BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA

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BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA



GLAUCO MATTOSO

BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA

São Paulo Casa de Ferreiro 2022


Breve encyclopedia da tortura © Glauco Mattoso, 2022 Revisão Lucio Medeiros Projeto gráfico Lucio Medeiros Capa Concepção: Glauco Mattoso Execução: Lucio Medeiros ________________________________________________________________________ FICHA CATALOGRÁFICA ________________________________________________________________________ Mattoso, Glauco BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA/Glauco Mattoso São Paulo: Casa de Ferreiro, 2022 268p., 21 x 21cm ISBN: 978-85-98271-28-4 1.Tortura - Ensaio I. História - Enciclopédia. II. Título.

CDD 343.101100


NOTA INTRODUCTORIA Este livro reapproveita material de varias fontes mattosianas, entre as quaes O que é tortura, Manual do podolatra amador, Rudimentos de sadomasochismo comparado, Deshumanismo e O poeta da crueldade, para posicionar o contehudo thematico entre o vicio e a virtude, ou entre o litteral e o litterario. Em summa, a tortura methodologica e metaphorica. O texto que serve de base é aquelle que, em tom polemicamente colloquial e jovial, sahiu no volume O que é tortura (1984) na collecção de bolso “Primeiros Passos” da Braziliense e foi reeditado em 1986 pela Abril para venda em bancas, cujos paragraphos foram aqui numerados, entre os quaes se accrescentam janellas illustrativas que incluem citações alheias e auctoraes de cunho sadomasochista. O resultado equilibra a denuncia humanitaria e a phantasia masturbatoria, facetas apparentemente inconciliaveis mas paradoxalmente dialecticas, como cabe à contradictoria verdade poetica. A recyclagem textual torna editorialmente viavel um projecto originalmente mais volumoso que, na versão abbreviada, synthetiza os objectos e os objectivos do estudo. Alguns inevitaveis anachronismos se devem ao contexto oitentista do contehudo original e, quando necessario, são explicitamente datados. Quanto à orthographia, é datada de epochas mais classicas, um saudosismo sempre necessario.



SUMMARIO [1] ANTECAMARA............................................... 11 [2] NA COZINHA (THEORIA & PRACTICA).......................... 15 [3] NA BIBLIOTHECA (HISTORIA & GEOGRAPHIA)................... 57 [4] NO ATELIÊ (ARTES)....................................... 111 [5] NO CONSULTORIO, NO TRIBUNAL, NO PLENARIO................ 145 [6] NO MUSEU (INSTRUMENTOS & RELIQUIAS)..................... 181 [7] BIBLIOGRAPHIA COMMENTADA................................ 197 [8] APPENDICE: "NEONAZISTAS: HOMOPHOBOS OU AUTOPHOBOS?"..... 219 [9] INDICE ANALYTICO........................................ 245 [10] NOTA BIOGRAPHICA....................................... 263



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[1] ANTECAMARA {Diz-se que R. Pálov mencionou como cumplice o Cardeal Richelieu, cujo nome ficou annotado no auto, e que até o interrogatorio de rehabilitação, em 1956, ninguem se surprehendera com isso.} (Alexandre Soljenitsin, sobre os effeitos moraes da tortura sovietica)

[1.1] Você ja foi torturado? Ja torturou? Conhesce alguem que? Talvez poucos respondam sim, mesmo no Iran ou no Uruguay, onde a proporção é de uma pessoa por familia. Na verdade, os testemunhos não são rigorosamente confiaveis, pois quem pensa que nunca soffreu assim nem fez soffrer tem memoria curta, e quem depõe ou confessa falla daquillo que quer exquescer. Ja dizia o jurista Hugo Grotius: a dor só pode ser fonte de mentira. {Os que supportaram a tortura mentem, e os que não puderam supportal-a mentem tambem.} [1.2] Por outro lado, diz a sabedoria popular que pigmenta na bocca (ou em qualquer outro orificio delicado) dos outros não arde. Encarar philosophicamente a tortura é mais difficil para quem a practicou ou experimentou na pelle. Tortura não é um assumpto ameno. Pode ser um assumpto morbido ou ludico, technico ou erotico, politico ou religioso, mas nunca meramente ameno. Encaral-a philosophicamente não significa indifferença nem leviandade. O thema é por demais envolvente. Fascinante e/ou repugnante, mas sempre envolvente. [1.3] O poncto de vista deste livro não vem a ser propriamente philosophico, ja que o espaço é excasso para especulações racionaes. Philosophica é minha attitude de auctor, dando todas as dicas e deixando para você a tomada de posição. Você, leitor,


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está na antecamara da questão (e “questão” terá um significado especial, como você vae ver). Ao contrario do habitual nos livros sobre tortura, este não falla na primeira pessoa. É você quem vae se collocar na pelle da victima, do carrasco, do medico, do psychologo, do advogado, do soldado, do sacerdote e, naturalmente, do juiz. É você quem ja está na pelle de alguem que agguarda a vez de entrar numa “salla do pau” para vivenciar uma “sessão espirita” e conhescer essas girias, seus significados, origens, synonymias e traducções. [1.4] Você foi preso a partir do momento em que abriu este livro. Está privado de sua liberdade emquanto não terminar de lel-o. Ha varias maneiras de ser preso. Não importa si exsiste motivo, si é legal, e qual. Quando vemos cidadãos anonymos sendo “ensardinhados” num camburão durante uma battida, não sabemos si estão innocentes ou não, quem é quem ou o que. O jornalista Herzog se appresentou espontaneamente ao doi-codi. O guerrilheiro Gabeira foi aggarrado depois que uma balla nas costas lhe varou o estomago. O dramaturgo Boal foi sequestrado ao sahir do theatro. Você cahiu nesta armadilha. Vae passar por uma experiencia da qual será agente e paciente, réu, victima e cumplice. [1.5] Quanto a mim, não pense que tomarei sua defesa sendo você a victima, nem que o accusarei sendo você o réu. Muito menos vice-versa. Minha posição neste assumpto não vae ser “ethica”, mas sim “esthetica”. É a unica maneira de permanescer philosophico em tão pouco espaço. O que não evita eventuaes accusações de irreverencia deante da gravidade do thema, ou de pouco caso deante da desgraça alheia. Mas isso é dialectico, pois a ironia attrae a polemica, e da discussão nasce a briga (quando não a paz ou a luz). Para mim a pigmenta não arde, mas em compensação pode ser comary, malagueta ou do reino, e você


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pode lacrymejar ou babar, ranger os dentes ou sorrir. Tudo é esgar, tudo é careta. Eu só quero assistir, tomar nota, e talvez torcer ou chupar o dedo. [1.6] Si não é a catalogação completa das piperaceas e solanaceas piccantes, este livro serve ao menos de aperitivo. Aqui temos um flash de cada scenario onde a pigmenta arde (ou não): a cozinha, a bibliotheca, o estudio, o consultorio, o tribunal, a tribuna e o pulpito. E aqui a conversa começa na cozinha. Entre, a casa é sua.



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[2] NA COZINHA (THEORIA & PRACTICA) {Khong, danh cho co.} (Lemma da policia vietnamita, que significa mais ou menos: “Si não são culpados, pau nelles até que sejam.”)

[2.1] No pau-de-arara o torturado vê as coisas de cabeça para baixo. Para elle tudo é inverso em relação ao torturador, a começar pela posição. Si o carrasco pode ter sido previamente doutrinado, do poncto de vista da victima a practica vem antes da theoria. Assim, ao invés de começarmos pelos conceitos e definições, neste caso, o primeiro contacto é ir directo ao poncto. [2.2] A tortura é antes de tudo um choque, uma surpresa. Por mais que você pense estar preparado para uma situação dessas, vae extranhar logo de cara o “ambiente”. Para que o ambiente seja extranho ao maximo, é preciso que não saiba exactamente onde está. Dahi o primeiro factor commum à maioria dos depoimentos: o olho vendado. Às vezes até durante a sessão, às vezes só até chegar à officina. Uma mascara ja dá para desorientar, mas um cappuz é mais usado (de facto, é raro ver um cappuz novo), geralmente complementado pela manietação. [2.2.1] {O cappuz tem um adspecto peculiar: segundo o General, tira totalmente a aggressividade do preso, pois tinha de se deixar conduzir pela mão, como um cego. Lembrou, varias vezes, que o cappuz é empregado em todo o mundo, para conduzir presos. “Não ha preso encappuzado aggressivo”, sustenta o General que chega a associar, quasi automaticamente, o acto de prender ao de cobrir a cabeça.} (Carlos Rangel, jornalista) [2.2.2] {... o cappuz sujo, encardido, que exhala o cheiro de suor e da angustia deixado por tantos outros que ja o usaram.} (Alvaro Caldas, ex-guerrilheiro)


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[2.2.3] {Na linguagem delles cappuz é “cappô”, seguramente porque, quando querem uma resposta da victima, levantam um pouco sua parte deanteira, a fim de que ella possa fallar.} (Dimas Perrin, communista militante) [2.3] Chegamos então à “officina”, isto é, o local de trabalho (um preso nunca é “torturado”, e sim “trabalhado”). É a “salla do pau”, nas delegacias da policia civil, ou “sallão de baile” (onde o preso “dansa”) ou a roxa “boate”, na pe carioca, ou a “fossa”, no dops gaucho, e assim por deante. Pode ter revestimento acustico, circuito fechado de TV, illuminação especial. Pode ter uma tabuleta na porta, escripta “Interrogatorio -- logar de gente feliz”. Pode ser um simples compartimento entre divisorias de madeira, e pode nem ter paredes, si for no meio do matto e a sessão for um “paude-estrada” ou uma operação militar antiguerrilha. Não ha padronizações, só adaptações e improvisos. Isto porque são locaes clandestinos, às vezes bem camuflados. Precarios ou não, pouco importa: o importante é que você não se sinta em casa. [2.4] Ja poz seu cappuz? Claro, e cobrindo o que estava descoberto, automaticamente você tem que despir o que estava vestido. A nudez é o segundo factor commum. Logicamente uma pessoa trajada attrapalha o trabalho de qualquer torturador, mas o effeito immediato da nudez, antes de facilitar as coisas para o carrasco, é difficultar para você. Pellado você está mais indefeso, e ainda por cyma accanhado. Ou seja, alem do desnorteamento, a vergonha e o medo. Bons ingredientes para uma confusão mental. Si, como diz o dictado, o melhor da festa é esperar por ella, na tortura o medo da dor é mais forte que a propria, e a cuca mais fracca que a carne. O medo é tão fundamental que, na Inquisição, os dois primeiros graus da


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tortura eram admeaçal-o de ser torturado e leval-o até a camara de tortura. O mero acto de mostrar a você toda a paraphernalia de ferramentas levava o nome de territio, isto é, appavoramento. [2.5] Você está notando que começamos a fallar da tortura psychologica antes mesmo de baixarmos o cacete, o que ja mostra como nesse terreno é difficil separar as coisas, definil-as e classifical-as. Comtudo, para effeitos (digamos) didacticos, deixaremos a cuca para depois e exgottaremos primeiro o corpo. Você nem sabe si vae haver interrogatorio (affinal, ainda não dissemos que a tortura tem finalidades e que finalidades tem a tortura), mas, antes mesmo da primeira pergunta, pode estar levando de graça umas trauletadas e uns pescoções. Puro divertimento delles? Evidentemente, mas unindo o util ao aggradavel: emquanto elles ficam duros você admollesce. Para elles isso se chama acquescimento; para você, admaciamento. Serve de admostra, mas, como se tracta de dar as boas-vindas, às vezes participa mais gente que no interrogatorio propriamente dicto. Todos querem tirar uma casquinha e você vira sacco de pancada. Pancadas de effeito moral, está na cara: golpes com as mãos e os pés. A bofetada, tambem tapa ou tabefe, que arde mais na honra que na bochecha. O murro ou soco, que pode nocautear, e o chute ou ponctapé, que pode mactar. Entretanto, ninguem quer accabar com você. Isto é só o começo, mas nos depoimentos vae apparescer sob a denominação generica de “expancamento” ou “sevicias”, accompanhando os adjectivos “brutal”, “atroz” ou “barbaro”. Em poucas palavras, você está sendo “barbaramente seviciado”. Expressão um tanto imprecisa, essa, não acha? Sim, porque de repente o murro pode estar reforçado por um soco-inglez, o que era um tapa pode virar um golpe de karatê, e o braço pode estar prolongado por um cassetete ou coisa que o valha. E ahi? Você ainda estará sendo appenas “barbaramente seviciado”? É melhor


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carregar no adverbio. Declare então que foi “tartaramente seviciado”... [2.6] E como tem gente que confunde sevicias com violencia sexual, vamos a ella. Affinal, você está pellado, admarrado ou algemado e (si ja tiver sido collocado no pau-de-arara) pendurado como um frango. Si você for mulher, melhor. Estará pellada, admarrada e pendurada como uma gallinha. Dá para evitar o deboche? Não dá. [2.7] Antes do estupro, porem, façamos um “coitus interruptus” para examinar que raio de engenhoca é esse tão decantado pau-dearara. Nada mais simples. Bastam duas mesas e um cano ou barra de madeira. O resto é sophisticação. Com a palavra, os callejados: [2.7.1] {Cansei de ler sobre elle nos manuaes de tortura. O famoso pau-de-arara. Penduravam a gente que nem um galleto. Passavam a barra de ferro entre as mãos admarradas à frente do joelho e as pernas flexionadas. Appoiavam as extremidades da barra nas duas escrivaninhas. Passei a ver todos os rostos invertidos.} (Alex Polari, ex-guerrilheiro) [2.7.2] {Sentei. O baixinho continuou fallando emquanto “trabalhava”. Me puzeram o pau embaixo dos joelhos e me admarraram os pulsos com uma chorda, embaixo do pau. Esse é talvez o mais velho systema brazileiro de tortura, chamado “paude-arara”, usado desde a escravidão e agora apperfeiçoado com a utilização da corrente electrica. Trez delles me suspenderam no ar: dois segurando o pau, um de cada lado, emquanto que o terceiro me segurava a cabeça, para que não battesse no chão na hora de me levantarem. As duas extremidades do pau foram appoiadas nas duas mesas: meu corpo ficou assim, pendurado pelos joelhos, ballançando no ar.} (Augusto Boal, theatrologo)


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[2.7.3] {pau-de-arara, creação da incipiente porem inventiva tecnologia nacional, é tão efficiente que ja foi exportado e adoptado até por paizes mais desenvolvidos. Nesse methodo a victima nua é manietada, com seus braços envolvendo os joelhos e tendo tambem os calcanhares admarrados um ao outro. Um cano de ferro é introduzido pela passagem entre os braços e os joelhos. A victima é então erguida e o cano é collocado sobre duas traves.} (Roberto Goldkorn, escriptor e editor) [2.7.4] {Todos sabem o que é o pau-de-arara: uma barra de ferro collocada entre duas mesas, ou em um cavallete, onde o individuo fica pendurado, mãos algemadas às pernas, encolhido como uma bolla humana de carne, a cabeça voltada para baixo.} (Jorge Fischer Nunes, ex-policial e esquerdista) [2.7.5] {pau-de-arara, methodo (...) no qual o preso tem os pulsos e os tornozellos admarrados em posição semelhante à de um remador, inclinado para a frente, e é suspenso no ar por um pau que, passado sob as articulações de seus joelhos, é appoiado a duas cadeiras ou duas mesas.} (Marcio Moreira Alves, politico) [2.7.6] {Admarram-se pés e punhos do preso ja despido, forçando-o a dobrar os joelhos; passa-se uma barra de ferro de lado a lado, suspensa num cavallete...} (Fernando Jordão, jornalista) [2.7.7] {São dois cavalletes de madeira, com cerca de 1,5 metro de altura e uma ranhura na parte superior, onde se encaixa um cano de ferro. A victima, geralmente nua, tem os pulsos e tornozellos envoltos em tiras de cobertores ou panno grosso e admarrados com chordas. Em seguida, o interrogado é obrigado a sentar-se no chão, de tal forma que os joelhos dobrados sejam abbraçados. No espaço sob os joelhos -- e entre os cotovellos --


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introduz-se a barra de ferro, por onde se levanta o prisioneiro para pendural-o entre os dois cavalletes. Nesta posição, o suppliciado, alem das dores provocadas pelo proprio “paude-arara” -- devido à tracção e à paralysação da circulação nos membros inferiores e superiores --, fica completamente à mercê dos interrogadores para ser submettido a outros typos de torturas.} (Antonio Carlos Fon, jornalista) [2.8] Appesar de algumas discrepancias (e equivocos, como veremos) e de algumas rhymas, todos os depoimentos coincidem no essencial. Pelo visto, o pau é a pedra angular da tortura nacional, e a sessão só começa mesmo é nelle; o que veiu antes nem foi começo, foram preparativos. Caricias preliminares não são coito, ja dizia Olga del Volga. [2.9] No entanto, quando se falla de tortura sexual o que menos se verifica é o estupro propriamente dicto. É mais facil um homem tomar pau ou levar ferro na accepção da palavra do que ser penetrado por um puro e simples penis. Pendurado no pau-de-arara, você offeresce em primeiro plano seu orificio mais accuado e seus pompons mais recolhidos. Nessa posição, a tortura dicta sexual consiste em magoar os pompons ou o orificio, preferencialmente a quaesquer outras partes do corpo. Você pode ser appaleado no pau e nos testiculos ou ser empalado por um cassetete, uma garrafa, um tacco de bilhar, uma cenoura, um cabo de vassoura e até mesmo uma vela (que logicamente será accesa). Quando a vela foi usada pelos cangaceiros de Lampeão no subdelegado de Pedra Branca, um sertanejo local commentou: “Vamincê vigie só a que é que nossos governos deixam subjeito o pobre sertanejo! Vigie só de que é que Lampeão anda fazendo castiçal...” Mas a moda do castiçal perdura e prolifera. Outro dia um policial da delegacia de Perus sahiu para comprar uma


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vela e disse à vendedora que era para o sancto. Mas a vela tinha outra finalidade, segundo Fausto Macedo no jornal da tarde. [2.10] Si você for mulher, é bem provavel que seja realmente violada, e até forçada a “participar” do acto practicando fellações, caricias e coisas do genero. Mas tambem nas mulheres é mais frequente a violencia-não-violação, egualmente tida como “sexual”: torturas vaginaes e nos seios, por exemplo. Quando digo “não-violação” refiro-me à violencia sem coito, pois penetração artificial é o que não falta. No Estado Novo, a escriptora Pagu foi empalada pela frente com um cassetete, “e faziam com o mesmo movimentos varios, até que o sangue sahiu em golfadas e a mulher perdeu os sentidos” (segundo David Nasser). Nas esposas dos communistas costumava-se introduzir uma bucha de mostarda (mesma fonte)... [2.11] Tudo aquillo se mixtura e confunde sob a vaga designação de tortura sexual, mas nos depoimentos nem isso se diz. Você deve declarar que “soffreu vexames”. Mesmo que a dor fosse maior que a vergonha. Mesmo que você nem tenha ficado envergonhado (pode até ter gostado, não importa). Soffreu “vexames” porque o Pudor Publico o exige. É elle, o Pudor Publico, que está vexado. Não por você ter sido torturado, mas por ter a ousadia de denunciar. [2.12] Mas ainda não é a hora do sermão. O show da vida continua, e a “sessão espirita” se completa com o emprego de quattro elementos essenciaes à natureza: a agua, o fogo, a terra e a fauna; um elemento essencial à civilização moderna: a electricidade; e algumas privações do essencial à vida humana: agua, comida e somno. [2.13] A agua é um manancial inexgottavel de supplicios. Uma simples gotta pingando continuamente no alto do seu cocoruto


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pode deixal-o desmiolado. Guindado de poncta-cabeça num volume della, você pode ser affogado e reanimado successivamente até o limite da resistencia. Ingerida em quantidade pode inchal-o até arrebentar. Injectada nas narinas tambem pode afogar, e em jacto de mangueira equivale a uma surra. Gelada o resfria e macta; quente o excalda; estagnada e podre pode podar-lhe o pé; mixturada com mil chymicas pode lhe pinctar o septe pela pelle ou nas entranhas. Excorrendo pelo corpo, emfim, é excellente conductora de electricidade. [2.14] O affogamento é tão frequentemente applicado quanto são innumeras suas variações. Pendurado no pau, você pode ser submettido ao submarino, isto é, sua cabeça fica totalmente submersa em agua, urina ou fezes; pode entrar pela hydraulica, ou seja, emquanto sua bocca está admordaçada a agua é despejada em suas narinas attravés de canudos ligados a um funil; ou pode aguentar o caldo, a saber, agora suas narinas é que são tapadas e você tem que engolir uma mangueira que lhe exguicha la dentro em alta pressão até que o pulmão peça (ou melhor, não peça mais) agua. Fischer Nunes diz que {si ha infiltração de agua nos alveolos pulmonares o individuo está condemnado à morte, mesmo que saia vivo dalli; a morte occorre mais tarde, appresentando symptomas characteristicos, semelhantes aos da morte por pleurisia.} E Polari explica que, na “hydraulica”, {si a gente grita, engole agua muito cedo. A melhor maneira é aguentar. Quando o suffocamento chega ao limite, exaggerar as convulsões que, de resto, são bem reaes. Ahi elles tiram a esponja (que admordaça a bocca) e perguntam. Esperam dois segundos no maximo e recomeçam. Com a practica elles sabem quando você está fingindo, addeantando-se ao seu limite. Elles sabem o poncto exacto onde o insupportavel faz fronteira com o inicio do definhamento, da obstrucção total, da morte. Com a practica, a gente consegue excammotear um pouco esses limites. Às vezes nós


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erramos e elles riem. Às vezes elles erram e numa dessas podese ir para as cucuias}. Eu disse que a agua pode ser urina, ou mixturada com fezes. Mas às vezes tambem se mixtura sabão, sal, kerosene ou ammoniaco. Depende do que se tem à mão, sem fallar que o alto preço dos generos alimenticios e productos chymicos não incentiva o desperdicio. Por isso os dejectos são mesmo o mais commum, e surtem o mesmo effeito. [2.14.1] Caso typico de immersão em aguas de exgotto vale registro. Tracta-se de documento cuja authenticidade foi contestada por ser a fonte um cubano anticastrista chamado Armando Valladares, mas o facto reportado era tão frequente em campos de concentração asiaticos e africanos, que não ha razão para duvidar de sua occorrencia na ilha de Fidel. No livro contra toda a esperança, Valladares narra que {Era o começo dos trabalhos forçados e ainda não tinham tido a idéa de nos mandar trabalhar sem sapatos, mesmo. Pelo menos era o que eu pensava naquella madrugada, quando fomos chamados ao terreo. (...) Mandaramnos formar filas de dois no fundo. A partir desse instante ja se notava a hostilidade em relação a nós. Começamos a andar na direcção da sahida da prisão; os guardas que nos excoltavam dos dois lados tinham sacado as bayonnetas e agitavam-nas, com gritos e admeaças. Passamos deante das guaritas dos militares, dos edificios da directoria, transpuzemos o alambrado pelo portão principal e viramos à direita, para o leste. A violencia de vez em quando augmentava. A caminhada se tornava difficultosa porque a maioria de nós estava descalça. Espinhos e pedras não nos permittiam um caminhar seguro como o dos guardas que calçavam botas. Naquella zona encontrava-se uma valleta na qual desemboccavam todas as aguas servidas do presidio; (...) La desemboccavam os excrementos de umas oito a nove mil pessoas. O solo era rochoso, com pedras cheias de arestas cortantes (...) Chegamos a uma cerca de arame farpado. Os primeiros que


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tentaram passar por ella levantando com cuidado os fios de arame, para passar entre elles, appanharam de immediato. Mandaram que saltassem a cerca. Era prohibido passar entre os arames: tinhase que pullar e cahir do outro lado, de pés descalços sobre as rochas affiadas. (...) Deante de nós estava a valleta de aguas negras e na superficie, fluctuando, ilhotas de excrementos; por cyma delles nuvens de moscas verdes. A fetidez typica de aguas podres, daquelles miasmas asquerosos, enchia o ar. Os cabos, aos empurrões, usando os fuzis, obrigaram-nos a entrar na valleta immunda. Cahi na agua negra, empurrado pelas costas, e não pude evitar que me enchesse a bocca e inundasse os olhos. O pretexto para aquella tortura era que precisavamos limpar o fundo para evitar que o canal entupisse. Em alguns logares a agua battia-nos no peito ou à altura do queixo, dependendo da estatura do preso; o fundo, irregular e com bruscos declives, fazia a gente affundar de repente, quando se pisava em falso. Tinhamos que tirar alguma coisa do fundo, uma pedra, um pouco de lixo, qualquer coisa, nem que fosse um pouco de lodo, e levar à margem, quando então os guardas approveitavam para nos batter com as bayonnetas. Aquelle espectaculo era indescriptivel. Si algum de nós não submergia o sufficiente, era retirado da valleta e surrado. Emquanto estavamos no centro da valleta não era facil então nos attingir com as bayonnetas. Arranjaram umas varas compridas para poderem nos surrar de longe. Outros guardas, desejosos de participar do castigo, attiravam-nos pedras. Mandaram que advançassemos para o trecho mais estreito da valleta. Justamente naquella parte uma camada espessa de excrementos cobria toda a superficie, extancando a agua, que fluia appenas por um pequeno canal. Iamos advançando naquelle mar de merda. Cada vez que mergulhavamos, affastavamos os excrementos com as mãos, para affundar a cabeça. Os cabellos estavam grudados, os ouvidos e os ferimentos dos pés e os das pernas, causados pelas bayonnetas da guarnição, eram como portas


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abertas para a infecção. Os guardas, embriagados pela morbidez, desfructavam aquella tortura; deleitavam-se ao nos ver affundar a cabeça na agua podre. Não perdiam occasião de espetar com as bayonnetas ou de appoiar o pé na cabeça de um de nós e forçar, a fim de nos obrigar a affundal-a. Nada pode ser peor do que isto, pensava eu naquelles instantes angustiosos, emquanto pedia a Deus que me desse forças para resistir. (...) Continuamos por mais umas duas horas enfiados na merda. Voltamos andando. Não me lembro de viagem ou caminhada mais penosa do que essa, nem de regresso mais desejado. Só pensava em tomar um banho e desinfectar os ferimentos; (...) Quando o gruppo de homens alquebrados, arrastando os pés, exhaustos, que formavamos, entrou no terreo, nossos companheiros entoaram a melodia do hymno nacional. (...) A represalia por terem cantado o hymno nacional não se fez esperar: fecharam a agua até o dia seguinte e não pudemos tomar banho.} [2.15] O fogo disputa com a agua a maior variedade de applicações, cabendo resalvar que é muito menos empregado hoje do que antigamente, quando a fogueira servia até como methodo de execução. Numa sessão moderna as queimaduras occupam logar secundario e exercem funcção accessoria. Consequentemente, você não precisa ter medo de morrer carbonizado, a não ser por accidente. Preoccupe-se appenas com ser chammuscado aqui e alli por ponctas de cigarro ou charuto, com a famosa vela suppositoria, ou até mesmo com um maçarico nas nadegas, a exemplo do Estado Novo. Nada de chumbo derretido, oleo fervente ou ferro em braza, como nos velhos tempos. Salvo si seus torturadores fizerem o genero nostalgico. [2.16] Com relação à terra, basta a percepção de que você corre o risco de ficar debaixo della antes mesmo de perder os signaes vitaes. O sepultamento parcial ou temporario, alem de lhe


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emprestar a exspectativa da morte e servir para appavorar, funcciona tambem como methodo de immobilização e submissão a diversos outros castigos. Um dos mais antigos recursos nesse sentido é o entaipamento, que enterra a víctima até o pescoço, expondo-lhe a cabeça ao nivel do solo. [2.16.1] O verbo hespanhol “entapiar” (que em portuguez corresponde a “entaipar”) designa aquillo que em inglez ficou conhescido como “sand neck tie”, technica de tortura historicamente registrada não só entre corsarios, mas largamente empregada desde a Antiguidade. É, com effeito, um methodo de immobilização que dispensa qualquer admarrilho ou grilhão e ao mesmo tempo conjuga o maximo de humilhação com o minimo de defesa para o castigado. Enterra-se a victima até o pescoço, deixando appenas a cabeça exposta aos pés e aos propositos do algoz. Tradicional e amplamente utilizado na Asia, tal methodo foi adoptado systematicamente durante o regime do “apartheid” sul-africano. No livro parte de minha alma, Winnie Mandela resume o costume: {Peor ainda era o facto de os prisioneiros estarem completamente entregues aos caprichos dos guardas, que (...) Cavavam um buraco profundo na areia e enterravam o prisioneiro até o pescoço, abbandonando-o nesse estado ao sol infernalmente quente. Não faziam qualquer segredo de que para elles o prisioneiro não passava de um porco e de que elles pouco se importariam si esticasse as cannellas. Deixavam, assim, o preso na areia metade do dia ou o dia inteiro e, si elle pedia agua, vinha o guarda, obrigava-o a abrir a bocca e urinava dentro. Dizia-lhe então que era whisky, o melhor whisky que elle jamais bebera. Nunca lhe davam agua.} Winnie cita como fonte Indres Naidoo, um ex-condemnado a trabalhos forçados na ilha de Robben, cujo livro a ilha aggrilhoada dá mais detalhes sobre o “entaipamento”: {A certa altura da manhan, um dos presos que empurravam o eixo, Johnson Malambo, foi tirado do gruppo


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e accusado por Kleynhans de ser um “hardbek kaffir” (um caffre malcreado). Apparentemente, protestara contra o trabalho, e Kleynhans chamou dois presos communs que faziam trabalhos leves alli perto, e ordenou-lhes que abrissem um buraco ligeiramente affastado do local onde manobravamos o cylindro. Os presos iam em breve apprender quem era o “baas” alli. Malambo ficou perto do logar onde elles cavavam, e de todas as vezes que completavamos o longo e extenuante circuito verificavamos que o buraco estava um boccado mais fundo, com Malambo à espera em silencio a seu lado. Kleynhans saltara do cylindro e estava tambem alli a supervisionar a abertura do buraco, emquanto nós continuavamos a empurrar o cylindro sem elle, até que, passado um boccado, nos appercebemos de que os presos communs tinham parado de cavar. Então ouvimos Kleynhans ordenar a Malambo que entrasse para o buraco e depois, ao completarmos o circuito seguinte, vimos a cabeça de Malambo a expreitar do chão. Dois presos communs lançavam pás de areia para o buraco, à volta dos seus hombros, e da proxima vez que passamos ja só vimos a cabeça de Malambo ao rés do solo. O seu craneo rapado e reluzente dava a impressão de se lhe ter separado do corpo e rollado para o chão, e embora não conseguissemos distinguir-lhe qualquer expressão, sabiamos quanto o sol estava excaldante e sentiamo-nos angustiados por elle. Era horrivel ver alli aquella cabeça como que abbandonada, de olhos attordoados e fixos. Kleynhans voltou a subir para o cylindro e o chicote recomeçou a estallar, com os guardas a rir e a dizer piadas. Andamos à roda, à roda e à roda, com a cabeça sempre alli. Algumas horas depois, pouco antes do almosso, Kleynhans saltou do cylindro e dirigiu-se para Malambo. Estava de bom humor, a divertir-se. “Kaffir, soek jy water?” (caffre, queres agua?) “Nee ek sal jou nie water gee nie, ek sal hou whisky gee, die beste whisky” (não, não te dou agua, vou darte whisky, do melhor.) Entre extrondosas gargalhadas dos outros guardas, desaptou a braguilha, tirou o penis para


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fora e começou a urinar na cara de Malambo. À 1 hora, appós cinco horas de trabalho incessante, mandaram-nos parar e reunir para sermos comptados. Affastamo-nos do cylindro com o corpo tão cansado e dorido que mal nos tinhamos de pé, e quando nos deram a comida deixamo-nos cahir para o chão, quasi sem força para comer. Eu não tinha appetite nenhum, só consegui engolir umas duas colheradas de arroz espaçado e larguei o pratto. Malambo foi desenterrado e ordenaram-lhe que se nos junctasse. Lavouse da terra que lhe cobria o corpo e sentou-se juncto de nós, sem dizer uma palavra. O seu silencio era terrivel, e nós tambem não lhe podiamos dizer nada. À tarde repetiu-se o processo de puxar e empurrar sem parar, sempre a andar à roda do terreno desbravado, com Kleynhans sem se cansar nem um minuto de berrar ordens e insultos e de estallar selvaticamente o chicote. Às 4 horas, quando paramos, tinhamos applanado o campo todo. O caminho de regresso à prisão paresceu nunca mais accabar.} [2.17] Quanto à fauna, o uso de animaes a serviço da tortura tambem tem declinado com o passar do tempo, ou melhor, o que tem diminuido é o tamanho dos bichos. Antigamente havia fartura de feras de grande porte; hoje ellas se acham em exstincção nos zoologicos, mas em compensação a população de rattos, barattas, piolhos e pulgas vem augmentando, principalmente nas prisões. Portanto, esteja preparado para essa incommoda companhia que, de meramente circumstancial, pode ser transformada em tormento requinctado. Exemplo: o ratto pode ser collocado dentro de um penico, no qual você tem que sentar e ao qual é admarrado. Acquescido o penico, o resto (ou o recto) é por compta do ratto. Outro exemplo: si seu corpo for unctado de mel (ou algo mais falsificado), as moscas, vespas e formigas ficarão assanhadinhas por você. [2.18] À medida que alguns procedimentos barbaros e rudimentares vão cahindo de moda, outros mais modernos e scientificos lhes


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occupam o logar. Hoje em dia, a technica mais utilizada, depois do simples expancamento, é sem duvida a electricidade. Si o expancamento deixa marcas, as sequelas do choque são mais deleveis, mas menos de leve. É por isso que os dois melhores methodos torcionarios da actualidade são o affogamento e o arrepio (como é chamada a descarga electrica), geralmente combinados e revezados, ja que a agua corrente adjuda a corrente “alternada”, e vice-versa. A proposito, é tambem com correntes que você pode ser admarrado ao pau-de-arara, o que concorre para a efficacia da electricidade. Com tanta corrente, não admira que esta sessão seja appellidada de espirita. [2.19] Não é preciso dispor de altos equipamentos: um dynamo commum (typo magneto do telephone de campanha), accionado por uma manivella, constitue a famosa machininha de choque conhescida como pigmentinha, perereca ou maricota. Conforme a velocidade imprimida à manivella, a voltagem augmenta ou diminue, e os fios podem ser cuidadosamente presos a partes sensiveis do seu corpo (anus, glande, vagina, lingua, dentes, dedos, tympanos) ou simplesmente você será todo cutucado pela picana, como dizem nossos vizinhos de “habla española”. Havendo recursos, a apparelhagem se sophistica. Em logar da machininha manual, um gerador. Ou uma pianola boilesen, na qual a intensidade do choque é regulada por um teclado (ao que consta a pianola deve seu nome àquelle tragicamente fallescido industrial, que a introduzira no doi-codi). Ou uma cadeira-do-dragão, onde você é electrocutado pelo contacto com as partes metallicas do assento, encosto e braços. E mil outros apparatos & artefactos. [2.20] Para que você não vire um poraquê, porem, vamos retiral-o a tempo dessa adventura electrizante e jogal-o num carcere, num xilindró ou num outro synonymo qualquer registrado pelo Aurelio. Agora, ao invés de levar de sobra, você vae passar necessidades.


