia num estribo de bonde. A mulher, sem poder ver sua aggressora e sentindo os labios comprimidos pela sola nua, geme surdamente. Laura ordena: “Lambe, queridinha! Quero sentir si tens sede ou si tua lingua ainda não está secca! Anda!” Amelia allarga seu sorriso angelical, e Horacio contempla, fascinado, a longa lingua da poetiza a dobrar-se para cyma e para os lados debaixo do pé docemente suarento da dominadora. “Agora é minha vez!”, exclama subitamente Amelia, levantando-se e caminhando com toda a sua graça para juncto de Laura. Horacio mal pode accreditar no que vê: aquelle pezinho mimoso, o “seu” pezinho, sempre promettido e até então inattingivel, desvencilha-se da chinellinha e pousa suavemente sobre os labios entreabertos da flagellada, ainda tremulos e receosos de outros rudes pisões. Mas não, desta vez a planta assetinada appenas deslisa de encontro à equina beiçorra, no momento em que se ouve a voz quasi infantil da filha do Salles: “Passa a lingua bem de leve, queridinha! Quero sentir aquellas cocegas que fazia meu cãozinho quando eu era pequena! Vamos! Assim! Continua! Agora nos dedos!” E a lingua quasi que se colla, feito uma palmilha, em todo o comprimento da delicada planta arqueada, intromettendo a rubra poncta pelo vão dos minusculos artelhos redondinhos... para desespero do galan, impotente deante de tamanha provocação. Quando Rosa, affinal, se vê livre para retirar-se, 215
Laura annuncia que a primeira sessão está encerrada, e Horacio é invadido pela frustração. “Mas... e quanto a mim? Não provei, nem do chicote, nem... nem...” “Não seja malaggradescido, Sr. Horacio! (replica Laura) Ao menos agora o senhor ja pode imaginar com fiel nitidez aquillo que tanto deseja, não é mesmo, Amelia?” “Mas é claro! E quem sabe, Sr. Horacio, si numa das proximas sessões não será do senhor a primeira bocca masculina a molhar de saliva este pezinho aqui, hem?” Horacio não tem outro remedio sinão concordar, ebrio de desejo, e presenciar a delicadeza com que a moça torna a calçar sua chinellinha, exhibindo com desfaçatez o roseo peito do pé, tão saliente que até paresce uma petala bojuda e bordejada de unhinhas nacaradas. Àquella altura o lorde, que entrara sem ser notado nem ouvido, está a postos em seu observatorio secreto, e o tilbury a postos defronte a casa, à espera do pavão. Este, sob o impacto da emoção experimentada, chega mais tarde ao ecstase em seu leito sem necessidade de recorrer ao auxilio physico da botina carinhosamente guardada, que, pela primeira vez, paresce exquescida dentro do cofre. Na noite seguinte, ja antegozando a felicidade de ver-se, submissivamente graduado, no logar da ignota poetiza, Horacio chega à casa da implacavel inglezinha disposto a deixar-se despir e fustigar sem o minimo resquicio de pudor, sempre na supposição de 216
que estará a sós com duas, talvez trez mulheres... não calculando a testemunhal presença do lorde, por detraz de seu “peephole”. De facto, ha uma terceira mulher, porem o pavão não lhe consegue ouvir siquer a voz, concentrada que está, do começo ao fim, em tomar nota de tudo a que o rapaz será submettido. Eis, portanto, em quaes circumstancias D. Vicentina pôde registrar, com a pormenorizada fidelidade que lhe é peculiar, a alegria incontida de Laura ao ter, finalmente, aquelle arrogante fidalgo à mercê do seu braço e do seu pé. Radiante de jubilo por ter sido dispensado do uso do cappuz, Horacio tem sufficiente angulo de visão para, entre uma e outra lambada, vislumbrar, ao lado dos angelicaes pezinhos de Amelia descansando no escabello, as pernas cruzadas da escriptora, a quem não excappa, inclusive, as diminutas proporções que o membro do rapaz appresenta emquanto flaccido, o qual, entretanto, se expande e se enrijesce mais e mais sob o effeito do latego (corroborando aquillo que Laura e o proprio lorde veem affirmando accerca da erecção didascalica), para voltar à dimensão da flaccidez nos intervallos entre as sessões, quando a dor recrudesce de intensidade e a exhaustão substitue a excitação. Vicentina detalha até a configuração da glande do galan, que, ao contrario da phimose de Leopoldo, procura mostrar-se descoberta do prepucio à medida que o membro ganha corpo. Muito meticulosa, a memorialista chega a levantar-se do sofá para analysar de perto os movimentos anaes e escrotaes de Horacio, quando este apparta as coxas para melhor supportar a graduação permissiva, e quando Laura, empolgada a gritar seus repetidos “Ya! Ya!”, faz estalar o marmeleiro de encontro à pelle das nadegas, obrigando o rapagão a contrahir os musculos, electrizado pelo choque. 217
É chegado emfim o momento da inversão de posições na graduação submissiva, e o galan encontra forças para virar-se agilmente, appoiando o dorso suado e sangrento sobre o soalho de madeira. “É agora! (pensa elle, sentindo que a poncta da vara lhe cutuca os testiculos, tal como cutucara o anus durante as graduações precedentes) Ella vem pôr a sola na minha cara! Ella vem me pisar!” E fecha os olhos, na intensa exspectativa que lhe faz o penis dar saltos sobre o ventre. Mas a sola ainda não é a de Amelia. Não é desta vez que o fetichista irá saciar-se ao contacto da cutis macia da planta de uma menina virgem. Por emquanto a pelle que se attrita contra seu bigode, seu nariz, seus labios e (sob ordens) sua lingua é a da experiente planta da ingleza, que se exparrama por toda a extensão daquella face aristocratica e desdenhosa, amarfanhando-lhe os traços physiognomicos a cada pisão mais calcado. “Lamba mais, Sr. Horacio! Está envergonhado, porventura? Ou sente nojo? Então? Mostre essa lingua! Mais! Ponha-a toda para fora! Isso! Agora fique assim até que a lingua seque e eu me canse do capacho!” E Laura exfrega, lenta e repetidamente, cada um dos pés sobre o trappo em que se transformou aquella posta de carne esticada e dolorida. Tudo por um ideal, que, comquanto se mantenha inalcançado, affigura-se cada vez mais proximo da concretização. Basta addeantar que, appenas com a idéa do occorrido hoje, appigmentada pelos risos de Amelia, pelos sussurros de Vicentina e pelos “yas” de Laura, accrescida do sabor da planta britannica 218
indelevelmente impresso nas papillas gustativas, Horacio passa uma noite como jamais passara e da qual jamais se exquescerá, até porque a proxima sessão promete emoções ainda mais fortes, possivelmente o desfecho apotheotico.
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19 O PAVÃO E O PALMIPEDE
Refere o historiador que “No Recife, como no Rio de Janeiro, tornaram-se communs, nas melhores casas de cidade, os jardins com alguma coisa de mourisco, a agua excorrendo o dia inteiro de alguma bicca de bocca de dragão, azulejos brilhando no meio das plantas e nas fontes. O Rio de Janeiro chegou a ter casas-grandes de chacara famosas pelos seus jardins alegrados por azulejos, por figuras graciosas de louça, ennobrescidos por jarros que desde os começos do seculo XIX apparescem nos annuncios dos jornaes. Do seculo XIX restam-nos lithogravuras de jardins de sobrado e de chacaras, não só animados pela agua das fontes e pela frescura dos repuxos, como povoados de figuras de anõesinhos barbados, de meninozinhos nus, de escravos bronzeados, fortes, respeitosos como para servirem de exemplo aos de carne, de mulheres bonitas, representando as quattro estações e os doze mezes do anno, umas sumidas entre folhagens, outras bem ao sol, obstentando brancuras grecoromanas; algumas em attitudes solennes, segurando fachos de luz que no fim do seculo XIX se tornariam biccos de gaz. Tambem se encheram os jardins de pagodes ou palanques, de cercas de pitangueira ou de flor de maracujá, de aléas de palmeiras, de jarros, de kiosques com avencas. O jardim da casa brazileira, emquanto conservou a tradição do portuguez, foi sempre um jardim sem a rigidez dos francezes ou dos italianos; com um sentido 220
humano, util, dominando o esthetico. Irregulares, variados, cheios de imprevistos. Havia sempre nos jardins das chacaras um parreiral, sustentado por varas ou então columnas de ferro: parreiras com cachos de uva doce, enroscando-se pelas arvores, confraternizando com o resto do jardim. Recanthos cheios de sombra onde se podia merendar nos dias de calor.” No apprazivel bairro de Botafogo fica, rodeado por um desses jardins, o palacete assobradado defronte ao qual desembarca Horacio, accompanhado do Lord Steppingstone. A casa pertencera a um velho comerciante portuguez, e fora comprada em mau estado de conservação. Externamente a apparencia era muito feia, mas seu bello interior interessou à compradora, que, por ser irman do marquez de Utinga, empregou na reforma todos os requinctes que um tanto de dinheiro e outro tanto de nobiliarchia podem congregar. Depois de restaurado, notam-se por todo o antigo casarão consideraveis transformações. Ao bom gosto dos aristocratas, herdado com o sangue da familia, somma-se agora a excentricidade de uma das mais intrigantes damas da sociedade fluminense. Tristonho e assombrado emquanto pertencera ao mercador, hoje o sobradão se destacca em meio à arborização do bairro como um comfortavel e accolhedor endereço para as festivas extravagancias da elite e, em occasiões especiaes, para as obscuras actividades dos membros do Club Propedeutico, quando então se torna um recincto privado e indevassavel aos não-iniciados. Ja se lhe não vêem espetar do alto do frontispicio as caducas telhas, negras e esborcinadas, por entre cujas fendas se extravasavam longos fios de coloração barrenta, chorados sobre os tijolos expostos, que nem baba por velha bocca desdentada. Agora, sente-se 221
alli a mão de quem entra na vida disposto a viver; desde o portão da chacara vão os olhos descobrindo em que se regalar; caminhos de murta, cantheiros de finas flores, repuxos, cascatas e estatuas, globos de mil cores, caramanchões e pequenos bosques artificiaes: tudo nos diz que alli reside agora gente liberal e, presumivelmente, libertina; pessoas amantes do luxo e, presumivelmente, da luxuria. As escadas externas, antes ennegrescidas pelo tempo, são hoje mais claras, mais enfeitadas de verdura e, só com vel-as, ja se adivinha, ja se presente o sophisticado apparato que vae pelo interior da casa. No imponente saguão da porta principal vê-se perpassar de quando em quando um vulto alto e magro, muito silencioso, vestido de libré cor-de-havana com botões de ouro, a cabeça toda branca e o queixo tremulo: é o mais antigo lacaio de D. Dolores, que ella mantem a seu serviço pelo facto de, segundo dizem, ser um bruxo. E nas sallas, que se seguem a essa de espera onde vagueia o maccabro creado, encontram-se, restaurados e em novas molduras, aquelles carrancudos retractos de tyrannos e torturadores celebres, como Nero, Torquemada e Gilles de Rais, com os quaes um finado trafficante de escravos, amigo do marquez, illustrara outrora as paredes de suas fazendas em Minas. Ao estreitar a amizade com D. Dolores da Costa, poucos annos attraz, o lorde confirmara sua primeira impressão de que a irman do marquez differia em muito da escandalosa Sarah Potter que elle conhescera em Londres. Em 1863, a Academia de Flagellação da reputada cafetina fora denunciada por uma associação humanitaria, e Sarah teria sido presa sob accusação de açoitar uma 222