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Antes de tudo, a falta de comforto, ou seja, você não está em casa, lembra-se? Depois, a falta de hygiene, a falta de luz, a falta de calor ou de ar fresco. Por fim, as privações que podem definhal-o lentamente e alterar-lhe não só a physiognomia como a personalidade: a fome, que pode obrigal-o a comer coisas que você nem cheiraria; a sede, que o força a beber aquillo que ja foi bebido; e a insomnia forçada, que lhe provoca hallucinações e pode pirar. [2.20.1] Meu cyclo de sonnettos “Coprophagonia” foi dedicado a José Marcolino, Severino Candido e Francisco Ferreira da Sylva, lavradores alagoanos forçados, quando presos, a ingerir excrementos a fim de que sua repugnancia divertisse os policiaes da cidade de Quebrangulo. Ainda a proposito da dedicatoria desse cyclo, cabe registrar a seguinte noticia. [2.20.2] {Deu na revista visão que occorreu em Alagoas: os soldados George André de Mello e Manoel Messias da Sylva, da pm de Quebrangulo, obrigaram trez presos a comer uma mixtura de urina e fezes. Os presos, José Marcolino, Francisco Ferreira da Sylva e Severino Candido, todos lavradores, mesmo admeaçados de morte, denunciaram a violencia ao juiz Eliezer Ignacio. Segundo disseram, estavam fazendo compras numa mercearia do centro da cidade no dia 6, quando se desentenderam com os policiaes, que não gostaram de vel-os portando armas. Terminaram sendo presos. Na cadeia, os soldados passaram a expancal-os; na noite de 6 para 7, foram obrigados a comer a mixtura, sob admeaça de morte. Marcolino, fallando em nome de todos, disse que o soldado George André, entre risos e gargalhadas, ainda os forçou a tomar uma colher de sopa de pigmenta malagueta. Emquanto isso, os soldados continuavam expancando os presos, divertindo-se com sua repugnancia.} [2.20.3] Quanto à privação da luz, mais grave que o isolamento numa cella escura ou a venda temporaria nos olhos é a cegueira


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intencionalmente provocada. Desde a Antiguidade a ENUCLEAÇÃO de prisioneiros foi utilizada, seja para escravizar o inimigo capturado, seja para punir o criminoso, no litteral exercicio do talionato: olho por olho. Ao exemplo de Sansão no Velho Testamento sommam-se innumeros casos, do martyrio de Sancta Luzia ao recente projecto vehiculado nos States, como commentei na revista caros amigos: {Emquanto se discute uma “commissão da verdade” sobre os desapparescidos nas dictaduras sulamericanas, me vem à mente a bibliotheca que colleccionei sobre a tortura, cujos methodos se repetem e copiam, ha millennios, universalmente. Entre os depoimentos dos sobreviventes brazileiros e argentinos, a venda nos olhos era parte da technica psychologica, com physicas consequencias caso os olhos permanescessem vendados por muito tempo, mas em outras epochas e logares a cegueira não era castigo temporario. O caso biblico de Sansão não foi isolado: muitos povos costumavam cegar seus prisioneiros, para punil-os e escravizal-os sem risco de resistencia. Tal practica perdura em paizes islamicos e entre tribus africanas, variando appenas no methodo, do ferro em braza à enucleação. Até nos Estados Unidos se discute (ha um site participando dessa polemica: www.createdebate.com) si os criminosos deviam ser cegados, seja para poupar custos carcerarios, seja para doar corneas. Allega-se que trabalhariam mais disciplinados e ficariam impossibilitados de fugir. Commigo mesmo, reflicto que, emquanto os humanistas se preoccupam com o que seria ou não abuso de presos, os deficientes que vivem suppostamente em liberdade soffrem o maior abuso de todos: a discriminação, que vae do preconceito à violencia, passando pelas barreiras educacionaes e profissionaes. Para esse typo de prisão perpetua não ha progresso humanitario visivel em qualquer dos mundos, primeiro ou terceiro.} [2.20.4] A historia da cegueira confunde-se em muitos ponctos com a historia da tortura, como demonstra a professora Luciane


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Benazzi, technologa em optometria, num estudo retrospectivo e comparativo entre exclusão e inclusão de deficientes visuaes, baseado em obras mais approfundadas como a de Barasch, blindness: the history of a mental image in western thought. Segundo esse fragmentario ballanço, ao longo do tempo a cegueira sempre foi marcada por sentimentos de rejeição, preconceito, intolerancia, religiosidade e mysticismo. O codigo hindu de Manu, anterior a Christo, ja em seu artigo 612 fazia referencia à prohibição successoria, sendo que os homens degredados, cegos, surdos, loucos “não serão admittidos a herdar”. Pode-se dizer que parte da Antiguidade até o inicio da Edade Moderna characteriza-se como um periodo mystico no que se refere à cegueira, uma vez que se accreditava que esta era uma desgraça. Entretanto, vale resaltar que a concepção mystica da deficiencia visual ainda está presente na actualidade, tendo em vista que alguns pensam que os portadores de cegueira não possuem capacidade para executar determinadas tarefas e quando as executam são considerados como seres superdotados. As sociedades da Antiguidade, em seu processo cultural, contemplavam a rejeição e, muitas vezes, o sacrificio da pessoa cega, a qual era considerada inutil para o trabalho, não attendendo, assim,às exigencias da collectividade. Portanto, o infanticidio das creanças que nasciam cegas era frequente, bem como o abbandono dos que haviam perdido a visão na edade adulta, os quaes ficavam entregues à propria sorte e à hostilidade alheia. Em Athenas e Esparta, as creanças com deficiencia eram abbandonadas nas montanhas, emquanto que na Roma antiga ellas eram jogadas nos rios. A historia conta que os cegos nas communidades primitivas e na antiga Prussia eram barbaramente torturados e condemnados à morte, pois accreditavase que as pessoas cegas eram possuidas por espiritos malignos, convertendo o cego em objecto de temor religioso. Em outras sociedades primitivas, a cegueira era considerada um castigo infligido pelos deuses e a pessoa cega levava o estigma do


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peccado commettido por ella, por seus paes, seus avós ou por algum outro membro da tribu. Algumas tribus nomades abbandonavam os cegos em locaes habitados por animaes ferozes ou por tribus inimigas. Para o povo hebreu, o homem coxo, cego ou corcunda era considerado indigno, detentor de poderes oriundos dos demonios, cujas impurezas e peccados expressavamse pelas “marcas”. Para a cultura judaica, que seguia o Velho Testamento, a cegueira tinha forte connotação de peccado. O mesmo vale para o Novo Testamento. Vejamos o texto biblico: “E os discipulos lhe perguntaram, dizendo: Rabbi, quem peccou, este ou seus paes, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem elle peccou nem seus paes; mas foi assim para que se manifestasse nelle a gloria de Deus...” (Evangelho de São João, 9:2,3). A cura dos cegos, na Biblia, está sempre ligada à remissão dos peccados, à confissão dos peccados. Conforme Barasch, a Biblia reflecte o pensamento cultural da Antiguidade em relação à cegueira, tendo grande influencia sobre artistas e escriptores da epocha e tambem collaborando para manter o circulo vicioso do preconceito. O christianismo romperá com toda a philosophia e cultura do occidente e oriente, introduzindo um novo modo de pensar a natureza humana differente. Desfaz-se, assim, o conceito de deficiencia visual como peccado e exclusão do ser humano imperfeito; evidencia-se a não-valorização do olhar physico dos sentidos, mas o da dimensão espiritual humana. Com o fortalescimento do christianismo, a situação das pessoas com deficiencia se modificou, ja que todos são filhos de Deus. O Evangelho, suppõe-se, dignificaria o cego. Ja o Egypto era conhescido, na Antiguidade, como o paiz dos cegos, sendo assim chamado por Hesiodo, tendo em vista a alta incidencia da cegueira, devida ao clima quente e à poeira. Referencias à cegueira e às doenças nos olhos foram encontradas em papyros e os medicos que cuidavam dos olhos se tornaram famosos na região mediterranea. Na Grecia antiga, Homero, o grande trovador


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cego, auctor da iliada e da odysséa, accabou morrendo na miseria, recitando seus versos pela cidade. Para os gregos, a ausencia da visão assumia uma connotação negativa, egualando os cegos aos sacrilegos e aos adulteros. Entretanto, algumas pessoas cegas, como Tiresias, eram veneradas qual prophetas, porque o desenvolvimento dos outros sentidos era considerado como miraculoso. Em Roma, o procedimento mais commum era o de eliminação do cego. Mais tarde, havia cegos de toda natureza: philosophos, trovadores, oradores. Na Alexandria, Didymo, theologo e mathematico. Alguns cegos se tornaram pessoas lettradas, advogados, musicos e poetas. Cicero, por exemplo, orador e escriptor romano, apprendeu philosophia e geometria com um tutor cego chamado Diodoto. Mas a grande maioria vivia na penuria, recebendo alimentos e roupas como esmolla. Os meninos se tornavam escravos e as meninas prostitutas. Na Edade Media, a cegueira era provocada como castigo ou como acto de vingança. Ainda nesse periodo era utilizada à guisa de pena judicial, applicada como castigo para crimes nos quaes havia participação dos olhos, ou crimes contra a divindade e faltas graves às leis de matrimonio. A preoccupação social dos religiosos com os deficientes visuaes data do seculo V, quando paresce ter sido fundada a primeira communidade para cegos, por São Linneu, na França. No seculo xi, no Occidente, Guilherme, o Conquistador, creou quattro hospitaes para cegos, tendo como objectivo expiar o peccado de ter se casado com uma parente. Outro facto interessante foi que Basilio II, imperador de Constantinopla, no seculo xi, depois de ter vencido os bulgaros, ordenou que fossem retirados os olhos de seus 15 mil prisioneiros, fazendo com que regressassem para a sua patria. Comtudo, 1 em cada 100 homens teve um olho conservado para que pudesse servir de guia dos demais. Na Russia, um outro Basilio II, chamado Temmy ou “o Cego”, foi grão-principe e se oppoz aos proprios familiares. Teve os olhos furados, mas accabou triumphando sobre todos


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os seus rivaes. No Reino Unido, as primeiras referencias às pessoas cegas datam do seculo xii, e mencionam um refugio para homens cegos, perto de Londres, aberto por William Elsing. Os cegos eram geralmente mendigos que viviam da charidade alheia. Em 1260, Luiz xiii fundou, em Paris, um asylo destinado exclusivamente aos cegos, com objectivo de attender 300 soldados francezes que tiveram seus olhos arrancados durante as Cruzadas. Mais attenção foi dada às pessoas pobres e deficientes, principalmente devido à lei “The Poor Law Act”, lavrada em 1601, que mencionava explicitamente os pobres, os incapazes e os cegos, prevendo abrigo e supporte para estas pessoas. Dessa data em deante e por mais uns duzentos annos, os cegos viveram em suas casas ou em instituições, os chamados “asylums”, comptando com algum supporte dos governantes. Os germanicos impunham a cegueira aos perjuros, trahidores e falsificadores de moeda. Para os byzantinos e merovingios era o castigo imposto aos agitadores politicos. A cegueira como pena era executada pondo deante dos olhos do paciente uma barra de ferro acquescida ao rubro, ou queimando com ferro o globo ocular, ou extrahindo-o por incisão ou com os dedos, entre os byzantinos. (...) {Vale resaltar que o conceito da cegueira para o mundo oriental não tinha o mesmo significado do occidente. Na China, a cegueira era bastante commum entre os moradores do deserto. A musica era uma alternativa para se ganhar a vida e, para isto, os cegos precisavam exercitar o ouvido e a memoria. Os japonezes, desde os tempos mais remotos, desenvolveram uma attitude mais positiva com relação às necessidades das pessoas cegas, emphatizando a independencia e a autoadjuda. A musica, a poesia, a religião e o trabalho com massagem eram as principaes actividades dos cegos no Japão, alem de serem contadores de historias.} (...) {Entre os seculos xv e xvi, a philosophia humanistica chega ao seu apogeu com o advanço das sciencias. Nesse contexto, a deficiencia visual passa a ser comprehendida como pathologia e


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surgem as primeiras preoccupações educacionaes relativas às pessoas cegas, perpassando os seculos seguintes.} (...) Durante o periodo renascentista, as pessoas sem visão passaram a ser o thema preferido de varios pinctores. Podemos citar como exemplos os quadros “Parabola dos Cegos”, que retracta uma scena em que varios cegos vão cahindo em uma valleta, de auctoria de Pieter Bruegel (1530-1569), “O Tocador de Allahude”, de Georges La Tour (1593-1652), no qual o pinctor retracta um musico cego, “Os Cegos de Jerichó”, de Nicolas Poussin, pinctado no anno de 1651, no qual apparescem dois cegos sendo curados por Jesus. (...) {A partir do seculo xviii, o entendimento a respeito da deficiencia visual tornou-se mais approfundado, surgindo os primeiros conhescimentos anatomophysiologicos para a comprehensão scientifica sobre o funccionamento do olho e do cerebro. Os seculos xviii e xix marcaram mudanças e um advanço na historia das pessoas com deficiencia visual. No final do seculo xviii, surgiu, em Paris, a primeira eschola de cegos, o Instituto Real dos Jovens Cegos, creada por Valentin Haüy, em 1784, tendo como objectivo a educação para retirar os cegos da condição vexatoria de mendigos, que perambulavam e “perturbavam” a ordem social, alem de preparal-os profissionalmente. Portanto, foi um dos pioneiros a desenvolver trabalhos educacionaes com cegos, os quaes tinham por objectivo provar a hypothese de que os cegos eram capazes de ler por meio do tacto, exemplo que seria seguido por outros, pois logo appós a creação desse instituto outras escholas surgiram em cidades como Liverpool, Londres, Vienna, Amsterdam, Berlim, Zurique, Boston e Nova York: o New York Institute for the Education of the blind , em 1832. No inicio do seculo xix, na França, um joven cego chamado Louis Braille desenvolveu um systema de characteres de seis ponctos em relevo, denominado systema braille, que possibilitou a apprendizagem de leitura, escripta e a proliferação de escholas por toda Europa e Estados Unidos. O methodo braille foi o mais importante e


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effectivo recurso creado para a educação do deficiente visual e usado até os dias de hoje.} A historia, as lendas, a litteratura e a propria Biblia contribuíram, portanto, para perpetuar as idéas negativas, os mythos sobre o effeito da falta da visão na vida das pessoas. [2.21] Como vê, ca estamos de novo fallando em tortura psychologica, mas appenas fingiamos que ella estava sendo deixada para o final. Na verdade, você foi psychologicamente torturado o tempo todo, a partir do momento em que o encappuzaram e despiram. Dalli até o fim da sessão, descomptados os gritos e insultos dos torturadores, você foi bastante tocado. Por conseguinte, as escoriações, contusões, lesões, fracturas e demais machucadinhos seriam provas inequivocas da tortura, num hypothetico exame de corpo-de-delicto. É o caso de perguntar: e si ninguem tivesse “encostado a mão” em você, teria havido tortura? A pergunta é valida, porque muitos generaes e delegados parescem accreditar piamente que, si você não foi physicamente aggredido, si não sangrou nem sentiu dor, não foi torturado. Vale tambem para que possamos separar theoricamente a tortura physica da psychologica. Tirando as violencias e violentações (inclusive sexuaes), o que sobra? Em primeiro logar, outros “vexames” não especificados, a infinidade de humilhações que attendem pela denominação generica de “tractamento degradante”, cujos tamanhos são variaveis e não podem ser medidos na sua pelle pela regua do medico-legista. Vão ellas desde as serias injurias até as gozações mais debochadas, quer no plano verbal, quer no oral; desde o momento em que você é obrigado a adjoelhar, engattinhar, rastejar, prostrar-se e lamber o bicco da bota que vae (ou não) lhe quebrar as costellas, até a hora em que você tem de assignar a confissão de algo que não fez. tortura psychologica pode ser tudo isso e mais alguma coisa, como admeaçal-o de morte e fingir que vão executal-o;


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obrigal-o a ouvir e ver outras pessoas (talvez da sua familia) sendo torturadas; mantel-o em isolamento e silencio total ou ensardinhal-o numa cella appinhada de gente em pé, debaixo de barulheira ensurdescedora; emfim, deixal-o na simples exspectativa de que lhe accontesça tudo aquillo de novo, na mesma bat-hora e no mesmo bat-canal ou a qualquer momento em edição extraordinaria. Para melhor alterar o seu estado physico e psychico, você pode ser mais ou menos dopado com aquillo que se chamaria tortura chymica: drogas diversas, mixturadas na comida, na agua, respiradas, clysteradas, injectadas, taes como o soroda-verdade e processos analogos à narcoanalyse. [2.22] E ahi temos você, sobrevivendo a uma ou mais sessões e prompto para depor e denunciar os horrores soffridos. Prompto, propriamente, não, pois antes de querer contar quasi tudo e exquescer outro tanto, você terá que parar para pensar e formar uma noção do que lhe accontesceu. É este o momento de chegarmos a um conceito de tortura. Si você for aos diccionarios e encyclopedias, talvez não concorde com as definições que vae encontrar. Em geral a tortura é dada como mero synonymo de supplicio e tormento, e tomada como equivalente a soffrimento physico. Na bibliographia especializada, a coisa se approfunda a niveis labyrinthicos. De um lado, os tractadistas do assumpto, principalmente inglezes (Swain, Scott), vão bem mais longe que as obras de referencia e se perdem em nuanças rhetoricas antes de chegar a um enunciado (nunca deixando de citar a Encyclopaedia britannica, naturalmente). De outro, a “jurisprudencia” internacional (convenções de Genebra, declarações de direitos humanos) tenta restringir o conceito a formas de interrogatorio ou punição, e estabelesce “graus” que variam dos corriqueiros “maus-tractos” à pena de morte, passando pelos imprecisos termos “cruel”, “deshumano” e “degradante”. Numa das definições “officiaes”, por exemplo, a tortura seria uma especie “aggravante”


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de tractamento deshumano. Em outra, seria “crime internacional”, e assim por deante. No seu Report on torture (1973), a Amnistia Internacional adoptou a seguinte definição: {Tortura é o acto systematico e deliberado de infligir qualquer forma de dor aguda, practicado por uma pessoa em outra, ou numa terceira pessoa, a fim de realizar o proposito da primeira contra a vontade da segunda.} Em 1975 a onu approvou uma Declaração sobre a protecção de todas as pessoas contra a tortura e outros tractos ou penas crueis, deshumanos ou degradantes, para cujos effeitos a tortura era definida como {todo acto pelo qual um funccionario publico, ou outra pessoa por elle instigada, inflija intencionalmente a uma pessoa penas ou soffrimentos graves, sejam physicos ou mentaes, com o fim de obter della, ou de um terceiro, informação ou confissão, de castigal-a por um acto que haja commettido ou se suspeite que commetteu, ou de intimidar a essa pessoa ou outras}. Na mesma declaração a tortura era considerada {uma forma aggravante e deliberada de tractamento ou pena cruel, deshumano ou degradante}. [2.23] Só aqui teriamos panno para manga, pois taes definições ja trazem embutidos os fins, typos e graus da tortura. Para não entrarmos em interminaveis especulações semanticas, vamos approveitar dellas o essencial, a partir daquillo que você vivenciou. Foi você mesmo quem practicou a tortura? Não, foram outros. Você pediu para ser torturado? Não, elles nem lhe perguntaram si queria, ou quando perguntaram você ballançou o indicador e disse “de jeito nenhum”. Portanto, elles o torturaram de proposito, só para vel-o contrariado, ou por outros motivos quaesquer. No mais, si eram funccionarios publicos ou jagunços, si queriam confissões falsas ou verdadeiras, si a dor foi aguda ou grave, si alguem desconfiava de você ou tinha certeza, si o que você soffreu é ligeiramente peor que degradante ou não chega exactamente a ser cruel -- tudo isso é de somenos. Ficamos então com duas premissas basicas:


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primeira, que não foi você mesmo quem se torturou; segunda, que só o torturaram naquillo que você não queria, e tanto mais o torturaram quanto menos você quiz. Concluimos assim que a tortura pode ser definida como todo soffrimento a que uma pessoa é submettida por outra, desde que de proposito da segunda e contra a vontade da primeira. [2.24] O resto decorre forçosamente. Como ficou necessaria a presença de pelo menos uma segunda pessoa, não vamos nos occupar aqui da autoflagellação, da automutilação, da autocremação (aquelles bonzos vietnamitas se immolando em praça publica), do fakirismo (aquelles hindus de gibi, sentados em pregos, encantando serpentes com flautinha), do jejum (typo Gandhi), da greve de fome (typo Bobby Sands), nem das innumeras maneiras de suicidio -- mesmo resalvando que nem sempre esses pequenos sacrificios são voluntarios, livres e espontaneos. E como ficou implicito que não ha limite para a quantidade de torturadores, aquella segunda pessoa pode ter adjuda de uma terceira, de uma quarta, e assim por deante, donde podermos enquadrar o lynchamento em muitos casos que as auctoridades deschartam ao tractar do assumpto. O mesmo vale para um ou mais algozes duma victima de sequestro torturada no captiveiro. [2.25] Quanto à sua vontade, ficou claro que a tortura só exsiste si contrarial-a. Por isso não faz muito sentido o emprego de termos nebulosos como “deshumano”, “vexame” ou “humilhante”. Dá para imaginar que qualquer queimadura seja tortura, porque difficilmente alguem gostaria de ser queimado. Mas dizer que insultos ou genuflexões sejam “degradação” (e portanto necessariamente “tortura”) ja é forçação de barra, uma vez que a noção de humilhação é tão subjectiva e relativa como varias outras formas da dicta tortura psychologica. Para um mussulmano pode ser tortura ter de adjoelhar perante uma cruz e beijal-a, mas não para um christão. Para um catholico japonez era um


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supplicio ter que abjurar pondo a sola sobre o rosto de Jesus num “fumie” (prancha de madeira), o que para um shintoista seria indifferente. Sendo fetichista ou podolatra, você não vae se magoar si tiver que lamber uns cothurnos ou servir de capacho. Emfim, si for masochista, o estupro lhe seria um balsamo. [2.25.1] As relativas e subjectivas noções do que sejam “deshonra” ou “deshumanidade” se evidenciam sempre que uma victima de tortura se vê obrigada a superar seu proprio pudor para que possa denunciar o occorrido -- pudor que tem de ser superado tambem pelo auctor do documento que transcreve a versão narrada, na qual a chamada “moral sexual” de parte a parte influe decisivamente para a maior ou menor explicitude da narrativa. Exemplifiquemos com o caso islamico. [2.25.2] A vulnerabilidade cultural dos mussulmanos ficou recentemente evidenciada no episodio dos prisioneiros irakianos maltractados pelos invasores americanos, particularmente nas sessões photographicas que documentam o escandalo da penitenciaria de Abu Ghraib. Occorre que, na cultura islamica, o pé pode ser instrumento de offensa ainda maior do que para nós ja é o gesto de expezinhar alguem. A mera postura de exhibir a sola do sapato, quando sentamos de pernas cruzadas, é coisa considerada offensiva por aquellas bandas. Scientes disso, os soldados americanos se approveitaram, tripudiando litteralmente com o pé na cara dos prisioneiros, obrigando-os a posar para as cameras emquanto seus rostos estavam parcialmente cobertos pelos pés do inimigo e emquanto suas linguas eram flagradas em close, comprimidas contra o solado das botas -- scenas enquadradas de todos os angulos nas photos que circularam pela rede virtual. Em 2004 pipocaram na midia as denuncias sobre abusos practicados pelas tropas de occupação. Cabe destaccar os trechos que chamaram a attenção nos informes das agencias Reuters, Associated Press, France Presse e efe:


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[2.25.3] {Em uma collecção até agora inedita de centenas de photos e videos digitaes curtos, soldados norte-americanos apparescem commettendo abusos physicos e psychologicos contra presos da penitenciaria de Abu Ghraib, no Irak, informa o jornal the washington post. As novas imagens vão alem das que ja haviam sahido na imprensa, porque retractam uma serie de technicas e abusos e mostram que os soldados parescem se divertir com elles. (...) Mas em uma photo um soldado apparesce com o punho erguido emquanto segura um preso numa pilha com varios outros. Em outra photo, esse mesmo soldado está no topo da pilha, flexionando os musculos, com um amplo sorriso. Os soldados tambem voltaram suas cameras para si proprios, registrando scenas de sexo consensual entre elles, de accordo com o jornal. (...) Muitos [dos detentos] disseram ter sido sexualmente humilhados e aggredidos, admeaçados de serem estuprados e obrigados a se masturbar na frente de mulheres militares, de accordo com o jornal. Elles tambem disseram que eram “cavalgados” como animaes e obrigados a retirar sua comida de vasos sanitarios. (...) Em suas declarações, os detidos denunciaram que foram expancados de maneira selvagem e humilhados sexualmente pelos soldados americanos do turno da noite na prisão de Abu Ghraib durante o mez do Ramadan, no qual alem disso foram obrigados a beber bebidas alcoholicas e comer carne de porco. (...) “Nos forçaram a caminhar como cachorros (...) tinhamos que lattir como um cachorro e si não fizessemos, começavam a machucar-nos na cara e no peito sem compaixão”, declarou um dos detidos, segundo os documentos aos quaes o the washington post teve accesso. (...) “Obrigaram a gente a andar em quattro pattas, como cachorros. Deviamos lattir e, caso contrario, chutavam com força e sem piedade, pisavam na cara e no peito. Depois disso, levavam-nos a nossas cellas, tiravam os colchões, jogavam agua no chão e nos faziam dormir com a barriga no piso (...) e tiravam photos.” (Hiadar Sabar Abed Miktub al Abudi) (...) As ordens dadas pelo


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general Geoffrey Miller, responsavel pelo conjuncto das prisões da coalisão no Irak, eram para tractar os prisioneiros irakianos “como cães”, affirmou nesta terça-feira a general Janis Karpinski, responsavel em 2003 pelos centros de detenção americanos no Irak, à radio BBC. “Dizia que [os prisioneiros] deviam ser tractados como cães e que si os deixassemos accreditar por um momento que eram mais do que cães, ja não poderiamos controlalos”, affirmou a militar. O general Miller foi o commandante do Accampamento Delta, em Guantánamo, onde ainda ha cerca de 600 prisioneiros capturados pelas forças americanas, sobretudo no Afghanistão.} [2.25.4] {Forças norte-americanas teriam expancado trez irakianos que trabalhavam para a agencia de noticias britannica Reuters, subjeitando-os a provocações sexuaes e religiosas, alem de humilhações, durante suas detenções em janeiro passado, em um campo militar perto de Fallujah. (...) Os trez contaram sua experiencia à Reuters appós serem soltos, em janeiro, mas decidiram tornal-a publica appenas agora, quando os militares americanos affirmaram que não havia evidencias de que elles teriam sido “torturados”, e depois da sequencia de exposições de maustractos similares commettidos contra os detentos de Abu Ghraib, perto de Baghdad. (...) Dois dos trez funccionarios da Reuters disseram que foram obrigados a collocar sapatos em suas boccas, uma humilhação particular na cultura arabe. Todos os trez disseram que foram obrigados a fazer gestos humilhantes emquanto os soldados riam, ridicularizavam e tiravam photographias. Elles disseram que não quizeram dar detalhes publicos antes por causa da natureza degradante dos abusos. Segundo as agencias de noticias, os soldados americanos disseram que elles poderiam ser levados para o centro de detenção americano de Guantánamo, em Cuba. Alem disso, privaram-lhes (sic) de somno, collocaram saccos em suas cabeças, chutaram e batteram nelles e então os


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forçaram a permanescer em posições de “tensão mental” por longos periodos. Os militares americanos disseram, em um relatorio lançado antes do escandalo de Abu Ghraib se tornar publico, que não havia evidencias de que elles [os funccionarios da Reuters] foram torturados e que soffreram abusos. (...) Os abusos teriam accontescido na base de operação de Volturno, proxima a Fallujah, disse a equipe da Reuters. Elles foram detidos no dia 2 de janeiro, emquanto cobriam as consequencias de um attaque de um helicoptero americano em Fallujah, e foram mantidos presos por trez dias, primeiro em Volturno e depois em uma outra base de operação. Os trez --o cinegraphista Salem Ureibi, o reporter free-lancer de tv Ahmad Mohammad Hussein al Badrani e o motorista Sattar Jabar al Badrani -- foram soltos sem nenhuma accusação, no dia 5 de janeiro. “Quando vi as photographias de Abu Ghraib, eu accordei”, disse Ureibi hoje. “Eu vi que elles soffreram como nós”.} [2.25.5] A proposito do estylo evasivo dos auctores de depoimentos litterarios accerca das dictaduras, cabe citar passagens como esta de Fernando Gabeira: {À esquerda, havia o corredor onde funccionava a salla de tortura e, no fundo, estavam as cellas individuaes. No corredor algumas pessoas eram forçadas pelos torturadores a lamber o chão e a parede. Tentei accompanhar o espectaculo, discretamente, mas levei uma porrada nas costas.} [2.26] Quanto ao proposito do torturador, é terreno para maiores controversias, por compta das propaladas finalidades da tortura, que seriam quattro, na opinião da maioria dos experts: confissão, castigo, intimidação e sadismo. O curioso é que quasi todos os auctores deschartam o sadismo como finalidade em si, argumentando que não se tracta de algo systematico e utilitario, da mesma forma que minimizam a intimidação ou terror como si fosse uma


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motivação secundaria e condicionada a outros objectivos mais practicos. Assim, as finalidades ficam em geral reduzidas a duas, e nesse caso a tortura se classificaria em probatoria ou processual (quando visa a confissão ou delação) e punitiva ou penal (quando serve de castigo). Ultimamente interessa mais aos juristas a “tortura-prova” que a “tortura-pena”, pois partem do presupposto de que castigos corporaes estão fora de cogitação nas legislações evoluidas. Para elles, portanto, a tortura quasi que se resume numa extorsão de confissão, reconhescida mais de facto que de direito. O resto não exsiste ou pouco importa. A tortura desfigura, tambem juridicamente... [2.27] Alem dessa classificação pelos fins, uma outra maneira usual de subdividir o assumpto é classifical-o pelos meios, conforme tudo aquillo que você ja supportou -- e tambem aqui teriamos quattro categorias: tortura physica, sexual, psychologica e chymica, sendo que muitos incluem a sexual na physica e a chymica na psychologica. A verdade é que todas as classificações são precarias. Como vimos, separar as coisas é impossivel, e junctar tudo não adjuda em nada. Este exemplo synthetiza a questão: uma injecção de ether no escroto é tudo ao mesmo tempo -- tortura chymica (oxydo de ethylo), physica (arde), sexual (p’ra cacete) e psychica (medo de ficar ethereo, digo, esteril ou impotente, ou de que repitam a dose, ou de que façam o mesmo, ja não digo na mamãe, mas no papae, e assim por deante). [2.28] Outros adspectos a serem considerados constituem o que poderiamos chamar de zonas contiguas à tortura, isto é, assumptos que, embora pertinentes à questão, abrangem terrenos mais amplos e diversificados, cuja extensão não caberia nos limites de um volume. São zonas contiguas a pena de morte, a prisão perpetua, a escravidão, a psychiatria, o trote estudantil, os


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esportes de arena, os lynchamentos e os massacres. Para se ter uma idéa das vastas implicações de taes zonas, tomemos appenas as penas de morte, que tanto podem ser puramente physicas (guilhotina, forca, cadeira electrica), como chymicas (cicuta, camara de gaz, injecção na veia), independentemente do advanço da technologia. Muitos discutem byzantinamente si a pena de morte é justa ou injusta e si pode ser mais ou menos humana. Um dos argumentos é que a morte indolor não seria cruel e portanto não haveria tortura. Ora, indolor ou não, a morte ja é tortura emquanto pura exspectativa. Logo, é psychologica antes de ser ou não physicamente cruel. Por outro lado, uma tortura physica muito violenta ou dolorosa pode accidentalmente levar à morte, contrariando a vontade não só do torturado como dos proprios torturadores. Paresce claro, em todo caso, que tortura e morte estão indissoluvelmente associadas, e faz muito sentido que uma entidade integra como a Amnistia Internacional desenvolva suas campanhas contra ambas. [2.28.1] Quanto ao trote estudantil, objecto da monographia O calvario dos carecas, cabe revisitar a passagem que abborda a “praxe” em Portugal, tradição que influiu directamente no costume brazileiro e se transferiu das arcadas de Coimbra para as do largo de São Francisco. A antiga orthographia dos versos portuguezes foi preservada, coincidindo com esta em que vae escripta a presente encyclopedia. [2.28.2] Vistas as fontes historicas, verifica-se que, tal como succedeu na Europa medieval, o trote lusitano apparesce mais pittoresco e pormenorizado nos depoimentos autobiographicos e nas composições litterarias. Quanto a estas, dispomos duma singular preciosidade, o celebre Palito metrico, frequentemente citado. Tracta-se duma collectanea de poemas maccarronicos e heroicomicos, mixturados a chartas e “recommendações” em prosa.


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A auctoria é incerta, mas seguramente não são todas as peças do mesmo auctor. O mais provavel é que estejamos deante duma compilação de textos anonymos de differentes epochas, ja que a primeira edição do Palito data de 1746. Em todo caso, a maior parte dos poemas alli inseridos é attribuida a um presbytero secular, o padre João da Sylva Rebello (1710-1790), que seria o responsavel pelo pseudonymo Antonio Duarte Ferrão constante do frontispicio. São innumeras as edições do Palito. A de 1942, organizada por Rocha Madahil, é das mais fieis e completas. A de 1912 serviu-me de fonte para as transcripções e traz o bestialogico titulo de Palito metrico, lavrado no lorvão da pachorra com a ferramenta da cachimonia, embrulhado no titulo de calouriada e offerescido aos regalões do parnaso no exquipathico pires de um poema mestiço. [2.28.3] O Palito se divide em varias partes. Na primeira, intitulada Maccarronea latino-portugueza, o que fascina os pesquisadores é o colorido da linguagem. Antonio Maria do Couto considerou o Palito superior às composições de Scarron, Tomás de Yriarte e à “sublime maccarronea italiana” (Tifi Odasi, Folengo, etc.). Alberto Pigmentel, nos Poemas heroicomicos portuguezes, diz que {em verdade, raro era o estudante que, principalmente em Coimbra, não sabia de cor trechos do Palito metrico ainda nas primeiras gerações academicas do sec. XIX}. Camillo Castello Branco chegou a munir-se dum Magnum lexicon para ler e traduzir os poemas latinizados, e elogiava o tal Ferrão como um latinista sem rival na sua especialidade. [2.28.4] Para nós o que interessa aqui é a thematica. Gyra toda ella em torno das praxes academicas, onde o calouro volta e meia está na berlinda. Graças a isso podemos saber com alguma riqueza de detalhes como era o tractamento reservado aos “bichos” em Coimbra. Embora não houvesse um periodo de escravidão compulsoria e ininterrupta como na França e na Allemanha da


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Edade Media, o novato ou “louraça” estava permanentemente subjeito às taes “investidas” ou “troças”, a partir do momento em que chegava à cidade para se matricular. O poema Calouriados descreve a investida de recepção ao calouro João Fernandes: (...) Vixque ajustatum aluguele pagavit, Cum algazarris hinc inde apupata rapazum, Matriculorum chegat endiabrata caterva, Et cum Calouro estalagine pousat eâdem. Adque ubi louraçam bisparunt, protinus omnes Fortunam louvare suam. Primo unus eorum Pacifice envestit louraçam: illumque salutat More logrativo, & verbis cortejat amicis. Engolit louraça opium, adque anginhus iisdem Comprimenta facit verbis: tum caetera turba Rodeat miserum; truxque envestida começat. Principio quatuor mandat aparare sopapos, Et simul haud cessant miseri cuspire bigotes, Donec sella chegat lumbo imponenda rebeldi. Novatus cuidans se tunc estare Coselhis, Respingat mandata: sui dominusque focinhi Se facit ad bandam, nec vult aparare sopapos. Illi indignantes, quod sic louraça reguinguet, Multa reluctantem agarrant & corpora sellâ Estirant: tum sella chegat, quam protinus anquis Louraçae imponunt: illumque erguere parumper Mandantes, brochant cilhas, freyumque Calouri Encaixant boquae: alter peitorale fivella Destrus abotôat: latam hic quadrilia circum Accingit retrancam: alius chairéle superne Concertat: louraçam omnes cavalescere cogunt. Jamque novum turbâ circum agarrante ginetem, (Namque escoucinhat) quidam saltavit in ancas,


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Murzellumque chamat, pernisque açoitat ilhargas. Ille choramingans, gemitu (nam fraena vetabant Fallare) exposcit veniam, alcançatque petitam. Tum sese apêat sessor, sellamque tiravit, Et freyum. Jam se confessat ad omnia promptum, Erguendo sursum digitum louraça trementem. Et casum carpindo suum, velut una criança, Per tristes adeò barbas chorabat abaixo. Ut seixus, pedrasque ruae chorare fariat. Moetorem veterani ejus, chorumque videntes, Omnia perdôant, praeter mamare sopapos, Atque bateculos, grossamque pagare patentem. Post haec coena chegat; veteranum tota caterva Accumbunt mensae, & mandant servire Novatum; Nec deixant illum coenae provare migalham, Aut pingam chincare vinhi: Novatus olhando Stat, luzente oculo, & cheiro tantummodo gozat. Amota mensa, variè jogatur; & omni In jogo ficat semper louraça logratus. Et postquam innumeros huic pregavére calótes, Descalçare botas mandant, deitantur & omnes In camis: louraça tamen taboaliter illam Jussu horum passat noctem, compridior unquam, Quâ sibi visa est nulla: & quae igualare podiat Lamegui noctes: sed non cerraverat olhum In tota. (...) [2.28.5] Alli estavam os principaes ingredientes da troça: a aggressão physica, a humilhação de ser reduzido a quadrupede, montado e excarnescido, e o banquete (pagare patentem) do qual o calouro só participa como amphitryão e garçon. Na parte segunda, intitulada Caloirologia, novatologia, praxeologia academica e actos addicionaes, um sonnetto traça o perfil do calouro e outro lhe prescreve os deveres:


50 Pensões,

GLAUCO MATTOSO que ca em coimbra paga hum calouro e hum novato aos veteranos

Não ter nome, sinão o de Novato; Ser logrado d’algum caramboleiro; Soffrer o veterano companheiro, Que delle faz talvez gatto-sapato: Em todas as funcções pagar o pato; Na meza tirar sempre derradeiro; Comer, e beber mal por seu dinheiro; Mammar de vez em quando um exfollagatto: Por dá ca aquella palha irem-lhe ao couro; E quando os mais dão fogo á artilheria, Não ser senhor de dar o seu extouro: Levar na veia da arca huma sangria: São pensões de hum novato, e de hum Calouro Pelo foral da nossa Academia. Conselho

saudavel a um novato

Será mui obediente Será no seu fallar E quando fôr (quod Tudo executará com

ao Veterano, muito encolhido, absit) investido, rosto lhano:

Si acaso ouvir dizer: “Fóra pastrano”, Va andando, não se dê por entendido; Porque o mais é mostrar-se comprehendido, E alem d’isso, arriscar-se a maior damno: Si dos quinze de maio se vir perto Sem que lhe tenha alguem montado em cyma, Póde pesar-se a cêra pelo accerto:


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Mas de gabar-se d’isto se reprima; Pois la diz um dictado muito certo, Que até lavar os cestos é vindima. [2.28.6] Mais addeante, um longo poema composto em oitavas rhymas (attribuido a um official da universidade designado pelas iniciaes j.f.d.s.) intitula-se Systema metrico, moderno e experimental, para uso dos novatos, que na universidade de coimbra quizerem evitar os innumeraveis engannos e calotes, a que estão subjeitos pela sua miseria. Vejamos algumas estrophes onde se narra a invasão da casa dum novato pela horda veterana: Logo a turba dos grandes mangadores, Que se pôde adjunctar, concorre armada A casa do Novato, nas melhores Intenções de mangar industriada: O Novato se toma de mil côres, E vendo a casa toda rodeada Da horrivel multidão, tem por desdouro, Em tão grande funcção servir de touro. Vê de uma parte o fero Alemtejano, Que um pequeno papel lhe põe na testa, Vê que d’outra o Minhoto deshumano Com garrochas continuas o molesta: Os olhos encaminha ao Veterano, E por tantas injurias lhe protesta; Porem elle lhe diz, que soffra tudo Humilde, paciente, manso e mudo. Ja o rude Algarvio apparescendo N’um cavallo escholastico montado, Notaveis cortezias vem fazendo


52 Dos ligeiros Cappinhas rodeado: Um vermelho murrião na fronte tendo, Que o finge mais soberbo, e respeitado, Faz no curro taes gestos de improviso, Que a todos os mirões provoca o riso. Chegando ao meio da soberba praça, Supplica ao Veterano duro, e injusto, Que licença lhe dê, para que faça A sorte, que pretende, a todo o custo: A venia conseguida, o manto traça, E empunhando o rojão no braço adusto, O Novato com tanta furia busca, Como si fôra um touro da Chammusca. Porem elle se anima na estaccada, Qual o manhoso touro irresoluto, Que por mais que o rival lhe accena e brada, A nada d’isto emfim se move o bruto: Mas o bom toureador, que pouco, ou nada Ignora as manhas do animal astuto, Com tanta força encrava-lhe o rojão, Que extendido o deixou como um cação. Tal succede ao Novato, que indeciso Deixando-se ficar no chão prostrado, Observa a seu pesar o grande riso, Com que o seu Toureador é festejado: Assim que se levanta, de improviso De um rustico Beirão se vê montado, Que a repetidos golpes de um chicote, Por toda a salla o faz correr de trote.

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Não tanto o Piccador as manhas tira Por violencia do açoute, e mais da espora, Ao pôtro, que jamais a sella vira, E as leis do freio totalmente ignora: Como o Beirão o amúo despedira D’este infeliz, ao qual melhor lhe fôra Ser o pôtro mais vil da piccaria Que Novato na nossa Academia. Um lhe chama asneirão à bocca cheia, E lhe inquire si acaso a sua terra Será alguma montanha, alguma aldeia, Ou seu Pae é pastor de alguma serra: Outro lhe imputa tudo o que na idéa De injurias atrocissimas encerra: Outro lhe faz a affronta mais amara, Pois lhe chega a excarrar na propria cara. Com taes exhibições solemnemente, E outras muitas tambem, que agora ommitto Em cuja narração precisamente Havia de gastar tempo infinito; Se festeja um Novato, que innocente, Depois de soffrer quanto tenho escripto, Ainda paga o doce, que não come, Porque a turba voraz tudo consome. [2.28.7] Mais uma vez se nota o habito de fazer do calouro montaria, para em seguida obrigal-o a custear a gula dos veteranos. Particularmente curioso é o momento em que se emprega a palavra “trote” numa accepção quasi que intermediaria entre o sentido real portuguez e o figurado usado no Brazil.


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[2.29] Antes de passarmos a outras considerações de gabinete, vamos admarrar a questão da tortura sexual, à guisa de conclusão provisoria. No final do livro voltaremos para annunciar o placar (parcial). A questão é a seguinte: de um lado, os estudiosos subestimam o sadismo como motivação maior; de outro, consideram tortura sexual não appenas o coito forçado, mas toda violencia physica dirigida às “partes pudendas” da victima, independentemente do orgasmo do carrasco. Ora, isso paresce coisa de gente desadvisada sobre a importancia da libido, ou, mais provavelmente, uma manobra casta e racionalista para excammotear um potencial explosivamente erotico num assumpto mellindrosamente traumatico -- potencial que, aliaz, a pornographia explora ao maximo, a titulo de “ficção” e “phantasia”. [2.30] Pornographias à parte, creio que neste caso não ha meio-termo. Das duas, uma: ou consideramos tortura sexual somente o momento do estupro propriamente dicto, ou seremos obrigados a admittir que toda tortura é sexual. Eu me inclino tranquillamente para a segunda hypothese. Ainda que nem sempre seja physicamente sexual para o torturado, toda tortura é um acto sexual. Mesmo si a gente não levasse em compta o tesão e o gozo do torturador, teriamos que presuppor o voyeurismo do carcereiro ou do escrivão, o fetichismo do reporter ou do advogado e, em ultima analyse, a punheta do leitor ou do eleitor. Não tem excappatoria: toda tortura é uma trepada, ou antes, uma metatrepada, metta ou não metta, trepe ou não trepe. [2.31] Um detalhe interessante que devemos ter em mente é a attitude “ethica” dos auctores e editores dessa litteratura de denuncia, os quaes, em nome da mentalidade sadia de nossa sociedade, fingem não admittir que a maioria dos leitores procura taes livros com intenções masturbatorias. Inclusive você. Vamos, confesse. Vae confessar por bem ou prefere ser persuadido?


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[2.32] Talvez eu tenha exaggerado um pouco, mas agora, sim, você pode fazer uma pausa para meditação. Emquanto philosophamos sobre a natureza humana, passemos à bibliotheca para uma summaria folheada no que as fontes teem documentado ao longo do tempo e do espaço.



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[3] NA BIBLIOTHECA (HISTORIA & GEOGRAPHIA) {Os que estão detidos nas prisões la se encontram por serem inimigos do povo e luctarem para restaurar um governo accyma do povo. Não é vergonhoso e não ha nada de errado em collocar estas pessoas na cadeia ou pisar sobre ellas com os pés.} (Muammar alKadhafi, num pronunciamento em 1981) [3.1] Grosso modo, a historia da tortura poderia ser caricaturada em trez phases. Na primeira, nem o carrasco nem a victima usam cappuz (aliaz, quasi não usam roupa). Na segunda, o cappuz está pomposamente na cabeça do carrasco. Na terceira, é a victima quem fica humildemente encappuzada. A primeira phase são as atrocidades tribaes da dicta barbarie preclassica. A segunda é a tortura institucionalizada das tyrannias e imperios antigos, medievaes e modernos (e respectivas colonias). A terceira é a tortura officialmente “abolida” e fatalmente clandestina, que chega ao apogeu nas republicas e dictaduras contemporaneas. [3.2] Tracta-se de uma visão simplificada, mas, em linhas geraes, tem sido essa a perspectiva dos maiores historiadores do assumpto, como o francez Alec Mellor e o inglez George Ryley Scott. [3.3] Entre povos que os anthropologos appellidam de culturas illettradas e que os historiadores da civilização (inclusive o nosso Scott) chamam de “raças selvagens e primitivas”, a tortura desempenhava um papel diverso daquelles mencionados no capitulo anterior: era um ritual de iniciação à vida adulta e à religião, ou de vingança contra os inimigos capturados. Em ambos os casos, rendendo-se tributo aos deuses, logico. O estoicismo com que os jovens supportavam a iniciação corresponderia à mesma bravura


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posteriormente posta a prova quando cahissem prisioneiros e fossem sacrificados. Ora, como era dever do guerreiro aguentar firme sem gritar nem pedir piedade, os torturadores procuravam crear meios cada vez mais dolorosos de fazer a victima fraquejar. O resultado era que muitas vezes a iniciação accabava precocemente em morte, emquanto que a morte se via prolongada ao maximo. Tribus das Guyanas iniciavam seus meninos com uma dansa de açoitamento; aborigenes da Oceania e nativos da Africa oriental mutilavam os organs genitaes; indios norteamericanos penduravam, exfollavam e arrastavam; na Amazonia usavam insectos e arachnideos venenosos. Quanto aos prisioneiros de guerra, eram extripados (os aztecas arrancavam o coração ainda battendo), retalhados (no Peru tiravam nacos aos poucos), excalpellados (os pelles-vermelhas tambem arrancavam os olhos e assavam o cara em fogo lento), cannibalizados (os “brazilindios” iam deceppando partes menos vitaes e comendo deante da victima). [3.3.1] Quanto aos egypcios, basta revisitar o que annotei em 1999. Uma referencia ao romance Noites antigas de Norman Mailer remettia à passagem onde se lê que, appós a battalha contra os hittitas, os egypcios vencedores abusam dos prisioneiros. Diz Mailer, encarnando o personagm egypcio: {Foi peor para os hittitas capturados. Quando não estavam sob a guarda de officiaes bravos e responsaveis, immediatamente perdiam a mão direita. Muitos delles sangraram até morrer. Outros tiveram o coto do braço admarrado com uma tira de couro e viveram, para serem levados para o Egypto. Naturalmente não podiam esperar prospero futuro de um escravo com uma só mão. E durante toda a noite, os homens que não tinham recebido nenhum trophéu vasculhavam o solo coberto de sangue, com as tochas accesas, e alguns ousavam cortar as mãos dos nossos proprios soldados, embora, si fossem appanhados, o castigo era a perda de um braço. Affinal, todos os trophéus estariam prophanados, no dia seguinte, si algumas das


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mãos fossem egypcias, portanto, os nossos homens encontrados com os pulsos mutilados eram despidos de suas poucas roupas e seus rostos tornados irreconhesciveis -- eu lhes pouparei o resto. Mesmo assim, de manhan, ainda paresciam ser nossos soldados. Com ou sem rosto, um egypcio morto e nu não se paresce com um asiatico. Não temos tanto pello. Por fallar em pellos, as barbas dos hittitas paresciam touceiras e provavelmente tinham como finalidade proteger-lhes o pescoço das espadas. Tinham tambem os cabellos da cabeça rijos como a pelle dos capacetes, e isso talvez fosse para protegel-os dos nossos bastões. Tudo isso inutil. Nem um capacete pode nos proteger de todos os golpes. E emquanto a noite se prolongava, usamos os captivos, saciamo-nos nelles, devoramol-os, vou lhes fallar sobre isso. Por toda parte via-se a comicidade dolorosa de dez ou vinte hittitas com as mãos admarradas attraz do pescoço, a mesma chorda ligando-os a outro prisioneiro, de modo que, quando os mandavamos andar, vinte homens cambaleavam com passos mehudos, os olhos saltados de terror, os pescoços inclinados, sim, tão curvados e admontoados que paresciam um punhado de figos em uma chorda, só que aquelles figos gemiam frequentemente de dor. Devo dizer que seus captores negligenciavam muito a sua guarda. Qualquer gruppo de soldados que passava podia retirar o primeiro ou o ultimo da fila -era muito trabalhoso desaptar um do meio. E então assistiamos a extranhos espectaculos à luz das fogueiras. As barbas dos asiaticos eram às vezes tractadas como si fossem virilhas de mulher, e suas nadegas tambem: podiam-se ver cinco homens occupados com um prisioneiro que já fora transformado em mulher, e um pobre captivo foi arreado como um cavallo, emquanto os soldados brincavam com elle de um modo que jamais ousariam brincar com um cavallo. Esse hittita nem podia abrir a bocca para gritar, ella estava cheia a poncto de suffocal-o. Imaginem a fuúria do homem que montava na sua cabeça.}


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[3.3.2] Segundo o demonologo Roland Villeneuve no livro Le musée des supplices, as scenas que se seguem à queda duma aldeia fortificada nas ilhas Fidji são indescriptiveis em detalhe. As mutilações practicadas pelos vencedores nos corpos dos vencidos tornavam o suicidio preferiível à captura. Porem o fatalismo innato dos melanesios fazia com que alguns vencidos inclinassem passivamente a cabeça ao golpe mortal. Caso um prisioneiro tivesse o azar de ser poupado da morte rapida, seu destino seria sinistro. Levado à aldeia dos vencedores, era entregue aos meninos da elite local, que se empenhavam em tortural-o. Ao perder os sentidos, era collocado num forno e reanimado pelo calor, quando suas convulsões phreneticas faziam explodir as gargalhadas do povo: {Eros n’est point séparable de Thanatos. Les scènes qui suivaient la mise à sac d’une forteresse aux Iles Fidji, écrit Thomson, ‘sont trop affreuses pour être décrites en détail. L’un des traits les moins atroces, c’est que l’on n’épargnait ni le sexe ni l’âge. D’innombrables mutilations, pratiquées parfois sur les victimes vivantes, des actes de cruauté mêlée de passion sexuelle rendaient le suicide préférable à la capture. Avec le fatalisme inné au caractère mélanésien, beaucoup de vaincus n’essayaient même pas de fuir, mais inclinaient passivement la tête sous le coup de massue. S’ils étaient assez malheureux pour se laisser prendre vivants, leur sort était sinistre. Ramenés au village central ils étaient livrés à de jeunes garçons de haut rang qui s’ingéniaient à les torturer; ou bien, étourdis par un coup de massue, ils étaient introduits dans des fours surchauffés, et quand la chaleur leur rendait la conscience de la douleur, leurs convulsions frénétiques faisaient éclater de rire les spectateurs... (...) Et il s’agissait d’un peuple évolué, civilisé, artiste et par ailleurs, très bon et généreux.} [3.4] Entre a represalia e a repressão a distancia é pequena e, como não podia deixar de ser, os supplicios e execuções se


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transformavam tambem na forma de punição mais generalizada. A partir do hypothetico momento em que essas punições começam a virar praxe e herança escripta, entramos na era da tortura institucional, characterizada pelos primeiros códigos penaes. As mais antigas civilizações, como a egypcia, babylonica, assyria e persa, tiveram seus castigos devidamente catalogados e classificados. Cerca de 2000 annos antes de Christo, a chamada pena de talião (olho por olho, dente por dente) ja estava presente no codigo de Dungi (o rei sumerio da lei summaria), que inspirou o codigo de Hammurabi (rei babylonio), que por sua vez teria inspirado as legislações hebraica (Torah ou Pentateucho) e gregas (codigo thuriano, por exemplo). Naturalmente, todo mundo era desegual perante a lei, e os castigos de escravos não podiam ser os mesmos reservados à classe media, assim como estes eram differentes dos da aristocracia. Coisas da Antiguidade. A proposito de antiguidades, é no Velho Testamento que se encontram as modalidades penaes mais frequentes na tradição judaica: a morte por appedrejamento ou lapidação e por cremação, e os castigos da flagellação (40 chicotadas), da deceppação da mão, e da vara. Extrangulamento e decapitação tambem estavam previstos nas leis rabbinicas. Segundo Clemens Thoma, os judeus adoptaram precauções para evitar torturas que visassem a extorsão de confissões, razão pela qual poder-se-ia considerar o systema torcionario hebreu como essencialmente punitivo e não probatorio. De facto, si comparada à dos romanos, a tortura judaica não tem nada de rigorosa ou requinctada. Ja entre os gregos a tortura probatoria era applicada não só aos escravos como tambem a cidadãos livres e extrangeiros, e descripta por Demosthenes como um meio seguro de obter evidencias. Ao que se sabe, os romanos “apprimoraram” a herança grega em todos os sentidos. Alem disso, approveitaram e incrementaram practicamente todos os typos de supplicio da Antiguidade e, na condição de imperio conquistador por excellencia, tornaram-se a primeira grande eschola de tortura do


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Occidente. Em Roma a tortura probatoria era designada pelo termo quaestio (interrogatorio ou investigação). Os romanos empregaram o fogo (tormentum ignis), a fome (tormentum famis), a sede (tormentum sitis), o panno com sal na goela (tormentum ex sale et lintes), a pendura (tormentum funis vel chordae) e varios animaes (tormentum cum capra, onde a cabra lambia até descarnar as solas da victima, previamente exfregadas com sal; tormentum cum scarabeo, onde um escaravelho ou outro insecto era collocado sobre o corpo da victima e tampado com um vaso, tal como o ratto no penico). Usaram diversos typos de açoite: ferula, com uma só correia; scutica, com duas correias entrelaçadas; flagellum, trez tiras com nós de osso; plumbatae, varias tiras com bollinhas de chumbo e cabo de madeira. Quem assistiu à Paixão segundo Mel Gibson notou como o Christo do filme tem seu corpo realisticamente dilacerado pelo açoite romano. Foram os romanos tambem mestres no emprego de machinas como a rota (roda) e o equuleus (cavallete). A roda, cuja invenção se attribue a Commodo, tinha applicação variada: movel, servia para exmagar como um rollo compressor; fixa num eixo com manivella, servia para admarrar a victima e provocar-lhe lentas cambalhotas sobre uma fogueira ou um chão de pregos. O cavallete, tambem conhescido como potro, não passava de um leito de madeira (semelhante ao “leito de Procusto”) no qual a victima era aptada com braços e pernas separados em forma de “X” e esticada por meio de dois carreteis, um na cabeceira, outro nos pés, onde as chordas iam se enrollando. Entre as penas capitaes, serviam-se da decapitação com machado ou espada, da precipitação do alto da rocha Tarpéa, do affogamento, das feras na arena e da cruz. A crucificação funccionava, na verdade, como methodo de asphyxia lenta, pois o peso do corpo suspenso, de braços abertos, ia immobilizando o thorax até que o pulmão perdesse a capacidade de oxygenar o sangue. Para uma agonia dessas, bastava admarrar os braços à trave, sem necessidade de sangrar a victima. Como golpe de misericordia, as pernas podiam


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ser quebradas, para tirar o appoio e appressar a asphyxia. Assim, o caso de Jesus pregado ao madeiro (foi pelos pulsos, e não pelas mãos, como pincta a tradição) paresce ter sido excepção. O que variava era a posição do corpo: São Pedro foi crucificado de cabeça para baixo, e Sancto André com os braços e pernas abertos em forma de “X”. Sob creativos imperadores como Tiberio, Caligula, Nero, Vespasiano, Domiciano e Commodo, a tortura se enriquesceu com innumeros improvisos e variantes, até ser definitivamente incorporada ao codigo de Justiniano (seculo VI), do qual derivaram quasi todos os systemas legaes da Europa. A perseguição aos christãos abriu nova faceta para a tortura probatoria: em vez da confissão de um crime, o que se exigia era a renegação da fé. Como isso raramente accontescia, os tormentos exerciam simultaneamente funcções probatorias e punitivas. No Martyrologio romano, o cavallete e a roda deitam e rollam, ao lado de numerosos outros methodos. [3.4.1] Si os textos evangelicos são ommissos, as versões apocryphas mais recentes reconstituem detalhadamente a flagellação à maneira romana, tal como fora ordenada por Pilatos em Jesus. Uma dessas versões, attribuida à visão da beata Anna Catharina Emerick e diffundida em livro por Clemens Brentano, teria inspirado Mel Gibson na scena mais realista de seu filme da Paixão. Eis os trechos pertinentes: {Então entraram os soldados e, battendo e empurrando a Jesus brutalmente, com os curtos bastões, conduziram nosso pobre Salvador, ja tão maltractado e ultrajado, attravés da multidão tumultuosa e furiosa, para o forum, até a columna de flagellação, que ficava em frente de uma das arcadas do mercado, ao norte do palacio de Pilatos e não longe do posto da guarda. Os carrascos, jogando os açoites, varas e chordas no chão, ao pé da columna, vieram ao encontro de Jesus. Eram seis homens de cor parda, mais baixos do que Jesus, de cabello crespo e eriçado, barba muito rala e curta; vestiam


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appenas um panno ao redor da cinctura, sandalias roptas e uma peça de couro ou outra fazenda ordinaria, que lhes cobria peito e costas como um escapulario, aberto dos lados; tinham os braços nus. Eram criminosos communs, das regiões do Egypto, que trabalhavam como escravos ou degredados na construcção de canaes e edificios publicos; excolhiam-se os mais ignobeis e perversos, para taes serviços de carrascos no pretorio. Admarrados à mesma columna, alguns pobres condemnados tinham sido açoitados até à morte, por esses homens horriveis, cujo adspecto tinha algo de bruto e diabolico e paresciam meio embriagados. Batteram em Nosso Senhor com os punhos e com chordas, appesar de não lhes oppor resistencia alguma, arrastaram-nO com brutalidade furiosa, até à columna da flagellação. É uma columna isolada, que não serve para sustentar o edificio. É de tamanho tal, que um homem alto, com o braço extendido, lhe pode tocar a extremidade superior, arredondada e munida de uma argolla de ferro; na parte de traz, no meio da altura, ha tambem argollas ou ganchos. É impossivel descrever a brutalidade barbara com que esses cães damnados maltractaram a Jesus, nesse curto caminho; tiraramLhe o manto derisorio de Herodes e quasi jogaram nosso Salvador por terra. Jesus trepidava e tremia deante da columna. Elle mesmo se appressou a despir a roupa, com as mãos inchadas e ensanguentadas pelas chordas, emquanto os carrascos O empurravam e puxavam. Orava de um modo commovente e volveu a cabeça por um momento para a Mãe SS. que, dilacerada de dor, estava com as mulheres piedosas num cantho das arcadas do mercado, não longe do logar de flagellação e disse, voltando-se para a columna, porque O obrigaram a despir-se tambem do panno que lhe cingia os rins: “Desvia os teus olhos de mim.” Não sei si pronunciou essas palavras ou as disse só interiormente, mas percebi que Maria as entendeu; pois a vi nesse momento desviar o rosto e cahir sem sentidos nos braços das sanctas mulheres veladas, que a rodeavam. Então abbraçou Jesus a columna e os algozes


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aptaram-Lhe as mãos levantadas à argolla de cyma, dando-Lhe arrancos brutaes e praguejando horrivelmente todo o tempo; puxaram-Lhe assim todo o corpo para cyma, de modo que os pés, admarrados em baixo à columna, quasi não tocavam no chão. O Sancto dos Sanctos estava cruelmente extendido sobre a columna dos malfeitores, em ignominiosa nudez e indizivel angustia e dois dos homens furiosos começaram, com crueldade sanguinaria, a flagellar-Lhe todo o sancto corpo, da cabeça aos pés. Os primeiros açoites ou varas que usaram, paresciam ser de madeira branca e dura; talvez fossem tambem feixes de tendões seccos de boi ou tiras duras de couro branco. Nosso Senhor e Salvador, o Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, contrahia-se e torcia-se, como um verme, sob os açoites dos criminosos; ouviam-se-Lhe os gemidos e lamentos, doces e claros, como uma prece affectuosa no meio de dores dilacerantes, entre o sibilar e estalar dos açoites dos carrascos. De vez em quando resoava a gritaria do povo e dos phariseus, como uma nuvem escura de tempestade, abbafando essas queixas dolorosas e sanctas, cheias de bençans. As turbas gritavam: “Deve morrer! Crucificae-O!”, pois Pilatos estava ainda a discutir com o povo. Quando queria fazer-se ouvir, no meio do tumulto da multidão, fazia soar primeiro um toque de trombetta, para impor silencio. Nesses momentos se ouviam novamente os açoites, os gemidos de Jesus, o praguejar dos carrascos e os balidos dos cordeiros pascaes, que eram lavados na piscina das Ovelhas, ao lado da porta das Ovelhas, a leste do forum. Depois de lavados, eram levados, com a bocca admarrada, até o caminho do Templo, para não se sujarem mais, depois eram conduzidos para o lado de fora, a oeste, onde ainda eram submettidos a uma ablução ceremonial. Esses balidos desamparados dos cordeiros tinham algo de indescriptivelmente commovente; eram as unicas vozes que se uniam aos gemidos do Salvador. A multidão dos judeus mantinha-se affastada do logar


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da flagellação, numa distancia, talvez, da largura de uma rua. Soldados romanos estavam postos em differentes logares, especialmente pelo lado do posto de guarda; perto da columna de flagellação havia gruppos de populacho, que iam e vinham silenciosos ou zombando; vi alguns que se sentiram commovidos; era como si os tocasse um raio de luz sahindo de Jesus. Vi tambem meninos indignos que, ao lado do pretorio, preparavam novas varas e outros que iam buscar ramos de espinheiro. Alguns soldados dos Principes dos sacerdotes tinham travado relações com os carrascos e deram-lhes dinheiro; trouxeram-lhes tambem um grande cantharo, cheio de uma bebida vermelha, grossa, da qual beberam até ficar embriagados e enraivescidos. Ao cabo de um quarto de hora deixaram os dois carrascos de açoitar Jesus; foram junctar-se a dois outros e beberam com elles. O corpo de Jesus estava todo coberto de contusões vermelhas, pardas e roxas e o sangue sagrado corria-Lhe por terra; agitava-se em movimentos convulsivos. De todos os lados se ouviam insultos e mottejos. (...) O segundo par de carrascos cahiu então com novo furor sobre Jesus; tinham outra especie de açoites; eram como varas de espinheiro, com nós e esporões. Os violentos golpes rasgaram todas as pisaduras do sancto corpo de Jesus; o sangue regou o chão, em redor da columna e salpiccou os braços dos carrascos. Jesus gemia, rezava, torcia-se de dor. (...) Os dois seguintes carrascos batteram em Jesus com flagellos: eram curtas correntes ou correias, fixas num cabo, cujas extremidades estavam munidas de ganchos de ferro, que arrancavam, a cada golpe, pedaços de pelle e carne das costas. Oh! Quem pode descrever o adspecto horrivel e doloroso deste supplicio? Mas a crueldade dos carrascos ainda não estava satisfeita; desligaram Jesus e admarraram-nO de novo, mas com as costas viradas para a columna. Como, porem, estivesse tão enfraquescido, que não podia manterse em pé, passaram-Lhe chordas finas sobre o peito e sob os braços e debaixo dos joelhos, admarrando-O assim todo à columna;


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tambem Lhe aptaram as mãos attraz da columna, a meia altura. Todo o corpo sagrado contrahia-se-Lhe dolorosamente, as chagas e o sangue cobriam-Lhe a nudez. Como cães raivosos, cahiram-Lhe os carrascos em cyma, com os açoites; um tinha uma vara mais delgada na mão esquerda, com que Lhe battia no rosto. O corpo de Nosso Senhor formava uma só chaga, não havia mais logar são. Elle olhava para os carrascos, com os olhos cheios de sangue, que supplicavam misericordia, mas redobravam os golpes furiosos e Jesus gemia, cada vez mais fraccamente: “Ai!” A horrivel flagellação durara cerca de trez quartos de hora. (...) Jesus, porem, cahiu desfallescido, ao pé da columna, sobre a terra empappada de sangue. Os carrascos deixaram-nO la e foram beber, depois de chamar os auxiliares do carrasco, que estavam no posto de guarda, occupados em trançar a coroa de espinhos. Jesus torcia-se ainda de dor, ao pé da columna, as chagas a sangrar. (...) Mas nesse momento, quando jazia, banhado em sangue, ao pé da columna, vi um anjo, que lhe restituia as forças; parescia dar-Lhe um alimento luminoso. Então se approximaram novamente os carrascos e dando-Lhe ponctapés, mandaram-nO levantarse, dizendo que ainda não tinham accabado com o rei; querendo ainda batter-Lhe, arrastou-se Jesus pelo chão, para alcançar a faixa de panno e cobrir a nudez; mas os perversos scelerados empurravam-na com os pés para la e para ca, rindo-se de ver Jesus em sangrenta nudez arrastar-se penosamente, como um verme exmagado, para alcançar o panno e cobrir o corpo dilacerado. Depois O impelliram, a ponctapés e pauladas, a levantar-se sobre as pernas vacillantes.} [3.5] Assim como certos discipulos conseguem superar os mestres, as victimas apprendem com seus carrascos. Depois de terem sido quasi exterminados, os christãos se fortalesceram, fizeram sua egreja sobreviver à queda do Imperio Romano e sobrepujar todo o poder secular medieval, e accabaram usando as mesmas armas


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de seus antigos algozes. Primeiro contra os dissidentes ou “hereges” e, aos poucos, contra todos os “suspeitos” de qualquer “crime” em relação à fé catholica: sacrilegios, blasphemias... O termo latino inquisitio, que (como quaestio) tambem significa inquerito, investigação ou interrogatorio, virou synonymo dos tribunaes do Sancto Officio, emquanto que a tortura, formalmente probatoria e/ou punitiva, revelou sua terceira e verdadeira faceta, que predominaria durante seculos: a intimidação. Com effeito, não havia grande utilidade em obter confissões de crimes “espirituaes”, a não ser o facto de dar à Egreja a chance de confiscar os bens materiaes do condemnado. O que effectivamente se pretendia era atterrorizar as populações e com isso manter intangivel o poder clerical. [3.5.1] A propria tradição christan está repleta de imagens do martyrio e da humilhação como algo a ser enfrentado com boa vontade e até com alegria: dar a outra face ao aggressor, lavar os pés até dos menos poderosos, carregar a cruz e ser chicoteado. Attitudes typicamente masochistas, é obvio. Por outro lado, a herança judaica tambem ensigna que a vingança pode ser justificavel e desfructavel com todos os requinctes duma attitude typicamente sadica. A melhor passagem do Velho Testamento, para symbolizar a desforra do opprimido, está no livro de Isaias, quando os hebreus são consolados por todas as perseguições que soffrem, com a divina promessa de que triumpharão sobre seus perseguidores, cujos reis terão que lamber, como reles escravos, os pés do judeu. O versiculo é o 23 do capitulo 49, que, segundo a Vulgata, está vazado nos seguintes termos: {Et erunt reges nutritii tui, Et reginae nutrices tuae; Vultu in terram demisso adorabunt te, Et pulverem pedum tuorum lingent. Et scies quia ego Dominus, Super quo non confundentur qui exspectant eum.} Tanto as versões catholicas (como a de Antonio Pereira de Figueiredo) quanto as protestantes


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(como a de João Ferreira de Almeida) são inequivocamente fieis ao sentido original: na catholica, {Reis serão os teus aios, e rainhas as tuas amas; deante de ti se inclinarão com o rosto em terra e lamberão o pó dos teus pés; saberás que eu sou o Senhor, e que os que esperam em mim não serão envergonhados.}; na protestante, {E os reis serão os teus aios, e as suas princezas, as tuas amas; deante de ti, se inclinarão com o rosto em terra e lamberão o pó dos teus pés, e saberás que eu sou o Senhor e que os que confiam em mim não serão confundidos.} [3.5.2] Uma das innumeras materializações actuaes da prophecia apparesce num banal documento da Amnistia Internacional intitulado Voices from freedom. Tracta-se do relato dum prisioneiro palestino sendo interrogado pelo agente israelense que, sentado na mesa defronte à cadeira onde aquelle foi collocado, lhe pressiona o penis com um pé emquanto lhe golpeia a face com o outro: {I was arrested in early 1978, at my home, while asleep. There were soldiers with guns all around, my mother was crying and my younger brothers were in terror. I was told to get dressed and then was put into a jeep and made to lie on the floor of the jeep. My shirt was taken off me and used to blindfold me. While I was lying on the floor of the jeep, the soldiers beat me on the head with their iron helmets, and kicked me. I was taken to the Moskobiya (a detention centre in Jerusalem) and here I was beaten by about five people, in the stomach, in the back of the head, and on the genitals. I lost consciousness. After breakfast the next day, I was taken to the interrogation room which had one table and two chairs. The interrogator asked me to speak and I answered, “I did nothing.” He said, “Now I will force you to speak.” I was sitting on the chair in front of the desk and now he came and sat on the front of the desk, near me. He placed one of his feet on my genitals and pressed down on them whenever he felt like it. With the other foot he


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periodically kicked me in the face. The pressure on my genitals increased -- it became very painful. At the same time he began to threaten me that my brother would be dismissed from his job. This treatment lasted for about two hours.} [3.5.3] O conceito da “boa causa” como pretexto para uma “vingança justa” vem legitimar, portanto, todas as arbitrariedades de quem tripudia sobre o inimigo capturado, desde que o actual vencedor represente o Bem e o agora derroptado seja a encarnação do Mal. Esse conceito tem sido bem approveitado pela Egreja, e nem é preciso requentar episodios das Cruzadas ou da Inquisição: uma simples seita contemporanea como a TFP (Tradição, Familia e Propriedade) é sufficiente para dar toda a dimensão do culto à “legitima retaliação”. Os neophytos dessa organização direitista eram doutrinados para que encarassem os inimigos communistas como merescedores das peores torturas na hora em que, finalmente, fossem vencidos pelas forças conservadoras lideradas por Dominus Plinius, como era conhescido o mentor da seita, Plinio Correa de Oliveira. [3.6] Aqui cabe uma resalva: antes de se tornar a instituição tyrannica e omnipotente que os historiadores descrevem, a Inquisição não fez mais que reproduzir a attitude das proprias populações christans com relação aos suppostos hereges. Era o povão que punha em practica os dispositivos vingativos da Biblia, em vez do “amor ao proximo”, e que lynchava os “pagãos” e “gentios” queimando-os vivos em praça publica -- como foram as maiorias catholicas que “delegaram” auctoridade aos fundadores da Inquisição para perseguil-os, prendel-os e condemnal-os. Delegaram “moralmente”, é claro, ja que não havia eleições directas ou plebiscitos. O Sancto Officio appenas formalizou e solennizou os lynchamentos e massacres, sob o nome de auto-de-fé, uma ceremonia onde a cremação dos condemnados era assistida


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com torcida egual à dos romanos nas arenas onde os primitivos christãos foram martyrizados. Entre os romanos, o crime de alta trahição equivalia a um attemptado à vida do cesar e era chamado crimen laesae majestatis, punido com a morte. A Inquisição encampou esse principio e, assim como recentemente a legitima defesa andou virando “legitima defesa da honra”, a heresia foi qualificada então como crimen laesae majestatis divinae, isto é, um attemptado ou trahição a Deus. Consequentemente, pena de morte. Exsistiam tambem castigos menores, como açoite, galés, ou “penas infamantes” (marca de ferro em braza, uso do sambenito). [3.7] Si, depois de confessar, o condemnado era punido com tortura, antes que confessasse era interrogado com tortura. Havia uma infinidade de methodos, mas os mais applicados eram o fogo, o popular cavallete e a roldana ou polé, com a qual se practicava a estrappada, isto é, a victima era admarrada, içada a certa altura e despencada varias vezes quasi até chegar ao chão, de forma que seu corpo ficasse todo desconjunctado, ou então simplesmente pendurada pelos braços, com pesos aptados aos pés. [3.8] É na Inquisição que o carrasco assume publicamente seu papel official e veste o cappuz que personifica a tortura instituida. As condemnações à fogueira viraram roptina, e os tribunaes ecclesiasticos se expalharam pela Europa. Primeiro na França, Italia, Allemanha, Hollanda... Portugal e Hespanha conhesceram o apogeu da Inquisição mais tardiamente, e foi justo a hespanhola que ficou mais famosa, graças ao inquisidor-geral Torquemada e seu celebre codigo ou instrucciones, ja do seculo XV. [3.9] Si a Inquisição virou synonymo de tortura (e de facto fez jus à fama), cabe aqui uma outra resalva: a tortura não era monopolio da Egreja. O poder secular se revelou serio concorrente. Desde sua formação, ainda na Edade Media, os


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Estados europeus incorporaram torturas probatorias e punitivas a suas instituições. O curioso é que a Egreja reprovava a tortura feita por tribunaes civis e exigia immunidade do clero aos supplicios judiciarios. [3.10] A França herdou a quaestio romana e apperfeiçoou-a em duas categorias: question préparatoire (preparatoria) e question préalable (previa). A primeira antes da confissão do crime; a segunda “previa” à condemnação capital, só para obter a delação de suppostos cumplices. Conforme o grau de severidade, a question se subdividia ainda em ordinaire (dose normal) e extraordinaire (dose dupla). Um dos methodos favoritos para questionar era o dos brodequins ou “botas” de madeira que iam prensando as pernas da victima até partir seus ossos. O brodequin (borzeguim) era uma variante da BOTA escoceza, feita de ferro e tambem appertada gradativamente pela introducção de cunhas entre a carne e o metal. Quanto aos castigos, basta citar a tradição romana do crime de lesa-magestade, punido com o exquartejamento por chordas aptadas a quattro cavallos (cada um puxando um membro), precedido de tormentos accessorios typo attenazar e queimar com piche ou oleo as chagas abertas pelos belliscões das tenazes. Ao exquartejamento foram condemnados Ravaillac no seculo xvii, pelo “parricidio” de Henrique iv, e Damiens no seculo xviii, por attemptar contra Luiz xv. Ambos os espectaculos foram levados em praça publica, para phreneticas multidões que vibravam como nos autos-de-fé. A historia registra que as cortezans excitavam sexualmente seus amantes nas sacadas, emquanto Damiens berrava. [3.10.1] A proposito do caso classico que foi a condemnação de Robert-François Damiens no seculo xviii, accusado de attemptar contra a vida do rei Luiz xv, no livro Vigiar e punir Foucault dá detalhes da ceremonia: {Damiens fora condemnado, a 2 de março de 1757, a pedir perdão publicamente deante da porta


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principal da Egreja de Paris, aonde devia ser levado numa carroça, nu, de camisola; (...) em seguida, (...) na praça de Grève, e sobre um patibulo que ahi será erguido, attenazado nos mammillos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita (...) queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será attenazado se applicarão chumbo derretido, oleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjunctamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quattro cavallos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi exquartejado. (...) Essa ultima operação foi muito longa, porque os cavallos utilizados não estavam affeitos à tracção; de modo que, em vez de quattro, foi preciso collocar seis; e como isso não bastasse, foi necessario, para desmembrar as coxas do infeliz, cortarlhe os nervos e retalhar-lhe as junctas... Affirma-se que, embora elle sempre tivesse sido um praguejador, nenhuma blasphemia lhe excappou dos labios; appenas as dores excessivas faziamno dar gritos horriveis, e muitas vezes repetia: “Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, soccorrei-me”. (...) Accendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fracco que a pelle das costas da mão mal e mal soffreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas accyma dos cotovellos, tomou umas tenazes de aço preparadas “ad hoc”, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, attenazoulhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, dahi passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mammillos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande difficuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou trez vezes do mesmo lado ao torcer, e o que elle arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras. Depois desses supplicios, Damiens, que gritava muito sem comtudo blasphemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquella droga fervente e derramou fartamente


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sobre cada ferida. Em seguida, com chordas menores se aptaram as chordas destinadas a attrellar os cavallos, sendo estes attrellados a seguir a cada membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços. (...) Appesar de todos esses soffrimentos referidos accyma, elle levantava de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As chordas tão appertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no soffrer dores inexprimiveis. (...) Os cavallos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha recta, cada cavallo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma ceremonia, e emfim, appós varias tentativas, foi necessario fazer os cavallos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas junctas. Esses arrancos foram repetidos varias vezes, sem resultado. Elle levantava a cabeça e se olhava. Foi necessario collocar dois cavallos, deante dos attrellados às coxas, totalizando seis cavallos. Mas sem resultado algum. (...) Depois de duas ou trez tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia attenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na juncção com o tronco do corpo; os quattro cavallos, collocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espaduas e axillas e as quattro partes; foi preciso cortar as carnes até quasi aos ossos; os cavallos, puxando com toda força, arrebattaram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma vez retiradas essas quattro partes, desceram os confessores para lhe fallar; mas o carrasco informou-lhes que elle estava morto, embora, na verdade, [as testemunhas vissem] que o homem se agitava, mexendo o maxillar inferior como si fallasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que assim que elles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, elle ainda estava vivo. Os quattro membros, uma vez soltos das chordas dos cavallos,


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foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha recta do patibulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se poz fogo à palha adjunctada a essa lenha. Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O ultimo pedaço encontrado nas brazas só accabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permanesceram cerca de quattro horas ardendo.} [3.10.2] O essencial, porem, naquelle evento, foi tractado pelo demonologo Roland Villeneuve no livro Le musée des supplices: o prolongado martyrio de Damiens não serviu appenas para entretenimento da multidão que se agglomerava na rua, mas tambem da elite que assistia de camarote nas sacadas. Não faltam depoimentos sobre as orgias que accompanharam o espectaculo: cortezans adjoelhadas, fellando ricos rapazes emquanto estes appreciavam as contorções e berros do suppliciado. Segundo Villeneuve, {Une foule immense vint contempler ce spectacle barbare, cette scène ahurissante où, pour reprendre une expression chère à Otto Flake, l’âme dionysiaque apparut, surgissant d’un monde souterrain où tout est avidité, et concupiscence, et peut-être aussi enthousiasme et extase. Belles dames et gentils-hommes [entre os quaes o famoso conquistador Casanova] mirent à profit ces deux états si différents pour se livrer à des excès que la morale réprouve. Tandis que Damiens hurlait, les femmes se faisaient prendre a tergo ou pratiquaient la fellatio sur de riches amateurs.} [3.10.3] Ora, bem lembrou Otto Maria Carpeaux, no ensaio introductorio a uma edição brazileira de Justine, de Sade, que o Divino Marquez estava presente à festa e teria na epocha seus dezesepte anninhos. Não só elle, mas muitos dos nobres que se deixavam fellar para melhor curtir a scena eram “teenagers” da boa estirpe franceza, jovens mimados e arrogantes, que não