moça contra a vontade desta. Na verdade, o que a policia de Westminster tornava publico era o que ja se sabia à bocca pequena: que tanto as flagelladoras, moças ou velhas, quanto as flagelladas que ingressavam no estabelescimento de Sarah, bem como a clientela masculina, estavam plenamente conscientes do que procuravam -- muito embora um dos professores, o coronel Spencer (de quem Roger Steppingstone fora discipulo dilecto) preconizasse a sadica theoria de que o prazer do carrasco é muito maior quando, ao invés da pelle curtida de uma prostituta ou de uma joven maltractada desde pequena, é a delicada cutis de uma moça de familia, recaptada e bem-educada, que recebe as chibatadas -- donde a infundada supposição de que alguma das pacientes teria sido alliciada ou sequestrada. Si é certo que, segundo Spencer, as mulheres tambem se deliciam com uma pequena crueldade practicada em alguem de seu proprio sexo, e que as didascalicas (em geral viragos de sangue azul) estão cansadas de victimas vulgares e voluntarias, quasi sempre remuneradas, por outro lado ninguem seria ingenuo a poncto de accreditar que uma nobre virgem fosse sacrificada em holocausto só para satisfazer o capricho de um circulo de estupradores abbastados. No entanto, foi isso que as auctoridades londrinas allegaram, e Sarah Potter, cujo pensionato dava allojamento a mocinhas nada innocentes, passou algum tempo na prisão, arrastando comsigo o coronel Spencer e outros cumplices. Depois de solta, reenceptou uma carreira iniciada muitos annos antes, que a obrigara a mudar de residencia innumeras vezes e lhe accarretara outras detenções, inclusive por vender livros obscenos. O facto é que, até sua morte (que occorrerá em 1873), a alcoviteira terá obtido consideravel lucro com suas actividades, a poncto de manter uma casa de campo e sustentar alguns amantes (entre os quaes o proprio Spencer) -- um historico do qual Steppingstone permanesce informado, graças às 223
chartas, accompanhadas de livros, que regularmente recebe da Inglaterra, remettidas pelos antigos confrades da Academia. Ja a posição de D. Dolores da Costa é bem mais comfortavel: sem a necessidade de abrir um bordel camuflado ou de commercializar litteratura pornographica para sobreviver, a depravada solteirona desfructa da mais absoluta impunidade, graças à influencia do marquez de Utinga e à leniencia das instituições brazileiras, podendo assim associarse ao eschema do lorde e, de lambuja, saciar a volupia attravés de seu mais pittoresco passatempo: presenciar a grottesca scena de dois homens que se subjugam e se humilham mutuamente e que se prestam, portanto, ao descredito da superioridade masculina, these da qual é fervorosa adepta. Aquillo que para D. Vicentina é um objecto de estudo, um campo de trabalho intellectual, como qualquer caso pathologico de comportamento sexual, para D. Dolores não passa de entretenimento, de espectaculo circense, como os romanos viam a lucta de gladiadores, em que o vencedor, appós recorrer a toda sorte de methodos violentos, põe o pé no pescoço do vencido antes de desferir o golpe de misericordia. Esta é a principal razão pela qual a escriptora frequenta os saraus de D. Clementina e a irman do marquez os evita. Outra razão seria o comprehensivel facto de que, embora conhesça a fama de Mme. Fragonard e tenha gostos artisticos e musicaes muito proximos aos da franceza, D. Dolores desdenha daquella que considera uma “pretensa burgueza”, que julga ter adquirido a cultura européa appenas por ter sido casada com um cidadão francez. Mas quem sabe si a causa mais occulta do despeito de Dolores por Clementina seja a condição desta, de esposa e mãe, algo que a rancorosa 224
solteirona no fundo inveja... Em todo caso, para mostrar-se mais elitista e selectiva que a popular matrona, D. Dolores só frequenta as casas de familias “distinctas”, como os Azevedo Camargo ou os Pereira Salles. Quanto a estes, D. Leonor, por sua vez, recebe a irman do marquez de braços abertos, mas não vê com bons olhos a amizade entre Amelia e Laura. Appesar de conhescer a fama de D. Dolores, a mulher do Salles faz vista grossa às “exquisitices” daquella espirituosa commadre, talvez na supposição de que, em caso de algum escandalo, os Costa teem respaldo politico e economico, emquanto os Lawrence ficariam em situação bastante delicada, refugiados que estão de implicações semelhantes em sua pátria de origem. Emfim, cada qual das damas joga com as chartas que mais lhe interessam, ainda que nada impeça a filha dos Salles de privar da companhia da prima, gostem ou não seus paes. Horacio fora ter com Lord Steppingstone no Versalhes, para ser posto a par dos proximos passos de sua iniciação no Club que, conforme fica sabendo nessa noite, tem varias sedes, uma das quaes o proprio hotel, cujo gerente é amigo e confrade do inglez. Dalli seguem para a primeira sessão em casa de D. Dolores, onde accabam de entrar. Ao primeiro passo que dá de portas addentro, o pavão nota logo em tudo uma certa felicidade de excolha, uma bem-educada sobriedade nos objectos de decoração; percebe que não entra em uma dessas casas burguezas em que a gente se fatiga só com olhar os moveis e donde se sae com a alma attordoada e cheia de tedio. Não fosse pelas figuras emmolduradas a partir do vestibulo, por esta ou aquella estatueta 225
orgiaca, dir-se-a que estamos em casa de algum deputado conservador ou de um conselheiro do Imperio. Aquelle perfume de riqueza, aquelle meio advelludado e acconchegante condizem com o temperamento refinado do pavão, que logo sente-se em casa e tranquillizase momentaneamente sobre sua integridade, ao menos physica. Affinal de comptas, como diria no seculo seguinte uma canção dos Kinks, um homem respeitavel precisa parescer são de corpo e mente... Os trez, Horacio, Roger e Dolores, conversam por longo tempo ao fundo de uma salleta, na qual se costuma jogar. Depois passam ao sallão proximo, onde duas rabecas, uma violeta e um violoncello dispõemse a executar uma serenata de Schubert. Encerrada a serenata, a amphitryan annuncia a Horacio que vae-se dansar uma quadrilha e pergunta si elle quer um par. O rapaz responde que ficaria muito lisonjeado si ella propria o acceitasse para seu cavalheiro. “Com muito gosto, mas fique sabendo que o senhor perde com a troca! (replica a dona da casa, com a habitual ironia) Amelia e Laura ja devem ter chegado; estão na salla de visitas com outras amigas nossas...” Dentro de poucos minutos, Horacio é o objecto da curiosidade de todas as damas. Seu typo destacca-se naturalmente, sem o menor exaggero de galanteria, sem phrases pretensiosas, e sempre correcto, elegantemente frio e de um distinctissimo commedimento nas palavras e nos gestos. Percebe-se que o pavão se resguarda, para evitar qualquer indiscreção na presença das filhas do marquez de Tatuapé ou do visconde de Poá. Appenas Amelia e Laura trocam sorrisos maliciosos, piscando uma para a outra. Amelia é seu par nos “Lanceiros”; depois cede-lhe tambem uma valsa, terminada a qual põem-se ambos a conversar. 226
“Será hoje, D. Amelia? Sinto-me como um cão sedento, com a lingua de fora...” “Mas o senhor ainda se tem na compta de cão de raça, não é? Si não for hoje, de admanhan não passa; mas saiba que, antes de beber da minha agua, sua lingua precisa beber um pouco da sargeta, como a de um viralattas...” “Como quizer, D. Amelia. Ja não posso recuar, depois de ter chegado ao poncto em que cheguei...” E o galan baixa os olhos até a fimbria do vestido da moça, sabendo agora exactamente o que ha por detraz daquellas dobras de panno. Mais tarde, appós despedirem-se das demais visitas, trez senhoras e dois cavalheiros saem ao jardim e dirigem-se para os fundos do terreno, poncto em que a vegetação se addensa e, em meio ao pomar, ergue-se uma construcção terrea cuja architectura imita a fachada de um mosteiro gothico em proporções reduzidas. D. Dolores passa a chave às mãos de Roger, que abre a porta ogival para que todos entrem. O interior da Cappella (como a chama a dona da casa) só é conhescido dos membros do Club, inclusive do velho bruxo uniformizado, e alli se realizam as sessões mais secretas. Horacio é convidado a accommodar-se na salla de reuniões, entre as poltronas reservadas ao inglez e às duas primas, emquanto D. Dolores ausenta-se por alguns minutos a fim de ultimar certos preparativos na salleta ao lado, que paresce servir de camarim para as funcções performadas na salla maior. Horacio dissimula sua apprehensão e tenta concentrar o pensamento no pezinho que descansa da dansa logo 227
à sua direita. Assim que D. Dolores toma assento, Roger assume a palavra e confirma aquillo que o olhar curioso do galan ja observara: o pellourinho, do qual teem todos privilegiada perspectiva, é identico ao que se acha installado em casa de Laura. Tambem é o mesmo o marinheiro branco e careca que adentra, vindo da salleta, para, ao contrario do papel que desempenhara deante de Leopoldo, collocar-se agora no logar da victima. Em seguida, entra um segundo marinheiro, negro e muito robusto, os musculos reluzindo sob a fracca claridade azulada. Desta vez, annuncia o lorde, a platéa assistirá “a uma demonstração de como um castigo maritimo pode tornarse gozo celeste ao espectador terrestre”, mas appenas D. Dolores cacareja sua gargalhada de applauso ao jogo de palavras. Si na iniciação de Leopoldo o instrumento com que Rosa fora exemplada é uma vara especialmente tractada para que se admaciem e suavizem os effeitos lesivos dos golpes, agora é authentico o junco empregado pelo negro: flexivel porem rijo o sufficiente para produzir ferimentos mais severos que os de uma convincente simulação. Apparentemente os dois marinheiros se conhescem, podendo-se suppor que sirvam na mesma embarcação e approveitem as horas de folga para prostituir-se em terra, obtendo aqui a gratificação por algo que, applicado a bordo, não passa de punição prevista no codigo da corporação para os casos de indisciplina. O romancista da epocha escreveria que, tal como no convez ensolarado, um dos marinheiros alli se acha tambem, no seu posto, à espera de um signal para descarregar a chibata, implacavelmente, sobre a victima, sentindo um prazer especial naquillo: “Que diabo! Cada qual tem a sua mania...” 228
Mas mesmo que se conhesçam e até sejam intimos camaradas, não deixa de ser constrangedora, aos olhos da preconceituosa sociedade civil, a circumstancia de que o branco troca de posição com o negro, este empunhando o junco e aquelle curvando-se às degradantes graduações do pellourinho didascalico. Para os propositos de D. Dolores, entretanto, tal condição accentua às mil maravilhas a desmoralização do macho pelo macho. No castigo “official” o commandante do vaso de guerra estipula previamente a quantidade de lambadas, ordinariamente vinte e cinco para delictos de pequena gravidade, podendo passar de cento e cincoenta quando o culpado tem compleição physica mais herculea, capaz de supportar a pena sem demonstrar que fraqueja. Aqui a proporção do supplicio depende unicamente do humor de quem batte e de quem assiste. Submettido o branco à graduação admissiva, o latagão negro, “muito alto e corpulento, figura colossal de caffre”, no dizer do romancista, sorri de satisfacção e verga o junco para experimentar-lhe a flexibilidade. O careca, com expressão resignada, sente sobre o dorso a força brutal do primeiro golpe, emquanto a voz de D. Dolores canta, imitando um tom militarmente auctoritario: “Uma!... (e successivamente) duas!... trez!...” Cortado pela dor aguda, o rapaz empina-se na poncta dos pés, arregalando muito os olhos, fechando as mãos como si fosse revidar uma aggressão a socos. Seguemse mais chibatadas, desferidas pelo athletico negro, que esboça um risinho vaidoso no cantho da bocca, 229