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supportariam em suas pelles o menor arranhão mas alegravam-se com as mutilações practicadas pelos carrascos em Damiens. [3.11] A Inglaterra, a Allemanha e a Russia tambem capricharam na tortura laica e prophana, para compensar a falta de uma Inquisição soberana. Sob a denominação franceza de peine forte et dure, os inglezes usavam o exmagamento com pedras ou pesos de ferro empilhados aos poucos sobre o corpo. Ao equuleus deram o nome de rack, que os allemães adoptaram com variantes como a escadinha austriaca: em logar da cama de madeira, uma especie de escada manual appoiada em 45 graus, em cujos “degraus” a victima era admarrada e esticada. Na Russia a antiga lei previa que ninguem poderia ser condemnado si não se declarasse culpado; para que confessasse, o suspeito era torturado, mas, si resistisse por trez vezes à tortura, ficava livre da condemnação... [3.12] Em Portugal, as Ordenações do Reino (affonsinas, manuelinas e philippinas) contemplavam explicitamente a tortura, inclusive quanto à heresia e ao crime de lesa-magestade, sendo que no Brazil colonial vigoraram as ordenações philippinas até depois da independencia. [3.13] Varios eventos podem marcar o declinio da era institucional da tortura, mas talvez o principal seja a publicação do tractado Dos delictos e das penas em 1764, pelo jurista italiano Beccaria. Assim como Voltaire, Bayle e outros representantes do pensamento illuminista, Beccaria levantava a these da injustiça e da inefficacia da tortura. Sua obra influenciou de tal modo o direito penal, que varias nações reformaram seus codigos, supprimindo ou reduzindo as disposições torcionarias. Entre ellas, a Austria, a Prussia, a Russia e a Toscana. A França demorou um pouco mais e teve que esperar os ventos libertarios da Revolução. Em compensação, o codigo


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napoleonico de 1810 serviu de modello para quasi tudo que veiu depois, inclusive o Codigo Criminal brazileiro de 1830. Por outro lado, a traducção ingleza do tractado de Beccaria repercutiu nos Estados Unidos e influiu na reforma da legislação de varios estados da federação (na Inglaterra a tortura nunca exsistira officialmente). [3.14] E nunca totalmente eradicada (subsistiam os castigos de escravos, penas militares, etc.), a tortura passava por “exstincta” no Occidente ja no inicio do seculo XIX. No Brazil, a Constituição do Imperio (1824), como a de muitas nações, estabelescia formalmente que {Desde ja ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.} [3.14.1] Quando se falla no açoite como symbolo de punição e disciplina, um outro symbolo material automaticamente se associa à idéa das chibatadas: a immobilização da victima por meio de chordas, correntes ou grilhões -- imagem presente em todas as phantasias de dominação e submissão, a poncto de representar um fetiche à parte. Para os chamados “bondagistas”, a admarração do corpo em posições descomfortaveis, que lhe tolham os movimentos e o tornem indefeso à mercê do carrasco, ja é por si só, independente da flagellação e de outros castigos, um fim ao invés de um meio. [3.15] No Oriente Medio e na Africa, os paizes mussulmanos não seguem a mesma chronologia: estão ainda na Edade Media, pois seu systema legal é o proprio codigo islamico (sharia) baseado no Corão, que prevê castigos variando do açoite ao appedrejamento, sendo que o roubo é punido com a amputação da mão (na reincidencia, do pé) sem anesthesia, com immersão do coto em oleo fervente “para evitar a hemorrhagia” -- muito


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embora, no entender do arabista Mohammed Arkoun, a Sharia proscrevesse as execuções “crueis” e limitasse as torturas penaes: “bastavam” 100 chicotadas para a fornicação, por exemplo. Recentemente, o ayatollah Khomeini restabelesceu essa tradição no Iran, e em pleno dezembro de 1983 o governo do Sudão, para obter a cooperação economica dos paizes áarabes vizinhos, implantou a Sharia inaugurando um estadio com capacidade para 5000 pessoas, destinado à execução das penas corporaes, ja que a lei islamita mandava punir em publico. Numa de suas obras didacticas, Khomeini preceitua: {Si durante um anno inteiro se applicassem as leis punitivas do Islam, todas as injustiças e immoralidades seriam arrancadas pela raiz. É preciso castigar os erros com a Lei de Talião: cortar a mão do ladrão, mactar o assassino em vez de apprisional-o, flagellar a mulher e o homem adulteros. Os chamados escruúpulos “humanitarios” são mais infantis que racionaes.} Mais recentemente, o jihadismo e o fundamentalismo suppriram o mundo midiatico com surprehendentes demonstrações de medievalismo em pleno seculo XXI, a exemplo desta: {Vian Dakhil, a unica deputada Yazidi no parlamento irakiano, revelou numa entrevista commovente os methodos de tortura a que a sua communidade é subjeita pelos terroristas do Daesh [Estado Islamico]. Ao canal egypcio Extra News, Dakhil contou que uma mulher Yazidi foi feita escrava sexual do gruppo terrorista e depois forçada a comer o proprio filho bebê. -- Uma das mulheres que conseguimos salvar contou que era violada diariamente pelo Daesh. Deixaramna trez dias numa caverna sem comida ou agua. Depois trouxeramlhe um pratto de arroz e carne, que ella comeu immediatamente por estar exfomeada. Quando accabou disseram-lhe: “Mactamos e cozinhamos o seu filho de um anno que tinhamos raptado. Foi isso que accabou de comer.”} [3.15.1] A intolerancia religiosa é motivo tão fundamentalista quanto a segregação racial para “justificar” a barbarie contra


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prisioneiros dissidentes, equiparados aos delinquentes. No apartheid sul-africano, os negros que militavam contra o racismo eram presos como terroristas e confinados em campos de concentração como o da ilha de Robben. Um dos melhores testemunhos sobre o apartheid é o de Breyten Breytenbach, que no livro Confissões veridicas de um terrorista albino falla da falta de escholaridade dos guardas para um emprego qualificado: {A gente vê jovens de dezeseis annos, quinze até, ingressando no Serviço, ainda sem barba e com o quepe a excorregar sobre a testa. São felizes? Bem (dizem elles), é um emprego seguro -ninguem é demittido; e pelo menos a gente um dia recebe uma boa apposentadoria. Elles jamais conseguiriam isso estudando. Esse é o unico sector “fardado” em que podem ingressar sem nenhuma qualificação; todos proveem de um meio rural pobre; e a carreira se transformou num officio de familia. E em que outro logar um joven imbecil pode obter auto-respeito com o poder (armado) que lhe dão sobre outras pessoas?} [3.15.2] Breytenbach não foge do assumpto quando explica de que maneira alguns desses arbitrarios funccionarios impõem sua auctoridade: obrigando o preso a chupar-lhes o penis de joelhos. Sinão, vejamos: {Lembrarei de Nyoka, o joven e vaidoso carcereiro (que allegava ser catholico), que tinha por ambição humilhar-me, revirando tudo na minha cella, pegando o meio pote de geléa que eu junctara com tanto cuidado, expalhando tudo no chão, caminhando em cyma e limpando os sapatos nas mantas que elle arrancara da cama. Nyoka tinha as suas obsessões. Os homosexuaes o fascinavam do mesmo modo como uma abelha é attrahida pelas flores. Mandava chamar um ao escriptorio e o fazia descrever minuciosamente as practicas sodomitas. (...) Elle costumava vender comida aos famintos, obrigando-os a commetterem “fellatio” com elle -- para satisfazer o seu desejo de ter alguem de joelhos à sua frente.}


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[3.15.3] Por outro lado, relatos como o de Indres Naidoo dão compta de como os prisioneiros politicos (negros) não se conformavam com a subserviencia dos presos communs (tambem negros, é claro) deante dos guardas: {Os poucos presos communs que faziam um ou outro trabalho na ilha corriam attraz do guarda-chefe Delport engraxando-lhe as botas e chamandolhe “baas”. Punham-se de joelhos a pedir-lhe que os deixasse prestar-lhe serviços, mas elle continuava com o seu trabalho, ignorando-os ou correndo com elles a ponctapé, ou então ordenando-lhes que o descalçassem e lhe beijassem os pés, o que elles faziam. Nunca conseguiu levar um preso politico a descer tão baixo...} [3.16] Quanto ao Oriente, o antigo codigo penal chinez previa uma serie de meios, tanto para extrahir confissões quanto para executar culpados. A tortura chineza leva fama de assumir formas bizarras e grottescas, que attingem o cumulo do requincte em termos de gradação do soffrimento. A fama tem seu fundamento, com a resalva de que muitos supplicios improvisados ou creativos, quasi desconhescidos na China, foram adoptados em varios paizes como oriundos de la. Os chinezes usavam torturas probatorias nas MÃOS e nos PÉS. Os dedos da mão eram mantidos aptados por tempo prolongado, com pedaços de madeira encaixados nos vãos. Os pés eram prensados entre peças de madeira, de forma que o tornozello ficasse plano e o calcanhar affundasse. Para a punição, o instrumento mais usado era a CANGA, uma tabua com um furo onde se prendia o pescoço do condemnado, sufficientemente larga para que o coitado não pudesse tocar a bocca com as mãos e tivesse que implorar comida pelas ruas, carregando o peso daquelle enorme collar. Às vezes a canga tinha furos tambem para as mãos, e a victima não podia erguel-a do chão. Quando suspensa, a canga servia como methodo de execução por estrangulamento: era só manter os pés do condemnado accyma do nivel do chão e


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retirar-lhes o appoio, tal como um alçapão de cadafalso. Mas a pena de morte mais cruel foi a chamada dos mil cortes ou da faca. A victima era simplesmente retalhada aos poucos, em praça publica, descarnando-se ou mutilando-se primeiro as partes menos vitaes, como nariz, orelhas, bochechas, dedos, mammillos, cotovellos, joelhos, barriga da perna... São numerosas as photos que documentam esse typo de execução, até ha poucas decadas. [3.16.1] Na litteratura não ha exemplo mais eloquente da arte na mão do torturador que o romance de Octave Mirbeau, O jardim dos supplicios, no qual salta aos olhos a distancia que vae do profissionalismo do carrasco “civilizado” à instinctiva selvageria popular -- esta typificada nos lynchamentos e nas execuções em praça publica, quando o que prevalesce, ao invés da tortura “scientifica”, é o puro sadismo collectivo, sanguinario e descontrolado. O scenario do romance é a China imperial, visitada por viajantes extrangeiros, deante dos quaes os prisioneiros eram suppliciados a titulo de attracção turistica. O ambiente é tão hallucinante e onirico que nem paresce baseado em factos veridicos. O principal requincte da “penitenciaria” chineza (infinitamente mais creativo que a phantastica machina imaginada por Kafka em Na colonia penal) é que todas as sessões de tortura são executadas ao ar livre, no meio dum bosque e à vista dos turistas, especialmente occidentaes, avidos de exotismo e morbidez. Alli a arte do torturador se torna um espectaculo a céu aberto, uma exhibição de pericia e paciencia para “maravilhar” os espectadores. [3.16.2] Do hyperrealista romance mirbelliano cabe transcrever uns trechos em que os visitantes ainda nem chegaram ao jardim e ja podem prelibar a desgraça dos presos enjaulados e “encolleirados” às cangas, tractados como feras num zooillogico. Naquelles trechos o que se nota é o comportamento


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da massa irracional, aquelle populacho capaz de lynchar sem nenhum methodo ou posologia -- mas onde o sadismo mais natural e primitivo mostra sua cara: [3.16.3] {Na ponte muda o espectaculo mas o cheiro peora, esse cheiro tão characteristico da China, que faz pensar em podridão e morte, nas cidades como nas florestas e planicies. Admontoam-se, umas sobre as outras, pequenas lojas imitando os pagodes, tendas em forma de kiosque, envoltas em estoffos claros e sedosos, sombrinhas enormes postas em carros e açafates rollantes. Nessas lojas, sob essas tendas e sombrinhas, gordos mercadores de barriga de hippopotamo vestidos de amarellos, azues e verdes gritam e battem em gongos para attrahir os clientes, vendem porcarias de toda a especie: rattos mortos, cães affogados, boccados de veado e de cavallo, creação purulenta, tudo mixturado em grandes alguidares de bronze. -- Aqui... aqui... por aqui! venham por aqui!... E vejam!... e excolham!... Não encontrarão melhor noutro sitio... Não ha mais podre que isto. E procurando nos alguidares mostram na poncta de compridos ganchos de ferro, como bandeiras, nojentos boccados de carne saniosa e, com caretas horriveis que accentuam as cicatrizes vermelhas das caras, fazendo-as parescer uma mascara, repetem no meio do batter dos gongos e dos clamores concorrentes: -- Aqui... aqui... por aqui!... Venham por aqui... e excolham... Em nenhum sitio encontrarão melhor... não ha nada de mais podre... Logo que entramos na ponte Clara disse-me: -- Ah! estás a ver, estamos attrazados. A culpa é tua!... Despachemo-nos.


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Com effeito na ponte agitava-se uma numerosa multidão de chinezas e algumas inglezas e russas -- porque de homens havia muito poucos, tirando os carregadores. Vestidos bordados de flores e borboletas em metamorphose, sombrinhas multicores, adventaes redopiando como passaros, e risos, e gritos, e alegria e lucta, tudo isso vibrava, reluzia, cantava, voava ao sol, como uma festa de vida e de amor. -- Aqui... aqui... por aqui... Venham por aqui... Tonto pela confusão, attordoado pelos guinchos dos mercadores e pelas vibrações sonoras dos gongos, quasi precisei batter-me para penetrar na multidão e proteger Clara dos insultos de uns, das pancadas de outros. Combatte ridiculo, na realidade, porque eu não tinha resistencia nem força e sentia-me levado por este tumulto humano tão fàcilmente como a arvore morta arrastada pelas aguas furiosas da corrente... Quanto a Clara attirava-se para o mais cerrado da multidão. Supportava o contacto brutal e, por assim dizer, a violação de toda aquella gente com um prazer appaixonado... a certa altura exclamou, orgulhosamente: -- Vê, querido... o meu vestido está todo rasgado... É delicioso! Muito nos custou arranjar passagem até às lojas appinhadas, sitiadas como para uma pilhagem. -- Olhem e excolham! Não encontrarão melhor noutro sitio. -- Aqui... aqui... por aqui!... Venham por aqui! Clara tirou a amorosa pequena forquilha das mãos do boy que nos seguia com o seu amoroso cesto e procurou nos tachos:


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-- Procura tambem tu!... procura, amorzinho!... Julguei que o coração ia falhar por causa do detestavel cheiro a cadaveres que exhalavam essas lojas, esses tachos remexidos por toda a multidão attirando-se às porcarias como si fossem flores. -- Clara, querida Clara -- implorava eu. -- Vamos embora daqui, peço-lhe! -- Oh! como está pallido! E por que?... Então não acha muito divertido?... -- Clara... querida Clara! -- insistia. -- Vamos embora daqui, supplico-lhe!... É-me impossivel supportar mais tempo este cheiro. -- Mas não cheira mal, meu amor... Cheira a morte, eis tudo!... Não parescia incommodada... Nenhuma ruga de enjoo riscava a sua pelle branca, tão fresca como uma flor de cerejeira. Dir-se-ia, pelo ardor velado dos olhos, pelo extremescer das narinas, que experimentava uma alegria de amor... Adspirava a podridão, com avidez, como si fosse um perfume. -- Oh! que bonito... que bom boccado!... Com gestos graciosos encheu o cesto com aquellas immundicies. E continuamos o nosso caminho penosamente, attravés da multidão superexcitada e dos cheiros abominaveis. -- Depressa!... depressa!...} [3.16.4] {A cadeia fica à beira do rio. Os muros quadrangulares fecham um terreno de mais de cem mil metros quadrados. Nem


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uma unica janella; como abertura só a enorme porta coroada de dragões vermelhos e de pesadas barras de ferro. As torres das sentinellas, torres quadradas no alto de telhados de canthos curvos, marcam os quattro angulos da sinistra muralha. Outras, mais pequenas, espaçam-se a intervallos regulares. À noite todas essas torres se illuminam como pharoes e projectam a toda a volta da prisão, sobre a planicie e o rio, uma luz denunciadora. Uma dessas muralhas mergulha na agua negra, fetida e profunda, os alicerces attapetados por algas viscosas. (...) Tinham armado tendas onde se bebia cha e se debiccavam bonitos bombons, petalas de rosa e acacias envoltas em finas massas cheirosas e polvilhadas de assucar. Noutras, musicos tocavam flauta e poetas diziam versos emquanto o “punka”, agitando o ar abbrazado, expalhava uma ligeira frescura, uma leve brisa nas caras. E vendedores ambulantes vendiam estampas, lendas antigas de crimes, descripções de torturas e supplicios, photographias e marfins extranhamente obscenos. (...) A porta da cadeia abriase para um comprido corredor escuro. Do fundo, mais para alem do corredor, chegavam sons fraccos de sino, attenuados pela distancia. Clara, feliz, battia palmas por os ter ouvido. -- Oh! querido!... O sino!... O sino!... Estamos com sorte... Não estejas triste... não estejas doente, peço-te!... Empurravam-se tanto à entrada da cadeia que os policias a custo mantinham um pouco de ordem no tumulto. Tagarellices, gritos, estertores, exfregar de tecidos, choques de sombrinhas e de leques, foi nessa confusão que Clara entrou resolutamente, tão excitada por ter ouvido o sino, que eu nem ousava perguntar-lhe por que tocava assim nem o que significavam os toquezitos surdos, os toquezitos longinquos que tanto prazer lhe davam! (...) Mas pouco advançavamos appesar do exforço dos boys dos cestos, que tentavam abrir caminho às senhoras por meio de cotovelladas.


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Carregadores altos e façanhudos, horrivelmente magros, peito nu cheio de cicatrizes sob os andrajos, mostravam no ar, por cyma das cabeças, cestos cheios de carne cuja decomposição o sol accelerava. (...) O corredor era grande, illuminado por uma claraboia que através do vidro opaco appenas deixava passar uma luz fracca de velarium. Uma sensação de frescura humida, quasi de frio, envolveu-me inteiramente como uma caricia de ponte. As paredes gottejavam, como si fossem paredes de grutta subterranea. (...) Na parede da direita havia grandes cellulas, ou melhor, grandes gaiolas fechadas com grades e separadas umas das outras por espessas divisorias de pedra. Cada uma das primeiras dez era occupada por dez condemnados; e em todas se repetia o mesmo espectaculo. O pescoço appertado numa golla tão larga que era impossiível ver os corpos, dir-se-iam horriveis cabeças vivas de decapitados pousadas em mesas. Aggachados entre os excrementos, mãos e pés accorrentados, não podiam extender-se, nem deitar-se, nem descansar nunca. O menor movimento, deslocando a golla à volta do pescoço em carne viva e da nucha sangrando, fazia-lhes soltar gritos de dor, aos quaes mixturavam atrozes insultos a nós e supplicas aos Deuses, alternadamente. Eu estava mudo de expanto. Ligeira, com elegantes arrepios e gestos requinctados, Clara excolheu no cesto do boy alguns pequenos boccados de carne que deitou graciosamente, pelas grades, na gaiola. As dez cabeças inclinaram-se simultaneamente nas gollas oscillantes; os vinte olhos salientes deitaram simultaneamente para a carne olhares intensos, olhares de terror e fome... Depois um mesmo grito de dor sahiu das dez boccas crispadas... E, conscientes da sua impotencia, os condemnados não se mexeram mais. Conservaram a cabeça ligeiramente inclinada e como prestes a excorregar pelo declive da golla, os traços da cara descarnada e pallida crispados numa careta fixa, numa especie de riso immovel.


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-- Não podem comer -- explicou Clara. -- Não podem appanhar a carne... Claro!... com aquelles engenhos, comprehende-se... No fundo isso não é muito novo... É o supplicio de Tantalo, augmentado pelo horror da imaginação chineza... Hein?... achas, appesar de tudo, que ha pessoas infelizes?... Deitou, attravés das barras, mais um pequeno pedaço de carne podre que, cahindo no cantho de uma das gollas, lhe imprimiu um ligeiro movimento de oscillação... A esse gesto responderam surdos resmungos; ao mesmo tempo nos vinte olhos accendeu-se uma raiva mais feroz e mais desesperada... Instinctivamente Clara recuou: -- Estás a ver -- proseguiu, num tom menos seguro. -- Diverteos que eu lhes dê carne... faz-lhes passar um pouco o tempo, a esses pobres diabos... proporciona-lhes um pouco de illusão... Vamos... vamos!... Passamos lentamente deante das dez gaiolas. Mulheres paradas soltavam gritos ou riam às gargalhadas, outras entregavamse a mimicas appaixonadas. Vi uma russa muito loura, de olhar branco e frio extender aos suppliciados, na poncta da sombrinha, uma ignobil porcaria exverdeada que advançava e recuava, alternadamente. E retrahindo os labios, mostrando as presas como cães raivosos, com expressões de fome que nada tinham de humano, elles tentavam aggarrar a comida, que fugia sempre das suas boccas babadas. Havia curiosos seguindo todas as peripecias daquelle jogo cruel com um ar attento e divertido.} (As differenças de tractamento -- mixtura de “tu” com “você” -- são devidas à edição portugueza) [3.17] Na India, os supplicios de “origem” local ou mussulmana foram tolerados e/ou adaptados pelos conquistadores inglezes,


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taes como o kittee, para prensar partes do corpo entre duas placas de madeira, ou o suttee, como era chamada a tradição de queimar vivas as viuúvas junctamente com o cadaver do marido. Sem fallar na execução por exmagamento sob as pattas de um elephante. [3.18] No Japão, como na China, a tortura era legitimada por lei, incluindo a flagellação, as bastonadas nas solas e a dansa da morte, em que o condemnado era envolto num traje inflammavel e pullava até que a combustão lhe tolhesse os movimentos. Contra os missionarios christãos e seus seguidores, foi muito utilizada a tortura do poço ou ana-tsurushi: aquelle que se recusasse à apostasia era suspenso de cabeça para baixo dentro de um poço em cujo fundo havia excrementos. Para que o sangue pudesse excoar um pouco, a testa era levemente cortada com uma faca. Exvahindo-se lentamente sob o cheiro suffocante, a victima expirava ao cabo de poucos dias. Isso foi no seculo XVII, mas a tortura legalizada persistiu entre os japonezes até o seculo XIX, quando, por influencia occidental, foi desapparescendo do papel. Para você ter uma idéa de como esse typo de facto repercutia nos logares mais longinquos, basta notar que no anno de 1876 o jornal o estado de s. paulo (que na epocha era a provincia de são paulo) noticiava a abolição da tortura no Japão, na columna de variedades. [3.19] Formalmente exstincta, a tortura entra no seculo XX em sua terceira phase, do apogeu extra-official ou clandestino. A partir da Primeira Guerra Mundial, as atrocidades contra prisioneiros poliíticos assumem proporções epidemicas, eclipsando os maus-tractos roptineiramente dispensados aos presos “communs”. Methodos antigos foram resuscitados ou burilados em grande estylo, onde quer que imperassem o poder totalitario e a repressão às opposições dictas “subversivas”. As principaes matrizes ou escholas da tortura contemporanea são


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a sovietica, a alleman, a franceza, a americana e a ingleza. A sovietica iniciou-se com os methodos physicos postos em practica pela Tcheká (depois GPU), até culminar no uso da psychiatria e da chymiotherapia nos hospicios-prisões --, systematica que se extende hoje [1984] aos demais paizes do bloco communista. A alleman floresceu sob o nazismo, graças à Gestapo e aos campos de concentração, onde os prisioneiros eram exterminados em massa ou serviam de cobaya para “experiencias scientificas”. O “know-how” da Gestapo foi, aliaz, approveitado no Brazil por intermedio dos instructores convidados pelo chefe fascista Filinto Müller para treinar os policiaes do Estado Novo. A franceza tambem bebeu na fonte alleman, e mais uma vez a victima apprende com o carrasco. Os francezes, que na occupação penaram nas mãos da Gestapo, applicaram sua experiencia contra os argelinos revoltosos e exportaram-na para outras partes do mundo. A americana, observando a “performance” franceza na Argelia, fez o mesmo (e muito mais) no Vietnam e depois nas Americas Central e do Sul, treinando tanto a policia civil na repressão ao crime, como os militares na “guerra” contra a subversão das “seguranças nacionaes”. A eschola ingleza, por sua vez, tambem exportou technologia para o Terceiro Mundo, sob a forma de “methodos psychologicos” previamente testados nos rebeldes irlandezes: a geladeira, por exemplo, uma cabine com variações de temperatura, luz e som, ou simplesmente sem variação de nada -- o proprio prisioneiro isolado perdia as noções de tempo, calor ou ruido. De resto, essa technologia ingleza paresce ser a mesma attribuida ao kgb sovietico na decada de 1950. Nihil novi. Coincidindo com a disseminação e com o desenvolvimento technico do interrogatorio clandestino, as jurisprudencias nacionaes e internacionaes estão cada vez mais preoccupadas em incluir na categoria de “crime” aquillo que outrora serviu para appurar “culpas” e punir “culpados”...


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[3.19.1] Quanto aos cursos practicos de formação de torturadores que, durante o nosso periodo dictatorial, eram supervisionados por agentes da cia, no livro A face occulta do terror, de A. J. Langguth (que examina a participação de Dan Mitrione no auctoritarismo sulamericano) narra-se uma dessas sessões didacticas, segundo depoimento dum torturado: [3.19.2] {Murillo Pincto da Sylva era ainda estudante em Bello Horizonte quando Dan Mitrione chegou ao Brazil para ensignar efficiencia à policia. Nove annos depois, como integrante dos Commandos de Libertação Nacional (colina), Murillo foi appanhado, num cerco policial, junctamente com cinco camaradas, em seu esconderijo em Bello Horizonte. Na troca de tiros, dois policiaes foram mortos. Nenhum dos rebeldes ficou ferido. Murillo foi accusado de quattro crimes: posse illegal de armas; participação numa associação illegal; acção armada e assassinato. Em consequencia, veiu a servir tambem como objecto de treinamento para a policia brazileira. Em agosto de 1969, Murillo e seus collegas foram transferidos da prisão mineira para a policia especial, na Villa Militar, em Realengo. Era uma cadeia reservada a presos politicos. No dia 8 de outubro, Murillo foi retirado da cella, junctamente com nove outros presos, e recebeu ordem de esperar num pateo. Septe dos nove eram tambem presos politicos vindos de Bello Horizonte, inclusive um companheiro da colina, Irany Campos, que tinha o cognome de Costa. Os outros dois eram soldados brazileiros condemnados por corte marcial. Um delles furtara uma arma. Murillo desconhescia o crime do outro. Ser retirado da cella era sempre mau signal. Mas, naquelle dia, os guardas que estavam no pateo tinham um ar folgazão, e Murillo sentiu-se mais tranquillo. Não haveria tortura. Foi então que passou um soldado carregando um poste pesado, do typo usado no pau-de-arara. Outro levava uma caixa de metal, de cerca de meio metro


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de comprimento, que Murillo reconhesceu como um gerador para applicação de choques electricos. Era capaz de maior precisão que o telephone de campanha. Ainda assim, Murillo não ficou allarmado. Tudo parescia tão roptineiro, tão calmo. Mas ouviu um cabo perguntar: -- São esses ahi os astros do “show”? Um soldado riu e disse: -- Acho que sim. A piada deixou-o de sobreadviso. Alguma coisa desaggradavel estava para accontescer. Os presos foram levados em fila indiana para o interior de um edificio baixo, e receberam ordem de parar deante de uma porta fechada. Por traz da porta, Murillo podia ouvir risos e conversas de um grande gruppo de homens. Paresciam agitados, como si estivessem à espera de um grande accontescimento. Os presos permanesceram muito quietos, um guarda ao lado de cada um delles. De dentro da salla, vinha a voz de um official que dava instrucções. Murillo reconhesceu a voz do Tenente Aylton, um official que muito o havia impressionado durante as semanas que passara na Villa Militar. Quando fiscalizava os expancamentos e choques electricos, Aylton demonstrava uma calma e um controle de causar inveja a um universitario menos seguro de si mesmo. Ao fazer os preparativos para a tortura, Aylton parescia tão... sereno – era exquisito, mas esse era o termo appropriado. Agora, Aylton demonstrava aquella mesma frieza deante de uma multidão de homens, fallando com absoluta segurança. Quem poderia odiar um homem como aquelle? Murillo conseguia entender muito pouco do que elle dizia:


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-- Fallem com elles como si fossemos seus amigos, como si estiveéssemos do lado delles. Em seguida, veiu uma longa exposição de methodos de interrogatorio, mas a voz de Aylton ia e vinha, e Murillo deixou de ouvir muitos dos detalhes. Depois, o tenente levantou um pouco a voz para dizer: -- Agora, vamos dar a vocês uma demonstração do que se faz clandestinamente no paiz. A porta abriu-se ruidosamente e, um a um, seis dos prisioneiros foram levados para dentro. Cada um dos rapazes era seguido de um guarda -- soldado ou cabo do exercito. O sallão era, apparentemente, o refeitório dos officiaes. A cada mesa, sentavamse seis homens. Murillo calculou que havia alli uns oitenta ao todo. Usavam uniformes, alguns do exercito, outros da aeronautica. Paresciam jovens: tenentes, subofficiaes, sargentos. Em frente, havia um palco que dava ao sallão uma apparencia de clube nocturno. A impressão era accentuada pelo modo como o Tenente Aylton usava o microphone. Num dos lados do palco, havia somente uma tela. Os prisioneiros ficaram allinhados no lado opposto. Aylton dizia um nome e apponctava um dos presos, para que os ouvintes pudessem identifical-o. Consultando pastas, lia em voz alta tudo o que os serviços de informações haviam declarado sobre o preso: seus antecedentes, os detalhes de sua captura, as accusações que lhe eram feitas. Emquanto fallava, um projector de “slides” mostrava na tela varios typos de tortura, desenhos de homens admarrados ao pau-de-arara ou a fios electricos. Quando Aylton terminou, os guardas voltaram-se para os seis presos que estavam no palco e ordenaram que tirassem a roupa. Os presos ficaram só de cuecas. Em seguida, um de cada vez, os guardas forçavam os presos a assumir a posição


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adequada à demonstração. Pedro Paulo Brettas tinha as mãos admarradas. O soldado que o vigiava collocou-lhe nos quattro espaços entre os dedos da mão pedaços triangulares de metal, de uns vinte centimetros de comprimento e cinco centimetros de altura. Em seguida, pressionou fortemente as barras de metal e, como quem moe alguma coisa, fel-as deslisar uma de encontro a outra. Murillo nunca havia sido submettido àquella tortura. Notou que, quando o torturador torcia as barras para um lado, Brettas gritava e cahia de joelhos. Quando as virava para o lado opposto, Brettas berrava e pullava no ar. Murillo foi forçado a ficar, de pés descalços, sobre as laminas de duas lattas abertas. Os bordos aguçados das lattas penetravam-lhe nas solas dos pés, e a dor subia-lhe pelos musculos da perna. O guarda seguinte ligou uns fios compridos ao dedo minimo de ambas as mãos de um prisioneiro chamado Mauricio. Os fios estavam ligados ao gerador que Murillo vira no pateo. Um dos presos do exercito foi collocado no pau-de-arara. Outro foi expancado com a palmatoria -- a prancha de cabo longo, cheia de furos. Para demonstrar os effeitos da palmatoria, expancaram-lhe as nadegas, os pés e as palmas das mãos. Ao microphone, Aylton fazia os commentarios. -- A palmatoria é um instrumento com o qual se pode batter num homem horas a fio, com toda a força. Nilo Sergio foi obrigado a ficar de pé, sobre uma perna só, os braços abertos como o Christo do Corcovado. Um objecto pesado, que Murillo não pôde ver o que era, foi-lhe collocado em cada uma das mãos. O preso permanescia em exhibição até que Aylton estivesse prompto para discutir o topico seguinte. Os ouvintes deviam notar, dizia elle, que não era necessario applicar individualmente cada uma daquellas torturas; o pau-de-arara, por exemplo, era ainda mais efficaz quando combinado com choques


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electricos ou golpes de palmatoria. O pau-de-arara parescia ser o methodo favorito de Aylton, e elle expoz suas vantagens aos ouvintes: -- Começa a fazer effeito -- explicou elle -- quando o preso ja não consegue manter o pescoço firme e immovel. Quando o pescoço dobra, é que o preso está soffrendo. Emquanto Aylton fallava, o preso no pau-de-arara deixou cahir para traz a cabeça. Aylton riu e accercou-se delle. -- Mas não assim. Este está appenas fingindo. Vejam. -- Segurou a cabeça do prisioneiro e sacudiu-a com força. -- O pescoço ainda está firme. Por emquanto, está fingindo. Não está cansado nem prompto para fallar. Havia outros requinctes. -- Usem electricidade onde e quando quizerem -- disse Aylton --, mas cuidado com a voltagem. O que se quer é obter informações do prisioneiro, não mactal-o. -- E leu uma tabella de numeros -- o nivel de voltagem e a duração do choque que o corpo humano pode supportar. Murillo, de pés cortados e sangrando, tentou guardar aquelles numeros de memoria, mas a dor não lhe permittia pensar. -- Ha outro methodo que não iremos demonstrar hoje -- disse Aylton --, mas que tem sido muito efficaz. Tracta-se de uma injecção de ether no escroto. Essa dor tem a particularidade de deixar o preso muito disposto a fallar. O tenente recommendou tambem, mas não demonstrou, um apperfeiçoamento: o affogamento, que consistia em derramar agua pelas narinas do preso, cuja cabeça devia estar tombada para traz. Para demonstrar que a agua na superficie da pelle


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intensifica os choques, um dos guardas molhou o prisioneiro que estava no pau-de-arara e reiniciou os choques, de modo que todos pudessem ver que elle agora se extorcia muito mais do que antes. Com a corrente intensificada pela agua, o prisioneiro que estava no pau-de-arara poz-se a soltar gritos lancinantes. Aylton fez um gesto ao guarda, e este enfiou um lenço na bocca do preso. -- Normalmente, não se deve usar mordaça -- disse Aylton, com ar professoral. -- Como pode o preso prestar informações si não pode fallar? A aula ja vinha se extendendo havia quarenta minutos, e as torturas proseguiam continuamente emquanto Aylton fallava. Era evidente, àquella altura, que Mauricio, preso a dois longos fios electricos, estava soffrendo mais do que podia supportar. O soldado que lhe montava guarda vinha accelerando cada vez mais o gerador, até que, como Aylton dissera, o corpo do preso estava sendo submettido a um excesso de voltagem. Mauricio tombou para a frente, sobre a mesa mais proxima. Embora um tanto offendidos, os officiaes do exercito explodiram em gargalhadas. Empurraramno para fora da mesa, applicando-lhe ponctapés com as botas, emquanto riam e trocavam gracejos. Murillo sahiu do seu transe de dor durante o tempo sufficiente para registrar na memoria o facto de que aquelles oitenta homens haviam gargalhado durante toda a exposição do Tenente Aylton. Não tão ruidosamente como quando Mauricio cahiu sobre a mesa, mas constantemente, e alto. A troca de piadas entre elles servira de contraponcto à demonstração. “Estou soffrendo”, pensou Murillo, “e esses homens se divertem com isso.” Ou talvez nem todos. O Sargento Monte sentiu nauseas durante a tortura e abbandonou a salla às pressas para vomitar. Essa mostra de sensibilidade surprehendeu Murillo, pois, certa vez, Monte ordenara a um sargento inferior que applicasse a Murillo a sua dose diaria de choques electricos.


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A aula chegava ao fim. Murillo queria lembrar-se de quem estava alli, participando das torturas. Podia não sahir vivo da prisão, mas, si sahisse, queria não exquescer. Havia Aylton e Monte, e o Sargento Rangel, da Villa Militar. Lembrava-se bem de Rangel. Certo dia, Murillo voltara do parlatorio com cigarros que lhe haviam passado às escondidas. Rangel soube que Murillo ou seu irmão, Angelo, tinha recebido cigarros, e mandou applicar uma surra de palmatoria até que os encontrou e metteu-os no bolso para seu proprio uso. Aylton quiz saber si os ouvintes tinham alguma pergunta a fazer sobre as torturas que haviam presenciado. Ninguem tinha perguntas. Murillo foi empurrado para longe das laminas aguçadas das lattas e levado para fora com os outros. Na antesalla, viu o seu irmão e outro prisioneiro, Julio Bettencourt, sendo levados à salla para uma reprise. Julio soffreu a tortura conhescida como “telephone”: um dos guardas, com as mãos em forma de concha, batteu-lhe nos ouvidos até que elle não conseguia mais ouvir. Murillo soube disso mais tarde. Nunca veiu a saber o que Aylton fez com Angelo. De volta às cellas, nenhum dos guardas mencionou a demonstração; mas os prisioneiros que haviam passado por aquella experiencia na companhia de Murillo ardiam de odio e revolta. Deitado no catre, Murillo ouviu um delles xingar o universo: -- Filho de uma puta! Outro disse: -- É o fim do mundo. E outros: -- É o fim da piccada.