como si estivesse perante as fileiras da marinhagem, cada vez que D. Dolores macaqueia a comptagem do commandante, entre gargalhadas, estrepitosas de Laura e abbafadas de Roger. Amelia e Horacio, menos contagiados pela pantomima, appenas sorriem. A uma ordem da dona da casa, faz-se a competente pausa para que o careca seja posto numa variante da graduação remissiva, como explica o lorde: ao invés de adjoelhar-se e manter o torso na vertical, a victima não dobra as pernas e deixa que a parte superior do corpo fique suspensa na horizontal, expondo assim as nadegas e costas à plena visibilidade da platéa e à acção da vara, como que suggerindo algum abuso addicional que pode ser practicado a qualquer momento, bastando que o carrasco tenha o subito impulso de attracar-se ao subjugado e sodomizal-o. Mas não é este o typo de conjuncção carnal que está reservado ao branco, segundo as intenções de D. Dolores. Ja se lhe notam nas costas as marcas do junco, umas sobre outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e lattejantes, cortando a pelle em todos os sentidos. De repente, porem, o careca tem um extremescimento mais saccudido e soergue uma perna: a chibata vibrara em cheio sobre os rins, empolgando o baixo-ventre. Fora um golpe traiçoeiro, arremessado com uma força extraordinaria. Por sua vez o negro extremesce, mas extremesce de gozo ao ver, affinal, triumphar a rijeza do seu pulso. A assistencia, interessada, allonga o olhar, cheia de excitação. Só então ha quem veja um poncto vermelho, uma gotta rubra deslisar no espinhaço branco do marinheiro e logo este poncto vermelho se transformar numa fita de sangue. Depois de aguentar no lombo algumas dezenas de chibatadas, o branco está devidamente admestrado, e 230
a altura de sua cabeça está regulada para prestarse a uma penetração mais chocante que o coito anal, penetração que se verifica do outro lado do pellourinho, onde o negro se posta bem erecto, mãos na cinctura, exhibindo os musculos, as espaduas suadas e reluzentes, um sulco profundo e liso de alto a baixo no dorso, a nudez agora completa, à vista do respeitavel publico o membro que pulla de encontro ao rosto contrahido do castigado. “Querem ver (brinca D. Dolores) como se dá de mammar a um bebê chorão? (e para o negro) Vamos! Quero ver quanto cabe!” O negro força o penis entre os labios do branco até que este ceda, e empurra o mais que pode. O branco não tem siquer a opportunidade de decidirse a fellar: o algoz copula rapida e rhythmadamente no fundo de sua garganta, ejaculando em questão de segundos e provocando os gritinhos estridentes de Laura, que batte palmas. Minutos mais tarde, ja retirados os marinheiros, a platéa repercute em tom animado as impressões causadas pela inequivoca demonstração do poder persuasivo do açoite sobre a passividade da victima, tanto quanto sobre a virilidade animalesca e instinctiva do carrasco. Horacio sente-se repugnado, não pela flagellação em si, por mais nua e crua que possa resultar -- ja que numa sociedade escravocrata e em tempo de guerra o artigo 179 da Constituição pouco significa -- mas pela sordidez daquella violenta inversão de papeis: um branco deshonrado por um negro e ao mesmo tempo trocando a masculinidade pela mais torpe das nodoas, 231
a polluição oral. Aquillo ultrapassa os limites da mais degradante hypothese a que o galan admitte subjeitar-se em troca do prazer de sentir nos labios o pé de uma mulher. Amelia, de sua parte, tambem não se compraz na comedia que tanto diverte a devassa Dolores, o insaciavel Roger e a perversa Laura: limita-se a sorrir desdenhosamente, seja de quem practica ou de quem apprecia taes excessos. Quando, pois, o pavão e a garça trocam olhares e cochichos sob o impacto dos ultimos urros de gozo do negro, paresce evidente aos outros trez espectadores que nenhum dos dois papeis enscenados ao pellourinho teria Horacio de Almeida como protagonista ou antagonista. “A senhora não espera que eu...”, ia dizendo o galan quando o lorde intervem. “Não tema, Sr. Horacio! (diz o inglez) Basta-nos que o senhor não se tenha retirado antes de finda a sessão. A scena que accabamos de ver tem para cada um de nós um significado e uma utilidade. Ao senhor não é mais que uma prova de quão baixo pode um homem chegar sob o effeito da flagellação. Pessoas de nivel mais alto, como o senhor, não precisam degradar-se tanto; appenas o bastante para aggradar D. Amelia... Quanto a mim, posso lhe addeantar que não estarei presente à sessão de admanhan.” “Deixe-me pôr as coisas em prattos limpos... (attalha D. Dolores) Estive a conversar com Amelia, que é uma moça pura, incapaz de tocar num chicote, muito menos de ser tocada; sabemos bem o que é que o senhor mais apprecia nas mulheres. Pois bem, meu caro: admanhan comparescerão à Cappella cinco senhoras para ver Horacio de Almeida, o unico cavalheiro presente, prompto a satisfazer este pequeno capricho nosso, que comparado à funcção hoje executada não passa 232
de brincadeira infantil. Quer saber qual é o nosso capricho, Sr. Horacio? Estamos todas dispostas a sentir um pouco de cocegas na sola do pé. Inclusive Amelia. (e voltando-se para a moça, que em outras circumstancias teria corado) Não é mesmo?» “Deveras! (responde Amelia, sorrindo) E o senhor sabe perfeitamente a que especie de cocegas allude D. Dolores, não sabe?” Horacio assente com a cabeça, embaraçado. “Mas fique sabendo (prosegue a dona da casa) que ao menos uma de nós vae açoital-o antes, provavelmente Laura, que é quem mais gosta de batter; só então poderá o senhor tocar o pezinho da nossa amiga aqui. Mas terá de provar a todas nós que seu maior desejo foi alcançado, e refiro-me a uma prova concreta; melhor dizendo, liquida e certa! Estou sendo clara, Sr. Horacio? Decida-se: é admanhan ou nunca!” O galan, meio alliviado pela perspectiva de estar entre mulheres e meio perturbado pela proximidade do contacto decisivo com seu fetiche, acceita o desaffio promptamente. Na noite seguinte, os vitraes coloridos da Cappella filtram a luz accesa, que vista de longe dá impressão de uma abbadia perdida em meio à floresta admeaçadora, à medida que Horacio dirige-se para la, excoltado pelo tetrico lacaio. Ao approximar-se mais, escuta a animada conversa entre varias vozes femininas. Mais alguns passos, e é recebido por D. Dolores e conduzido ao circulo formado por Amelia, Laura, Rosa e Vicentina, esta devidamente munida de seu caderno de notas. 233
“Dispa-se aqui mesmo! (ordena Laura) Queremos vel-o nessa operação; proceda com bastante calma, como si estivesse a sós em sua alcova.” Horacio acha-se fragilizado ao sentir todos aquelles olhares sobre si, sobre sua nudez, sobre sua belleza masculina, que até então fora plenamente exhibida appenas ao espelho, pois nem siquer suas amantes a tinham contemplado por inteiro. Mas sua inhibição é justamente o que as vingativas senhoras pretendem provocar, cruelmente decididas que estão a impor obstaculos à erecção do garanhão, como para testar-lhe a virilidade e a vehemencia do impulso fetichista. Mas o instincto vaidoso do macho accaba por prevalescer sobre o pudor, e o rapaz posa ao natural frente às physiognomias cuja expressão varia do rubor ao cynismo, da ironia à cobiça. Mesmo o cacarejo sarcastico de D. Dolores ja não desconcerta o desvanescido varão. Somente quando, a chamado de Laura, tem de encaminhar-se ao pellourinho, a sensação de vulnerabilidade volta a assaltal-o. O açoite empregado ja não é a terrivel chibata da marinha, mas a leve vara adequada à mãozinha enluvada da rapariga. Ainda assim os golpes parescem estar sendo applicados com o maximo de energia, e os gritos de “Ya! Ya!” encontram echo nos differentes tymbres vocaes emittidos pela exfuziante platéa, num colorido allarido de feira popular. Successivamente graduado nas posições admissiva, remissiva, permissiva e submissiva, o corpo do galan extremesce agora na situação mais critica, extirado ao comprido, nadegas para o chão, rosto e penis para cyma. Laura venda-lhe os olhos e annuncia: 234
“Agora, meu caro senhor, quero só ver a vitalidade daquelle potrinho! (e cutuca-lhe o membro com a poncta da vara, fazendo-o oscillar como um boneco de mola que pulla da caixa) Uma de cada vez, vamos nos sentar aqui (e approxima uma cadeira da cabeça de Horacio) e usar seu rosto como tapete; quanto ao senhor, tracte de usar a lingua como esponja de banho, entendeu bem?” E a ingleza dá o exemplo, sendo a primeira a refestelar-se na cadeira estoffada, a descalçar a chinella chilena e a appoiar a base de seu pé numero 39 sobre o rosto do galan, cujo penis saltita de encontro ao ventre. “O senhor adivinhará, pelo tamanho do pé, quem serão as proximas a servir; agora tracte de mostrar serviço!”, determina a dominadora. E a planta deslisa de alto a baixo, de lado a lado da cara attordoada do rapaz, que tenta alcançar com a lingua cada intersticio, cada curva, cada centimetro de pelle, para addicionar humidade à humidade, calor ao calor, maciez à maciez, prazer ao prazer. Narinas dilatadas, o suor a porejar da testa em grossos bagos, o bigode crispado, accompanhando as contorções labiaes, assim Horacio suppõe haver lavado em saliva, na sequencia, o calloso pé 36 de D. Dolores (que emitte sua gallinacea gargalhada em tom agudo, como si fora uma cantora lyrica) e o suarento pé 38 de D. Rosa, que sem o menor escrupulo introduzlhe os artelhos bocca addentro, mexendo-os em todas as direcções e zombando da soffreguidão com que o moço tenta, ora lamber, ora chupar. Entre uma e outra que se reveza na cadeira, elle consegue a tregua mental sufficiente para calcular que Amelia ter-se-a programmado para ser a ultima da fila. Portanto, a 235
vez é de D. Vicentina. Occorre que a escriptora prefere deixar-se ficar onde está, entretida com seus apponctamentos, e cede a opportunidade para que D. Dolores, mancommunada com Amelia, commetta uma pequena deslealdade no tracto que fizera com o pavão. Eis que, sahindo do camarim onde agguardava o momento propicio, Leopoldo caminha até a cadeira, assentase tranquillamente, olha para o rosto amarfanhado de Horacio com extremo rancor e sorri maldosamente; então curva-se para descalçar a botina direita e a respectiva meia de tecido grosseiro; em seguida, sem dizer palavra e sob as gargalhadas estrepitosas da mulherada em delirio, appruma-se na poltrona e accachapa aquella larga placa de carne sobre o rosto do rival, fazendo-o desapparescer debaixo da sola acchatada. O simples peso que pressiona os labios vale como ordem inequivoca para que a lingua trabalhe, e não resta outra alternativa ao perplexo pavão a não ser exforçar-se para cumprir, o mais rapida e rasteiramente possivel, a ingloria tarefa de ensaboar o pé do palmipede. Na surpresa do momento, Horacio ainda se debatte na duvida de que aquella prancha possa pertencer a D. Rosa e que os dedos do outro pé, que lhe invadiram attrevidamente a bocca pouco antes, fossem de D. Vicentina... Mas os risos estridentes denunciam que elle está sendo victima de uma boa cilada, da qual agora é tarde para excappar. Felizmente o proprio Leopoldo cansase logo daquelle jogo abjecto e dá por encerrada sua participação, calçando novamente a meia e a bota, e voltando para a salleta de onde viera. Ainda apparvalhado com a sensação de exmagamento e guardando nas fossas nasaes o halito daquelle masculo suor, para não fallar no gosto salgado que lhe trava a garganta, o pavão ouve a voz de Amelia, mais nitida a cada palavra, à medida que as risadas arrefescem: 236
“Então, Sr. Horacio? Como a natureza é variada e caprichosa, não é mesmo? Vivendo e apprendendo! Eu não lhe advisei que para chegar ao céu é preciso passar pelo purgatorio? Como costumam dizer Laura e o lorde, {no pain, no gain}...”