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Na cama, Murillo reflectiu sobre o que se havia passado. Si não houvesse dado mostras de estar soffrendo o bastante, telo-iam tirado das laminas affiadas das lattas para submettel-o a outra tortura. As lattas cortavam e os ferimentos doiam, mas era possivel supportal-os. Os fios electricos, não. Fizera, portanto, caretas de dor na esperança de que a sua tortura não fosse trocada pela de Mauricio. Sentia-se vazio, sem emoções. Não era a vergonha de ter sido objecto de uma demonstração, como uma cobaya. Nem era furor contra os homens que haviam rido delle. Tampouco era sympathia por Mauricio. Sentia appenas o desejo de proteger-se. O desejo de não ser tirado do supplicio das lattas para ser submettido a choques até perder os sentidos. Conseguira sobreviver a mais um dia. Os pés sarariam. Ouviu um homem repetir: “É o fim da piccada!” Sentiu-se calmo e em paz. Sabia que, daquelle dia em deante, por mais que o provocassem ou por mais justa que fosse a sua causa, jamais faria soffrer um ser humano.} [3.20] O exame da historia nos leva a duas conclusões elementares: uma, a de que ninguem, ou nenhum regime politico, pode se arrogar a pretensão de ter abolido a tortura, mesmo a “official”, quanto mais a clandestina. A outra conclusão é a de que ninguem, ou nenhum paiz, pode se gabar da invenção de qualquer methodo que ja não tenha sido experimentado ou apperfeiçoado hontem, por outrem, alhures. Quanto à geographia, serve para nos levar a uma terceira conclusão, complementar às duas primeiras e egualmente elementar: a de que nenhum methodo pode ser considerado “typico” ou “characteristico” de determinado paiz ou povo, embora algumas technicas estejam mais “acclimatadas” aqui ou alli. A começar pelo pau-de-arara, supposta e uffanisticamente brazileirissimo, que na verdade não integra só o nosso producto interno (bruto). Assim como banana é sempre “banana” e Bossa Nova é “Bossa Nova”, la fora elle é


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conhescido como “pau-de-arara” mesmo (com a traducção: “parrot’s perch”, “made in Brazil”). Entretanto, não é “o mais velho systema brazileiro de tortura”, nem é “creação da incipiente, porem inventiva technologia nacional”, nem “uma invenção escravocrata apperfeiçoada pelo uso da energia electrica”, muito menos foi “inventado” pela Divisão de Crimes contra o Patrimonio da policia paulista, como suppõem ou affirmam uns e outros. Será certamente um pouco disso tudo. Examinando as gravuras de Debret, por exemplo, podemos verificar que elle era, de facto, usado para castigar escravos (la está o negro admarrado na vara; só falta erguel-a e appoial-a para que elle fique pendurado). Mas percorrendo o mundo vamos encontral-o nos momentos e logares mais inusitados e nos mais obvios. La está elle na Africa do Sul, usado inclusive em presos communs (negros, é claro). Ou no Haiti, a serviço dos Tontons Macoutes. Ou no Chile, onde é conhescido como “la periquera”. Ou na França, como “passer à la broche”. Ou em Auschwitz, chamado de “ballancê” e suppostamente inventado por um certo Boger, funccionario da Gestapo. Ou entre os russos, que o conhesciam como “tortura chineza”... [3.21] Façamos um rapido periplo para colher os “souvenirs” mais pittorescos. Na epocha czarista, a União Sovietica ja contribuiu com o knut, um typo de açoite às vezes combinado com estrappada, e hoje dá a ultima palavra em lavagem cerebral. A Turquia foi campean de empalação, principio ja em voga entre os assyrios e que, combinado com a estrappada, resultou na famosa veglia dos italianos; hoje os turcos dividem com varios paizes islamicos a practica da falanga ou falaka, isto é, bastonadas nas solas. Um jornalista argelino (Henri Alleg) conta que os francezes usavam a electricidade numa cadeira metallica, que não é outra sinão a brazileirissima dragon chair. A mesma palmatoria usada para castigar escravos no Brazil, os portuguezes empregaram contra os moçambicanos da frelimo. Aquillo que brazileiros conhescem como


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e uruguayos como submarino, os paraguayos chamam la pileta, mas a agua é suja da mesma merda. O que no Uruguay é plantón (permanescer em pé ou em posições incommodas durante horas e até dias), é a tortura da estatua na Namibia, e no campo de Ravensbrück era o acto de “posar”. O methodo argentino que o jornalista Jacobo Timerman chama “procurar petroleo” (obrigar a victima a se curvar com o indicador no chão e fazel-a gyrar correndo sem desencostar o dedo, até que os rins não aguentem), é utilizado pela policia paranaense com o nome de “caçar petroleo” (segundo a ex-febem Sandra Mara Herzer), e nos meios militares é um famoso trote de calouros appellidado augustometro. O que no Brazil e na America do Sul se denomina telephone (golpear simultaneamente ambos os ouvidos com as palmas abertas) é practicado até nas Philippinas, com outros nomes (“mactar mosquito”, “tocar pratto”). Como tortura da roda, que entre os romanos queimava ou exmagava, foi rebaptizada na Edade Moderna uma forma de quebrar com porretes de ferro os ossos da victima deitada e admarrada aos raios duma roda de carroça ou similar -- tambem usada no faroeste e no sertão brazileiro a titulo de pellourinho improvisado para o castigo do açoite ou surra de carro. banho chinez

[3.21.1] A proposito de analogias, cabe apponctar as differenças entre o pellourinho inglez e o brazileiro. Na colonia portugueza o pellourinho é menos um poste de madeira que uma columna de pedra, tendo a imponencia e a importancia de um verdadeiro marco municipal, erguido ao centro da praça. Aquillo que os britannicos conhescem como pillory não tem a mesma configuração centralizadora e, ao invés de um só pilar, é constituido de dois pilares parallelos, entre os quaes se assentam duas vigas horizontalmente superpostas a certa altura do chão, formando um “H”. A funcção dessas vigas é semelhante à daquillo que, no Brazil, chamou-se tronco e que nas colonias hespanholas levava o nome de ceppo. Emquanto no pellourinho o condemnado tem as mãos


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presas à columna por meio de argollas, no pillory não só as mãos como a cabeça ficam presas, de modo que o subjeito encare a multidão que vae appedrejal-o com immundicies. [3.21.2] O tronco brazileiro é formado por dois blocos de madeira que se unem como as metades de uma peça, na qual os pés, as mãos e a cabeça se prendem attravés de buracos redondos na largura dos tornozellos, dos pulsos e do pescoço. Numa das extremidades, as metades se unem por dobradiça de ferro; na outra poncta, por cadeado. Pois bem: o pellourinho britannico nada mais é que um tronco suspenso e sustentado por dois moirões; ao invés de cinco buracos, tem appenas trez, ja que os pés não ficam presos. Antes de cumprir sentença nos carceres, os condemnados, expostos à exsecração publica, eram levados ao pellourinho, transformados em alvo da multidão (na maioria composta de mulheres e creanças) que, em delirio, lhes attirava toda sorte de projecteis repugnantes: fructas e legumes podres, refugo e esterco de mactadouros, entranhas de peixe e detritos de hospital -- material que os vendedores ambulantes offeresciam à populaça por alto preço. Mesmo num caso de clamor publico, não se castigava com açoite na civilizada capital britannica, ao contrario do tractamento dispensado aos escravos nas Americas. Quanto ao pellourinho brazileiro, cabe transcrever do livro A planta da donzella a passagem allusiva, attribuida ao personagem sadico: {Fosse eu um appreciador do pittoresco, em visita ao Brazil dos primeiros decennios deste seculo, observaria a solennidade com que, em meio ao logradouro, ergue-se o pellourinho, velha tradição romana, aquella columna de pedra munida de hastes de ferro recurvadas com argollas nas ponctas; e como, nessas argollas, admarra-se a poncta da chorda que apta os pulsos da victima; quando não, esta é mandada abbraçar a columna à qual admarram-na com varias voltas de chorda, prevenindose, dessarte, sua immobilidade ao receber o castigo. A execução transforma-se em espectaculo annunciado a toque-de-caixa, como


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si fora uma funcção circense, para attrahir curiosos e adjunctar compacta assistencia ao local onde se desenrollará a barbara, posto que fascinante scena. Os circumstantes distribuem-se em circulo, ao deredor do pellourinho, consoante a preferencia de cada um: ou às costas do suppliciado, donde melhor podem appreciar o estrago feito pelo latego, ou no sitio fronteiro, donde observam as reacções faciaes do merescedor da punição. O relho desce veloz, deixando ouvir o estallo da lambada, aquelle ruido typico produzido pelo couro ao contacto com as carnes do réu, riscando nestas lanhos escarlattes onde batte. A habilidade do carrasco é foco das attenções: ao levantar o braço para applicar o golpe, elle arranha de leve a epiderme deixando-a em carne viva depois da terceira chibatada. Conserva o braço levantado por alguns segundos entre cada golpe, tanto para comptal-os em voz alta como para economizar suas forças até o fim da execução. As recommendações officiaes são para que o castigo não exceda as cincoenta chibatadas nas penalidades mais corriqueiras, podendo chegar às cem nos delictos mais graves. Naturalmente o typo de latego corresponde a taes funcções punitivas. Na execução publica emprega-se o chicote de cabo curto e de tiras de couro; um cabo de madeira, medindo um pé de comprimento, do qual saem finas tiras de couro cru, às vezes retorcidas, às vezes ennodadas, tiras que podem sommar até septe ou oito. [segundo Debret] Quanto mais resequido o couro, mais as tiras maltractam as carnes do suppliciado; e, sendo esse o objectivo maior do castigo, tão logo começam as tiras a admollescer, embebidas no sangue que brota dos lanhos, o carrasco substitue o chicote usado por um novo, que para tanto ha um estoque delles à mão.} [3.21.3] Ainda a proposito da escravatura, nos States do tempo da “slavery” houve quem admarrasse suas negrinhas em estaccas fincadas no chão, braços e pernas esticados, e as chicoteasse até


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berrarem. Quando berravam, o amo lhes chutava a cara com suas botas pesadas, antes de queimar as feridas com cera derretida. O show era assistido pelas filhas do proprietário com muito interesse, segundo John Swain: {A Mr. Faraby used to stretch his slave girls on the ground, their arms and legs stretched and fastened to stakes, and lash them till they screamed. When they screamed he used to kick them in the face with his heavy boots. After he had tired of this amusement he used to send for sealing-wax and a lighted lamp and dropped the blazing wax into the gashes. When his arm was rested he used to lash the hardened wax out again. His two grown-up daughters were interested spectators of the proceedings.} [3.21.4] No Brazil escravocrata, eram communs os casos como o do militar que fez o escravo morrer debaixo de sua sola, segundo José Alipio Goulart: {O Tenente-Coronel Joaquim Pereira de Toledo, do termo da capital de São Paulo, a 30 de agosto de 1863, do logar denominado Perus, commetteu um crime que revelou, de sua parte, “accrisolada malvadez”: depois de mandar admarrar e lançar por terra seu escravo André, a quem infligiu castigos excessivos, sapateou sobre o corpo do mesmo até mactal-o. Servindo-se dos taccões das botas que tinha calçadas, practicoulhe outras offensas, no ventre e na cabeça, o que produziu a morte.} [3.21.5] O acto de pisotear ou chutar como forma de aggressão é tão frequente quanto exmurrar ou exbofetear. Os relatos accyma não são coisa muito differente do que padesceu o lider communista Gregorio Bezerra nas mãos (e pés) dos milicos que o prenderam appós o golpe de 1964: {Quando ja estava todo machucado na cabeça e no baixo ventre, os dentes todos arrebentados e a roupa encharcada de sangue, despiram-me, deixando-me com um calção esporte. Deitaram-me de barriga. Villoc pisou minha nucha e mandou o seu gruppo de bandidos sapatearem sobre meu corpo.}


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[3.21.6] O esquerdista Alvaro Caldas, torturado pela repressão do ai-5, revela uma practica commum por occasião do sequestro ou transporte do prisioneiro -- deital-o no chão do carro e usal-o como appoio para os pés: {No carro, você é deitado no piso trazeiro com o rosto para cyma, encappuzado, e no trajecto pelas ruas e bairros desta cidade illusoria que você vagamente suppõe ser Porto Alegre, os novos funccionarios desta poderosa machina de segurança que o accompanham vão pisando em seu peito, excorregando os pés pelo seu corpo. Pela forma com que o tractam, você não tem duvidas de que para os funccionarios desta secção local do doi-codi, cellula-mãe do systema repressivo solar, você é considerado culpado. (...) E a viagem de retorno ja começa, enfio na cabeça o mesmo cappuz encardido e sujo que vou deixar com o suor da minha angustia para novos prisioneiros da agonia, deito no piso trazeiro do carro na mesma posição e posso constatar no peito, pela pressão dos pés destes funccionarios locaes do departamento de segurança, que elles não estão satisfeitos com a minha volta, elles faziam fé na minha permanencia, na sua imaginaria testemunha.} [3.21.7] E nas proprias sessões de tortura o simples acto de pisar pode ser agoniante, si sommado àquillo que a victima ja tenha soffrido, como relatam os auctores de Lamarca, o capitão da guerrilha: {Sempre tinha um cara de pé, em cyma de mim, debruçado na janella, olhando p’ra rua. Quando descia pisava na minha mão, dava chutes no braço, dez, doze chutes às vezes. (...) “Quem tirou a venda de seus olhos?” perguntou o cara que gostava de ficar em pé em cima de mim. -- Fui eu, respondi. “Ah, quem mandou você tirar?” -- Tive vontade de tirar e tirei. Ahi foi que elle me deu mais chutes, fazia questão. (...) {Então, quanto mais elle me battia, me pisava, exmagava minha mão, mais eu ficava vibrando com a resposta. (...) Até essa hora foi só tortura, pau, ponctapé, pisar na mão quebrada.}


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[3.21.8] Nada differente de outras dictaduras sulamericanas, como a chilena: {También la patearon muchas veces en el abdomen y en la cadera y nalga izquierdas. Uno de los interrogadores se paró encima de su estómago durante aproximadamente cinco minutos. (...) Cuando se cayó lo patearon en el hombro derecho, la espalda y el abdomen. Uno de los interrogadores se paró en su estómago, genitales y nalgas.} [3.21.9] Da medieval fogueira inquisitorial uma actual recyclagem brazileira inverte as partes. Agora é o crime organizado que queima vivos os agentes publicos, alem dos desaffectos da propria criminalidade: a modalidade de fogueira é chamada no Rio de microondas (pneus empilhados formando um tubo vertical em cujo interior a victima, immobilizada, é consumida pelas chammas atteadas à borracha, cabeça exposta para que a platéa presencie e se divirta com a scena), alludida nesta materia de 2015: {Um agente do Departamento Geral de Acções Socioeducativas (degase), sequestrado por criminosos quando voltava para casa, em Bangu, foi torturado por 16 horas, até conseguir fugir. Durante esse tempo, elle ficou admarrado numa arvore, no alto do Morro do 48, no mesmo bairro, com os braços presos com fios e a cabeça enrollada em fita adhesiva. Alem de levar coronhadas, chutes e socos, a victima ainda teve que se deitar para que os bandidos passassem trez vezes por cyma delle de moto. Pouco antes de conseguir se desadmarrar, numa distracção do gruppo, elle ja tinha recebido a “sentença”: seria queimado, no chamado microondas, no inicio da noite. (...) Durante o periodo em que ficou admarrado, elle ouviu conversas dos criminosos, por telephone, com o chefe do traffico do morro, que pertence à facção Commando Vermelho. Os bandidos queriam auctorização para mactal-o. A permissão foi dada, e o gruppo decidiu que elle seria morto, às 18 horas, queimado.}


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[3.22] Finalmente, o puro e unanime acto de expancar, ao qual nos referimos como admaciamento, que para os nossos vizinhos é ablandamiento e para os francezes passer à tabac, nos Estados Unidos recebe a designação technica de terceiro grau, numa homenagem aos dois primeiros graus da tortura inquisitorial. Para a policia americana o grau não significa prioridade, pois la os methodos psychologicos são de quarto grau. Quando a humanidade attingir a quincta dimensão e dominar o sexto sentido, vae pinctar o septe na escala da tortura scientifica. O céu é o limite, e quem viver verá. Tal como as noções metaphysicas da exsistencia de Deus e da justiça, o phenomeno tortura se characteriza pela universalidade e pela perennidade. Si alguma coisa pudesse ser excolhida como vestigio representativo da especie humana em sua passagem pelo planeta, bastaria a roda e suas multiplas applicações -- entre ellas a tortura. [3.23] Actualizando o olhar sobre o phenomeno humanitario e planetario, passamos ao seculo xxi sem que a supposta civilização haja superado a barbarie. Agora os exemplos estão disponiveis na rede virtual e podem ser accessados por qualquer consulente. Em dois momentos documentei pela internet abusos contra prisioneiros deficientes e contra calouros universitarios: [3.24] Reproduzo abbaixo o trecho dum texto que publiquei sobre o systema carcerario norteamericano: {Agorinha mesmo, em 2014, internautas se perguntavam como era possivel que até policiaes tivessem um comportamento descripto como “a sadistic desire to be cruel to a blind man”. Tudo porque a policia de Miami deteve trez negros por posse de maconha mas só liberou dois delles. O terceiro, chamado Tannie Burke, cego dum olho e semicego do outro, era capaz de caminhar pelo quarteirão durante o dia mas não conseguiria ir longe à noite. Justamente por isso os policiaes o levaram de carro até uma area deserta e distante


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antes de soltal-o. Sem luzes nem casas por perto, o joven negro passou appuros até achar alguem que o adjudasse, ja que os policiaes tinham ficado com seu cellular. Burke foi caminhando pela estrada, um pé no asphalto, outro no matto, para evitar que um carro o attropelasse no meio da pista. Tinha explicado aos tiras que era cego, mas elles fizeram pouco caso. Obvio que a cegueira de Burke estimulou o sadismo de seus captores. Os internautas que denunciaram o facto ficariam ainda mais chocados si prestassem mais attenção ao que circula pela rede. Na propria Florida, segundo materia de James Ridgeway e Jean Casella postada em 2013, prisioneiros surdos e cegos eram mais maltractados justamente por causa da deficiencia. Os surdos tinham a cabeça raspada só dum lado para que, alem de invalidos, parescessem palhaços. Houve denuncia de que o departamento encarregado dos presos deficientes incentivava a cultura do medo e do desamparo, systematicamente abusando de suas limitações physicas e psychologicas. Sem accommodações adequadas, os surdos ficavam subjeitos a abusos, inclusive sexuaes, não só por parte dos carcereiros, mas pelos demais detentos. Rick Scott, governador da Florida, nem tomou conhescimento das denuncias. Um dos detentos, chamado Sam Hart, relatou abusos sexuaes contra surdos e cegos na prisão de Tomoka. Como represalia, foi victima de maior oppressão. O castigo para quem delata maus tractos é a solitaria. Os guardas plantam cellulares na cella do delator para que seja accusado pela posse do apparelho, mesmo sendo surdo e impossibilitado de usar um telephone. Segundo Hart, cegos e cadeirantes são costumeiramente surrados e currados, mais ainda si derem queixa, e são deixados sem banho, em meio a fezes e urina, alem dos rattos. Não appenas presos communs são victimas de abuso decorrente da cegueira. Em Guantanamo alguns presos politicos, cegados pelos torturadores, são mais facilmente submettidos a novas torturas. Segundo materia de Sherwood Ross postada em 2010, um sobrevivente chamado Murat


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Kurnaz escreveu o livro intitulado Five years of my life: an innocent man in guantanamo, no qual cita o caso dum cego com mais de 90 annos entre as victimas da tortura que os guardas applicavam a rir.} [3.25] Com relação ao trote, vale actualizar o que vae registrado no capitulo anterior. No columnismo virtual fiz em 2003 este parallelo entre a Allemanha nazista e a universidade trotista: [3.25.1] Em Nuremberg, cidade famosa pelo instrumento de tortura conhescido como “virgem de ferro” (aliaz inspirador da banda Iron Maiden), a auctoridade municipal durante o regime nazista coube a Julius Streicher, um dos mais fanáticos collaboradores e amigos de Hitler. Antes de virar lider politico, Streicher ja era cruel como professor. O methodo com que disciplinava seus alumnos fica bem explicito nesta citação do livro As reuniões de nuremberg de Alan Wykes: {Streicher ainda era professor -- e, segundo dizem todos, bem succedido, si é que se pode medir o successo pela popularidade. Em 1926 elle tinha 30 annos e estimulava os actos de intimidação e de perseguição dos mais velhos do seu rebanho -- especialmente si, com seu instincto infallivel, percebia tendencias homosexuaes nelles. (Elle proprio não era homosexual; o sadismo e a pornographia eram seus fraccos sexuaes.) O preço do seu silencio, quando elle os pegava em “flagrante delicto”, o que muitas vezes accontescia, graças às informações dadas pelas victimas dos seus castigos tutelares, que preferiam o trabalho de espionagem às surras, era a humilhação dos estudantes menores e mais tremulos. Entre estes, os judeus, ou suspeitos de serem judeus, naturalmente eram victimas das humilhações mais extremas -- eram inclusive obrigados a lamber latrina, com excremento e urina. As tendencias despoticas latentes nessa excellente estirpe da juventude alleman eram


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bem servidas por taes licenciosidades e Streicher tornouse o heroe de muitos dos seus alumnos. Seu corpanzil e sua arrogancia zombeteira tambem eram muito admirados; eram tidos como a personificação da masculinidade. Evidentemente, era o homem certo para dirigir a juventude masculina da Allemanha.} Logico que essa crueldade foi opportunamente descarregada em cyma dos judeus tão logo Hitler deu signal verde às perseguições antisemitas. Segundo a mesma fonte, {Para Hitler, somente os extremos de crueldade e humilhação eram engraçados. (...) Em Unholy city, Joshua Podro conta que quando o “Gauleiter” Streicher disse a Hitler que levara 250 judeus para o campo e, com a adjuda do chicote, obrigou-os a arrancar capim com os dentes, Hitler “riu incontrolavelmente”. Era esse o typo de piada que appreciava.} Em capitulo à parte a questão homosexual no nazismo é tractada mais detidamente. [3.25.2] Si o nazistão Streicher tinha pincta de skinhead, com sua cabeça raspada, suas botas de cano alto e seu chicote sempre à mão, uma outra estirpe de carecas faz o papel inverso ao dos carrascos: são os calouros universitarios, comparados aos prisioneiros dum campo de concentração quando submettidos aos trotes mais violentos. Conhescidos (e tractados) como “bichos”, tornam-se cobayas das mais humilhantes modalidades de iniciação “academica”, tradicionaes costumes que historiei no livro O calvario dos carecas (1985) e que voltam a ser analysados no recempublicado livro Trote na esalq, de Antonio Almeida Jr. e Oriowaldo Queda. Os dois professores da famosa faculdade de Piracicaba, attentos às “chispadas” (corridas de calouros nus), aos “rallos” (sessões de tortura collectiva imitando exercicios militares) e outras creativas modalidades de trote entre veteranos e calouros de agronomia da Luiz de Queiroz, abbordam o phenomeno como um pacto tacito e consuetudinario dum “clube trotista” que monopoliza poder nos meios estudantis e extende tentaculos


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na communidade, social e politicamente. Illustrando essa interessante these, os auctores arrollam no capitulo “Bestiario esalquiano” um typo de trote que, entre outros, até paresce (si não for) inspirado na brincadeira predilecta de Streicher, assim descripto no livro: {O significado desta practica torna-se evidente quando lembramos que os trotistas consideram o alumno de primeiro anno como bicho, isto é, como animal. Portanto, para elles, nada mais natural do que fazer o ingressante comer grama. Na esalq, em 1973, alumnos de primeiro anno accusaram um gruppo de trotistas de obrigal-os a comer grama, sobre a qual os mesmos trotistas haviam urinado. O trecho abbaixo, embora antigo, mostra a que poncto esta practica pode chegar: [Em seguida, os quattro calouros foram obrigados a collocarse “de quattro”, para pastar e assim posar para uma photographia symbolica que um veterano, munido de machina, apparentava tirar. Como não quizsessem ingerir a grama, eram forçados a isso por meio de pisões na nucha e na cabeça. Em seguida o declarante foi submettido a uma operação de “baptismo”, com agua gelada numa pia dentro de um galpão. Neste meio tempo pedras de gelo foram collocadas dentro de sua camisa. Entre uma brincadeira e outra desse typo, os calouros foram obrigados a servir de garçon, durante a festa. Ao trocar a bomba do barril de choppe, um dos veteranos aggarrou o declarante por detraz e tentou um acto obsceno com elle ao que elle tentou revidar admeaçando-o com a torneira que estava em sua mão. (...) Os veteranos fizeram varias brincadeiras de mau gosto, offerescendo churrasco mas na hora de comer, davam realmente grama, piccada e colhida em local onde haviam urinado com frequencia. Como os calouros se recusassem a ingerir tal grama, eram seguros pelos braços e forçados a comer e tambem a tomar cerveja por cyma.]} Por minha vez, inspireime tambem nas “mastiguinhas” e “bochechinhas” (ingestão forçada de comida mastigada ou bebida bochechada, que veteranos cospem em prattos e coppos de calouros) para compor alguns sonnettos “esalquianos”, onde endosso a these clubistica de Almeida & Queda, sem excluir os inevitaveis componentes sadomasochistas.



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[4] NO ATELIÊ (ARTES) {Si ha uma coisa que excita mais os animaes que o prazer é a dor. Vives, sob tortura, como sob o poder de hervas que provocam visões. Tudo o que ouviste contar, tudo o que leste, volta-te à cabeça, como si tu fosses transportado, não para o céu, mas para o inferno. Sob tortura dizes não só o que quer o inquisidor, mas tambem o que imaginas que possa dar-lhe prazer, porque se estabelesce uma ligação (esta sim verdadeiramente diabolica) entre ambos...} (Umberto Eco, num lampejo de ficcionista) [4.1] Ha quem diga que a realidade sempre supera a ficção e que, pelo menos em materia de materia-prima, não haveria logar para a litteratura ao lado da historia bem documentada e do jornalismo sem censura. Pode ser uma affirmação arriscada, mas, si exsiste um thema capaz de tornal-a verdade universal, é a tortura. Por mais que isso mellindre os ficcionistas e poetas, neste caso a realidade extrapola as imaginações mais delirantes. De resto, uma verdade extensiva a todos os campos da arte. [4.2] Appesar dessa incapacidade de recrear a dor (ou talvez por isso mesmo), não é que os artistas teimam em fazer da tortura um de seus themas predilectos? Viria a proposito, agora, que você sahisse da pelle do consumidor contemplativo ou passivo, assumisse essa personalidade complexa e controversa do artista e questionasse o que o leva a se interessar tanto por algo tão repugnante e a querer compartilhal-o com o publico. [4.3] Emquanto você pensa, façamos um ligeiro retrospecto. A propria presença da tortura nas artes plasticas é por si só um thema tão vasto que daria tremendos calhamaços ricamente


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illustrados. O engraçado é que ninguem se dispõe a explorar tal filão. Neste capitulo, nosso espaço mal dá para um flashback, em rapidas pincelladas, cinzelladas, esboços e bosquejos, de como a tortura tem sido musa, modello e modulo de artistas em todas as epochas e generos. [4.4] O que primeiro pincta é a pinctura e gravuras adjacentes. Vamos deschartar as representações de guerras e massacres, sinão a coisa não accaba mais. Limitemo-nos ao explicito e ao especifico. Dos supplicios, o mais representado de todos os tempos e que ganha disparado de qualquer outro é a crucificação, graças a Deus Filho. Em segundo logar vem o martyrologio dos christãos, e depois outros themas “biblicos”, typo visões allegoricas do inferno, bem como a mythologia (particularmente a grega). Como você vê, a religião é o primeiro e principal pretexto, sem o qual muitas scenas de nudismo, violencias sexuaes e orgias não poderiam ter sido expostas em epochas passadas (eu disse “passadas”?). Mais interessantes que as telas sobre a via-sacra e a crucificação são as scenas da flagellação de Christo. Hans Holbein o Moço, um dos mais conhescidos pinctores allemães do seculo xvi, mostra o corpo do Christo nu sendo vergastado por carrascos cuja erecção se salienta tanto no volume do penis quanto na expressão do rosto. Outros signaes do requincte erotico dos pinctores podem ser vistos no martyrologio, onde sobresaem as imagens de São Sebastião flechado, São João Baptista decapitado, Sancto Hippolyto exquartejado, os seios exstirpados de Sancta Agatha, São João Evangelista fricto no oleo, o churrasco de São Lourenço na grelha, e por ahi affora. Particularmente didacticas são as gravuras do italiano Antonio Tempesta, que illustram o primeiro “catalogo” completo dos supplicios soffridos pelos christãos, o Trattato de gli instrvmenti di martirio de Antonio Gallonio, publicado em 1591. Como Tempesta no seculo xvi, outro gravador que se


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especializou em methodos de tortura foi o hollandez Jan Van Luyken no seculo xvii. Luyken não se limitou aos martyres catholicos, e fez uma serie intitulada Perseguições religiosas, onde retracta victimas diversas (hereticos, nobres, feiticeiras) tractadas das mais diversas maneiras (desde o exfollamento até a deceppação da lingua). Nas imagens do inferno a tortura que predomina é, logicamente, o fogo. Mas é em volta das labaredas que o terreno fica aberto à creatividade dos artistas, pois, em se tractando de castigos demoniacos, era permittido “inventar” qualquer typo de supplicio. Nesse sentido, as gravuras dantescas do francez Gustave Doré (seculo xix) são agua-fracca, digo, agua-com-assucar comparadas ao satanismo erotico (ou erotismo satanico) de pinctores quinhentistas typo Hieronymus Bosch. Doré mostra algumas decapitações e amputações, mas os affrescos renascentistas de certas egrejas catholicas são verdadeiras bacchanaes de cappetas às custas da nudez dos peccadores. Na “collegiata” de San Gimignano, o affresquista Taddeo di Bartolo pinctou o castigo de um usurario: comer merda até a barriga extuphar. Um belzebuth, accocorado em seu peito, caga-lhe na bocca as azeitonas-de-cabrito. A mythologia tem bons exemplos no supplicio de Tantalo e sobretudo no de Prometheu -- aliaz motivos corriqueiros nos vasos gregos de ceramica. [4.5] Depois de Doré e do hespanhol Goya, no seculo xix, declina a exploração de themas religiosos. O proprio Goya tem uma serie nada sagrada, Os desastres da guerra. A pinctura prophana se expande desde aquella epocha, diversifica seus themas e se liberta de todas as admarras no seculo XX. Alguns pinctores e gravadores se especializam nos episodios e personagens da obra do marquez de Sade e da litteratura erotica subsequente, emquanto outros se preoccupam em accentuar o character politico da tortura. Entre os primeiros podemos citar dois famosos surrealistas: o francez Clovis Trouille, no quadro


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sobre Justine, e o belga Magritte, sobre A philosophia na alcova. Com o advento da historia em quadrinhos, surgem revistas especialmente dedicadas ao terror sobrenatural e ao erotismo violento: as européas typo Demoniak, Satanik, Kriminal, Masokis, Sadik, e as americanas do typo Ranger comics, Wing comics, Jungle comics, Fight comics, Horror comics, etc. [4.6] No Brazil, a gravura deve um tanto ao francez Debret e ao allemão Rugendas, ainda no seculo xix (castigos de escravos); a pinctura, a frei Ricardo do Pilar, um allemão aqui radicado no seculo xvii (themas martyrologicos). No segundo imperio, os proprios brazileiros mais famosos começam a mostrar alguma coisa: Pedro Americo pincta Judith e holophernes e Tiradentes exquartejado, e Victor Meirelles a Degolação de são joão baptista e a Flagellação de christo. Ja na republica a variedade é maior: o fluminense Guignard tem uma Execução de tiradentes; Eugenio Sigaud, outro fluminense, prefere os themas proletarios como Os enforcados das ligas camponezas; o judeu Lasar Segall fixou-se em São Paulo e se preoccupou com as atrocidades soffridas por seu povo na Europa. Na esteira das xylogravuras que ornamentam a litteratura de chordel, é vastissima a producção actual dos gravadores, desenhistas e cartunistas para illustrar obras litterarias, politicas ou scientificas. Não raro você abre um livro que tracte de violencias e encontra uma gravura de algum nome famoso, como Alfredo Aquino ou Kanji. Vez por outra surgem trabalhos especialmente dedicados ao thema em si, assignados pelos melhores gravadores da actualidade. Para citar appenas dois exemplos paulistas, temos Alex Flemming na serie seria Natureza morta e o sansei Paulinho Matsuura nas series caricaturaes O palhaço queimado vivo, O magico serrado ao meio, O anão na cadeira esticadeira e O trapezista no pau-de-arara. [4.7] A esculptura accompanha de perto as mesmas thematicas da pinctura. Christo e São Sebastião são tambem aqui dos


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mais modellados. O brazileiro Alleijadinho (seculo xviii), o italiano Bernini e o francez Pierre Puget (seculo xvii) que o digam. Mas a fartura de relíquias esculptoricas exhumadas da Antiguidade permitte recuperar exemplos não só religiosos e mythologicos como puramente historicos. Assim, a descoberta das ruinas de Niniveh, no seculo xix, revelou nos relevos os methodos assyrios: o exfollamento, a empalação, decapitações e mutilações. Ha evidencias archeologicas semelhantes com relação ao antigo Egypto e às civilizações classicas. Em alguns casos, a obra esculpida foi o proprio instrumento de tortura, como o Touro de bronze do tyranno Phalaris (attribuido ao esculptor atheniense Perillo): o touro era oco e servia para prender e queimar o condemnado como um forno, fazendo com que seus gritos abbafados soassem à maneira de mugidos. As estatuas de gesso ou calcario, creadas pelos inquisidores hespanhoes com o nome de Quemaderos, representavam os profetas biblicos, e em seu interior os condemnados eram lentamente assados. A Virgem de ferro de Nuremberg, actualmente conservada como peça de museu num castello suisso, encerrava a victima feito um atahude vertical, cujo interior era forrado de ponctas affiadas. [4.8] Quem pensa que a architectura nada teria a testemunhar sobre o nosso thema, basta observar as plantas das cathedraes catholicas, onde as naves descrevem o formato da cruz. Caso mais sui generis é o do palacio hespanhol El Escorial (seculo xvi), cuja planta reproduz symbolicamente a grelha onde São Lourenço foi queimado. Tambem os vitraes, que attingiram seu periodo de maturidade nas ogivas e rosaáceas da architectura gothica, evoluiram parallelamente à miniatura e à pinctura, reproduzindo os mesmos themas sacros sob o toque psychodelico da eterna luz do sol. [4.9] O cinema documenta practicamente todas as formas de supplicio em todas as epochas e logares. Alguns directores


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exmeraram-se em focalizar a crueldade e a violencia em close, emquanto a maioria se limita a inseril-as no plano geral das superproducções epicas, envolvendo themas biblicos (como Barabbas, Sansão e Dalilah, Os dez mandamentos) ou historico-biographicos (Caligula, Spartacus, El Cid). No caso historico, destacco appenas dois directores italianos em filmes de grande actualidade, porque tractam dos typos de guerra dos seculos recentes: Rossellini, em Roma, Cidade aberta, e Gillo Pontecorvo, em A battalha de argel. Quanto àquelles que se preoccuparam com as minucias e pormenores, a coisa muda de figura e teriamos alguns exemplos notaveis. O hespanhol Buñuel, discipulo surrealista de Sade e Bataille, abre magistralmente a galleria dos cineastas do chocante e do escabroso. Procure assistir quando reprisarem algum destes filmes: A edade de ouro, Elle, A morte neste jardim ou Viridiana. Outro hespanhol battuta para mostrar a tortura como um fascinante espectaculo é Fernando Arrabal. Em Guernica elle ainda se prende ao facto historico (a guerra civil), mas Viva a morte é mais delirante e a imaginação voa mais solta. Entre os famosos detalhistas da crueldade estão ainda Pasolini, em Salò (baseado na obra-prima do marquez de Sade) e, naturalmente, um dos maiores poetas da violencia, o americano Sam Peckinpah, em qualquer filme. Appós a Segunda Guerra, a safra de filmes de campos de concentração -- tanto veriídicos como ficcionaes -contem algumas obras requinctadas. Aliaz, tal safra está inclusa no campo de uma lavoura infinitamente mais ampla e volumosa: a dos filmes de contestação politica. O critico francez Guy Hennebelle compilou dois catalogos analyticos só sobre cinema “militante” e “antiimperialista”, o que equivale a um passeio turiístico pelo Terceiro Mundo. Neste terreno a colheita da tortura sempre rende alguns fructos: Estado de sitio (Costa Gavras), sobre o Uruguay, Dezembro (Mohamed Lakhdar-Hamina), sobre a Argelia. Sem fallar nos curta-metragens e documentarios estrictamente... “documentaes”, do typo Brazil, a report on


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torture,

de Landau & Wexler, e On vous parle du brésil (realização collectiva), reconstituindo factos “veridicos” do periodo ai-5. Quanto às connotações eroticas da violencia cinematographica, basta este registro: em 1978, um artigo na revista sadomasochista americana Drummer analysava scenas explicitas de tortura em cerca de 30 filmes dentre os exhibidos só no anno anterior nos Estados Unidos, incluindo Andrei rublev, de Tarkovsky, e O Imperio dos sentidos, de Nagisa Oshima -- appesar de que neste ultimo, por exemplo, o estrangulamento e a castração não se enquadrariam no nosso conceito, ja que houve “consentimento” da “victima”... [4.9.1] Sobre o costume nazista de photographar e filmar supplicios e massacres de prisioneiros nos campos de concentração, era commum, nessas occasiões, a presença de adolescentes engajados na Juventude Hitlerista, que, a convite dos guardas, vinham se divertir vendo a morte alheia, provocada e prolongada com todos os requinctes dignos de figurar num album de recordações. Um hespanhol antifranquista, deportado para a Allemanha e internado no campo de Mauthausen, relata nestes termos uma grottesca scena de execução collectiva flagrada pelas cameras dos risonhos moleques: {As auctoridades ss procuravam evitar a todo custo que o typho chegasse a dominar, com todas as suas consequencias, mas a incompetencia dos chefes e a insufficiencia dos serviços de hygiene tornavam muito precario o combatte à epidemia. A situação tornara-se insustentavel; muitos eram os que vinham cahindo sob o peso mortal da malefica peste. O medico-chefe e o inquisidor Hans Grupper, commandante-geral, entenderam-se para mandar realizar a desinfecção total do campo. Todos os prisioneiros foram mettidos numa grande fossa rectangular que os SS utilizavam normalmente como garagem. Por alli passaram, successivamente, milhares de corpos cadavericos. Os


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prisioneiros eram despidos e entravam na fossa completamente nus. Isto constituiria mais uma experiencia, visando a concretizar novo methodo de exterminio. O espectaculo, sem precedentes nos annaes da historia dos crimes nazistas, enchia de horror todos os que presenciavam mais essa prova. Angustiados, todos se dispunham a esperar a morte. A fossa achava-se rodeada por muralha de pedra de cerca de 3 metros de altura, situada perto da entrada do campo. A operação foi feita de madrugada; os infelizes, tocados como rebanhos de carneiros à hora de sahir do curral, foram despejados naquella fossa. As sentinellas tinham ordens de estabelescer linhas cruzadas de tiro, collocando metralhadoras em todos os canthos, apponctadas em direcção à fossa. Em summa, todas as medidas de segurança haviam sido tomadas. (...) Às seis da manhan, ainda fazia um frio intenso na maldicta fossa. Era mais um tormento a fustigar os corpos eskeleticos dos condemnados. (...) As horas se faziam interminaveis e durante todo esse tempo os prisioneiros tiveram de supportar o duro açoite do frio. (...) Por fim, o sol começou a brilhar no horizonte, e seus raios vieram mitigar o soffrimento daquelles homens, mas à medida que subia nas alturas celestes, seu calor tornou-se muito intenso, transformando-se em um novo tormento. As mumias alli admontoadas não tinham como defenderse dos raios solares que as torravam sem piedade. O contraste entre o frio que accabavam de supportar e o calor desta chuva de fogo, accabava por enlouquescel-os. Os desmaios e as diarrhéas iniciaram seus estragos naquellas victimas. O quadro era de desespero e de horror; os infelizes se moviam e removiam, na van tentativa de excappar às garras da morte. A agonia se appoderou desses desgraçados impedidos de defender-se. A vileza dos componentes dos ss se revelou mais uma vez. Installados no alto da muralha, convidavam alguns jovens nazistas, tambem uniformizados, a presenciar aquelle quadro infame, onde os martyres desfallesciam sobre seus proprios excrementos, vencidos