237
20 A CHINELLA CHILENA
Refere o historiador como se idealizava, no seculo XIX, “os pés pequenos, bonitos e bem calçados das mulheres senhoris em objectos quasi de culto ou de devoção da parte dos homens: culto social e sexual que assumiu adspecto francamente religioso, ao mesmo tempo que symbolico, na devoção pelos chamados {sapatos de Nossa Senhora}. Ewbank ainda encontrou no Rio de Janeiro do meado do seculo XIX, o culto da {sola do sapato de Nossa Senhora}, sola que era beijada por homens de cor tanto quanto por senhores brancos e respeitaveis. Viu o observador norte-americano um devoto beijar {the framed pattern of Mary’s shoesole}: o devoto {putting his hands against the white-washed wall, pressed his mouth and rubbed his nose against it}. O culto -- talvez reminiscencia do Oriente na vida ou na cultura portugueza do Brazil -- paresceu a Ewbank, {unctuoso}.” Quando, emfim, se appresenta aquelle momento magico que Horacio tanto almeja e que esperava fosse romantico e privado, para que delle pudesse desfructar o erotismo em todos os adspectos, eis que as circumstancias em nada favorescem a desenvoltura do conquistador, immobilizado que está naquella machina didascalica e ridicularizado por damas de pouco ou nenhum pudor, que lhe excarnescem da nudez e da potencia. Mas assim que Amelia occupa o assento 238
ha pouco deixado por Leopoldo e pousa suavemente o solado da chinellinha chilena sobre a testa do pavão, o penis, que apponctava para o céu como um canhão e que desapponctara temporariamente sob o effeito do pezão do mancebo, desabando como uma arvore sob o machado do lenhador, reergue-se promptamente, dando pullos de alegria como um menino travesso que pede para brincar. A mulherada applaude com palminhas nervosas e assobios, que Horacio interpreta como incentivo e transforma em estimulo physico, concentrado na idéa de que seu vexame como cavalheiro presta-se a completar o quadro de submissão do homem ao pé do sexo fragil, tal como succede agora. O pezinho, ainda calçado, deslisa pelo nariz abbaixo e appoia appenas a poncta entre os labios do rapaz, que percebe a suggestão do gesto e tenta abboccanhar o bicco da chinella, mas Amelia ri e desvia o pé para o lado, passando-o numa e noutra bochecha antes de pisar no queixo. Então, usa o proprio queixo como appoio e pressiona-o com a parte trazeira do calcanhar, empurrando assim a chinella, que se solta do pé e cae juncto à orelha do galan, o qual offega e aspira o ar, tonto de soffreguidão. O aroma, mixto de perfume e exsudação, que se desprende do pezinho penetra-lhe nas narinas, e o penis corcoveia como um cavalo bravio, provocando gritinhos nas demais senhoras e grugulejos em D. Dolores. Então Horacio sente na epiderme o contacto daquella cutis lisa como o rosto de um bebê: é a planta da donzella, que vae appalpando, aqui e alli, cada poncto do rosto do galan, ora cutucando com o calcanhar ou o dedão, ora accommodando o arco contra as maçans do rosto ou as temporas do macho 239
indefeso. Por fim a solinha se posiciona ao longo do bigode e cobre por inteiro a bocca do rapaz, cuja lingua ja se prepara para projectar-se bocca affora, mas cujos labios retardam esse gesto, desejosos de beijar, incansavelmente, aquella almofadinha de carne, tenra e fofa. Amelia interrompe essa serie de beijos, antes que o penis não consiga conter o jacto, e ordena que Horacio lamba. Recebida a permissão, a lingua entra em scena e percorre sem exforço a pequena distancia que separa o calcanhar dos artelhos, em cujos intersticios se intromette, degustando-os como si fossem fructinhas silvestres. Amelia ri, quasi gargalha, em parte pelas cocegas, em parte pelo gostinho da superioridade da femea sobre o predador vencido. A moça ainda cogita si fará como a despudorada Rosa, que mettera os dedos entre os dentes do moço, obrigando-o a chupar a poncta do pé como si fora uma fructa maior e mais succulenta, mas ja não ha tempo para pôr em practica esse extremo recurso: o penis, depois dos incessantes saltos e solavancos, exguicha o leitoso jacto que salpicca o peito do rapaz e a madeira do pellourinho, golfada appós golfada, chorando copiosamente sua agonia sem communhão, seu ecstase solitario e intacto. Sob o impacto do orgasmo, exvae-se aquelle sabor de puddim que a planta de Amelia transmitte, e as vozes se distanciam. Com os sentidos, Horacio perde a consciencia e mergulha num torpor lethargico. Quando desperta, tem a impressão de haver hibernado por longo tempo, como si estivesse dopado por algum forte soporifero. Ouve vozes, mas veem da rua, mixturadas aos ruidos urbanos matinaes. À sua volta ja não ha ninguem. Aos primeiros movimentos verifica que seu corpo acha-se livre do pellourinho, exparramado sobre uma cama de 240
casal. Occorre-lhe estar accordando de um pesadello, mas ao sentar-se no leito vê que aquelle quarto não é o seu, nem qualquer alcova que lhe seja familiar. Ainda tonto, exforça-se para ficar em pé e olhar em torno. Ja não se acha completamente nu, mas não vê suas roupas em nenhuma das poltronas que rodeiam a cama. Horacio advista a porta e vae experimentar a maçaneta: trancada, mas a chave está na fechadura. Suspira, tentando entender, lembrar-se dos ultimos accontescimentos. Perscrutando o ambiente, percebe que se encontra num quarto de hotel. A cama é muito larga, com um grande colchão de molas, onde o corpo se abysma; os travesseiros monstruosos e enfeitados de rendas e fitas; e por cyma um immenso cortinado de labyrintho, enxovalhado de pó. Sobre o marmore do lavatorio vê-se a bacia de gigantescas proporções, ao lado de algumas vasilhas de porcellana; e, em contraste com o resto, um pequeno pedaço de sabão barato fornescido pelo estabelescimento. Ao cantho da pedra, exquescida sobre os rebordos do lavatorio, ha uma escova de dentes, suja de opiato. E todo esse adspecto de abbandono e desleixo, todo esse falso comforto sem dono e sem o acconchego domestico, tudo isso ainda mais o assusta e attemoriza. Disposto a sahir dalli, o pavão começa a abrir gavetas e portas de armario, à procura de suas roupas. Subitamente, sua affobação dá logar a um novo accesso de vertigem, que o obriga a sentar-se na cama para não perder o equilibrio. Poucos segundos mais, e tomba para traz, extatellado sobre o colchão, que vae ballançando cada vez mais levemente até que o corpo se immobiliza. 241
Não necessariamente nesse mesmo lapso de tempo, em outro apposento daquelle edificio, varios commensaes conversam descontrahidamente ao redor de uma farta mesa. Pouco antes, como de habito, Lord Steppingstone chega accompanhado de D. Dolores e pede um gabinete particular, onde se installa à espera de alguns convidados. Logo em seguida entram D. Rosa, D. Vicentina e Solano Vargas. Por ultimo, Laura e Leopoldo, que vinham caminhando pela rua Septe de Septembro até o Rocio, junctam-se aos demais. Leopoldo está maravilhado, como sóe accontescer sempre que transpõe as portas desses ambientes requinctados. O adspecto daquellas sallas affestoadas, cheias de espelhos, de cortinas e douraduras, no estylo pretensioso dos hoteis, o ar parisiense dos creados, vestidos de preto e avental branco; a cor estridente do gabinete; o perfume das flores que guarnescem jarras de proporções luxuosas; o alvoroço palavroso e alegre dos que fazem a sobremesa; o crepitar do riso das mulheres, cujos penteados branquejam sobre o escuro dos tapetes; a reverberação dos crystaes; a exspectativa de um bom almosso, que será devorado com appetite, e finalmente a circumstancia de que o mancebo sente-se, como nunca, disposto a commemorar uma occasião festiva; tudo isso lhe refresca o humor e o faz feliz naquelle momento. Laura paresce compartilhar aquella sensação. “Garçon! (cantarola D. Dolores assim que todos tomam assento) La carte!” O creado dispara. A irman do marquez encarrega-se do menu como quem rege uma orchestra. Está radiante; orgulha-se de ser, a qualquer hora e em qualquer logar, a eterna amphitryan solenne. Excolhe prattos exquisitos e determina os vinhos que os devem 242
accompanhar. O lorde, cavalheirescamente, concorda com tudo. Os convivas vão-se animando na proporção das garrafas que se enxugam. O almosso acquesce. O Vargas propõe um brinde a Leopoldo e Laura, e declara, depois de tecer muitos elogios ao professor, que folgaria immenso com ser recebido no rol de seus amigos, como si fizesse questão de desfazer alguma impressão negativa que o mancebo guardasse delle. A ostensiva amabilidade do mestiço não passa despercebida ao agudo senso de observação de D. Rosa, que logo pilheria: “Não caia na labia deste moço, Sr. Castro. É malandro como elle só! Agora lambe-lhe os pés, mas na primeira opportunidade elle estará tripudiando sobre suas costas, como faz com todo mundo!” E todos desaptam a rir da cara fingidamente offendida do Vargas. “Vejam quem falla! (retruca D. Dolores) Quem a ouve dando conselhos pode suppor que aquella bocca é um poço de virtudes...” Novo coro de gargalhadas, accompanhadas das palmas do Vargas. O almosso chega ao poncto em que os commensaes fallam todos ao mesmo tempo e em voz alta. Affogueiam-se as faces ao reflexo vermelho das paredes do gabinete. Àquella altura varios “toasts” foram levantados ao casal, que ja se prepara para batter em retirada, allegando serem agguardados em outro festivo compromisso e aqui estarem appenas para cumprimentar os amigos. Sem esperar pela sobremesa, Leopoldo toma a iniciativa de levantar-se, no que é accompanhado pela inglezinha. Mais felicitações e nova troca de saudações. Por fim, os dois deixam a salla privada, para allivio de Leopoldo, que não consegue ficar 243
inteiramente à vontade naquelle recincto artificial e abbafado. “Deixa estar! (diz o Vargas, palitando os dentes -- para incommodo do lorde -- como si dirigisse a palavra a Leopoldo, voltando-se para a cadeira vazia) Tu não me excappas! Ainda vamos celebrar com uma boa pandega, quando chegar a hora!” “Devemos deixal-os a sós. (intervem D. Dolores) Elles decidirão qual o melhor momento para convocar-nos a participar de suas alegrias...” “Elle encontrou um collegio do melhor padrão em Sancta Thereza (informa D. Rosa a D. Vicentina) e pretende mudar-se para aquellas redondezas. Vão lhe dar optimo ordenado, com a condição de que elle, alem do serviço de professor, passe tambem a fiscalizar os rapazes à hora do recreio e faça a escripturação da casa. E Laura o está incentivando bastante nessa mudança, até porque será quasi vizinha delle...” O lorde, sempre muito pragmatico em suas considerações, observa que, com a futura linha de bondes funccionando até a meia-noite, a disponibilidade de conducção irá proporcionar maior comforto a quem vive ou trabalha naquelle pittoresco bairro carioca, do qual tem motivos para orgulhar-se. O creado traz a sobremesa -- uma salada de fructas. Vargas pede gelados e quer que lhe sirvam umas truffas ao rhum. Não pode passar sem isso no almosso, repete com arremedada formalidade, para expiccaçar o lorde, que sorri phleugmaticamente. “E Amelia? (pergunta D. Vicentina a D. Rosa, no seu 244
habitual tom sussurrante que dá impressão de estar assoprando algum segredo) Ja acceitou o pedido do filho do barão?” “Ah, quem sabe della é D. Dolores!”, responde a poetiza em voz bem alta, como para puxar novo assumpto que fizesse parte da pauta geral de festividades. “A novidade sobre Amelia é essa mesma. (confirma D. Dolores) O pae ja respondeu affirmativamente à charta do Caio, e agora só falta annunciarem o casamento. Pelo que fiquei sabendo, devem ser as maiores pompas que esta Corte ja viu nos ultimos annos... Mas Rosa tambem tem uma noticia para nos communicar, não é mesmo, querida?” “Bem... é verdade. Estou de malas promptas. Embarco no proximo paquete para Buenos Aires... (e ante a reacção de surpresa do Vargas e de D. Vicentina) Ando muito extenuada com tantas actividades, e tão diversas! Preciso descansar e reflectir. Não sei quando voltarei à Corte, nem com qual das minhas multiplas personalidades...” Dolores dispara seu cacarejo e os outros gargalham em coro, não se sabe si achando graça na ironia da poetiza ou na risada da illustre dama, ou ainda do commentario do Vargas accerca de cansaços physicos e psychologicos. Nisso abre-se a porta do gabinete e entra o gordo gerente do hotel, figura ja bem conhescida dos frequentadores dos saraus de Mme. Fragonard. Sem a menor ceremonia, toma assento na cadeira à esquerda do lorde, desoccupada por Laura, e indaga deste si estão todos satisfeitos; em seguida, cochicha algo 245
ao ouvido do inglez, que sorri e pisca para D. Rosa. A poetiza ja conhesce esse signal, mas suspira como si a senha representasse um fardo do qual está prestes a se livrar. Lord Steppingstone, que pouco se pronuncia mas quando o faz é sempre accaptado, suggere que D. Rosa seja deixada a sós com o Sr. Oliveira -- e dá o exemplo, levantando-se e puxando a cadeira de D. Dolores, que o accompanha. Vargas, meio tonto, procura mostrarse allerta e agil, e ergue-se precipitadamente, ainda segurando o coppo, perdendo o equilibrio e quasi attingindo, com o braço esticado, os globos do candeeiro. Por pouco não lança o resto de vinho do coppo sobre o damasco da cortina. D. Vicentina, sempre observadora, ainda olha em torno, como para photographar na mente o scenario de mais uma de suas minuciosas paginas memorialisticas, cujo destino não pode calcular que será tão fertil: vertida, annos depois, ao francez pelo Vargas, renderá a Pauline Réage, no proximo seculo, uma scena do livro HISTORIA DE O, e ao quadrinhista Guido Crepax uma interpretação ainda mais fielmente graphica daquillo que se passa entre o gordo e a poetiza. O gerente affasta a cadeira da mesa e refestela-se, pernas bem abertas. Alcança o paliteiro e põe-se a cutucar o vão do dente, corpo extendido para traz, em uma posição de homem farto: barriga ao vento, braços molles e um olhar muito pando, que se lhe entorna por todo o rosto em sorrisos de preguiça. Rosa ja sabe o que fazer: a um signal do gordo, adjoelhase deante delle, abbaixa a cabeça entre suas coxas e faz desapparescer dentro da bocca a cabeçorra que se projecta pela braguilha aberta. O gordo allarga o sorriso, observando pachorrentamente os movimentos da cabeça da poetiza. Em questão de segundos a mulher 246
recua, engasgada, sem tirar da boccarra a glande gottejante. Só a deixa sahir depois de tel-a enxugado com a lingua. Quando ella se põe de pé, o gerente repara no sulco azulado que lhe marca a pelle clara do pescoço, talvez produzido por alguma chibatada que errasse a ponctaria. Dentro em breve, aquellas marcas não serão mais que reminiscencias e themas de versos fescenninos, pelo menos na intenção de Rosa de Albuquerque, cuja correspondencia com Vicentina de Paula Guedes manter-se-a assídua durante decadas, visto que a independente protofeminista jamais regressaria à Corte. Horacio volta a si e sente na bocca secca um gosto extranho. A luz que vem da janella é do dia que começa a admanhescer. Agora tudo está quieto. A lembrança do quarto de hotel assalta-lhe a mente, e elle sentase na cama, ja bem allerta. Mas aquelle é seu proprio quarto, bem familiar e accolhedor. Ao affastar as cobertas, acha a botina de Amelia, que jamais fora devolvida e que lhe faz companhia nas noites mais hallucinadas. Pouco depois, lavado o rosto e saciada a sede, o galan ja raciocina com mais clareza. Não resta duvida que accaba de sahir de um pesadello, mas até que poncto todas aquellas nitidas lembranças são fructo do delirio e da fixação erotica? Durante a leitura dos jornaes, appós um lauto desjejum, recapitula os dias que se seguiram ao baile em casa dos Azevedo Camargo. Sua preoccupação concentrase na sanidade mental, talvez muito perturbada ultimamente por causa daquella obsessiva perseguição a um objectivo cada vez mais abstracto e idealizado. Seu maior temor, neste momento, é o de que esteja perdendo a memoria e tenha practicado actos dos 247
quaes não consiga lembrar-se. Ja ouvira fallar de casos semelhantes, provocados não só por estados de embriaguez, mas por algum disturbio mental. “Estarei eu ficando louco? Será que toda esta phantasia em torno do pezinho adorado não me tem feito perder o senso da realidade?” Só ha um jeito de descobrir o que de facto tem succedido e o que se passa appenas na sua imaginação desvairada: fallar com Amelia. Mas e si aquillo tudo houver mesmo accontescido e sua reputação estiver irremediavelmente compromettida? Horacio chega a achar preferivel a hypothese de estar psychicamente desequilibrado. Ainda assim, pensa elle, si é certo que o erotismo pode ser algo que se situa numa vaga zona entre a phantasia e a amnesia, quantos outros, nesta sociedade hypocrita, vivem em identica situação de duvida? São dez horas da manhan. O sol brilha, segundo o romancista, em céu limpido; uma aragem fresca sussurra entre as folhas; os colleiros trinam nas ramas das laranjeiras. Esse concerto de perfumes e harmonias convida o coração a abrir-se e cantar o seu hymno de amor. Para Horacio aquelle convite soa como um encorajamento. Pouco depois, faz o tilbury passar em frente ao sobrado de D. Dolores, não muito distante de sua casa. Reconhescendo a fachada e vislumbrando, ao fundo do jardim, o pomar attraz do qual se occulta a Cappella à vista de quem olha da rua, confirma as impressões guardadas em suas visitas nocturnas, e sente-se inclinado a rever aquelle templo da mundanidade em cujo interior estaria o pellourinho de seus pesadellos. Outra idéa admaduresce-lhe na mente: extender o passeio até Sancta Thereza e verificar si realmente exsiste a casa de Laura, o outro altar dos seus sacrificios. 248
Com effeito, la está a casa, appequenada pelas descommunaes proporções das coppas das arvores que a cercam. Por entre as grades, sentada no jardim e occupada em fazer um ramo de flores, Horacio até julga advistar a inglezinha. Sente vontade de entrar e ir ter com ella, à sombra de uma lattada de madresilvas, sentar-se a seu lado e perguntar tudo o que lhe vae pela cabeça. Mas o tilbury affasta-se e com elle a disposição de deter-se e conversar. O pavão desce em direcção ao centro da cidade. Pretende almossar no Versalhes e fazer um reconhescimento, pelo menos, do restaurante, ja que não ha sentido em revisitar um quarto no qual suppõe ter pernoitado; mas falta-lhe animo para encarar alguma physiognomia conhescida, e elle muda de itinerario. Mais tarde, resolve procurar o pae de Amelia no local de trabalho, a pretexto de approveitar a opportunidade de haver passado, a negocios, alli por perto, e rever o amigo. Ja não está o negociante no escriptorio; nesse dia se retirara mais cedo. Mallograda sua esperança, o pavão vae caminhando pela rua Direita sem rumo, como quem não sabe o que fazer. O instincto o conduz naturalmente para a rua do Ouvidor. Nem bem chega à esquina, quando passa defronte um moço, que segue pela calçada Carceller. Horacio accompanha-o com a vista, querendo nelle reconhescer seu rival Leopoldo, a quem ja não dirige a palavra. Si com effeito o moço é Leopoldo, deve ter soffrido grande transformação. Em vez do taciturno rapaz, descuidado no seu traje, brusco em suas maneiras, sempre de cabellos desgrenhados e barba desleixada, apparesce um cavalheiro de boa presença, com a sobria elegancia que tão bem assenta nos homens sisudos. Essa especie de elegancia, nas palavras do romancista, é 249
appenas um ligeiro perfume, e não uma incrustação como a que usam os moços à moda. Com seu fino tacto e longa experiencia, Horacio, reconhescendo o mancebo, adivinha o segredo daquella subita metamorphose. Elle sabe que só ha um condão capaz de produzir taes encantos: é o olhar da mulher amada e amante. Como diz o romancista, “Ame alguem e não saiba si é retribuido. Toda sua exsistencia se projecta nesse impulso d’alma, que se arroja para outro ser e anxeia por nelle infundir-se. Vive-se fora de si mesmo, alheio a seu proprio eu; como o peregrino perdido longe da patria, o homem exsilado de sua pessoa erra no espaço, em demanda de um abrigo. Desde, porem, que o homem tem certeza de ser amado, em vez de expandir-se, recolhe-se e concentra-se para saturar-se de felicidade. Ja não se alheia e exquesce de si; ao contrario, sente-se elevado accyma do que era; respeita em sua pessoa o homem amado. Nessa occasião é natural a cada um observar-se constantemente e julgar de si com extrema severidade. Surgem adspirações extranhas; o fraco lembra-se de ser um heroe; o philosopho inveja a belleza do casquilho; o espirito positivo habituado a voar terra a terra batte o coto das asas para remontar-se ao ideal da poesia. Não é só no homem que se opera essa metamorphose: mas em toda a natureza. Quando se arreiam os passaros de sua mais bella plumagem, quando gorgeiam as melodias mais brilhantes, si não é na quadra dos amores?” Vendo Leopoldo parado na calçada Carceller, Horacio dirige-se com disfarse para aquella parte, com intenção de seguil-o e talvez exclarescer um pouco daquelle mysterio. “Será que Amelia e elle...? (vae elucubrando) Então o que me fizeram na Cappella não terá sido illusão...?” 250
Mas sobrevem um providencial desfecho para trazer o galan de volta à vida real: Leopoldo accaba de encontrar-se com Laura, que o tracta ternamente, com a intimidade de uma noiva, e ambos embarcam em um tilbury, que roda ja pela praça de Pedro II. Alliviado, volta Horacio sobre os passos. “Si Laura e elle se amam, Amelia ainda pode ser minha... e meu seu pezinho!” Um sorriso frisa o labio do pavão. “Ella me desdenha... mas o que é o desdem sinão o desejo de possuir? O affecto suave e terno é como o moscatel de Setubal ou o vinho de Constança. Ja o desdem fero e vaidoso é como a champanhe que ferve e espuma. E não ha nada melhor do que beber champanhe numa botina de mulher!” Chegando à casa, Horacio escreve a Amelia uma charta, que appenas contem palavras appaixonadas e puras, para captivar-lhe o espirito e despistar o verdadeiro interesse do galan, que volta a sentir-se confiante em seu poder de seducção. Sahindo o pavão a expairescer, dirige os passos para a casa do Salles; espera encontrar algum creado que se incumba de entregar a charta. Quem sabe? Talvez nessa mesma occasião se decida de sua sorte. A moça lhe permittirá fallar-lhe, e tudo se accommodará. Ja é noite fechada; o céu, carregado de nuvens, annuncia proxima borrasca. A frente da casa do negociante está às escuras; comtudo, quem observe 251
bem perceberá a coar-se pelas frestas das janellas um tênue reflexo de luz interior. No portão da chacara a meio cerrado, ninguem apparesce. O pavão penetra no jardim. Nesse momento um carro para à porta da casa: trez pessoas saem delle. Em uma Horacio vê, extremescendo, as roupas e os bigodes do notorio Caio de Azevedo Camargo. Inquieto, sobresaltado, addeantase pelo jardim na esperança de não ser visto pelo filho do barão. As janellas lateraes estão exclarescidas; e pelo jogo das sombras no quadro illuminado, conhesce o moço que reina no interior alguma agitação. Que fazer? Appresentar-se na casa, depois do que passara, e antes de qualquer explicação, não é razoavel. A dois passos fica uma frondosa mangueira, em cujos galhos tinham fabricado uma especie de belvedere ou caramanchão. Conduz ao alto uma escadinha de caracol cingindo o tronco da arvore. Por acaso advista o pavão a mangueira e, subindo sem hesitar, acha-se justamente fronteiro às janellas illuminadas. A principio a claridade subita offusca-lhe a vista, e não pode elle distinguir o que se passa la dentro. Mas affinal o deslumbramento dos olhos cede ao deslumbramento d’alma. Elle vê, e ja não duvida. Amelia e Caio... sentados lado a lado, trocando sorrisos, accompanhados do Salles e de D. Leonor, compondo um perfeito retracto de familia... eis o quadro que se offeresce aos olhos de Horacio. Tinha visto na comedia da vida muitos lances previsiveis, mas nenhum tão ironico e exemplar. Emquanto o pavão se occupa em prevalescer sobre o rival palmipede, a garça acceita a proposta mais vantajosa do gallo dos ovos de ouro, que lhe arrasta a asa como quem programma pela manhan o negocio que irá fechar à tarde... 252
A surpresa do pavão provem de um enganno seu. Elle accreditava que Amelia o tinha amado, quando a moça não sentira por elle mais do que o desvanescimento de ver captivo de seus encantos o rei da moda, o feliz conquistador dos salões. Quanto a Leopoldo, Amelia não tivera por elle mais que compaixão de seu platonismo, talvez. Na hora de tomar a resolução que decidiria seu futuro, porem, a moça segue a lei da natureza humana e procura, mais que emoções ou sentimentos, a estabilidade e o comforto, sinão espiritual, ao menos material, como convem à vida em sociedade. O temporal, desabando nesse momento, batte com violencia nos vidros da janella, que fecha. Horacio desce do seu observatorio; escalando a grade de ferro do jardim, ganha a rua. Chega em casa todo molhado, e, emquanto o creado lhe prepara um cha bem quente e calmante, recorda-se da noite em que retornara do theatro e precisara de algo mais que o contacto physico da botina para accalmar a excitação. Desta vez a excitação não é tão urgente, e os pensamentos pedem prioridade. Ao que paresce, as coisas retomam sua roptina, como si nada de abnormal houvesse occorrido. Laura e Leopoldo, Amelia e Caio, todos seguem seus caminhos sem se importarem com o decahido conquistador do circuito bohemio... Talvez até D. Dolores esteja compromettida com Lord Steppingstone, sabe-se la! O mundo continua a gyrar indifferentemente à crise exsistencial de um galan prestes a virar a casa dos vinte para os trinta annos... Então o pavão põe-se a reflectir si ja não estaria na hora de passar uma temporada na casa dos paes, em Petropolis, e quem sabe dar por encerrado o cyclo de 253
estroinices, e até pensar seriamente em casamento, com alguma herdeira de latifundios (para cumprir a prophecia de D. Dolores)... emquanto ainda não creara barriga, como o Caio. Antes de recolher-se, Horacio sente saudades de reviver um ritual que até outro dia ainda practicava: accender velas de cada lado da almofada de velludo sobre a qual repousa a botina, e ficar fumando charuto, a contemplar da poltrona seu objecto de adoração, seu idolo pagão... Emquanto prepara o altar, põe-se a imaginar como será a noite de núpcias de Amelia... Na alcova, sentada em uma conversadeira, ella sorri para seu marido; porem attravés das largas dobras do roupão de cambraia, percebe-se o tremor involuntario que agita seu lindo talhe. “É meu presente!”, diz ella com timidez, e appresenta ao noivo um objecto envolto em papel de seda, aptado com fita azul. Abrindo, acha Caio dois mimosos pantufos de setim branco, os mesmos que Amelia estivera a bordar. Ante a expressão de surpresa do rapaz, cujo olhar desce insensivelmente à fimbria do roupão, Amelia impõe suas condições. Sobre a almofada de velludo e entre os folhos da cambraia, apparescem as unhas rosadas de dois pezinhos divinos. Uma onda de rubor derramase pelo semblante da moça, cujos labios balbuciam uma palavra: “Calce!” Caio adjoelha-se aos pés da noiva e obedesce... Horacio ja está farto de dar asas à imaginação. Sabe que as coisas não transcorrem à sua maneira e que na vida real aquella hallucinação não seria siquer materia de conversa entre pessoas normaes. Deprimido, vae buscar o cofre de platina para, nem que seja pela ultima vez, retirar delle a botina e deposital-a sobre a almofada, ja admittindo que tudo não tenha passado de um mirabolante, um phantastico 254
faz-de-compta. Porem, ao abrir o cofre, não encontra explicação -- e nem importa explicar -- para o facto de, ao lado da endeusada botina, estar alli dentro uma chinellinha chilena do mesmo tamanho de pezinho, que não pode ser outra sinão aquella usada pela moça durante as sessões didascalicas... E o pavão, com pena de si mesmo e de sua triste memoria, deixa-se abbatter na poltrona, a fumar seu charuto e a contemplar a fumaça que se perde no tempo. Admanhan fará anniversario, e não ha como exquescer esta data...