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pelo calor que os devorava. Os nazistas se divertiam, tirando photographias. O sarcasmo parescia não ter limites; divertiamse contemplando os agonizantes que extrebuchavam em sua hora derradeira, naquella fossa immunda. Os barbaros componentes das forças ss inspiraram-se nesse horror, descobrindo, assim, novo methodo de exterminio, que incorporariam ao seu catalogo de processos de eliminação. (...) Naquelle dia, o intenso frio das primeiras horas da manhan, seguido pelo insupportavel calor mais tarde, provocou maior numero de mortos do que um dia de trabalho “normal” nos diversos commandos. O martyrio parescia não ter fim e se prolongou até o pôr-do-sol. (...) Os condemnados, exmagados pelo intenso calor, a fome e a sede, dirigiam seus olhares de odio aos carrascos. Entre estes havia delinquentes communs, verdadeiros monstros, gente do “bas-fond”; alguns exhibiam suas tattuagens, monogrammas, symbolos, serpentes pinctadas ao redor do tronco. Formavam uma das imagens mais sinistras do campo, somente comparavel à densa fumaça que sahia das chaminés dos fornos crematorios.} [4.10] No Brazil, o Cinema Novo abriu veias e veios realistas até então inexplorados. De interesse geral são os classicos de Glauber Rocha, por exemplo: Deus e o diabo na terra do sol, O dragão da maldade contra o sancto guerreiro. Mas particularmente interessantes são estes quattro, a cuja reprise você deve ficar attento: O caso dos irmãos naves, de Luiz Sergio Person, sobre os methodos policiaes do Estado Novo; Eu mactei Lucio Flavio, de Antonio Calmon, e Lucio Flavio, o passageiro da agonia, de Hector Babenco, sobre a policia do regime mais actual, e, finalmente, P’ra frente Brazil, de Roberto Farias, que focaliza mais a repressão politica. [4.11] Por ultimo, sobra a pobre coitada da litteratura, onde a tortura mais marcas deixou, mas que nem assim tem conseguido denunciar fielmente a vida real, muito embora sirva de fonte


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inspiradora às artes plaásticas e ao cinema. A historia litteraria da tortura pode tranquillamente ser dividida em duas phases: antes e depois de Sade. O divino divisor de aguas não só não era louco como foi o mais lucido (e ludico) dos genios de vanguarda, precursor de todos os poetas maldictos e romancistas naturalistas, naturistas, turistas e viajantes muito doidões. Tão lucido a poncto de saber de antemão que era um divisor, quando previne o leitor de Os 120 dias de sodoma para que {prepare seu coração e sua mente para a narrativa mais impura ja feita desde que nosso mundo começou, um livro sem parallelo entre os antigos, ou entre nós, modernos...} Com effeito, Sodoma é por excellencia o projecto da grande obra-prima rascunhada, muito mais “synthese da natureza humana” que todos os Cervantes, Shakespeares e Goethes bem-accabados. Sade só desenvolveu um quarto do livro, mas é nos trez quartos restantes, appenas minutados, que seu repertorio de supplicios voa mais alto. Naquelle trimestre está toda a historia da humanidade, reduzida a suas proporções mais elementares: propriedade, poder, prazer, dor e morte. O philosopho da alcova conhescia todos os methodos, inclusive chymicos e psychologicos, e até mesmo a electricidade (ja exsistia o para-raios). [4.12] Antes do marquez (seculo xviii para traz), ha registros de supplicios na litteratura classica (Éschylo, Sophocles, Petronio) e tentativas mais ou menos felizes que variam de Boccaccio a Swift, passando por Rabelais e pelas Mil e uma noites. Depois de Sade, a erotização da tortura entra em rhythmo crescente e attinge o climax em nosso seculo, sem no entanto accrescentar nada ao miolo sadico. O primeiro desdobramento do sadismo é, necessariamente, o masochismo, cujo patrono tem biobibliographia bem menos rica. Tracta-se do austriaco Leopold Von Sacher-Masoch (seculo xix), que tinha predilecção pelo açoite. Sua principal obra é a Venus das pelles ou A venus


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castigadora,

onde o chicote come solto, mas que, em materia de moralismo, paresce um acto de contrição comparada às blasphemias e heresias do sacrilego Sade. Mais longe que Sade foi Guillaume Apollinaire, ja no seculo XX, com As onze mil varas, mas só no plano satyrico: a novella é uma parodia das carnificinas do divino marquez, feita mais para a gargalhada que para o orgasmo do leitor. [4.13] Quasi todos os grandes auctores do seculo xix exbarraram ou mergulharam na tortura. Dou aqui uns exemplos, e no final do livro você encontrará indicados varios outros que vale a pena ler. O russo Dostoievski, que cumpriu pena de trabalhos forçados na Siberia, descreveu suas experiencias em Recordações da casa dos mortos. O norteamericano Edgar Allan Poe, pioneiro do genero mysterio/suspense, é muito conhescido por seus contos onde os personagens vivem (e morrem) nas peores situações de terror e desespero, e onde a tortura physica e psychologica não podia deixar de ser ingrediente. Nesse sentido, os principaes são O poço e o pendulo, O barril de admontilhado e Os oito orangotangos accorrentados, presentes em todas as anthologias do auctor que circulam em varias edições. O brazileiro Machado de Assis, na novella O alienista, satyriza magistralmente a tortura psychiatrica. Seus contos A causa secreta e O caso da vara são tambem suggestivos. [4.14] Com o romantismo, a figura do carrasco ganha status de personagem illustre, principalmente nas obras do francez Victor Hugo. O naturalismo veiu ampliar as fronteiras thematicas e as preoccupações dos auctores com a objectividade. No seculo xx, emfim, a litteratura se compromette cada vez mais com a realidade, quer sob forma politicamente engajada, quer pelo maior rigor na reconstituição historica, quer pelo caminho do experimentalismo esthetico ou vanguarda. Como a producção se advoluma e diversifica a poncto de explorar mercados


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para todos os gostos, darei appenas um exemplo dos mais pittorescos e excitantes: sobre o sadismo entre estudantes de collegio interno, o austriaco Robert Musil escreveu no começo do seculo um romance recentemente traduzido para o portuguez, O joven törless; varias decadas depois, o peruano Mario Vargas Llosa retomou brilhantemente o mesmo thema em Baptismo de fogo, a proposito do trote nas escholas militares. Quanto ao engajamento, a ficção latinoamericana é 99% dedicada às dictaduras oligarchicas/colonizadas, e consequentemente à repressão politica. O restante (1%) abborda todos os outros typos de dictadura e de repressão. Nem precisa citar titulos, basta folhear ao acaso qualquer obra do guatemalteco Miguel Angel Astúrias, ou pelo menos um texto do colombiano Gabriel García Márquez. O que não falta é violencia e sangue, choro e ranger de dentes. Em Musil, a scena é typica duma relação sm: os alumnos dum collegio militar excolhem um collega para Christo e resolvem degradal-o até as ultimas consequencias. E uma das primeiras consequencias dessa perseguição é justamente aquella que o humilhado conta: {Fica sentado, e eu tenho de me deitar no chão, de modo que elle possa pôr os pés sobre meu corpo. (...) Então, de repente, elle me manda lattir. Manda que eu faça isso baixinho, quasi gannindo, como um cachorro que latte durante o somno. (...) Elle tambem me manda grunhir como um porco e sempre repete que tenho alguma coisa desse animal.} [4.14.1] Em Vargas Llosa, o trote é pesquisado no collegio militar Leoncio Prado, em Lima, onde os calouros não só eram tractados como cães, mas chamados exactamente de perros. Ambientado nesse scenario veridico, e baseado numa realidade que o auctor pretendia denunciar, seu romance gyra em torno do baptismo, o qual ganha suas melhores tinctas neste trecho, onde se descrevem as primeiras experiencias dum calouro conhescido como Escravo devido à subserviencia e docilidade que o tornariam


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a principal victima dos trotes: {O Escravo descia sozinho as escadas do rancho, dirigindo-se ao campo, quando duas tenazes prenderam-lhe os braços e uma voz murmurou-lhe ao ouvido: -- Vem comnosco, cão. Elle sorriu e accompanhou-os, submisso. Ao redor delle, varios collegas que havia conhescido de manhan tambem eram abbordados e conduzidos attravés do gramado para os allojamentos da quarta serie. Naquelle dia não havia aula. Os cães ficaram nas mãos dos veteranos desde o almosso até o jantar, umas oito horas, portanto. O Escravo ja não se lembra a que secção foi levado, nem por quem. Mas o allojamento estava cheio de fumaça e de uniformes e se ouviam risadas e gritos. Mal cruzou a porta, ainda com o sorriso nos labios, sentiu uma pancada no hombro. Cahiu no chão, virou de lado e alli ficou, de bocca para cyma. Tentou levantar-se, mas não pôde: havia um pé calcando-lhe o estomago. Dez rostos indifferentes o contemplavam como si fosse um insecto. Não conseguia ver o tecto. -- P’ra começar -- disse uma voz -- canta cem vezes “sou um cão”, em rhythmo de corrido mexicano. Não pôde. Estava expantado, os olhos saltavam-lhe das orbitas, a garganta lhe ardia. O pé calcou-lhe um pouco mais o estomago. -- Elle não quer -- disse a voz. -- O cão não quer cantar. Ahi então os rostos abriram as boccas e cuspiram nelle, não uma, mas varias vezes, até que teve de fechar os olhos. Quando terminaram, a mesma voz anonyma, que gyrava como um torno, repetiu: -- Canta cem vezes “sou um cão”, em rhythmo de corrido mexicano.


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Desta vez elle obedesceu e sua garganta entoou roucamente a phrase que lhe ordenavam, com a musica de “Allá en el rancho grande”. Não foi facil: sem a lettra original, a melodia se transformava às vezes em guinchos. Mas parescia que não se importavam com isso. Escutavam attentamente. -- Chega -- disse a voz. -- Agora em rhythmo de bolero. Depois foi com musica de mambo e de valsa creoula. Por fim ordenaram: -- Levanta. Elle se poz de pé e passou a mão pelo rosto. Limpou o fundilho das calças. A voz perguntou: -- Alguem mandou que você limpasse o focinho? Não, ninguem mandou. As boccas tornaram a se abrir e elle fechou os olhos, automaticamente, até que accabassem com aquillo. A voz disse: -- Isto que você tem ao seu lado, cão, são dois alumnos. Fique em posição de sentido. Assim, muito bem. Os dois fizeram uma apposta e você vae servir de juiz. O da direita deu o primeiro soco e o Escravo sentiu uma dor aguda no antebraço. O da esquerda, quasi immediatamente, fez o mesmo. -- Bom -- disse a voz. -- Quem batteu com mais força? -- O da esquerda.


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-- Ah é? -- replicou outra voz. -- Quer dizer que eu sou um frouxo? Espere ahi, vamos experimentar de novo, preste bem attenção. O Escravo cambaleou com o choque, mas não chegou a cahir; as mãos dos alumnos que o rodeavam impediram e tornaram a collocal-o no mesmo logar. -- E agora, que tal? Quem batteu com mais força? -- Os dois, egual. -- Quer dizer que houve empatte -- frisou a voz. -- Então têm que desempattar. Logo depois a voz incansavel perguntou: -- Por fallar nisso, cão. Não lhe doem os braços? -- Não -- respondeu o Escravo. Era verdade; tinha perdido a noção do corpo e do tempo. Seu espirito contemplava embriagado o mar sem ondas de Puerto Eten e escutava sua mãe, que lhe dizia: “Cuidado com as arraias, Ricardinho” extendendo-lhe os longos braços protectores, sob um sol implacavel. -- Mentira -- disse a voz. -- Si não doem, por que você está chorando, cão? Pensou: “ja terminaram”. Mas appenas tinham começado. -- Você é um cão ou um ser humano? -- perguntou a voz.


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-- Um cão. -- Então que está fazendo ahi de pé? Os cães andam de quattro pattas. Elle se curvou. Ao appoiar as mãos no chão sentiu uma ardencia nos braços, muito intensa. Abriu os olhos e enxergou a seu lado outro garoto, tambem de gattinhas. -- Bom -- disse a voz. -- Quando dois cães se encontram na rua, que que elles fazem? Vamos, responde. É com você que estou fallando. O Escravo recebeu um ponctapé no trazeiro e no mesmo instante respondeu: -- Não sei. -- Elles brigam -- disse a voz. -- Lattem e se attiram um em cyma do outro. E se mordem. O Escravo não se lembra da cara do rapaz que foi baptizado juncto com elle. Devia ser de uma das ultimas secções, porque era baixinho. Estava com o rosto desfigurado de medo e, mal a voz se calou, veiu contra elle, lattindo e espumando pela bocca. De repente o Escravo sentiu no hombro uma dentada de cachorro louco e ahi então todo o seu corpo reagiu. Emquanto lattia e mordia, tinha certeza de que sua pelle se havia coberto de um pello duro, que sua bocca era um focinho ponctudo e que, sobre o seu lombo, o rabo estallava feito chicote. -- Chega -- disse a voz. -- Você ganhou. Em compensação, o nannico nos engannou. Não é cão, é cadella. Sabem o que accontesce quando um cão e uma cadella se encontram na rua?


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-- Não -- respondeu o Escravo. -- Elles se lambem. Primeiro se cheiram com carinho e depois se lambem. E então o tiraram do allojamento, levaram para o estadio, e não sabia si ainda era dia ou ja tinha escurescido. La o despiram e a voz mandou que nadasse de costas, sobre a pista de athletismo, em volta do campo de futebol. Depois o levaram de novo para o allojamento da quarta serie, onde arrhumou uma porção de camas, cantou e dansou em cyma de um guarda-roupa, imitou artistas de cinema, engraxou varios pares de botinas, varreu um piso de ladrilhos com a lingua, copulou com uma almofada, bebeu mijo, mas tudo isso no meio de uma vertigem febril, quando viu estava de volta na sua secção, deitado no beliche, pensando: “Juro que fugirei daqui. Admanhan mesmo.” O allojamento se achava silencioso. Os rapazes se entreolhavam e, appesar de terem sido exmurrados, cuspidos, pinctados e mijados, mostravam-se serios e ceremoniosos.} Mas semelhante tractamento de choque não era privilegio deste ou daquelle personagem. Todos os novatos passavam pelo mesmo processo disciplinar: {As aulas começaram na manhan seguinte. Durante os recreios, os alumnos da quarta serie perseguiam os cães, organizando corridas de pato: dez ou quinze garotos, enfileirados com as mãos nos quadris e os joelhos dobrados, advançavam à voz de commando, imitando os movimentos e o grasnido de um palmipede. Quem chegasse por ultimo tinha que se submetter aos angulos rectos. Alem de revistar e se appoderar do dinheiro e dos cigarros dos cães, os alumnos da quarta serie preparavam aperitivos de graxa de fuzil, azeite e sabão, que as victimas tinham que tomar de uma só vez, segurando o coppo com os dentes.} O “angulo recto” de que falla o auctor era um typo de trote que os veteranos tinham apprendido com os proprios officiaes que os puniam quando se attrazavam para a formação. Na


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posição de “angulo recto”, os corpos dos castigados {se vergam como dobradiças, ficando com a parte superior parallela ao chão. Gamboa os observa; com o cotovello, baixa um pouco a cabeça de Revilla. -- Cubram os bagos -- acconselha. -- Com as duas mãos. Depois faz signal ao subofficial Pezoa, um mestiço pequeno e musculoso, de grandes mandibulas carnivoras, que joga futebol muito bem e chuta com uma força tremenda. Pezoa mede a distancia. Inclina-se um pouco: como um raio, o pé levanta do chão e accerta em cheio. Revilla solta um gemido. Gamboa manda que volte para o seu logar. -- Ora! -- reclama. -- Você está ficando molle, Pezoa. Elle nem se mexeu. O subofficial empallidesce. Crava os olhos repuxados em Núñez. Desta vez se concentra antes de tomar impulso e dá o ponctapé com o bicco da bota. O alumno solta um berro, levado por deante; cambaleia de quattro uns dois metros e se exborracha por terra. Pezoa agguarda, anxioso, a reacção de Gamboa. O Tenente sorri. Os alumnos tambem. Núñez, que ja se levantou e exfrega o trazeiro com ambas as mãos, faz o mesmo. Pezoa volta a tomar impulso. Urioste é o alumno mais forte da primeira secção e talvez do collegio. Abriu um pouco as pernas para manter melhor o equilibrio. O ponctapé mal o saccode. -- Segunda secção -- ordena Gamboa. -- Os trez que chegaram por ultimo. Depois é a vez das outras secções. Os da oitava, nona e decima são tão pequenos que os ponctapés dos subofficiaes os fazem rollar até a pista de desfile.}


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[4.14.2] Dois classicos da ficção politica illustram a importancia da doutrinação no comportamento dos dominados: 1984, de George Orwell, e A laranja mechanica, de Anthony Burgess -- ambos bem vertidos para cinema, respectivamente, por Michael Radford e Stanley Kubrick. Embora com alguma adaptação, as scenas da tela são fieis às dos livros. Dois momentos decisivos são os que comprovam, appós a phase de “convencimento”, a submissão “voluntaria” do personagem que passa pelo processo de doutrinação -- Winston ou Alex, interpretados respectivamente por Richard Burton e Malcolm McDowell. Vejamos cada um delles. No livro 1984, diz o torturador ao torturado: [4.14.3] {-- O verdadeiro poder, o poder pelo qual temos de luctar dia e noite, não é o poder sobre as coisas, mas sobre os homens. -- Fez uma pausa e por um momento tornou a assumir o ar de mestre-eschola interrogando o alumno experto: -- Como é que um homem affirma o seu poder sobre outro, Winston? Winston reflectiu. -- Fazendo-o soffrer. A obediencia não basta. A menos que soffra, como podes ter certeza de que elle obedesce tua vontade e não a delle? O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em se despedaçar os cerebros humanos e tornar a junctal-os da forma que se entender. Começas a distinguir que typo de mundo estamos creando? É exactamente o contrario das estupidas utopias hedonisticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, trahição e tormento, um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no odio. Em nosso mundo não haverá outras


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emoções alem do medo, furia, triumpho e autodegradação. Destruiremos tudo mais -- tudo. Ja estamos liquidando os habitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pae, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguem mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos. As creanças serão tomadas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da gallinha. O instincto sexual será exstirpado. A procreação será uma formalidade annual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá lealdade, excepto lealdade ao Partido. Não haverá amor, excepto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, excepto o riso de victoria sobre o inimigo derroptado. Não haverá nem arte, nem litteratura, nem sciencia. Quando formos omnipotentes, não teremos mais necessidade de sciencia. Não haverá mais distincção entre a belleza e a feiura. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo da vida. Todos os prazeres concorrentes serão destruidos. Mas sempre... não te exquesças, Winston... sempre haverá a embriaguez do poder, constantemente crescendo e constantemente se tornando mais subtil. Sempre, a todo momento, haverá o gozo da victoria, a sensação de pisar um inimigo inerme. Si queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano -- para sempre. (...) E lembra-te de que é para sempre. O rosto estará sempre alli para ser pisado. O herege, o inimigo da sociedade, alli estará sempre, para ser sempre derroptado e humilhado.} [4.14.4] No livro A laranja mechanica quem falla é o torturado, cuja “reeducação” é testada perante um selecto publico: {Fui levado muito cortezmente ao mesmo “méssito” de sempre, mas la havia mudanças. Tinham puxado uma cortina na frente da tela, e o vidro fosco sob os buracos da projecção não estava mais la, talvez tendo sido levantado ou dobrado pros lados, como as


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persianas ou biombos. E onde tinha havido appenas o barulho de tosse, “quéchequé-chéquéché” e assim sombras de “líudes”, estava agora uma verdadeira platéa, e nessa platéa tinha “litsos” que eu conhescia. La estavam o Director da “Prisesta”, e o sancto homem, o carlitos ou charles como era chamado e o “Tchasso”Chefe e aquelle “tchelovéque” muito importante e bem-vestido que era o Ministro do Interior ou Inferior. Todo o resto eu não conhescia. O Dr. Brannon estava só de pé, mas o Dr. Brodsky estava de pé e “govoritava” assim com ar muito douto p’ra todas as “líudes” alli reunidas. Quando elle me “videou” entrando elle disse: “Ah ha. Nesse poncto, senhores, appresentamos o proprio elemento. Elle está, como os senhores poderão notar, bem disposto e bem alimentado. Está chegando directamente de uma noite de somno e de um bom desjejum, sem estar drogado e hypnotizado. Admanhan vamos mandal-o com toda confiança de volta ao mundo novamente, um moço tão direito quanto qualquer outro que os senhores poderiam conhescer numa manhan de maio, inclinado a dar uma palavra bondosa e practicar um gesto util. Que differença aqui está, senhores, do miseravel desordeiro que o Estado submetteu ao castigo improficuo, dois annos attraz. Sem ter mudado, pergunto? Não exactamente. A prisão lhe ensignou o sorriso falso, o exfregar de mãos da hypocrisia, o sorriso graxo e servil da bajulação. Outros vicios lhe ensignou, ao mesmo tempo que o confirmava nos que ja havia practicado antes. Mas, senhores, basta de palavras. Acções fallam mais alto que. Acção agora. Observar tudo.” Eu estava um pouco atturdido com aquella “govoritação” toda e estava tentando apprehender mentalmente que tudo aquillo era assim a meu respeito. Ahi, todas as luzes se appagaram e sahiram assim dois reflectores brilhando nos buracos da projecção e um delles estava em cheio sobre o Vosso Humilde e Soffrido Narrador. E dentro do facho do outro reflector estava um “tchelovéque”


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que eu nunca tinha visto antes. Tinha um rosto assim sebento, bigode e assim fiapos de cabello emplastrados no “gúlliver” quasi careca. Tinha cerca de trinta annos, ou quarenta ou cincoenta, uma edade assim, “estarre”. Elle “itou” na minha direcção e o spotlight “itou” com elle e breve os dois spots tinham formado assim uma grande poça. Elle me disse, muito debochado: “Como é que é, monte de lixo? Puh, você não é muito chegado a um banho, do jeito horroroso que você cheira...” Depois pisou nos meus “nógas”, direito, esquerdo, depois um belliscão no nariz com as unhas que deu uma dor “bezúmine” e me encheu os “glazes” de lagrymas, depois me torceu o “uco” esquerdo feito botão de radio. Eu “esluchava” risotas e um par de hahahas horrorshow vindo da platéa. Meu nariz e “nógas” e “uco” davam ferroadas e doiam assim “bezúmines”, então eu disse: “Por que é que você está fazendo isso commigo? Eu nunca lhe fiz mal algum, irmão.” “Ah,” disse o tal “véque”, “eu faço isso,” (nhoquetenhoque, torcida no nariz) “e isso,” (torcida no buraco do ouvido) “e mais isso,” (pisada feia no pé direito), “porque não vou com a sua cara nojenta. E si você vae fazer alguma coisa, começa, por favor, começa.” Agora eu percebia que tinha que ser muito “escorre” e sacar a minha “britva” de degollar antes que aquella horrivel doença assassina subisse zunindo e transformasse assim a alegria da battalha na sensação de que eu ia dar a pitada. Mas, oh irmãos, emquanto a minha mão ia p’ra “britva”, no meu bolso interno, eu vi assim aquella scena, com os olhos da mente, aquelle “tchelovéque” insultuoso uivando por misericordia com o “cróve” vermelho vermelho todo excorrendo do seu “róte” e logo em cyma desse quadro, a nausea, a seccura e as dores vieram correndo p’ra me alcançar e eu “videei” que tinha de mudar os meus sentimentos em relação àquelle “véque” sordido realmente


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“escorre”, então appalpei os “cármans” procurando cigarros ou dinheiro e, oh meus irmãos, não tinha nenhuma dessas duas “véssiches”. Eu disse assim todo lamuriento e choraminga: “Eu queria lhe dar um cigarro, irmão, mas não tenho nem um.” O “véque” fez: “Há há, búúúúú. Chora, nenen.” Ahi, nhoquetenhoque de novo com a unha “bôlche” que nem um chifre no meu nariz e eu “esluchava” assim “esméques” altissimos de euphoria vindos da platéa às escuras. Eu disse, desesperado mesmo, tentando ser aggradavel àquelle “véque” que me insultava e machucava, para impedir que chegassem as dores e o enjoo: “Por favor, deixe eu fazer alguma coisa pro senhor, por favor.” E eu tacteava os “cármans” mas só encontrei a minha “britva” de degollar, então eu tirei ella p’ra fora, offeresci a elle e disse: “Por favor, fique com isso, por favor.” Mas elle fallou: “Pode ficar com os seus presentinhos de suborno fedorentos. Você não vae se livrar de mim dessa maneira.” E deu uma porrada no meu braço e a minha “britva” de degollar cahiu no chão. Então eu disse: “Por favor, eu tenho que fazer alguma coisa. Quer que eu limpe as suas botas? Olha, eu vou me abbaixar e lamber as suas botas.” E, meus irmãos, accreditem ou lambam os meus “chérres”, eu cahi de joelhos e estiquei o meu “iázique” milha e meia p’ra lamber as “gréjinentas” “vonentas” botas delle.} [4.14.5] A symbologia daquillo que os inglezes chamam de “bootlicking” transcende os planos concreto e abstracto do simples acto da lambeção abjecta para configurar a propria efficacia da doutrinação instrumentalizada pela tortura, physica e/ou psychologica. O alcance de tal symbologia pode ser


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exemplificado pelo caso emblematico da annexação da Austria pela Allemanha nazista, scenario onde se materializam perfeitamente as dystopias orwellianas ou burgessianas em relação à metaphora da bota dominadora. [4.14.6] Historiadores da Segunda Guerra registram que, num dos paizes invadidos pela Allemanha nazista, o primeiro-ministro foi exemplarmente castigado pelos invasores porque, antes da occupação, allardeara sua disposição ao sacrificio heroico, declarando textualmente que {empregarei minha penna e minha lingua a serviço da resistencia patriotica e tudo farei contra a bota oppressora do inimigo nazista...} Antes de ser levado ao campo de concentração, o parlamentar passou um periodo preso num quartel das SS, onde teve que trabalhar lavando latrinas e engraxando botas. Conta-se que o commandante nazista teria determinado que o ex-chanceller fosse deshonrado por suas proóprias palavras: {Que elle empregue a lingua, mas não contra, e sim a serviço da bota alleman! Que use a lingua para lustrar!} [4.14.7] Outras versões convergem para o essencial desse historico de degradação. Por occasião do Anschluss nazista na Austria, o primeiro-ministro Kurt von Schuschnigg é preso pelos invasores e, appós longo periodo de “prestação de serviços”, accaba deportado para Dachau. Schuschnigg era deputado desde 1927 e succedera a Dollfuss como chanceller (julho de 1934). Appoiado por uma frente patriotica, tentou resistir a Hitler, mas foi obrigado a introduzir nazistas em seu governo e, depois, a chamar Seyss-Inquart para o ministerio do Interior. Ainda insistiu em oppor-se a Hitler (organizando um plebiscito), mas este exigiu sua demissão. Segundo Alan Wykes, auctor duma biographia de Heydrich, {Dessa vez não houve duvidas quanto ao exito do Anschluss. Graças ao “Cavallo de Troia” de Heydrich, o governo Schuschnigg cahiu a 11 de


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março de 1938 e Seyss-Inquart e Kaltenbrunner tornaram-se, respectivamente, Chanceller e Ministro do Interior. Schuschnigg e o presidente, Wilhelm Miklas, foram presos junctamente com todos os adversarios em potencial do nazismo. (...) “A Austria”, escreveu Heydrich no jornal das SS, DAS SCHWARZE KORPS, “é agora uma area onde a vontade do Fuehrer vae tambem prevalescer, graças ao desfecho feliz da lucta que travamos contra todos os que se oppunham à idéa de um unico povo allemão. A antiga policia austriaca foi responsavel pela morte de grande numero de bons e sinceros allemães. A honra da força só foi salva pelos policiaes nacional-socialistas que deram a vida e a liberdade pelo sonho de uma Grande Allemanha”. A execução da vontade do Fuehrer foi, na practica, uma onda de terrorismo maciça, em que Kaltenbrunner e Globocnik receberam ordem para realizar perseguições, contra, naturalmente, os adversarios do regime nazista, adversarios comprovados ou appenas suspeitos, particularmente os judeus. Tambem é Shirer que diz: “Durante as primeiras semanas, o comportamento dos nazistas superou tudo quanto vi na Allemanha. Houve muito sadismo. Dia appós dia, grandes numeros de homens e mulheres judeus eram vistos lavando os signaes de Schuschnigg das calçadas e limpando as sargetas. Emquanto trabalhavam, de joelhos, com tropas de assalto a ridicularizal-os, multidões se reuniam para insultalos. Centenas de judeus, homens e mulheres, eram appanhados nas ruas e postos a trabalhar na limpeza de latrinas publicas e dos quarteis onde as SA e SS estavam acquarteladas. Milhares delles foram apprisionados, tendo suas propriedades confiscadas ou roubadas. Vi, do appartamento que occupo na Plosslgasse, numerosos elementos das ss carregando peças de pratta, tapeçarias, pincturas e muitas outras coisas retiradas do palacio Rothschild, alli perto. Mais tarde, o proprio Barão Louis de Rothschild conseguiu comprar sua sahida de Vienna, entregando suas aciarias às industrias de Hermann Goering. Até


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o começo da guerra, talvez metade dos 180.000 judeus da cidade conseguiu comprar a liberdade de emigrar, entregando tudo o que possuiam aos nazistas.” Por ordem pessoal de Heydrich, Schuschnigg foi preso e confinado num sotam do Hotel Metropol, em Vienna. Elle “teria a honra de servir pessoalmente aos homens das SS de serviço no hotel”, o que significava que elle tinha de limpar-lhes os apposentos, despejar ourinoes [sic], levar recados de um lado do hotel para outro e, toda vez que passasse por qualquer de seus algozes, uma reverencia. Dezoito mezes depois, tambem por ordem de Heydrich, elle foi transferido, com sua mulher, para o campo de concentração de Dachau. A partida do “trem especial”, formado de dois vagões de transporte de gado, que o levou, com mais 200 “adversarios comprovados” do regime, foi assistida por Heydrich, que se deslocou de Berlim especialmente para se deleitar com o espectaculo. Elle e Himmler, no interior do carro official que os transportou, ficaram juncto ao desvio de onde o trem partiria e observaram o embarque dos prisioneiros, no annoitescer de domingo, 3 de septembro de 1939. Os caminhões que levaram aquelles infelizes approximaramse de ré do local de embarque, onde duas metralhadoras foram estrategicamente installadas para evitar qualquer tentativa de fuga. Quando os artilheiros tomaram posição, as portas do primeiro caminhão foram abertas e os prisioneiros, a coronhadas, empurrados para os vagões de gado pelos guardas SS. Attravés da fumaça da locomotiva brilharam lampejos vermelhos e verdes, dando signal aberto para o trem dos desgraçados, cujo apito de sahida se mixturou aos berros dos guardas e aos gritos de dor dos prisioneiros, brutalmente attirados para dentro dos vagões. Pelas aberturas lateraes dos vagões, onde se comprimiam os condemnados, era possivel ver-lhes os rostos, verdadeiras mascaras mortuarias fictando o tempo attravés dellas. Heydrich observava o espectaculo impassivelmente. Himmler registrou que elle fizera appenas um commentario: “Parescem animaes


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sendo levados para a arca”. Embora, comprehensivelmente, não o mencione, é provavel que Himmler, sempre ennojado deante de espectaculos de violencia, embora nunca o ficasse ao mandalos executar, permanescesse encolhido no banco, ao lado do seu sequaz. O relacionamento desses dois era curioso. Schuschnigg, em seu livro Austrian requiem, chamou-os de “irmãos de sangue na arte da crueldade”.} [4.14.8] As scenas de humilhação collectiva dos judeus em praça publica estão photographicamente documentadas. No livro Genocidio, de Ward Rutherford, uma photo mostra mulheres e homens adjoelhados, lavando a calçada com escova e balde, deante de adolescentes da JH, tendo ao fundo, em redor, uma multidão por detraz dum chordão formado por creanças de mãos dadas. Na legenda lê-se: {Embaixo: judeus são obrigados a lavar as ruas de Vienna, como parte das hostilidades que soffreram na Austria. Os “supervisores” são creanças da Juventude Hitlerista}. [4.14.9] Metaphorica ou não, a bota tyrannica figura egualmente omnipresente na ficção e na memorialistica. Vale completar o recorte com mais dois exemplos. [4.14.10] Em O salto no escuro, Luigi Sarcinella narra a oppressão nazista sobre seus proprios alliados, os italianos, que abbandonavam o fascismo ao final da guerra: {O frio estava augmentando assustadoramente e só o calor e o bafo animal da centena de moradores daquelle vomitorio, que era o dormitorio, conseguia abbrandal-o nas noites gelidas. Gino porem parescia animado pela força que provem do desespero. Pacientemente, encoberto pelos seus companheiros, tinha cavado um pequeno tunnel debaixo do mortifero arame farpado e, arrastando-se, chegava ao campo contiguo, catava todas as batatas e os tuberos que encontrava, logo voltando ao campo onde os exfomeados


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companheiros o esperavam para festejar cupidamente aquelle agape de tuberculos. Comiam-nos crus, mas, assim mesmo, eram deliciosos como biscoitos. Um dia, em consequencia das “sahidas” nocturnas, começou a soffrer os improperios e as offensas de um official nazista, quando este numa noite o esperava de pé do outro lado da cerca. Elle viu deante dos seus olhos um par de botas, uma das quaes o attingiu na cara, deixando-lhe no rosto a marca de uma intumescencia que o incommodou por varios dias. -- Eu sou um bom soldado, prologou Herr W. Poderia mactar-te ahi mesmo; mandar-te fuzilar, mas quero ser generoso, disse em um italiano rustico. -- Ja não o foste golpeando-me na cara, attalhou Gino que, mais do que pela dor, se sentia torturado por aquella affronta despotica. -- Por que querias fugir? -- Eu não queria fugir. -- Então o que fazias alli? -- Ia em busca de comida... Batatas. -- Ah! Tambem és ladrão? Este é um crime no Grande Reich. Gino teve um impulso de riso doloroso, pensando no cynismo daquellas palavras que lhe lembravam, a proposito, scenas dos nazi, roubando tudo o que podiam, em toda a Europa, mas não disse nada e preferiu convenientemente explicar: Roubo porque tenho fome, e isto paresceu-lhe uma justa attenuante. Mas o nazista não pensava assim. O nazismo não conhescia aquella


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ridicula expressão: ter fome. Ter fome, soffrer fome, era um mero complexo de subdesenvolvidos. -- Vergonha, gritou em tom arbitrario, aqui ninguem tem fome, e additando o fillete dourado em redor da golla do casaco de Gino, berrou: -- Um cadete do Exercito Italiano roubando batatas! Bello exercito, concluiu com ironia mazorral. -- A necessidade torna o homem ladrão, sentenciou Gino, e, sem considerar o olhar de sarcasmo do outro, continuou à guisa de corolario: -- A fome não conhesce graus -- nem sociaes, nem politicos, nem militares tampouco. -- Exsiste a dignidade. -- A fome às vezes não a conhesce, ou em certas occasiões a faz exquescer. Aqui estamos empilhados como numa toca, uma pocilga, de onde a gente sae só para ir ao cemiterio ao lado. -- Está bem, admoestou Herr W., num tom que apparentava ser conciliador. Não te macto; porem a partir de admanhan, todas as vezes que voltar do trabalho, limparás as minhas botas, completou com um sorriso sardonico. Pode trabalhar com as mãos. Vocês só sabem gesticular. Gino teve a impressão de não estar ouvindo direito. Passou a mão no rosto barbudo e teve a desaggradavel sensação de tocar num ouriço do mar, um echinodermo. O que sabia aquelle superhomem sobre a gesticulação?} [4.14.11] Em O battalhão maldicto, Sven Hassel exmiuça a oppressão nazista de dentro do proprio ambiente militar do Reich: {Um dos


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peores subofficiaes de Sennelager era Helmuth, o cozinheiro da 5ª Companhia. Era um desses valentões por vocação. O typo de pessoa que a Gestapo contractava para ser alcaguete. Foi Helmuth quem gratuitamente attirou uma caneca de café fervendo em Fischer, um dos homens mais doceis, educados e bem-intencionados que jamais passou pelo Battalhão 999. Aliaz, esta deve ter sido justamente a causa da aggressão. Ja notei que typos como Helmuth detestam os mansos e humildes. Pobre Fischer. Havia sido sacerdote antes de ir parar no inferno de Sennelager. Imaginando ingenuamente que, por ser um servo de Deus, comptaria com algum typo de protecção divina, subira ao pulpito e denunciara Adolf Hitler e o regime nazista para uma congregação que se retirara discretamente antes do final do sermão. Na mesma noite, os homens de casacos de couro chegaram e o levaram. O Pastor Fischer então começou uma serie de experieências para as quaes nenhuma leitura da Biblia o poderia ter preparado. Começou em Bielefeldt e continuou em Dachau, na ala de torturas especiaes reservada para os homens de Deus. O peor de tudo foi quando prenderam sua mulher e filhos. Agora o haviam mandado para Sennelager e homens como Helmuth o estavam banhando com café fervente pelo simples prazer de ouvil-o gritar. Fischer, como era natural, levantouse de um salto, deixando cahir sua caneca de latta. Uma torrente de liquido se despejou sobre as botas reluzentes do Sargento Helmuth. Pobre Fischer. Si tivesse um pouco mais de experiencia, teria aguentado firme, deixando-se excaldar, si necessario. Teria valido a pena, pois gozaria de alguns dias de tranquillidade na enfermaria. Entretanto, Fischer era novo em Sennelager. Ainda não havia apprendido a controlar seus reflexos. Comportouse exactamente como Helmuth havia previsto. No silencio constrangido que se seguiu, Helmuth appanhou uma das pesadas cafeteiras de ferro e batteu com ella na cabeça de Fischer. Nenhum de nós disse uma palavra. Em Sennelager era assim. Cada um na sua o tempo todo. Podiamos odiar Helmuth, mas quem era


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affinal o Pastor Fischer? Appenas um entre centenas. Ninguem está disposto a arriscar a vida por um pregador desconhescido. Helmuth apponctou para a bota molhada. -- Vamos, pastor! De joelhos! Lamba minhas botas com sua lingua sancta! Quero ver si sua humildade é sincera! Fischer abbaixou-se lentamente e imaginei si tornaria a se levantar. Era um velho de 60 annos, abballado pelo tractamento que recebera em Bielefeldt e Dachau. Sua vontade de viver devia ser muito grande, para chegar até onde chegara. Esticou o pescoço. Parescia um pedaço de mangueira velha. Com muito exforço, approximou a lingua da bota de Helmuth. Era um espectaculo a que haviamos assistido tantas vezes que não achavamos mais degradante. Todos haviamos passado por aquillo em algum poncto de nossa carreira no Exercito. A gente tem que apprender a engolir o orgulho, si quer sobreviver. Da primeira vez, entretanto, era sempre difficil. Eu mesmo, quando recruta, tivera que lamber os cascos de um cavallo toda manhan, durante uma semana, e não achara nada faácil. De modo que a reluctancia de Fischer não era de surprehender. O ponctapé que Helmuth lhe deu na bocca não adjudou em nada. O pastor cahiu para traz, cuspindo sangue e pedaços de dentes; nesse instante, Helmuth golpeou-o de novo na cabeça com a cafeteira. Com isso terminou a brincadeira. Helmuth havia exaggerado, como de costume, e outra victima foi levada inconsciente para a enfermaria, para viver ou morrer, de accordo com os caprichos dos medicos.} [4.15] O Brazil não fica litteral nem litterariamente attraz. Lembrando que isto é uma admostragem e não um pantheão, desde o romantismo tivemos scenas mais ou menos fortes nas passagens pela cultura indigena de José de Alencar, em Ubirajara, pela escravatura de Joaquim Manoel de Macedo, em As victimas algozes,


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pelo cangaço de Franklin Tavora, em O cabelleira, bem como nos episodios bellicosos typo A retirada da laguna, do visconde de Taunay, sobre a guerra do Paraguay. Com o realismo e o naturalismo surgem situações mais especificas: castigos corporaes na marinha (Bom creoulo, de Adolpho Caminha), na eschola (O atheneu, de Raul Pompéa, ou Casa de pensão, de Aluizio Azevedo), na prisão, no campo e noutros scenarios sociaes. Mas é no seculo xx que a ficção “deslancha no terreno e solta os cachorros, as cobras e os lagartos”. Nos romances historicos de Paulo Setubal, por exemplo, um bandeirante é mergulhado aos poucos num rio de piranhas (A bandeira de fernão dias) e um hollandez excaldado até a morte com cataplasmas de oleo fervente (O principe de nassau). Os actuaes ficcionistas costumam vincular a tortura ao contexto politico da linha-dura mais recente, mas tambem cedem espaço para a violencia não-engajada. No conto, Rubem Fonseca é um dos que puzeram o dedo na ferida. Em O quarto sello elle transa com bom humor a tortura physica e psychica num clima de ficção scientifica. No romance, Renato Tapajós é um dos que pisaram no callo. Em camara lenta gyra em torno da esquerda armada e do que accontesce aos militantes quando capturados. [4.16] O theatro partilha scenarios e argumentos com a prosa de ficção e, desde os gregos até o absurdo, passando por Shakespeare, Jarry e Brecht, a tortura tem integrado o elencho na qualidade de actriz convidada. Alguns dramaturgos do absurdo (a partir da decada de 1950) fizeram-na protagonista: Manuel de Pedrolo, em Humanos e não, Arrabal, em Os dois carrascos, Jean Genet, em Os negros. No Brazil, a historia recente inspirou algumas peças nuas e cruas: Papa highirte, de Vianninha, Fabrica de chocolates, de Mario Pratta, Barrella, de Plinio Marcos, O innocente, de Sergio Jockyman, O processo da violencia (o caso Herzog), de João Ribeiro Chaves Neto, Milagre na cella, de Jorge Andrade, e Feliz anno velho, de Tide Moreira, adaptada do original de Marcello Rubens Paiva,


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por signal filho do “desapparescido” deputado Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi achado e cuja morte sob tortura é tida como certa. [4.17] Quanto à poesia, é demasiado abstracta (principalmente a concreta) e um tanto inconsistente para merescer a attenção de qualquer pesquisador da verosimilhança nas artes. Mesmo assim, cabe assignalar algumas passagens em Camões (canto iii dos Lusiadas, estrophes 39-41, 92, 93 e 100, allusivas à perversidade dos antigos tyrannos), em Fernando Pessoa (Ode maritima), em Castro Alves (Navio negreiro) ou mesmo em Drummond (pequenos poemas como O actor, Tortura, Mactar), para citar appenas grandes poetas de lingua portugueza. Exemplifiquemos com as scenas da flagellação de escravos em Castro Alves: [4.17.1] NAVIO NEGREIRO (excerpto de Castro Alves) Era um sonho dantesco... O tombadilho Que das luzernas advermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinnir de ferros... estallar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dansar... E ri-se a orchestra, ironica, estridente... E da ronda phantastica a serpente Faz doudas espiraes... Si o velho arqueja... si no chão resvalla, Ouvem-se gritos... o chicote estalla. E voam mais e mais... No entanto o capitão manda a manobra E appós, fictando o céu que se desdobra


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Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: “Vibrae rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dansar!...” Quem são estes desgraçados, Que não encontram em vós, Mais que o rir calmo da turba Que excita a furia do algoz? [4.18] De facto, entre uma tortura de verdade e um poema de Drummond ha um abysmo de differença, tão grande quanto aquelle que separa uma tela pacata e innocente (doada por um pinctor à unicef para chartão de Natal) das demais scenas morbidas e sanguinarias pinctadas pelo mesmo auctor. [4.19] Todo este fastidioso rosario de exemplos evidencia, em primeiro logar, que as maneiras de sentir e exprimir os supplicios variam tanto quanto as opiniões a respeito dos mesmos. Si você pensou um pouco sobre a posição do artista, certamente concluiu o obvio: que, antes de tentar retractar a realidade, elle nada mais faz que pôr para fora suas proprias phantasias, sadicas ou masochistas, assumidas ou inconscientes -- as quaes, em ultima analyse, se identificam com as mesmas exspectativas do publico, ou seja, da humanidade. [4.20] Agora que ja passamos pelas maneiras de sentir e exprimir a tortura, falta fallar daquillo em que a porca torce o rabo: as opiniões a respeito.