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FICHA TECHNICA E PLANO DA OBRA
[1] Glauco Mattoso finaliza, entre março e maio de 2004, um romance cujo projecto estava accalentado desde meados da decada de 1980, quando escrevera o MANUAL DO PODOLATRA AMADOR: recyclar posmodernamente o classico oitocentista de José de Alencar, A PATTA DA GAZELLA. A empreitada, iniciada naquella opportunidade, fora mantida “in progress” até que o aggravamento do glaucoma suspendeu as actividades litterarias de GM, em principios dos 90. Retomada conclusivamente appós duas decadas, a obra ganha corpo definitivo sob o titulo de A PLANTA DA DONZELLA, lançada pela Lamparina Editora (Rio de Janeiro) em 2005. [2] Eis a orelha que Italo Moriconi assignava para o volume: “Que Glauco Mattoso é um mestre na practica do pastiche litterario, disso sabem muito bem seus leitores e admiradores. Como exemplo recente, mencione-se a serie de sonnettos em que nosso auctor reescreve contos de Machado de Assis. Agora é a vez de José de Alencar e do classico A PATTA DA GAZELLA, aquella deliciosa phantasia romantica sobre a idolatria fetichista do pé. O pezinho da donzella, objecto de desejo lascivo. Pelas aguas turvas da podolatria, Glauco sempre navegou desenvolto, narinas e lingua em riste, espinha dobrada na paixão de servir, invertendo a seu favor os termos das relações de poder, transformando perda em lucro. A physiologia dessa dynamica, como se sabe, é exposta à luz no MANUAL DO PODOLATRA AMADOR, um classico contemporaneo. Classico maldicto? Que 257
seja. Alguem ja disse que com boas intenções não se faz boa litteratura. Pois agora nos reapparesce o Glauco com este A PLANTA DA DONZELLA. Nelle, o pastiche se combina com a parodia. Como ja mostrou a critica universitaria mais antennada, o pastiche contemporaneo, ou posmoderno, pode ter um que de transgressivo em relação a seus modellos. Não é pura repetição. Utiliza-se do espirito sardonico da parodia para collocar a nu themas e percepções que os textos romanticos e os classicos modernistas deixavam na sombra. E nessa area da parodia litteraria, Glauco tambem é mestre, como se pode observar em sua outra obra, que muitos consideram prima -- o JORNAL DOBRABIL. Em relação ao decoro de Alencar, este novo livro de Glauco Mattoso é uma abertura desenfreada dos sentidos. É a liberação em acto. É a revelação do inconsciente obsceno dos romanticos e até mesmo de historiadores de alta estirpe, como Gilberto Freyre. É o grito de {iá, iá} da mulher devassa que chicoteia seu parceiro submisso. Este, na phantasia de Glauco, perde até o anonymato. A PLANTA DA DONZELLA refaz o jogo d’A PATTA DA GAZELLA, reapproveitando scenas inteiras do livro de Alencar, {o romancista da epocha}, mas modificando completamente o perfil sexual dos personagens e o typo de intriga em que se envolvem. O leitor accompanha a narrativa com a respiração suspensa. E olhe: haja follego para encarar o final defrente. É assim que o cego pode fazer ver.” [3] Eis como o critico carioca Pedro Ulysses Campos commenta o projecto: “Neste romance intertextual, Glauco Mattoso reescreve A PATTA DA GAZELLA, de José de Alencar. Partindo da mesma trama fetichista, em torno de um cobiçado pé feminino, e situando a acção no mesmo scenario imperial 258
do Rio de Janeiro no seculo XIX, Mattoso distorce o character dos personagens alencarianos, constroe seus proprios typos para contrascenar com Horacio e Amelia, introduz na narrativa o imprescindivel componente sadomasochista e desvia o enredo para outro desfecho, sem que se perca o clima de suspense originalmente pretendido. Si o romance de Alencar ja era obra para adultos, a paraphrase de Mattoso attende ao gosto exigente do leitor interessado não appenas na ficção erotica de alto nivel, mas tambem na pesquisa historica e no experimentalismo narrativo. São innumeras as citações litterarias entremeadas ao texto: ao lado de poemas do proprio Mattoso e attribuidos aos personagens, desfilam Castro Alves, Alvares de Azevedo, Joaquim Manuel de Macedo e outros, explicitamente ou camuflados nas entrelinhas; as referencias epigraphicas são de Rocha Pombo, Pedro Calmon e Gilberto Freyre; algumas scenas são evocativas de outros ficcionistas da epocha, sejam Aluizio Azevedo, Adolpho Caminha ou Machado de Assis. Attravés das adventuras de um conquistador podolatra e de sua musa adorada, o leitor mergulhará no magico universo das phantasias sexuaes mais exoticas e clandestinas, numa sociedade patriarchal e conservadora.” [4] O processo de “desconstrucção” e de “remontagem” dessa urdidura romantica resulta, na mão do fetichista do pé, em radical transformação: embora attendo-se à syntaxe e ao vocabulario oitocentista, GM subverte e perverte a esthetica e a ethica do original, alterando a ordem dos capitulos, 259
duplicando o elencho com a introducção de seus próprios personagens e “desencaminhando” a conducta dos personagens que ja exsistiam. O effeito se concretiza numa nova trama entre protagonistas que Alencar não reconhesceria e coadjuvantes que nenhum leitor actual extranharia, tal o grau de identificação com os typos mais contraculturaes do seculo XX. O poncto chave para uma deciphração do enigma (si é que este subsiste ao final da trama) é o momento em que Salles communica à filha ter recebido uma charta pedindo- a em casamento. O dialogo faz suppor que o remettente seria Horacio, mas, si a charta for realmente de Caio (hypothese tambem cabivel no dialogo), evidencia-se o character onirico-onanistico do fetichismo phantasiado pelo primeiro protagonista. Ao contrario de Alencar, que appenas numera seus capitulos, GM os intitula como si constituissem contos avulsos. Eis o elencho, de accordo com o fichamento alphabetico do auctor: - Adolpho de Campos, segundo marido de Clementina Fragonard. - Alfredo, nascido em 1855, filho Fragonard com o primeiro marido.
de
Clementina
- Amelia Pereira Salles, protagonista, nascida em 1851, filha de Paulo Pereira Salles e de Leonor Treadmill Pereira Salles. - Caio de Azevedo Camargo, nascido em 1842, filho do barão de Baruery. - Clementina Fragonard, viuva de um francez, hoje casada com Adolpho de Campos; mãe de Alfredo, filho 260
do primeiro casamento. - Dirceu Amoroso Lyra, poeta, frequentador da casa de Mme. Fragonard. - Dolores da Costa, irman do marquez de Utinga, frequentadora da casa dos Salles e socia do Club Propedeutico. - Glycerio de Mattos, sapateiro. - Horacio de Almeida, protagonista, nascido no Rio em 1841. - Laura Lawrence, protagonista, nascida na Inglaterra em 1845, prima de Amelia e filha de George Lawrence. - Leonor Treadmill Pereira Salles, mãe de Amelia, casada com Paulo Pereira Salles. - Leopoldo de Castro, protagonista, interior de São Paulo em 1844.
nascido
no
- Marquez de Tatuapé, amigo dos Salles e dos Lawrence. - Mauro de Moura, poeta, frequentador da casa de Mme. Fragonard. - Oliveira, o gordo que frequenta os saraus de Mme. Fragonard e é gerente do hotel Versalhes e confrade do lord no Club Propedeutico. - Paulo Pereira Salles, pae de Amelia, casado com 261
Leonor Treadmill Pereira Salles. Plinio Pederneiras, medico e bibliophilo, frequentador da casa de Mme. Fragonard. - Roger Steppingstone, conhescido como “Lord”, nascido na Inglaterra em 1830. Primo de George Lawrence e socio do Club Propedeutico. Rosa de Albuquerque, poetiza e frequentadora da casa de Mme. Fragonard.
pianista,
- Severina, frequentadora da casa de Mme. Fragonard. - Solano Vargas, mestiço nordestino nascido em 1851, frequentador da casa de Mme. Fragonard e membro do Club Propedeutico. - Thereza, frequentadora da casa de Mme. Fragonard. - Vicentina de Paula Guedes, sobrinha do visconde de Itaquera e viuva de um heroe da guerra do Paraguay. - A filha do marquez de Tatuapé, frequentadora da casa dos Salles e da casa de Dolores da Costa. - A filha do visconde de Poá, frequentadora da casa dos Salles e da casa de Dolores da Costa. - O coppeiro de Mme. Fragonard, um negro alto, magro e grisalho. - O creado de Dolores da Costa, um velho bruxo. 262
- O creado dos Pereira Salles, responsavel pela perda da botina de Amelia. - O creado de Horacio de Almeida, fiel e discreto. - O marinheiro branco, que actua como submisso ao negro. - O marinheiro negro, que actua como dominador do branco. [5] Recopila-se a seguir o poemario que figura em meio à trama, attribuido a alguns dos personagens. O sonnetto “A Borralheira” (de Luiz Guimarães Junior) é um dos dois casos de “appropriação debita” e apparesce attribuido ao sapateiro Mattos; o outro caso de “cannibalização” (como diria Italo Moriconi) é o sonnetto “O Camarim” (de Gonçalves Crespo), que passa pela penna do poeta Dirceu Amoroso Lyra; todos os demais poemas são do proprio GM, ou por elle parodiados (como “Oração ao latego”, sobre “Desenganno”, de José Maria do Amaral), e soam como si fossem de auctoria dos respectivos poetas ficticios:
[5.1] A BORRALHEIRA [Glycerio de Mattos] Meigos pés, pequeninos, delicados, como um duplo lilaz, si os beijaflores vos descobrissem entre as outras flores, que seria de vós, pés adorados? Como dois gemeos sylphos animados, vi-vos hontem pairar entre os fulgores 263
do baile, ariscos, brancos, temptadores,
mas -- Ai de mim! -- como os mais pés, calçados! Calçados como os mais! Que desaccapto! -disse eu... Vou ja talhar-lhes um sapato leve, ideal, phantastico, secreto... Eil-o. Resta saber, anjo faceiro,
si accertou na medida o sapateiro: Mimosos pés, calçae este sonnetto!
[5.2] SEPTILHA ANONYMA [recolhida por Glycerio de Mattos] Marinheiro pé-de-chumbo, calcanhar de frigideira,
de ensignar-te ja me incumbo com surra de capoeira:
vaes appanhar do solado
dum pé-de-cabra escholado
que mais fede do que cheira!