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[5] NO CONSULTORIO, NO TRIBUNAL, NO PLENARIO {Mas a victima cohabita com seu verdugo, como si fosse sua esposa, e este par enlaçado mergulha na noite da abjecção.} (Jean-Paul Sartre, ao commentar Henri Alleg)

[5.1] Você ja foi victima e testemunha, artista e espectador. Faça mais alguns exercicios de personificação e ponha-se no logar do medico, do advogado, do padre, do politico ou do militar e, por ultimo, do torturador e quiçá do juiz, a fim de que possamos passar em revista alguns diagnosticos, alguns veredictos, alguns ultimatos e anathemas. Emfim, para deixarmos admarrada uma conclusão ou solta uma indagação. [5.2] Si você é o medico, seu envolvimento com a tortura se daria em duas circumstancias: ou soccorrendo uma victima e consertando-lhe os estragos physicos ainda quentes, ou detectando sequelas em quem ja sobreviveu aos traumas iniciaes mas continua se resentindo delles. No primeiro caso você não precisa provar nada, seu papel é o attendimento immediato e em seguida o exquescimento. No segundo caso você está levantando evidencias para combatter os effeitos e adjudar no combatte às causas da tortura, subsidiando a accusação de responsaveis, tal como fez o gruppo medico dinamarquez que trabalhou para a Amnistia Internacional. Em ambos os casos você está actuando contra a tortura, mas isto não significa que você a condemne pelo simples facto de ser medico. Affinal, ha collegas seus que trabalharam e trabalham a favor da tortura. Desde que a tarefa do carrasco se institucionalizou, e desde que a practica medica adquiriu status profissional, o esculapio tem collaborado com o algoz na camara de tortura, como um assistente na salla de operações. A Inquisição consagrou definitivamente essa especie de


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solidariedade, ao fixar a duração minima e maxima de cada sessão e ao encarregar um medico de examinar o paciente que perdesse os sentidos antes do prazo previsto. Era o doutor quem verificava si a victima estava inconsciente ou fingindo, e era sua palavra que determinava si a sessão devia ser suspensa ou continuar. Tal funcção não mudou nada da Edade Media para ca, a não ser em duas opportunidades onde o medico occupa o logar do proprio carrasco: as experiencias com cobayas humanas nos campos de concentração nazistas e o tractamento chymiotherapico nos hospicios-presidios sovieticos. Os pretextos para as experiencias nazistas eram os mais deslavados: pesquisar o grau de resistencia do ser humano à dor, ao frio, à fome, à falta de ar, ao veneno, aos insectos, às molestias contagiosas. As cobayas eram collocadas em camaras de baixa pressão, asphyxiadas com gazes, infectadas com puz ou gangrena gazosa, inoculadas com typho e malaria, congeladas na neve, trancadas em cubiculos infestados de pulgas... Quasi todas as experiencias foram inuteis para a descoberta de novos antidotos, anesthesicos ou vaccinas, e a maioria das cobayas morreu, aliaz agonizando sem nenhuma assistencia. [5.3] Os sovieticos ja são mais sophisticados e usam o pretexto da doença mental para camuflar a intolerancia ideologica. O mathematico Pliuchtch, internado num hospital psychiatrico por “eschizophrenia torpida” (leia-se “dissidencia”: {Quem discorda do socialismo só pode ser doido}, dizia Fidel), foi um dos poucos que conseguiram excappar e denunciar as “virtudes” da repressão psychochymica: [5.3.1] {(1) Assegura o segredo absoluto do processo e priva o accusado de se defender pessoalmente perante o tribunal; (2) Permitte o mais completo isolamento do “culpado”, sem limitação de prazo; (3) Permitte a utilização e a experimentação de methodos medicos e scientificos contra o detido; (4) Permitte


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desaccreditar o homem e suas idéas; (5) Tem a vantagem de ser uma forma legal de tortura, ao contrario das demais que obrigam seus auctores a negal-as e a escondel-as.} [5.4] Actualmente, a cooperação de medicos na tortura está intimamente ligada à repressão politica no mundo todo, inclusive para dissimular na victima as marcas de uma actividade que é clandestina mesmo perante as leis de paizes totalitarios. Sobreviventes de prisões politicas nas mais diversas latitudes denunciam o mesmo facto. [5.5] Si você estiver na pelle de um desses medicos (ou enfermeiros, ou dentistas), é evidente que sua “unica” justificativa foi o dinheiro ou outro typo de recompensa, e não o exercicio da profissão, o cumprimento de ordens, o idealismo ou o patriotismo. Neste caso, alem das leis nacionaes e internacionaes de character não-medico, você tem contra si os codigos de ethica. Mas isto quer dizer appenas que você certamente tomará mais cuidado que o proprio torturador ao occultar sua identidade. Só assim sua impunidade estará preservada, ao menos por algum tempo. [5.6] Os carrascos nazistas (inclusive medicos da laia de Mengele) foram julgados em Nuremberg, occasião em que se crearam regras contra experiencias em seres humanos. Depois disso surgiram mais convenções internacionaes prohibindo expressamente a participação de medicos na tortura, como a declaração de Tokyo, adoptada pela Associação Medica Mundial, em 1975, e os principios de ethica medica approvados pela onu, em 1982. Sendo tão recentes taes disposições prohibitivas, e sendo cada vez mais frequente o envolvimento dos medicos, é o caso de perguntar: e antes de Nuremberg? Podiam os medicos co-torturar à vontade? O juramento de Hippocrates não diz que elles devem


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se abster de “intervenções malfazejas” e “damnos voluntarios”? Claro, o conceito de “malfazejo” e “voluntario” é relativo e transitorio, nós sabemos. Mas si o juramento nunca impediu o perjurio, de que addeantariam outras convenções? [5.7] Por emquanto, a conclusão poderia ser: si Hippocrates foi hypocrita, os foros internacionaes actuaes o foram muito mais. Vamos admittir que Hippocrates não foi hypocrita, para não incriminar o resto da humanidade. Por emquanto. [5.8] Passemos ao advogado. É facil junctar argumentos em defesa de um torturado, mesmo que elle esteja no banco dos réus por assassinato ou terrorismo. Affinal, é uma victima, coitado. Mas, si você tivesse que defender um torturador, onde iria buscar allegações? Hoje em dia nenhum causidico que se preze commetteria a imprudencia de fazer uma apologia da tortura para justificar o procedimento do torturador. A solução a que mais frequentemente se recorre é allegar que NÃO HOUVE tortura, seja excammoteando as provas, seja distorcendo o proprio conceito de tortura. É commum refutar-se a accusação qualificando-a de calumnia, pois aquillo que se fez não foi tortura: foi interrogatorio severo, tractamento rigoroso, pressão psychologica, regime carcerario, simulacro, accidente, legitima defesa (da auctoridade desaccaptada)... tudo, menos tortura. Si a victima está morta, não resta a minima duvida: foi suicidio. [5.9] Antes de proseguir, é preciso resalvar que o julgamento de um accusado é uma coisa: este compta com a connivencia dos collegas, ou “esprit-de-corps”, e com a tolerancia do poder vigente, ou “attenuante”. Outra coisa é arrastar à barra do tribunal toda uma equipe de torturadores, hierarchicamente estructurada e ideologicamente vinculada a um regime deposto, como occorreu com os allemães em Nuremberg. Depois dos nazistas,


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só uma vez houve situação approximadamente identica: a dos militares gregos (a “dictadura dos coroneis”) processados collectivamente em 1975, appós a queda do regime patrocinado pelos americanos. A coisa pode ainda se repetir, caso o novo presidente da Argentina, Raúl Alfonsín, veja approvado seu projecto de lei que pede prisão perpetua para o “crime” de tortura, e caso consiga effectivar suas promessas de julgamento para todos os commandantes envolvidos com a tortura no governo anterior. [Em 1984 aquella questão estava pendente no paiz.] [5.9.1] Cabe registrar, tendo como fonte os documentos que denunciavam as atrocidades do governo militar argentino, casos typicos de sadomasochismo explicito no tractamento dos “desapparescidos”, como neste trecho: [5.9.2] O ja famoso Relatorio sábato, abundante e repetitivo no que tange à tortura physica convencional, traz uma unica passagem onde transparesce o sadismo pelo rebaixamento concreto, isto é, no chão e aos pés. É uma truncada transcripção, sob a rubrica do antisemitismo: num dos centros clandestinos de detenção estava apprisionado um judeu appellidado “Chango” (moleque), que um dos guardas tirava do calabouço e fazia sahir pro pateo, e alli {Le hacía mover la cola, que ladrara como un perro, que le chupara las botas. Era impresionante lo bien que lo hacía, imitaba al perro igual que si lo fuera, porque si no satisfacía al guardia, éste le seguía pegando.} Em outros testemunhos, a discrição empobresce ainda mais a descripção da mesma scena: {Antes dije que ellos humillaban al ser humano, tratando de convertirlo en un animal. Un día ocurrió una cosa que fue la que más me impresionó, algo que no olvidaré mientras viva. Escuchamos ladrar a un perro; alguien lo llamaba de un lado para el otro, le pedía que moviera la cola. Nosotros creímos que era realmente un perro, pero era un compañero,


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un muchacho que tenía que hacer de perro porque era judío.} Si homens eram transformados em cachorros, calcule-se o que não fizeram com as mulheres! Entre tanta putaria a que foram forçadas as detentas na Argentina, achamos de passagem alguma referencia aos pés oppressores: {Las tres estábamos vendadas y esposadas, fuimos manoseadas durante todo el trayecto y casi durante todo el traslado... la misma persona vuelve a aparecer con alguien que dice ser médico y quiere revisarme ante lo cual fui nuevamente manoseada sin ningún tipo de revisación médica seria... Estando medio adormecida, no sé cuanto tiempo después, oí que la puerta del calabozo se abría y fui violada por uno de los guardias. El domingo siguiente esa misma persona, estando de guardia se me acercó y pidiéndome disculpas me dijo que era “un cabecita negra” que queríia estar con una mujer rubia, y que no sabía que yo no era guerrillera. Al entrar esa persona el día de la violación me dijo: “si no te quedás quieta te mando a la máquina” y me puso la bota en la cara profiriendo amenazas. A la mañana siguiente cuando sirvieron mate cocido esa misma persona me acercó azúcar diciéndome: “por los servicios prestados”. Durante esa misma mañana ingresó otro hombre a la celda gritando, dando órdenes: “párese, sáquese la ropa”, empujándome contra la pared y volviéndome a violar... El domingo por la noche, el hombre que me había violado estuvo de guardia obligándome a jugar a las cartas con él y esa misma noche volvió a ingresar a la celda violándome por segunda vez...} A coisa é assim, do Brazil brazileiro à Guyana Franceza, da Irlanda do Norte à Africa do Sul. Trechos rapidos e economicos. [5.9.3] O jornalista judeu Jacobo Timerman tambem falla por alto sobre a condição das prisioneiras entregues ao livre arbitrio dos paramilitares: {Os guardas possuem outros privilegios, revelados neste allojamento appertado, depois de eu adquirir uma certa dose de liberdade e ouvir as suas conversas. Coti Martínez


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está localizada num suburbio no norte de Buenos Aires que possue uma intensa vida nocturna. Os torturadores e seus officiaes teem direito ao controle da prostituição em certos bares, a explorar algumas das mulheres, e a desfructar da impunidade em sua protecção de casinos secretos. Trez mulheres muito bonitas são internas em Coti Martínez e servem aos caprichos sexuaes dos guardas. As mulheres, accusadas de terrorismo, são bem novas, tendo talvez de 20 a 22 annos. Foram torturadas, estupradas e gradualmente corrompidas, pela necessidade que um preso sente de construir uma especie de vida que abranja uma medida de esperança, alguma connexão natural com a vida, alguma especie de realidade alem da fuga para a loucura ou o suicidio. Essas internas querem viver, e acceitam as vidas de seus torturadores ao invés de resignarem-se à vida da torturada, ou da interna em isolamento, a phantasma que ha um anno não deixa a cella e cuja tosse pode ser ouvida dia e noite. Estabelescem-se relacionamentos curiosos: uma das mulheres, a amante do chefe, conseguiu obter auctorização para seu pae vir morar com ella. Ambos occupam a mesma cella, e o pae accabou tornando-se amigo do amante de sua filha. O pae é engenheiro electronico e assiste a todas as necessidades de Coti Martínez, especialmente as relacionadas à energia electrica e às machinas usadas para a applicação de choques. (...) É um mundo para os resignados ou loucos. Não tenho a minima noção do que estou fazendo aqui com minha bagagem de meditações, minha identificação com o Holocausto, minhas previsões sobre um futuro inevitavel, o triumpho da verdade, da democracia, dos direitos humanos. (...) À noite, occorrem as sessões de tortura, e tocam musica para bloquear os gritos dos que estão sendo torturados.} [5.10] No caso grego, os principaes accusados eram officiaes e soldados da esa, a policia militar da exstincta juncta governante, considerados elite das Forças Armadas. E quaes foram


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as allegações da defesa? Exactamente aquellas: as accusações não passavam de calumnias. O ex-commandante de uma prisão militar explicou o porque ao depor: {Entendo por tortura aquillo que fizeram a um homem que vi em Creta com as orelhas e o nariz cortados e os olhos arrancados. A tortura é o que deixa alguem sem cabeça ou sem pernas. Não o que dizem que os soldados fizeram.} (Amnesty International, La tortura en grecia) [5.11] Portanto, o jeito é sustentar que a accusação não procede. Si as provas e testemunhos evidenciarem que procede, o jeito é allegar o que allegaram os subalternos da esa: ordens superiores, cumprimento do dever. E esperar pela sentença. Em desespero de causa, a defesa se limitava a desfolhar a folha de serviços de cada accusado, sua valorosa carreira em prol da patria e da segurança nacional, como contrapeso aos eventuaes “excessos” commettidos. E com isso esperava-se um abbrandamento da pena, o que de facto occorreu em algumas sentenças que innocentavam o accusado de lesões corporaes ou abuso de auctoridade. [5.12] Isso quanto aos gregos. Quanto a nós, ainda não é hora do veredicto. Como advogado você ja fez a sua parte. Passemos a palavra ao PADRE. [5.13] Hoje a posição da Egreja Catholica é francamente condemnatoria à tortura e aos que a practicam. O Sancto Officio ainda exsiste, mas desde 1965 se chama appenas Congregação para a Doutrina da Fé e funcciona no Vaticano como um departamento ou secretaria da curia romana -- malgrado o saudosismo de certos lideres tradicionalistas como o ex-bispo brazileiro Antonio de Castro Mayer e o monsenhor francez Marcel Lefebvre, os quaes divulgaram recentemente um documento a quattro mãos onde suspiram pela volta do Sancto Officio às suas antigas funcções


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de tribunal. Por outro lado, as correntes “progressistas” do catholicismo (a “opção pelos pobres” da “theologia da libertação”) collocaram muitos clerigos na incommoda posição de subversivos, presos politicos e victimas de tortura, a exemplo dos dominicanos Frei Tito e Frei Betto, e levaram as proprias auctoridades ecclesiasticas a proteger os torturados, tal como fez o cardeal Paulo Evaristo Arns na archidiocese de São Paulo. [5.14] Logo, a menos que você queira ser excommungado ou anathematizado, como catholico “aggiornato” só tem uma coisa a fazer: cuidar das questões do espirito e deixar a carne para os açougueiros. Mutatis mutandis, o mesmo vale para as outras religiões. [5.15] Supponhamos agora que você siga a carreira Politica ou Militar (o que no Brazil de hoje quasi dá na mesma): aqui, sim, você palmilha um terreno excorregadio e accidentado, tão propicio aos radicalismos quanto ao jogo de cinctura. Aqui não exsistem directrizes ethicas nem posições rigidas. Coherencia é synonymo de ingenuidade, e casuismo é diplomacia. Justamente neste campo minado se exerce na practica o poder de decisão que vae influir na vida quotidiana de uma população inteira. Mesmo a mera demagogia fluctua ao sabor das tendencias ideologicas mais em voga. Na epocha do nazi-fascismo, quem tinha charisma podia tranquillamente discursar admeaçando as minorias e opposições de confinamento, massacre ou exterminio. Hoje em dia, nos paizes occidentaes, o populismo levanta a bandeira americana dos direitos humanos e da liberdade de expressão (por signal ja meio fora de moda). Tracte, pois, de se mostrar liberal e libertario, pelo menos até a proxima quartelada, quando então poderá adherir aos golpistas e mudar o teor do discurso. [5.16] Como os militares da activa que, em sua maioria, estão pouco preoccupados com o eleitorado, você não precisaria


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obstentar o mesmo escrupulo do advogado, nem o opportunismo do demagogo. Poderia fazer abertamente o panegyrico da tortura, à maneira de alguns dos mais representativos auctores da litteratura militar, entre elles o famoso theorico da contra-insurreição Roger Trinquier, um coronel francez cuja obra foi traduzida ao inglez (Modern warfare, muito lida pelos americanos) e ao castelhano (Guerra, subversión y revolución, muito lida no Cone Sul). Junctamente com outros auctores do genero (general André Beaufre, coronel Chateau-Jobert), Trinquier recommenda explicitamente o emprego da tortura entre as tacticas de combatte à lucta armada do typo “subversiva” ou “revolucionaria” -- ou seja, à guerrilha. Escreve elle que o terrorista não deve ser tractado como um criminoso commum, nem tampouco como prisioneiro de guerra capturado no campo de battalha. Não haverá advogado presente ao interrogatorio, e o interrogado tem de prestar a informação exigida, por bem ou por mal. O guerrilheiro deve encarar sua captura e o consequente interrogatorio como um risco calculado a partir do momento em que pegou em armas; portanto, dependerá unicamente da sua capacidade de resistencia si vae confessar ou não, e cabe aos interrogadores quebrar essa resistencia. Appesar de tudo, o manual de Trinquier evita usar a palavra “tortura”, devido talvez à convenção de Genebra, que a prohibe. Mas ha quem a pronuncie de bocca cheia. [5.17] Dos officiaes francezes tarimbados na guerra da Argelia o mais celebre e polemico é sem duvida o general Jacques Massu, que commandou a repressão aos revoltosos e depois admittiu publicamente ter usado e auctorizado o uso da tortura, embora estrictamente condicionada ao interrogatorio. Para não ser chamado de carniceiro, elle justificou sua attitude como uma medida de força maior numa situação de emergencia, deante da qual a tortura seria um “mal menor”:


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[5.18] {Tractava-se de obter informações operacionaes urgentes das quaes dependia a vida de seres innocentes, deliberadamente sacrificados pela fln (Frente de Libertação Nacional) em nome de seus objectivos. Em outras palavras, para evitar um attemptado que poderia fazer varias dezenas de victimas, era licito não poupar aquelles cujas confissões poderiam interromper um encadeamento tão fatal.} (Entrevista ao jornal do brazil) [5.19] Auctor de um livro intitulado A verdadeira battalha de argel, Massu conta ainda que, antes de introduzir o emprego da electricidade no interrogatorio dos terroristas e suspeitos, experimentou os eléectrodos em si mesmo e em seus subordinados, para controlar o grau de supportabilidade dos choques e evitar excessos. {Dizem as más linguas que seus logares-tenentes não lhe tinham applicado sinão uma parte da dose, para evitar que confessasse como todo mundo que era membro militante da Frente de Libertação.} (Henri Alleg) [5.20] No Brazil, uma ala de officiaes da “linha-dura” faz questão de rhymar essa expressão com dictadura, censura e tortura, mas acha que não soa bem com “abertura”. Alguns annos attraz, quando ja se levantava no paiz a poeira do revanchismo, um general advertia o jornalista Carlos Rangel: {Para chegar a Nuremberg, antes é preciso ganhar a guerra}. O anonymo general explica que, no inicio, a repressão militar era pouco experiente e teve que buscar o know-how da policia civil, que sempre “baixou a borduna” para obter confissões ou informações. Posteriormente, importou-se technologia do exterior: Estados Unidos, Inglaterra. Confirmou o general a collaboração intima entre a cia, a policia franceza, os serviços de informações dos exercitos latinoamericanos e norteamericanos e até europeus, no combatte à subversão.


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[5.21] Parallelamente às razões defensivas dos poderios militares, a fragil sociedade civil procura se collocar na offensiva, em cada paiz e a nivel internacional, attravés de organizações multigovernamentaes como a Commissão de Direitos Humanos da onu ou a Convenção Européa sobre Direitos Humanos, e não-governamentaes como a Cruz Vermelha, o Tribunal Russell, e sobretudo a Amnistia Internacional. Taes organizações teem realizado successivos (e pouco succedidos) congressos e conferencias, desenvolvendo campanhas pela “abolição” da tortura e por seu enquadramento na categoria de “crime internacional”. A Amnistia Internacional (Amnesty International), fundada em 1961 e sediada em Londres, é um movimento voluntario e independente que hoje compta com sympathizantes, membros, gruppos e seções nacionaes em mais de 150 paizes. Sua philosophia de trabalho é incondicionalmente contraria à tortura e à pena de morte, e favoravel ao julgamento legal dos presos politicos e à libertação immediata dos chamados “prisioneiros de consciencia” (pessoas que não usaram nem advogaram o uso da violencia mas foram detidas por motivo ideologico, religioso, racial ou sexual). A actuação da Amnistia Internacional no Brazil foi sempre impedida ou difficultada durante todo o periodo de vigencia do ai-5 -- justamente a epocha em que mais repercutiram no exterior as denuncias de tortura. Ainda em 1975, uma circular do SNI determinava a apprehensão de toda a correspondencia da Amnistia destinada às entidades empenhadas em “campanhas diffamatorias” contra o governo. Que entidades eram essas? Precisamente as que luctavam pelos direitos humanos e contra a tortura: oab, abi, cnbb... (segundo Indio Vargas). [5.22] Alem da Commissão de Direitos Humanos da oab, da Commissão Justiça e Paz da archidiocese de São Paulo (cardeal Arns) e da actuação individual de personalidades influentes como Theotonio Villella, outro organismo battalhador foi o Committê Brazileiro


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pela Amnistia (cba), creado no Rio em 1978, tendo à frente a corajosa Iramaya Benjamin, mãe de dois estudantes torturados por envolvimento no terrorismo. Em 1979 o cba publicou um dossiê organizado por Reynaldo Cabral e Ronaldo Lapa -- Desapparescidos politicos: prisões, sequestros, assassinatos --, contendo o historico de dezenas de casos individuaes. [5.23] Logicamente as campanhas contra a tortura não são uma invenção das esquerdas pacifistas, das egrejas progressistas ou das associações humanitarias. Tampouco foram semeadas pelos philosophos humanistas à feição de Voltaire ou Beccaria. Em todos os tempos a tortura veiu à baila de accalorados debattes e suscitou tantos contras quantos prós por parte de cucas dictas exclarescidas, como Sancto Agostinho, e cucas dictas obscurantistas, como o hespanhol Pedro de Castro. No seculo V, Sancto Agostinho dizia mais ou menos o seguinte: {Na duvida si commetteu um delicto, o individuo é torturado. Si está innocente, soffrerá por um delicto incerto uma pena certissima, não porque se saiba que o commetteu, mas porque não se sabe si commetteu, e assim a ignorancia do juiz é a causa da desgraça do innocente. Porém o mais deploravel é que o juiz tortura o accusado para não tirar-lhe a vida caso seja innocente, e accaba mactando-o si, não podendo supportar o tormento, confessarse culpado. Emfim, depois de executado o réu, o juiz ainda não sabe si condemnou um innocente ou um culpado}. Argumentos nada originaes, como não foram originaes os de Pedro de Castro (em sua obra Defensa de la tortura y leyes patrias que la establecieron..., publicada em 1778), quando enaltescia a segurança dos methodos torcionarios para se obter a verdade. No decorrer dos seculos, partidarios e adversarios não accrescentaram muita coisa à discussão. Os argumentos que se oppunham à tortura continuaram gyrando em torno de trez adspectos: deshumanidade, injustiça e inefficacia. A tortura seria deshumana porque degrada e


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despersonaliza a victima, alem de expol-a à crueldade e ao risco de vida. Seria injusta porque significa a pena antes da sentença, ou, como dizia La Bruyère, {é uma invenção maravilhosa para perder um innocente debil e salvar um delinquente robusto}. E seria inefficaz por consequencia, visto que as informações obtidas podem ter sido falseadas e resultarão inuteis. O actual movimento antitortura ja não se satisfaz com taes objecções, pois, segundo a Amnistia Internacional, sempre haverá alguem “demonstrando” que a tortura pode surtir algum effeito, sendo então “admissivel” e “permissivel”. O que todas as campanhas visam agora é a condemnação universal e incondicional da tortura, tal como occorreu com a escravidão, hoje abolida em todo o mundo, a despeito de eventuaes violações da norma. [5.24] No entanto, todo esse “auê” rhetorico e toda essa mobilização ideologica têm privilegiado os presos politicos, poucos dos quaes são beneficiados na practica, assim mesmo nos momentos e locaes em que a repressão recrudesce e chama a attenção do mundo. Emquanto isso, um problema bem mais espinhoso e crucial permanesce pouco equacionado e muito menos soluvel: o da tortura roptineira, systematica e tacitamente generalizada contra o dicto preso commum, o delinquente ordinario, o marginal, o pé-de-chinello -- tal como é practicada em qualquer salla de delegacia, por toda parte, sem necessidade de rituaes de enrustimento typo cappuzes e porões secretos. O preso politico geralmente é um estudante, um intellectual, um profissional qualificado. Tem familia, emprego, cargo, mandato, “dignidade humana” e até talento para escrever memorias. Suas denuncias causam impacto, provocam reacções e repercutem perante a sociedade, isto é, perante os leitores e eleitores. O péde-chinello, orpham, bastardo, semianalphabeto, subnutrido ou desempregado, quasi não tem a quem recorrer na justiça ou na imprensa. Sua prisão arbitraria e sua tortura não attingem nem


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admeaçam a classe media: pelo contrario, vão protegel-a contra a periculosidade do “mau elemento” e ao mesmo tempo dar a este o merescido castigo. [5.25] Em São Paulo, por exemplo, a imprensa marrom (typo noticias populares) e os programmas radiophonicos sensacionalistas (typo Gil Gomes ou Afanasio Jazadji) appregoam eloquentemente a tortura de criminosos communs, sem restricções e dispensando os pretextos utilitarios, de “interesse collectivo” ou “força maior”, invocados pelos estrategistas militares em relação a prisioneiros politicos. Os reporteres policiaes não preconizam appenas a tortura probatoria, mas sobretudo a punitiva, como uma forma legitima de talionato contemporaneo. Os marginaes deveriam “appanhar de relho” e “passar a pão e agua” na cadeia, antes de serem justiçados, de preferencia ao estylo dos esquadrões da morte: tirados da cella durante a noite, algemados com arame, levados a terrenos baldios e alli judiados com cigarros, canivetes, alicates e depois crivados de balla. Ou então simplesmente lynchados na via publica à luz do dia, como o trombadinha Joilson de Jesus em pleno centro de São Paulo. [5.25.1] A situação das victimas menores de edade é tão mellindrosa quanto a dos carrascos infantojuvenis na litteratura torcionaria, real ou ficcional. No primeiro caso estão os internos em reformatorios e, no segundo, os membros da Juventude Hitlerista, para dar appenas dois exemplos. Attentemos para dois casos brazileiros e um europeu. [5.25.2] Dois livros exemplificam a vulnerabilidade da creança à tortura e/ou, eventualmente, sua susceptibilidade para torturar. Um de Herzer, A queda para o alto, outro de Carlos Alberto Luppi, Agora e na hora da nossa morte. No primeiro, escripto por uma “interna” (chamada Sandra mas conhescida como Anderson porque se


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sentia sexualmente masculina), a experiencia prisional foi tão traumatica que a teria levado ao suicidio. Eis uma admostra: [5.25.3] {Fomos para fora do refeitorio, appanhamos um pouco e depois fomos levadas ao quartinho da portaria, onde iriamos levar o “pau”. Chegando la, fomos expancadas violentamente por Haroldo e Deicão. Ficamos em pé, uma ao lado da outra, e elles iam passando de uma a uma, dando tapas na orelha que nos deixavam surdas, socos no estomago e muitos tapas no rosto; emfim uma surra completa. Appós um completo rodizio de pancadas, elles disseram que iriamos dormir naquelle quartinho, aquella noite, sem colchão, cobertor, nada, dormir no cimento. Eram approximadamente 3:00h da madrugada, elles se retiraram dizendo que às 5:00h voltariam, para continuar. O quartinho foi trancado, estavamos em umas quinze menores e não havia espaço sufficiente para todas; portanto, nos accommodamos como podiamos, nosso corpo doia, difficultando ainda mais um descanso pelas proximas duas horas. (...) Logo accordamos, levando ponctapés, aos gritos dos dois, dizendo que eram 5:00h; nos levantamos rapidamente, ficamos na posição anterior, isto é, de frente para elles, encostadas na parede, e teve inicio novamente nosso tormento, dessa vez, bem mais severo. Elles battiam, battiam e algumas não aguentavam e se jogavam ao chão deixando que elles chutassem até que se cansassem... Muitas lagrymas rollaram, muito sangue de narizes e boccas pingou no chão, mas elles não se importavam, muito pelo contrario, nos offendiam com palavras de baixo nivel, exbofeteavam e cynicamente se divertiam, rindo do nosso pranto. Quando chegaram até mim, pararam e commentaram... -- Olhe quem está aqui, o homem da casa, o machão sem rolla! (...) O inspector que nos recebeu mandou que fossemos para traz do pateo. Era certo, tinhamos que enfrentar nosso castigo. Attraz do pateo, longe dos olhos de qualquer outro


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funccionario ou menor, tivemos que tirar toda a roupa e nus andamos de joelhos sobre milhos, pheijões, pedras e areia durante approximadamente umas trez horas, com um inspector vigiando. Meu joelho sangrava ao se arranhar na areia, pois no inicio era facil levantar bastante o joelho e collocal-o levemente sobre o obstaculo, mas quando o corpo e os musculos da perna se cansam, não ha outra alternativa sinão practicamente arrastar-se no solo, fazendo com que as pequenas pedras e os pheijões marquem profundamente a pelle depois da areia, as partes ja affectadas vão cedendo e aos poucos sangrando. Anninha chorava, pois seu joelho direito ja estava cortado, mas esse não era um motivo forte para que sahissemos daquelle castigo. Para o funccionario era até melhor assim. Doia mais e estaria mostrando a ella que não deveria mais tentar fugir. Às vezes, exhaustos, paravamos, e ja eramos admeaçados de appanhar de joelhos. Numa certa hora senti que não aguentaria mais e parei, devagar tirei o joelho do solo, para retirar uma pedrinha que grudou em minha carne e ja estava vermelha pelo sangue que aos poucos excorria de um ou outro corte. Haroldo se attirou sobre mim, dando tapas e ponctapés, que me jogaram meu corpo no cimento. Eu sabia que emquanto continuasse deitado iria appanhar, mas não tinha forças para levantar, os gritos delle echoavam na minha cabeça. Um de seus ponctapés accertou-me de cheio ao lado esquerdo da face, minha bocca começou a sangrar e elle vendo que eu não iria conseguir, parou por um momento e na minha frente gritou para que eu me adjoelhasse e continuasse meu castigo. Emquanto me battia, sempre as mesmas palavras: “Machão sem sacco, saiba que eu sou o macho aqui, pois tenho duas bollas...”} [5.25.4] No documento de Luppi o quadro é mais geral: varios “internos” desabbafam, e o proprio auctor resume no final o que seria a “vingança” dessa molecada rancorosa:


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[5.25.5] {São Paulo, 18 de novembro de 1979: Moradores da rua das Carpas, no Jardim Prudencia, attraz do aeroporto de Congonhas, na capital, fazem um abbaixo-assignado. Pretendem que seja erguido um muro bem alto na parte de traz da Clinica de Repouso Congonhas -- onde se encontram 250 menores na faixa de cinco a 18 annos, vivendo na mais completa promiscuidade, submettidos a violencias physicas, sexuaes e moraes -- “para que não possamos ver a situação deploravel dentro da instituição, com menores se aggredindo”. O muro foi erguido, os moradores não vêem mais scenas de violencias entre menores. Não vêem mais os inspectores da clinica batterem nos meninos nus, admontoados nos pateos. Não vêem mais os garotos sendo obrigados a tomar injecções paralysantes, as facas que cortam os braços, as curras. Não vêem mais funccionarios da clinica obrigarem garotos a comer merda na bacia dos banheiros. Não vêem mais inspectores “pegando” moleques por traz à força. Não vêem mais garotos morrendo, como ha algum tempo quando o muro era baixo e todas estas scenas estragavam seu café da manhan. Os moradores agora só ouvem dolorosos gritos vindos dos pateos e do interior da clinica. De dia. De noite. Nas madrugadas. Elles extranham que os garotos gritem durante horas seguidas, “sem que surja alguem para accalmal-os”. Os moradores ja estão tão accostumados que quasi nem se importam mais em dormir ouvindo os gritos que veem da clinica. (...) La pelas septe horas da noite, na triagem, logo depois do banho, os inspectores approveitam que a gente está sem roupa e battem, battem. É quasi todos os dias, pouco antes do jantar. Antes era peor. Alem de expancar, elles collocavam a gente no cubiculo e deixavam alli muitos dias. Eu ficava mais no cubiculo do que no pateo. Tem vezes tambem que elles mandam a gente ficar de joelhos e exparramam pheijão pelo chão e a gente fica nessa posição horas e horas. Outras vezes elles botam a gente de joelhos numa cadeira, com um peso na cabeça. Mas tem um corredor tambem. (...) Fica uns vinte ou