[5.3] CANÇÃO TRIUMPHAL [Rosa de Albuquerque] (*) Tu, gaucho cavallar,
não perdes por esperar: vou mostrar-te como soa esta musica tão boa! Repara na partitura
264
e consolo em Deus procura,
pois teu fim não ha quem chore-o nem quem reze em teu velorio! Quando aggarro um unitario
dou-lhe tractamento hilario:
peço adjuda aos companheiros,
que tambem são “mazorqueiros”; admarramol-o até vel-o, cotovello a cotovello
pendurado, e desnudado
fica, para nosso aggrado! Immovel como uma estacca, piccado à poncta de faca em desespero elle berra,
mas cantamos “guerra é guerra” e sem accompanhamento fazemos um barulhento
concerto, animando a festa a que a victima se presta! Cutucado de cutello,
seu contorcionismo é bello e risadas nos desperta;
quando a ponctaria é certa
a pedra lhe attinge um olho; mas alvo diverso excolho
e os colhões, com que successo por estrepes attravesso!
265
Emquanto o chicote estala
e a perna é varada a balla, abbafamos o seu choro
cantando refrões em coro! Si estivesse com a gente, nosso amado presidente cahia na gargalhada
ao ver o que mais lhe aggrada! É momento, finalmente,
em que cremos conveniente, depois que nos divertimos inventando tantos mimos,
dar-lhe um ultimo carinho e à tarefa me encaminho:
posto de gattas, ao lombo
monto-lhe e do azar lhe zombo. Alegra-nos que elle brade aos sanctos, por piedade,
que seu fim lhe chegue breve mas em versos quem descreve a scena não pode dar idéa de quanto esgar
de dor o rosto lhe entorta emquanto a lamina corta! Abbaixo da orelha cravo
meu punhal, e escuto um “Bravo!” da bocca dos companheiros,
e com dois golpes certeiros 266
a veia a fundo lhe furo do pescoço, e nesse appuro revira os olhos ja cegos pelos espinhos e pregos! O selvagem se exvahindo em sangue, que quadro lindo! Logo extende-se e estertora ao approximar-se a hora! Exspirando, ‘inda nos serve de motivo para a verve si pisassemos-lhe a face para que mais se humilhasse! Como vês, bugre covarde,
não excappas, cedo ou tarde, de teres cortada a orelha
que, de sangue ‘inda vermelha, servir-nos-a de trophéu E, antes de no belleléu ires dar com o costado,
darás “Viva!” ao Federado...
[5.4] MEU FLAGELLO [Mauro de Moura] Som mais typico e excitante
não conhesço, nem mais bello que na carne toque e cante: os estalos do flagello!
267
Quando está sob o meu guante, com seus golpes desmantello o orgulho mais arrogante,
que se humilha ao meu flagello! Heroes choram num instante
quando a seu recurso appello: são covardes ja, perante as lambadas do flagello!
Seja o couro que eu levante, seja a vara de marmelo,
não ha valente ou gigante
quando desce o meu flagello! Eis por que sou governante, este algoz que me revelo:
não achei lei que supplante o poder do meu flagello!
[5.5] ORAÇÃO AO LATEGO [Dirceu Amoroso Lyra] Uma por uma, do chicote as dores
supporto, cada qual mais dolorida! Uma por uma, no correr da vida,
despiram-me dos brios e pudores! Extranho-te, ó chibata, si não fores cruel, e cada vez mais, à medida
que minha rouca voz ja não revida 268
teus golpes com meus odios e rancores! Do mundo as illusões perdi, funestas, Ao noitejar da edade, na tortura... Só tu, severo latego, me restas!
Comtigo a vida eterna em mim perdura! Ninguem traz cicatrizes que nem estas que guardo e levo alem da sepultura!
[5.6] O CAMARIM [Dirceu Amoroso Lyra]
A luz do Sol affaga docemente
as bordadas cortinas de escumilha; penetrantes aromas de baunilha ondulam pelo tepido ambiente. Na estante do piano reluzente
repousa a partitura da quadrilha;
e do leito francez nas colchas brilha
de um cão de raça o olhar intelligente. Ao pé das longas vestes, descuidadas, dormem nos arabescos do tapete duas leves botinas delicadas.
Sobre a mesa emmurchesce um ramalhete,
e entre um leque e umas luvas perfumadas scintilla um caprichoso bracelete. 269
(*) Versão, thematicamente livre e estrophicamente diversa, dum poema conhescido como “La Refalosa” (e reconhescido como sendo de Hilario Ascasubi), que teria sido escripto por occasião do sitio de Montevidéu. O auctor descrevia os requinctes de crueldade com que um “unitario” capturado pelos federalistas seria submettido a uma ludica sessão de tortura. A recreação em portuguez oitocentista toma o original gauchesco-dialectal como motte e glosa-o em dez oitavas medidas pela redondilha maior, mantendo o ambiente cisplatino da epocha de Rosas, arejado pelo clima tropical da piccardia brazileira. Ao original cabe annotar que “mazorquero”, a par do sentido de “bagunceiro” que tem em portuguez, allude mais propriamente à Mazorca, especie de Gestapo do dictador argentino:
“LA REFALOSA” [Hilario Ascasubi] Mirá, gaucho salvajón, que no pierdo la esperanza, y no es chanza, de hacerte probar qué cosa es Tin tin y Refalosa. Ahora te diré cómo es: escuchá y no te asustés; que para ustedes es canto más triste que un viernes santo. Unitario que agarramos lo estiramos; o paradito nomás, por atrás, lo amarran los compañeros por supuesto, mazorqueros, y ligao con un maniador doblao, 270
ya queda codo con codo
y desnudito ante todo. ¡Salvajón! Aquí empieza su aflición.
Luego después a los pieses
un sobeo en tres dobleces se le atraca, y queda como una estaca
lindamente asigurao, y parao lo tenemos clamoriando;
y como medio chanciando lo pinchamos, y lo que grita, cantamos
la refalosa y tin tin, sin violín. Pero seguimos el son
en la vaina del latón, que asentamos el cuchillo, y le tantiamos con las uñas el cogote.
¡Brinca el salvaje vilote que da risa! Cuando algunos en camisa
se empiezan a revolcar, y a llorar,
que es lo que más nos divierte; de igual suerte que al Presidente le agrada,
y larga la carcajada de alegría, al oir la musiquería y la broma que le damos
al salvaje que amarramos. Finalmente: cuando creemos conveniente, después que nos divertimos
grandemente, decidimos que al salvaje el resuello se le ataje; y a derechas
lo agarra uno de las mechas, mientras otro lo sujeta como a potro de las patas, 271
que si se mueve es a gatas. Entretanto, nos clama por cuanto santo tiene el cielo; pero ahi nomás por consuelo a su queja: abajito de la oreja, con un puñal bien templao y afilao, que se llama el quita penas, le atravesamos las venas del pescuezo. ¿Y qué se le hace con eso? Larga sangre que es un gusto, y del susto entra a revolver los ojos. ¡Ah! Hombres flojos hemos visto algunos de éstos que se muerden y hacen gestos, y visajes que se pelan los salvajes, largando tamaña lengua; y entre nosotros no es mengua el besarlo, para medio contentarlo. ¡Qué jarana! nos reimos de buena gana y muy mucho, de ver que hasta les da chucho; y entonces lo desatamos y soltamos; y lo sabemos parar para verlo refalar ¡en la sangre! hasta que le da un calambre y se cai a patalear, y a temblar muy fiero, hasta que se estira el salvaje: y, lo que espira, le sacamos una lonja que apreciamos el sobarla, 272
y de manea gastarla. De ahi se le cortan orejas,
barba, patilla y cejas; y pelao lo dejamos arrumbao,
para que engorde algún chancho, o carancho. Con que ya ves, Salvajón; nadita te ha de pasar
después de hacerte gritar: ¡Viva la Federación!
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FORTUNA CRITICA
Por Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, em postfacio ao livro TRIPÉ DO TRIPUDIO E OUTROS CONTOS HEDIONDOS, de Mattoso: {Publicado em 2005, o romance A PLANTA DA DONZELLA é inspirado explicitamente no romance A PATTA DA GAZELLA, de José de Alencar. Considerado o melhor romancista do seculo XIX, inclusive por Machado de Assis, Alencar é bem menos recaptado do que leituras, muitas vezes appressadas e desattentas, feitas durante a adolescencia, parescem encaminhar. Thematizando a sexualidade quasi tanto quanto Glauco Mattoso, ha na prosa de Alencar homens rusticos cujas primeiras companheiras são do mundo animal - Manuel Canho, d’O GAUCHO, e sua egua Morena, ou Arnaldo, d’O SERTANEJO, e sua onça malhada - polygamia Ubirajara tem duas esposas, Aracy e Jandyra - sexo regado a drogas hallucinogenas - Iracema faz amor com Martim appós beberem o caldo da jurema - scenas de sexo bastante piccantes - LUCIOLA – bellissimas descripções de orgasmos - ENCARNAÇÃO - mulheres dominadoras - Emilia, de DIVA, e Aurelia Camargo, de SENHORA - e podolatria explicita - A PATTA DA GAZELLA. José de Alencar, porem, constroe a realidade de seus romances em funcção do imitativo elevado, proprio de obras do romantismo; seus heroes e heroinas ou são essencialmente “bons”, ou mostram-se assim, revelando que suas eventuaes villanias seriam da ordem do parescer. Manuel Canho e Arnaldo terminam envolvidos com mulheres, respectivamente, Catita e Flor; a polygamia de Ubirajara se justifica nas dynastias indigenas fundadas por elle; as acções de Iracema e Martin 275
são justificadas pela mythologia lusosylvicola inaugurada pelo casal; Lucia encontra sua redempção na morte, emquanto Emilia e Aurelia, no casamento, assim como o par romantico de ENCARNAÇÃO; em A PATTA DA GAZELLA, Horacio, o avido podolatra, é preterido por Amelia, a dona dos pés disputados, que, mesmo com suas futilidades de moça, excolhe casar-se com Leopoldo, o qual não deixa de ter por premio, no final do romance, os pés delicados da esposa. Valendo-se das mesmas personagens, Glauco Mattoso desenvolve, em A PLANTA DA DONZELLA, uma trama bastante differente daquella de Alencar: dos salões das casas de familia, a historia se desloca para clubes sadomasochistas da epocha do imperio; Leopoldo se envolve com Laura, prima de Amelia, que de personagem secundaria no texto original tornase activista de um daquelles clubes, iniciando Leopoldo nas practicas SM; Amelia permanesce futil ao longo do texto, casando-se com Caio de Azevedo Camargo - um gallo de ovos de ouro, como descreve o proprio Glauco; Horacio termina só, appós fazer o papel de submisso perante Leopoldo em uma das reuniões daquelle selecto gruppo; a podolatria, que ja é bastante explicita no romance de Alencar, é extendida aos pés das demais personagens alem dos de Amelia. Todavia, embora negue o imitativo alto de José de Alencar, Glauco não deriva, como se poderia falsamente concluir, devido à convocação do sadomasochismo e da podolatria, para o imitativo baixo, proprio de estheticas como o naturalismo, tambem do seculo XIX - em outras palavras, Glauco não rebaixa suas personagens revelando pessoas perversas por traz de pessoas apparentemente nobres, appenas as substancializa tornando-as mais humanas e menos romanescas. Para tanto, as personagens se valem de suas practicas sexuaes, que, do poncto de vista justificado na obra, não constituem defeitos ou desvios de conducta, como faz Alencar quando 276
diagnostica o comportamento fetichista de Horacio; salvos pelo prazer, Leopoldo e Laura teem um final feliz regado a podolatria e sadomasochismo.}
Por Christina Zarur, em O GLOBO: {Pés, perversões e prazer attiçam a imaginação de Glauco Mattoso. Foi sob esta perspectiva que o auctor paulista escreveu A PLANTA DA DONZELLA (editora Lamparina), baseando-se numa releitura de José de Alencar. Ao accrescentar condimentos piccantes ao seu romance elle parodia A PATTA DA GAZELLA, do auctor cearense, devassa personagens e excancara alcovas. Mattoso subverte o moralismo romantico e desconstroe a narrativa alencariana. No livro não faltam taras e ferramentas posmodernas: satyra, pastiche, paraphrases. Plagio? Não, uma anthropophagia litteraria bem brazileira. [...] A PLANTA DA DONZELLA é um intertexto dialogando com varios auctores de epocha. Numa minuciosa pesquisa Mattoso characteriza a topographia carioca e recapitula modos e costumes do seculo XIX. Alencar não foi a unica fonte, ha outras não explicitas, o escriptor deixa a auctoria occulta nas entrelinhas. Nessa recyclagem de textos transitam Aluisio de Azevedo, Rocha Pombo e Gilberto Freyre, entre outros. Mattoso diverte-se ao revirar de cabeça para baixo a historia de Alencar. Tripudia ao collocar os pés e a irreverencia em cyma do conservadorismo. Embora o livro não seja mero entretenimento, é habil no humor. Os pezinhos de Amelia, protagonista de ambos os romances, continuam bibelôs, mas haja differença nos modos da donzella. A mocinha pudica que saltitava na obra de Alencar se entrega à libertinagem nas paginas de Mattoso. Como sua ficção, Glauco Mattoso é plural, aggrega muitas interpretações.} 277
Por Gustavo Bernardo, no JORNAL DO BRAZIL: {Alimentando a fama de auctor maldicto, assumindo o fetiche pessoal por pés (e por pés masculinos), GM publica em 1986 uma “pseudoautobiographia litteroerotica”, como a chamou um critico, intitulada MANUAL DO PODOLATRA AMADOR: ADVENTURAS E LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS. Esse trabalho se desdobra agora no romance A PLANTA DA DONZELLA, quando se somma ao fetiche por pés o fetiche da propria ficção. O auctor se dedica a reescrever um livro marginal (talvez por isso, um dos mais interessantes) de José de Alencar, A PATTA DA GAZELLA. Outros -- como o resenhista que vos falla -- ja se dedicaram a reescrever Alencar trazendo-o para o seculo seguinte, mas Mattoso ousa mais: elle reescreve o romance mantendo a syntaxe oitocentista e as mesmas circumstancias de tempo e espaço. Volta e meia o narrador faz rapidas referencias ao cinema e a uma banda de rock, Kinks, famosa por suas lettras sobre o ciume mas tambem pelas brigas entre os dois irmãos que della faziam parte. As referencias trazem o leitor ao presente para o devolverem logo ao Rio de Janeiro imperial. O narrador recorre “ao historiador” [Gilberto Freyre] para mostrar o contexto e detalhar a historia dos pés no Brazil, como o costume do lavapés e a differença entre o pé largo do negro e o pé mehudo do mulato, o famoso “pé-de-cabra” que adjudou a desenvolver a lucta de capoeira. Usando Alencar contra Alencar e o moralismo burguez contra o proprio moralismo burguez, Mattoso é minucioso: retoma paginas inteiras de A PATTA DA GAZELLA, conforme conta “o romancista de epocha”, mas conduz o enredo a seu avesso, expondo o inconsciente obsceno dos romanticos. O quadrado amoroso se mantem: Horacio e Leopoldo, Amelia e Laura. No romance de Alencar, Amelia tem os pés minimos e mimosos, provocando o interesse dos dois rapazes, um conquistador e o outro timido, emquanto Laura tem pés “inglezes”, isto é, 278
razoavelmente grandes. No romance de Mattoso, Amelia continua com os seus pés mimosos, mas é Leopoldo quem os tem enormes e deformados como um alleijão, padescendo por compta delles enorme vergonha. Só esta alteração provoca mudanças substanciaes no enredo: os mesmos accontescimentos geram peripecias diversas. Taes peripecias accompanham dialogos typicamente romanticos, mas que se vão subvertendo aos poucos. O leitor habitual de Glauco Mattoso extranha, porque a subversão narrativa é lenta e cuidadosa. O erotismo, presente desde Alencar, se accirra. Laura, como mestra, conduz a falsa ingenua, Amelia, ao mundo dos mais perversos. Horacio, no affan de tocar e ser tocado pelos pezinhos de Amelia, deixa-se conduzir a uma sessão explicita de sadomasochismo. Os pés enormes de Leopoldo lhe servem, emfim, para humilhar o rival com todo o requincte. O final é tão excitante quanto profundamente perturbador. Não cabe contar o final. Mas cabe especular que o podolatrismo permitte uma reviravolta dos que se encontram “por baixo”: deficientes physicos em particular, excluidos sociaes em geral. Dobrando a espinha antes que outros a dobrem, o adorador dos pés alheios representa a submissão e assim, na sagaz observação de Italo Moriconi nas orelhas, inverte a seu favor a relação de poder para transformar sua perda em lucro. O fetiche dos pés desta maneira se justifica plenamente (como si precisasse) mas deixa envolto no mysterio o fetiche maior. O fetiche maior é o da propria ficção. O que faz um escriptor se dedicar por annos a fio a reescrever um auctor do seculo retrazado? Não se tracta de paixão pelo phantasma do Alencar porque Mattoso, ao contrario, quer combatter o seu moralismo. Mas se tracta de paixão pela litteratura mesma, com tudo o que essa paixão possa ter de pathos, de doença e de vicio. Foi o vicio da ficção que levou o escriptor a construir um livro de leitura difficil, um livro para ser lido forçosamente devagar. O livro lido ainda 279
exige do leitor que o releia, ou melhor, que os releia junctos, A PATTA DA GAZELLA e A PLANTA DA DONZELLA, para descobrir então como se reescreve a historia e como as semelhanças se transformam em differenças capitaes. Não é pouco trabalho. Mas a perda (de tempo ou da ingenuidade) logo se transforma novamente em lucro. Si a alma não for pequena, o livro de Glauco Mattoso vale a pena.}
Por Henrique Marques Samyn, em www.speculum.art.br {Agora, a incansavel insolencia de Glauco Mattoso levou-o a comprar briga com um dos maiores nomes da historia da litteratura brazileira: ninguem menos que José de Alencar, cujo romance A PATTA DA GAZELLA foi usurpado e subvertido pela implacavel penna glauquiana. Em A PLANTA DA DONZELLA, Glauco desmonta, distorce e retorce a narrativa de Alencar, creando um romance que soterra o moralismo alencariano sob uma ardorosa apologia do fetichismo. Ja no prefacio de A PLANTA DA DONZELLA, o poeta, sem meias palavras, diz a que vem -- revelando que a obra, longe de ser uma releitura elogiosa, fica mais proxima de um enfrentamento descarado. [...] No romance hodierno, o labor glauquiano distorce e radicaliza a thematica alencariana, construindo uma obra em que tudo gyra em torno de podolatrias e fetichismos. Glauco Mattoso subverte o texto alencariano sobretudo a partir de dois principios: a intervenção e a inversão. Quanto à primeira, é realizada de uma forma dupla. Por vezes, Glauco age nos silencios da narrativa de Alencar, tractando de expor minuciosamente -- e despudoradamente -- aquillo que, no texto deste, era mero detalhe. É este o caso, por exemplo, do sapateiro Mattos, personagem que, no romance glauquiano, não excappa ao mundo de perversão do qual faz parte, 280
colleccionando obras de Sade e Restif e assignando poemas obscenos. Outras vezes, Glauco intervem no proprio texto alencariano, alterando as innumeras passagens das quaes se appropria, mudando e inserindo phrases inteiras de modo a adaptal-as ao seu interesse. Por outro lado, tambem a inversão é empregada de diversas maneiras na narrativa glauquiana. Embora a inversão mais notavel do texto, presente na relação entre Amelia e Horacio, não possa ser aqui descripta por representar um elemento essencial no desfecho do romance, ha que se destaccar que Glauco tambem actua modificando estructuras do romance de Alencar, fazendo com que Horacio passe por situações nas quaes o envolvido, na obra alencariana, era Leopoldo, e vice-versa. A inversão mais importante, no entanto, emerge nas paginas finaes da obra -- quando, consummados os desejos e reveladas as vontades, A PLANTA DA DONZELLA revela-se como uma inversão total do moralismo alencariano, destruindo quaesquer resquicios de platonismo e offerescendo sceptro e coroa ao mais impudico hedonismo. Si José de Alencar tencionou escrever uma “fabula” de cunho moralizante, com o ficto de educar desejos e sentimentos, a Glauco Mattoso mais interessa questionar esta moralidade, demonstrando que, quando se tracta de assumptos tão subjectivos, as tentativas de normatização difficilmente podem lograr algum successo. Será que appenas o delicado e mimoso pé de Amelia poderia ser objecto de desejo? Será que appenas o amor platonico, à maneira do que sente Leopoldo na obra alencariana, vale a pena? Glauco Mattoso responde a ambas as perguntas com um emphatico “não”, retomando a defesa da differença que ja fizera em seu “Sonnetto Pluralista”: “Si formos deduzindo com cuidado, / nenhum egual ao proximo será.”} Por José Carlos Vieira, no CORREIO BRAZILIENSE e no DIARIO CATHARINENSE: 281
{Os mundos parallelos de Glauco Mattoso são muitos e muitos não teem volta. Como si fosse um daquelles loucos cineastas do expressionismo allemão, o prosador e poeta paulistano approveita historias ja contadas e conhescidas, como A PATTA DA GAZELLA, do romancista cearense José de Alencar, para reinventar uma trama com angulos e lentes differentes, mas de olho no mesmo foco: o pé. O scenario da obra recemlançada pela Lamparina editora é o mesmo de Alencar -- o Rio de Janeiro do seculo 19, do Romantismo --, mas o transgressor Mattoso dirige um mundo em outra dimensão, assim como fez Robert Wiene, no filme O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI (1919), no qual os personagens brigam com a realidade dentro de um hospicio para attingir em cheio a cabeça do espectador. E o real para Mattoso é a obra de José de Alencar, que tinha o suggestivo appellido de Cazuza na infancia. A PATTA DA GAZELLA é uma historieta romantica, um conto de fadas à brazileira em que dois jovens mancebos, Horacio e Leopoldo, um rico e outro pobre, disputam o pé (a mão) da bella e rica Amelia, a Cinderella tropical. E é o pé que tambem vae nortear toda a narrativa de A PLANTA DA DONZELLA, com citações directas ou indirectas de auctores classicos do Romantismo, como o poeta Alvares de Azevedo. Para justificar a releitura de A PATTA DA GAZELLA, o poeta se autodenomina um podolatra -é auctor do autobiographico MANUAL DO PODOLATRA AMADOR: ADVENTURAS E LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS. A submissa e desejada donzella é transformada numa pessoa dominadora de um jogo com nuances de perversão e fetichismo da Inglaterra no periodo victoriano. É um livro que dá tesão, desejo, mesmo aos que não sonham com um pé maravilhoso desfilando em nuvens de seda branca. Resultado de um escriptor maduro que optou pela transgressão. Indagado si ainda carrega nos oculos escuros algum rotulo litterario, como o de “marginal” por ser contemporaneo da geração 282
de poetas loucos dos annos 70, disse que a sua “exquisitice” o libera desses carimbos.} Por Sebastião Nunes, em www.cronopios.com.br: {O livro de Alencar foi publicado, sob o pseudonymo de Senio, em 1870, como informa na introducção o releitor. O de Glauco sahiu 135 annos depois e é uma extraordinaria combinação de rigor, parodia, pastiche e -- como não poderia deixar de ser -- sadomasochismo. Não tenho espaço, nesta columna, para mostrar todos os desvios com que Glauco tira a historia de Alencar dos eixos e a transforma num romance modernissimo. Tambem não tenho espaço para mostrar o que pode crear um talento excepcional a partir de um breve romance, appenas trocando alguns nomes e fazendo gyrar vertiginosamente as situações, que no entanto se passam na mesma epocha, no mesmo logar e com os mesmos personagens, ou quasi os mesmos. Appesar da manutenção da estructura e até da linguagem, que differença de um livro para o outro! Digamos, sem desmerescer o alto nivel de fabulação do grande José de Alencar, que seria como Villa-Lobos tomar uma valsinha qualquer do seculo 19 e transformal-a numa de suas bachianas, coisa de que seria perfeitamente capaz. Admirador phrenetico do JORNAL DOBRABIL, da prodigiosa producção glauquiana de sonnettos e de tudo o mais que brota de sua usina creativa, obras que mostram com sobras tudo aquillo de que um grande escriptor é capaz, sou mais uma vez obrigado a adjoelhar-me aos pés de Glauco Mattoso para lamberlhe as botinas. Para terminar, accrescento que o effeito é ainda mais surprehendente e desbundante quando os dois livros, A PATTA DA GAZELLA e A PLANTA DA DONZELLA, são lidos (ou relidos) ao mesmo tempo, ou quasi.}
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SĂŁo Paulo Casa de Ferreiro 2020
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