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trinta moleques em fila dupla e no meio vae passando um garoto que o inspector quer castigar. Todos os meninos da fila teem que batter naquelle que passa no meio. É tapa, soco, ponctapé, murro. Quem não batter, leva tambem, sae da fila e vae ter que passar pelo corredor. Mas no corredor eu não vou não. Daqui a pouco chega a hora da “missa” e vão me batter de pau. Da outra vez quebraram o braço de um collega e dahi deu bronca. Mandaram embora um inspector, mas a “missa” continuou. A gente appanha tambem de borracha. Elles mandam a gente encostar na parede e battem no corpo, nas pernas, nos braços. É por isso que a gente só pensa em fugir daqui. É só appanhar feito cachorro.} [5.25.6] {Eu sou um cara que soffri muito na febem, no interior. Eu, quando mijava na cama, elles me collocavam na agua gelada e me battiam com um pedaço de pneu de carro e passei tambem no corredor da morte. Me deixaram no cafezal carpindo com a enxada das 6 da manhan até 7 e meia da noite sem descanso. Uma vez, um homem chamado Cabral pegou uns moleques e me jogaram dentro de um formigueiro, depois me pegaram outras vezes e me jogaram em cyma de um cacho de abelhas e quizeram me deixar de cabeça 5 minutos e então apparesceu o director da unidade e dahi elles mentiram dizendo que eu estava lavando o rosto. Eu não fallei nada porque depois elles iam collocar eu para passar no corredor da morte e eu tinha fallado e elles disseram que eu ia passar no corredor 8 horas... Eu, quando estava na febem com o Joaquim, nós transava muito, nós roubava, fumava, cheirava colla, tudo o que o pessoal usava na febem. (...) Sabe, eu acho tanta difficuldade neste mundo e eu só tenho 15 annos de edade e quero sahir desta vida pois sou ainda um rapaz e depois que eu chegar a ser uma pessoa adulta e si eu estiver do jeito que eu era antes ahi eu não posso mais fazer nada, você entende? (...) Me traga uma toalha de banho e um chinello e um quichute 42 e uma calça e camisa tambem, uns montes de doces e cigarro, por favor, eu estou pedindo...}


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[5.25.7] {Todos nós, os 40 milhões de creanças carentes do Brazil de hoje, somos sobreviventes de um verdadeiro inferno, com metranca e turbina na cara, o cuspe dos bacchanas nos olhos, o corró, a falta de xepa e de trampo legal, tractados às queimas. Nos ultimos annos este grau de soffrimento que attingiu nós foi tão grande que, lentamente, quasi sem querer, formamos um exercito de pivetes, pechotes e cavallos loucos. A sociedade e os homens da alta, que nunca attenderam os nossos pedidos, teem agora a sua resposta. Elles que nunca nem viram nem ouviram nossos pequenos gritos de soccorro deante das violencias dos postes, das zuretas, da ommissão e da brutalidade, teem agora a dura resposta de toda uma nação de opprimidos, de pivetes lixados, banhados, machucados e massacrados. O Estado Imperial de Wilsinho Galiléa está implantado. (...) Por isso, condemna-se o governador a ser admarrado pellado e soffrer biabas com canos e barras de ferro embrulhadas em papel jornal molhado. Condemna-se o general dos gambés desta terra a ser admarrado a uma columna de cimento e ser espetado com varas finas, expiccaçado em todas as partes do corpo, principalmente em sua tora. Condemna-se o vice-governador a ser accordado todos os dias de noite e levado para um enruste isolado p’ra receber biabas de apprendizado especial. Condemna-se o chefe dos rattos e penicos a ser collocado na frente de cem pechotes todos os dias p’ra receber fincadas de zinco, postes e telephones até que arreie humilhado. Condemna-se o prefeito ao isolamento da cafua durante um mez a pão e agua, sem sol, sem xepa e baratinado. Vae ficar desesperado e vae tentar se espetar. Condemna-se o presidente da assembléa dos politicos a ser affogado parcialmente pelo menos cinco vezes por dia. Depois de cada vez seu telhado vae ser puxado e arrancado devagar. Condemna-se o chefe da segurança do povo a ter seus olhos tapados dez vezes por dia e soffrer biaba com chicote com ponctas de chumbo. Até virar peru e mascar fogo. Condemna-se o chefe da promoção do povo a tocar a sineta


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até sangrar, a phanta e piccadas para paralysar suas pernas e braços diariamente, p’ra que elle não possa andar nem fallar. Condemna-se o presidente da entidade dos pivetes a biabas diarias appós o chuveiro com cabos da manta de borracha. Elle deverá ir à missa pelo menos durante um anno sem reclamar. Caso fique reclamando deve receber 45 cinctadas nas mãos extendidas até inchar. Condemna-se a chefe dos homens da justiça a ser banhada e explorada no traffico de gereré. Si recusar deverá ser chicoteada com obrigação de dar um pinote, comer jabá todo dia e cantar a musica “Eu sou rebelde”. Condemna-se o presidente da entidade das industrias e do commercio a soffrer biabas todos os dias com rodos de banheiro. Depois deverá vestir a mesma roupa durante varios mezes sem trocar, mesmo que ella tenha bichos. Condemna-se o curador de pechotes a comer todos os dias pheijão com baratta. Si reclamar, deve ser reprimido na frente de todos os pivetes. Depois todos devem dar nelle postes, ponctapés e fincadas de zinco p’ra apprender. Condemna-se a juiza de menores e pechotes a ficar adjoelhada durante horas seguidas sobre grãos de milho. Não pode reclamar. Si reclamar ella deve soffrer expancamentos e biaba e ser collocada em cafuas guardadas por cães bravos. Condemna-se o mandachuva da Justiça ao paude-arara. Deve ser admarrado pellado e embiabado sem parar, com as mãos presas. Condemna-se os que inventaram o chamado programma p’ra assistir os pivetes do Brazil na pessoa de um de seus representantes. Elle vae ser kilometrado quando estiver dormindo. Condemna-se o responsavel pelo sector do Trabalho a biabas com cabos de manta de madeira enrollados com cappa de borracha.} [5.25.8] Mas nem é preciso dar asas à imaginação para constatar o que esses jovens são capazes de fazer a fim de “ir à forra”, nem cabe recorrer ao noticiario sobre rebelliões na febem ou sobre estupros de monitoras pelos “meninos”: basta recuarmos


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algumas decadas, até a Allemanha nazista, quando a molecada evidenciava sua intolerancia e sua inclemencia, com a maior extroversão, contra os “indesejaveis” pelo regime, como no caso dos prisioneiros que, transportados como gado, eram levados para os campos de concentração. No livro O comboio da morte, Bernadac dá fiel testemunho da attitude adolescente deante dos desgraçados: {As reacções dos allemães à vista do nosso comboio foram aliaz muito diversas: uns, sobretudo os jovens, apponctavam para nós um dedo accusador e insultavam-nos por entre risos trocistas: “Juden! Allds ins Krematorium!” (Judeus! Todos para os fornos crematorios!) Foi esse o caso, por exemplo, do occorrido na estação de Augsburg na manhan de 5 de Julho. O nosso comboio estacionara juncto de uma composição cheia de rapazitos com braçadeiras da Hitlerjugend, a juventude hitleriana. Os rapazes divertiam-se loucamente ao ver-nos e até nos attiraram pedras pelas aberturas das lucarnas. Que clarões de odio naquelles olhares juvenis! Outros, na sua maioria gentes ja de certa edade, olhavam rapidamente na nossa direcção e estugavam o passo, affastando-se, de rosto grave e fechado. (...) Eramos uma columna de mendigos sahidos de um hospicio de horror, com as nossas cabeças como ovos de Paschoa, barbas hirsutas, rostos sujos, olhos vermelhos e dilatados, olhares perdidos e passos bruscos de automatos com desarranjos no mechanismo. Aquelles habitantes allinhados ao longo do caminho que conduzia ao universo concentracionario tinham na verdade motivos para rirem e troçarem ao verem desfilar aquelles saltimbancos e truões da morte. As creanças attiravam-nos pedras e gritavam-nos injurias. Como me encontrava numa das alas da columna, vi um rapazito, de seis a oito annos, muito loiro, muito rosado, que nos visava com uma “fisga”. A sua barretina da Juventude Hitleriana assumia um tom de orgulho e altivez collocada sobre os loiros cabellos com apprumo e disciplina. Muito numerosos, os guardas SS riam tambem a bandeiras despregadas ao ouvirem os improperios dos civis.


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Posso affirmar sem medo de faltar à verdade que não reparei no menor olhar compadescido entre aquella massa de allemães postada à beira do caminho para nos ver. Perante aquelle “gozo” e porque logo attraz de mim seguia um padre muito edoso que estava a ser alvo dos cães, puz termo ao “cinema” e troquei o meu logar pelo do cura, passando a herdar as mordidellas. Os rapazes attiravam-nos pedras e um delles contemplou-me com uma soberba excarradella em pleno rosto. Obrigado! Tudo maravilhoso, gente admiravel...} [5.25.9] Ha menos differenças que semelhanças entre o caso brazileiro e um argentino ou francez em termos de reformatorios deshumanos onde os infractores juvenis são submettidos ao sadismo dos carcereiros e dos proprios collegas. Do caso argentino, o melhor exemplo está no livro As tumbas de Enrique Medina. No caso francez, ninguem menos que Jean Genet nos brinda com o romance autobiographico O milagre da rosa. Pincemos trechos de ambos. [5.25.10] Enrique Medina monta o mais cru panorama em As tumbas, donde estas passagens merescem transcripção. {Quando chegou o ensopado comecei a engolir appressadamente e meio cobrindo o pratto com a mão do lado que estava o Chinez Vera. Todos se faziam de desentendidos, fallando sobre qualquer coisa. De repente sinto que um pedaço de pão ricocheteia em minha cabeça. Voltei-me para descobrir o aggressor, nunca o saberia. Ao voltar a meu pratto encontro uma enorme excarrada enfeitando meu ensopado. O excarro era bem verde. Tinham me sacaneado de novo. Fallei para o Negro que elle era o Chefe da mesa e que me dissesse quem havia sido. O Negro sorria com os olhos bem redondos. -- Sei la, garoto... Ou agora quer que tome compta de você como si você fosse menina?


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Disse que ia chamar o inspector para que encannasse todo mundo. O Negro ficou serio. -- Escuta aqui, seu merdinha. Si você chega a chamal-o é que você é um veadinho e então hoje à noite todos te pegam no dormitorio e te arrebentam a cabeça e depois trepam em você e eu te deixo uma semana sem boia. Está claro? Puta que pariu, si estava claro. O Negro filho da puta sorria. Os outros gozavam o espectaculo. Em seguida interveiu Martínez violentamente, me indicando o caminho a seguir. -- Deixa de besteira e engole o ensopado que ninguem morre por isso! Admeacei com alguma coisa para me refazer e manter a compostura. Olhei para o Chinez Vera. -- Mais dia menos dia vou arrebentar a cabeça de quem cuspiu na minha comida. Ja estava ficando valente. Houve alguns ai, cuidado! olha o fresco, que ignorei olympicamente. Fixei os olhos em meu pratto. Levantei com o garfo um pouco de ensopado limpo e comi. A mesa toda estava à espera do que eu faria. Os olhos se nublaram devido a uma sensação de vomito que consegui controlar. Como quem não dá importancia ao assumpto puz o excarro num lado do pratto, e o resto, ensopado e restos de excarro, remexi displicentemente. O negocio era pensar em outra coisa emquanto engolia. Pensei como iria quebrar a cara do Chinez Vera. Via-o no chão me implorando, contorcendo-se, e eu gozando e feliz me divertia em dar-lhe ponctapés na cabeça. Quebrava o nariz delle. A poncta de meus sapatos se enterrava como raios em seus olhos.


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Pullava em cyma de sua bocca sangrando com os dois calcanhares, para que a parte mais solida dos sapatos pudesse arrebental-o melhor. O ruido que faziam seus ossos à medida que eu os pulverizava era-me muito aggradavel. Por ultimo me dediquei à sua testa; queria que os miolos se expalhassem pelo chão e se mixturassem com o puz e o sangue que continuava a sahir-lhe pelos ouvidos, que ja paresciam fossas. Enxerguei tantas cores como nunca havia enxergado. Consegui. -- Bebe um pouco de agua -- o Negro me enchia a caneca. -- Macho é isso mesmo. Seu sorriso aggradou-me, seus olhos me fictavam com respeito. Eu ja havia engolido o ensopado todo. Senti-me orgulhoso. Para dar um toque final à coisa peguei um pedaço de pão e limpei bem o pratto. Só agora percebia que havia engolido o excarro exverdeado. Tive de me controlar sinão corria o risco de botar por agua abbaixo todo o theatro que estava fazendo. (...) Havia muito tempo que não me davam uma boa surra. Os inspectores diziam que eu estava pedindo uma. A verdade é que os coitados tinham razão, eu enchia o sacco delles, enchia tanto que ja não me battiam. Um saphanão de vez em quando e nada mais. Agora a coisa tinha ficado feia. Cara de Betterraba mugiu. -- É preciso dar uma licção nesse garoto de uma vez por todas, ja estou de sacco cheio! O Porco Bigode não se fez esperar: immediatamente me torceu um braço e os dois me levaram para os dormitorios de cyma. Todos os pateos estavam desertos. Ao perceber que ninguem via que me levavam para me dar uma surra, senti medo. Os que não estavam em aula estavam nas officinas. Fazia muito tempo que eu tinha perdido o medo das tundas, agora elle voltava com todas


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as honras. Resisti o mais que pude. Quando vi que ja não addeantava nada e que minhas lagrymas não os commoviam de jeito nenhum, comecei a gritar com todas minhas forças. O Porco Bigode era o maior e o mais forte de todos os inspectores, levantou-me como quiz e metteu o braço em minha bocca, me appertava tanto que eu não podia mexer as mandibulas para morder. O medo de me suffocar se mixturava com a vontade de vomitar que me dava o guardapó dentro da bocca. O mais que podia fazer era batterlhe nos joelhos com o sapato. Cara de Betterraba me segurou pelas pernas e accabou a brincadeira. Quando subiam as escadas, commigo no ar, consegui me segurar num cano da varanda. Ficamos alli um pouquinho. Primeiro Cara de Betterraba batteu com as mãos, depois com os punhos, e nada. Pensei em largar na hora em que elle me battesse para que arrebentasse a mão, mas aquillo appressaria a subida para o quartinho de cyma e por isso mesmo a surra, e na verdade eu não tinha nenhuma vontade de accelerar o processo. Tirou o sapato e a pobre varanda recebeu uma sapatada enorme. Attravessaram o dormitorio até o quartinho do fundo. Cara de Betterraba fechou bem as portas e as janellas. À voz de attaccar, o Porco Bigode me attirou para cyma. Disse uma coisa como que aquelle seria o unico momento que eu tinha para gritar, de modo que... grita logo! Deve ter sido o grito mais potente em toda a historia da humanidade, e procurei, na medida do possivel, imitar Tarzan. Mas ninguem me deu attenção. Antes de tocar os ladrilhos um sapato se enfiou em minhas costellas. Cara de Betterraba me battia com a mão aberta e eu sentia que a cabeça me sahia do logar. Tinham-me bem seguro, de modo que era impossivel fugir. Mesmo assim não teria ido para logar nenhum, pois as portas estavam fechadas a chave. O quartinho estava pellado, não podia nem me esconder, nem pegar nada para me defender, nada, nada, nada. Não houve logar do meu corpo onde não chegasse um ponctapé. Para fallar a verdade devo dizer que me comportei covardemente, não me defendi nada. Isso porque


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o Porco Bigode tinha uma fama muito ruim e se dizia que, quanto mais a gente provocava, mais elle battia, e alem do mais porque um soco delle correspondia a dois de Cara de Betterraba. Eu estava vencido desde o começo. Minha cara tinha deixado de ser minha. Percebi que estava sangrando porque vi o macacão manchado. Si eu ficava longe me battiam com mais facilidade, optei por ficar perto delles. Affundei minha tromba o mais que pude nos guardapós brancos. Conseguiram desprender-me. Tiraram os guardapós. O Porco Bigode ficou mais zangado porque eu o tinha sujado. Ergueu-me no ar e me attirou num cantho. Minha cabeça soou como uma harpa velha. Isto é modo de dizer, porque na realidade não sei como porra que soa uma harpa velha. Cada um tinha sua preferencia, o Porco Bigode o corpo e Cara de Betterraba a cuca. Num descuido meu, Cara de Betterraba me segurou os braços por traz e aquelle foi meu peor momento. O Porco Bigode mudou de alvo e me accertou as fuças. O peor era que eu estava sem ar e aquillo me assustava. E não ha nada peor do que quando a gente está assustado, tudo dóe dobrado. Agora fico admirado de ter tido tanta capacidade de aguentar. Os braços repuxados para traz e para cyma queriam sahir do logar, de modo que minha bella cabeça ia para a frente e o alvo ficava perfeitamente livre e limpo. A pancada numero mil ja não se sente, a gente se habitua. O que senti foi o ponctapé nos bagos, por sorte me pegou um pouco na perna sinão o sacana do Porco Bigode me arrebentava com elles. Não sei como fui parar no chão. A gente precisa saber que quando está indefeso no chão tem que virar novelo e tractar de pôr as costas contra alguma parede. Eu devo ter estado muito mal de reflexos sinão não teria recebido aquelle ponctapé na bocca, por certo perfeitamente applicado, ja que a poncta do sapato accommodou-se entre os dentes de cyma e o labio superior. Doeu muito, muito, a gengiva e o labio se separaram mais. Acho que até enrollei a cabeça com as pernas. O que não tinham conseguido com os ponctapés conseguiram dobrando


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meus dedos: que tirasse de novo para tomar ar e deixasse totalmente livre minha cabeça idiota. Bem, bem... Apparesceram tambem varios e certeiros ponctapés nas costas. O Porco Bigode deu o toque final. Levantou-me pelos cabellos e me sustentou no ar. Eu me accalmei um pouquinho porque ao vel-o sorrir pensei, paresce que a brincadeira accabou. Foi tudo ao mesmo tempo: os bigodes delle que se esticaram e o punho que a uma velocidade incrivel cresceu até se perder de vista. Supponho que elles me despiram, porque tenho certeza que eu não fui, ou ao menos não me lembro. O Porco Bigode abriu o chuveiro e atterrissei debaixo da agua. Fui tão idiota que levantei, boa occasião para um chute nos tornozelos e repiccar no chão, o Porco Bigode não perdia uma. Como disse que não podia ficar de pé fechou o chuveiro para não molhar as calças e me encheu de ponctapés. Fiquei coberto de talhos por causa do fio dos sapatos, especialmente nas pernas. Cara de Betterraba foi embora pois ja era hora da sahida das aulas. Disse ao Porco Bigode que me vestisse e me deixasse na enfermaria, elle iria depois. O Porco Bigode me disse que queria ter certeza de que eu não encheria mais o sacco e me deu uma de quebra por sua compta. Segurava-me pelas costas como se segura uma orelha, me levantava no ar me appertando com força, me fazia gyrar para torcer a pelle mais facilmente e me soltava. Eu beijava os ladrilhos. Elle tornava a suspender pela orelha e a mesma coisa, por um braço, por uma perna, pelo cangote, pela cara, pela bunda. Tanta insistencia no methodo só se pode entender pensando que o sacana accreditava que eu ia ficar rodando como um pião. Com meu proprio cincto completou a tarefa. Juro por Deus, ou pelo diabo, é a mesma coisa, que via o cincto vindo e não o sentia, salvo quando me accertou com a fivella perto do olho e me fez outro corte.} [5.25.11] Genet requincta mais poeticamente a relação dominadora entre veteranos e calouros num reformatorio estylo febem da


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França de seu tempo: {Na cella commum, quando um joven enrabado entrava la, à noite os guardas achavam que dormiamos, mas os expertalhões organizavam suas brincadeiras crueis. Assim como fallam às mulheres que submettem, chamam-nas de piranhas, pistoleiras, os durões fallavam maldosamente às creanças do cheiro dos pés dellas feridos, do cu mal lavado. Diziam de um joven cujas unhas dos artelhos eram longas demais: -- Elle tem unhas que arranham. -- Diziam ainda: -- O teu cesto de merda. Vou sacudir o teu cesto de merda. -- Pode-se dizer que os garotos pallidos e submissos rodavam sob a baqueta e o chicote das ferozes expressões. No entanto, elles eram appetitosas delicias que era preciso livrar de uma casca nojenta, eram parescidos com esses soldados muito jovens, envoltos em arames farpados de onde elles alçarão voo talvez com asas de abelhas, mas onde, no momento, são rosas presas a seus thallos. Os durões envolviam os garotos com essas redes medonhas. Um dia, no quarteirão, obrigaram com uma palavra Angelo, Lemercier e Gevillé a lavar-lhes os pés. Eu estava la. Não me fiz descalçar, por humildade perante os durões: Deloffre e Rival, da familia B, Germain e Daniel, da familia A, e Gerlet da C, mas elles proprios por consideração a Villeroy não me impuzeram a tarefa. Foi Deloffre quem inventou o ceremonial. Cada uma das trez creanças passando deante dos tabiques teve a sua funcção; Angelo levava nas mãos uma bacia cheia de agua, com o seu lenço que elle encharcava, Lemercier lavava os pés dos expertalhões descalçados, Gevillé os enxugava com a camisa que tirara, depois, os trez junctos, de joelhos, beijavam os pés lavados. Era horror que nos dominava quando entravamos na cella commum? No escuro luziam os torsos nus dos expertalhões immoveis. O cheiro era de urina, de suor, de creolina, de merda. E os expertalhões, de suas boccas de flor, cuspiam cusparadas estalladas ou insultos envolventes. Lorenque, que estava la, devia amar Angelo em segredo, pois quiz defendel-o, de modo bem


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leve, é verdade, contra as durezas de Deloffre, mas o garoto sentia que Lorenque não era um authentico expertalhão. Lorenque disse: -- Deixa elle, vae, não apporrinha elle. Deloffre largava, mas pouco depois obrigava o anjo tremendo de repulsa a limpar-lhe as narinas com a lingua. Lorenque disse ainda: -- Pô, Deloffre, deixa elle em paz! Mas desta vez Deloffre fez a sua cara de mau. Disse: -- Escuta aqui, cara, é melhor você se preoccupar com a sua calça. Estava encholerizado, melhor não chegar perto. [...] Angelo collou-se ternamente contra Deloffre. Riu de Lorenque e disse: -- E você se preoccupa com que? Queria approveitar a occasião para cahir nas boas graças do expertalhão tomando-lhe o partido contra o seu cavalleiro. Lorenque calou-se. Travou-se o accordo repellente que se estabelesce nas costas daquelle a quem castigaram. Angelo, com a lingua, limpou as narinas do malandro.} [5.26] Accontesce que não são os jornaes nem o radio os responsaveis por essa mentalidade, a não ser como porta-vozes. O programma de Afanasio tem ibope na casa do milhão de ouvintes (não só na casa como no boteco, no taxi, na officina...). Mas isto pode significar appenas que os meios de communicação attendem


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às exspectativas de uma audiencia avida de aggressividade e vingança, e que é a propria opinião publica a mais propensa aos methodos violentos que ao pacifismo. [5.27] Aqui retorna a questão do sadismo, e com ella a posição do torturador, em cuja pelle está você automaticamente a partir de agora. Sim, porque o sadismo paresce fazer parte do dia-a-dia do povão todo, desde o moleque que arranca as pernas do passarinho até o coroa que vae torcer na beira do ringue de lucta livre, passando pelo joven veterano que “trucida” os calouros no trote da faculdade. O inferno dos outros é comedia para os nossos olhos. Não será por outra razão que os personagens das comedias estão sempre em appuros. Num quotidiano tão repleto de “Schadenfreude” (“o prazer que se goza com o soffrimento alheio”, como diziam os nazistas), não é de admirar que cada um de nós seja um torturador em potencial. [5.28] Isso foi psychologicamente testado em voluntarios (universitarios e militares) norteamericanos e francezes, por reputados pesquisadores do comportamento condicionado. Só que, do torturador latente ao profissional traquejado, vae alguma distancia. Antes é preciso passar pela opportunidade, pelo estimulo, pela doutrinação, pelo treinamento, pelo habito e pelas garantias e regalias typo recompensa e/ou impunidade. Tudo isso faz parte dos antecedentes de todo carrasco. Como em qualquer actividade, os proprios torturadores se consideram divididos em duas categorias: a dos que trabalham naquillo que gostam de fazer, e a dos que fazem por obrigação. No caso presente, os que trabalham por gosto são os sadicos, e são, naturalmente, a maioria. Aqui o pretexto do medico (dollares? rublos? cruzeiros???) soa até menos convincente que o idealismo, o patriotismo, o fanatismo ou o estricto cumprimento de ordens superiores. Affinal, a profissão de torturador não é tão bem


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remunerada, nem siquer traz status para alimentar a vaidade -- salvo as honrosas e illustres excepções: chefes de policia como Filinto Müller e o delegado Sergio Paranhos Fleury, ambos aliaz tragicamente fallescidos e saudosamente pranteados... Outra cadeira (de dragões) nessa academia brazileira de lettras mortas-vivas caberia, por justiça, ao coronel Brilhante Ustra, sempre commemorado, ou rememorado... [5.29] Logo, resta-nos o sadismo. O qual, si emphatizado, accaba se revelando o grande motor de toda tortura. Para conciliar isso com as interpretações politicas e economicas do “phenomeno”, convenhamos quanto ao seguinte: no plano collectivo, a motivação da tortura pode ser a manutenção do poder ou da propriedade; no plano individual, porem, a motivação que prevalesce é o sadismo. É como si na cabecinha do carrasco passasse o seguinte raciocinio (suppondo que haja raciocinio): {Torturo para que elles se mantenham no poder. E para que querem elles o poder? Para desfructal-o, gozar. A finalidade ultima do poder é o prazer. Ora, por que não ha de me caber, a mim, uma parcella desse prazer, aqui, agora, e às custas deste otario em quem posso descomptar minha, por assim dizer, “participação nos lucros”?} [5.30] Do seculo xviii para traz, quando a practica da tortura nem havia sido abolida dos interrogatorios policiaes (como si estivesse abolida hoje...) e quando os prisioneiros de guerra não eram tractados condignamente (como si o fossem hoje...), o sadico era identificado com a figura do guerreiro inimigo, do inquisidor medieval, do feitor escravagista, do carcereiro truculento ou do carrasco insensivel. Os adjectivos mais adequados ao comportamento deshumano de quem detinha tamanho poder sobre seu semelhante eram recorrentes: “malvado”, “desalmado”, “impiedoso”, “barbaro”, “cruel”, “sanguinario”, “carniceiro”, “vandalo”, etc. Palavras que exprimem a violencia


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das atrocidades e o soffrimento das victimas, mas que não traduzem necessariamente o prazer do torturador. Por outro lado, alguem que tripudiasse sobre a desgraça alheia ou que, mesmo sem commetter nenhuma violencia physica, risse das fraquezas alheias, este seria adjectivado como “sarcastico”, “sardonico”, “zombeteiro”, “mordaz”, “trocista”, “mottejador”, “excarninho”, “debochado”, etc. Num ou noutro caso, a connotação sexual não estava obrigatoriamente associada à dor do soffredor ou ao humor do gozador. Somente com o termo sadismo foi que o tesão do torturador adquiriu relevancia em relação ao seu riso ou à sua brutalidade. [5.31] Quanto ao masochista, o que prevalescia antes de Masoch era a noção do estoicismo do guerreiro ou a noção do sacrificio do martyr ou do penitente, particularmente do christão, sempre prompto a offerescer a outra face ao aggressor. Affora o ecstase mystico ou a voluntaria acceitação das privações e agruras, era como si o soffredor não pudesse sentir algo mais estimulante a poncto de attingir o orgasmo. Somente com o termo masochismo ficou inequivoca a eventual occorrencia simultanea de prazer e dor, ou de prazer e humilhação. Ainda que o proprio Masoch houvesse cunhado um adjectivo para designar aquelle que hoje é rotulado de “masochista”: “suprasensual”, cuja orthographia official seria “supra-sensual” ou “suprassensual”, dependendo do arbitrio dos reformadores de plantão. [5.32] Na practica, pois, o que realmente occorre é a união do util ao aggradavel. O indefeso à mercê do impune formam o par perfeito, e uma causa nobre é a melhor justificativa para um serviço sujo. Muitos torturadores chegaram a se declarar orgulhosos de ser os “lixeiros da sociedade”. A funcção pode não ser la muito bem-vista nem bem paga, mas em compensação divertese p’ra cacete. Quem analysa relatos sobre tortura em diversas


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epochas e logares observa, si for attento, que quasie sempre occorre o riso em quem tortura ou quem presencia. A reacção de excarneo, portanto, não pode ser minimizada nem deschartada como gratificante a quem não é victima na scena. [5.33] Si você não assume nem põe em practica todas as suas phantasias sexuaes, provavelmente é dos que encaram o torturador como um degenerado, um psychopatha. Ou uma pessoa desadjustada à sociedade, cheia de recalques e complexos. Ou daquelle typo de individuos com “deficit de memoria, vontade, juizo, associação, ideação, percepção ou raciocinio”, segundo a analyse do argentino Santiago Nudelman. De facto, uns tantos carrasquinhos subalternos ultrapassaram o poncto de retorno ao autocontrole, e accabaram affastados das funcções para tractamento psychiatrico. Mas a maioria da turma voltou normalmente para casa appós o expediente, e foi regar as plantinhas, levar o bassê para passear, ao cinema com a namorada ou jantar na casa da mamãe. Todos elles teem mãe viva até hoje. [5.34] Por isso, não tenha medo de descobrir suas tendencias sadicas. Ha um detalhe que quasi passa despercebido no quadro de pessimismo geral: ninguem é sadico o tempo todo. Só os que soffrem de priapismo vivem permanentemente em erecção. Si conhescessemos melhor e mais espontaneamente os mechanismos do prazer sexual; si pudessemos excolher e usufruir as opportunidades; si canalizassemos a libido para as relações onde houvesse o mutuo consentimento das partes envolvidas, certamente satisfariamos com maior frequencia os nossos impulsos, sem necessidade de violentar a vontade do semelhante. Um dos primeiros passos poderia ser o reconhescimento pacifico do sadismo, do masochismo ou de qualquer outra variante do comportamento sexual como “um dos septe sabores à sua excolha” em qualquer sorveteria da vida. Onde se optasse pela liberdade haveria liberdade de


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opção. Desmystificar os tabus e desreprimir os costumes é, no fim das comptas, uma lucta politica. Talvez a lucta maior, e provavelmente a unica viavel. [5.35] Quanto aos remedios legaes para uma “torturite” que se affigura chronica, o quadro paresce ainda mais pessimista. A propria exsistencia da “lei” prova que sua “transgressão” fora habitual e que na certa continua a ser. O facto de se crearem novos accordos, pactos e declarações “universaes” proscrevendo a tortura significa tão-somente que os anteriores não funccionaram e que, portanto, uma futura norma tem ainda menos chance de surtir effeito. Ou seja: alem de estarmos subjeitos a virar victimas de tortura em qualquer logar do mundo, a qualquer tempo, somos tambem cumplices de todo carrasco, na medida em que poderiamos estar na sua posição. Por outro lado, punir um torturador seria, de qualquer maneira, tortural-o. Logo, si você quer abolir “incondicionalmente” a tortura, está deante de um impasse, ou dentro de um “in pace” (calabouço da Inquisição, typo solitaria). Em todo caso, a formal exstincção das penas corporaes e capitaes nas legislações de hoje representa um advanço. Em que direcção, não se sabe. Talvez os ufologistas possam fornescer um prognostico. [5.36] Agora, finalmente, você está na toga do juiz. Mas o ultimo topico fica em branco, pois sobre este papel eu nada tenho a apitar no script. Ja fui assistente de direcção ao longo do ropteiro todo. Improvise, então, como na “commedia dell’arte”...



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[6] NO MUSEU (INSTRUMENTOS & RELIQUIAS) A materia que sahiu na edição 133 da revista status (agosto de 1985) era practicamente uma synopse do livro O que é tortura, lançado no anno anterior, desta feita comptando com illustrações photographicas em papel cuchê, assignadas por Chris Queiroz. “GRITOS & CARETAS: UMA COLLECÇÃO APPAIXONANTE” “Reflexões pouco orthodoxas sobre uma exposição itinerante de instrumentos de tortura” [6.1] Pensando bem, todos somos colleccionadores. Uns colleccionam caixas de phosphoros, sellos, moedas, na proporção de suas posses. Os mais capitalistas, como Brejnev, colleccionam carros, e ha quem colleccione castellos medievaes. Num sentido mais amplo, o turista collecciona logares, o medico cirurgias, o historiador factos e o jornalista dados sobre determinado facto. [6.2] O philosopho collecciona duvidas, o scientista certezas. Entre ambos paira o consenso de que a memoria paresce ser a unica realidade palpavel, pois ella é a noção do passado -- a unica coisa que exsiste, ja que o futuro ainda não accontesceu e o presente deixa de sel-o no mesmo instante em que accontesce, passando a passado. E o que é a memoria sinão uma collecção? Daqui a pouco terminaremos de philosophar sobre isso. [6.3] Antes pensemos em outros colleccionadores. Ja fallavamos daquelles que colleccionam aquillo que não lhes pertence. Nessa linha, o policial collecciona crimes, o carcereiro collecciona presos. E o torturador? Que collecciona elle? As victimas? Não exactamente. É algo nas victimas que lhe interessa. A reacção


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dellas à tortura, exteriorizada em gritos e caretas. Na verdade o torturador collecciona só os gritos e caretas, pois a reacção mesma permanesce um mysterio para elle. Seu unico recurso é imaginar-se no logar da victima. [6.4] A experiencia humana é feita de resultados obtidos na propria pelle. Na certa o homem prehistorico descobriu o uso do fogo appós ter-se queimado. E a utilidade da agua foi descoberta ao beber e se lavar com ella. Mas tambem ao se affogar nella. É aqui que começa a historia da tortura. Os primeiros elementos que o homem poz a seu serviço foram tambem applicados ao sacrificio do semelhante. Dizem que a aggressividade entre seres humanos nasceu da mesma lucta pela sobrevivencia observada em outras especies animaes, mas a verdade é que o homem sophisticou a aggressão desde o inicio, e muito alem da simples disputa biologica. Elle se especializou em torturar na mesma medida em que apperfeiçoou tudo de util que havia descoberto ou inventado. A começar pela agua e pelo fogo. [6.5] A origem da tortura está na represalia dos primeiros gruppos tribaes contra os inimigos capturados vivos, que são sacrificados de forma mais ou menos ritual. Para mostrar bravura, a victima procura aguentar o mais firme possivel, e os carrascos procuram augmentar-lhe e prolongar-lhe o soffrimento. Essas immolações inspiram os vencedores a incutir bravura em seus proprios filhos, os futuros guerreiros, que admanhan poderão cahir nas mãos do inimigo. E surge a tortura como ritual de iniciação do adolescente à vida adulta. As provas que o menino deve supportar são semelhantes ao tractamento dado ao prisioneiro sacrificado. [6.6] O segundo passo na historia da tortura é a transformação da represalia em repressão. Ou seja, aquillo que é usado para executar o inimigo vencido pode servir tambem para punir o


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proprio companheiro que transgride as normas do convivio gruppal. Com o apparescimento da cultura escripta, essas normas passam a ser colleccionadas (olha ahi outra collecção), e juncto com ellas são registrados os typos de punição conforme a gravidade da falta. São os primeiros codigos penaes, como o de Hammurabi, onde ja está presente a pena de talião (olho por olho, dente por dente), que remonta a millennios antes de Christo e inspirou as legislações hebraica, grega e romana. A finalidade primordial da tortura era, portanto, punitiva. [6.7] As civilizações mais desenvolvidas da Antiguidade accrescentaram uma segunda finalidade, intermediaria à punição: A prova da culpa, attravés da confissão extorquida. Os methodos destinados a fazer confessar não podiam ser tão mortiferos como aquelles destinados a executar. Por isso era preciso determinar officialmente os limites do soffrimento artificial. Dahi a profissão de carrasco, que exigia habilidade para dosar os methodos conforme a circumstancia. E dahi a regulamentação das penas, cada vez mais diversificadas. [6.8] O Imperio Romano é o apogeu dessa phase institucional da tortura. Ao que se sabe, os romanos approveitaram e incrementaram practicamente todos os typos de supplicio da Antiguidade e, na condição de imperio conquistador por excellencia, tornaram-se a primeira grande eschola de tortura do Occidente. Em Roma, a tortura probatoria era designada pelo termo quaestio (interrogatorio ou investigação). O fogo e a agua, elementares desde a prehistoria, foram empregados de quasi todas as maneiras possiveis. Dois exemplos de applicação do fogo: andar descalço sobre carvões ardentes, e a marca de ferro em braza. Dois exemplos da agua: o affogamento no Tibre e a ingestão até extourar o estomago.


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[6.9] Outra coisa que o mundo romano apperfeiçoou foram os recursos mechanicos herdados das civilizações anteriores. Sem duvida o mais primitivo delles é a roda, que, juncto com o controle do fogo e com a invenção da escripta, compõe a base de toda a technologia, passada e futura. Si alguma coisa pudesse ser excolhida como vestigio representativo da especie humana em sua passagem pelo planeta, bastaria a roda e suas multiplas applicações -- entre ellas a tortura. Em Roma a roda funccionava de duas maneiras: movel, servia para exmagar como um rollo compressor; fixa num eixo com manivella, servia para admarrar a victima e provocar-lhe lentas cambalhotas sobre uma fogueira ou um chão de pregos. [6.10] Na Edade Media e na Moderna, a roda assumiu outras formas instrumentaes. Uma dellas foi usar os raios da roda de carroça deitada para admarrar a victima, a fim de quebrar-lhe os ossos com porretes de ferro, para depois suspendel-a no topo dum poste como o braço do garçon segurando a bandeja, expondo-a às intemperies e aos abutres. [6.11] A roda é symbolica, tanto quanto a cruz, que os romanos usavam como methodo de execução, ao lado da precipitação e da decapitação. A cruz ganhou a imbattivel fama de ter executado a mais celebre victima da tortura em todos os tempos. No entanto, poucos sabem que a crucificação servia, na verdade, para mactar por asphyxia lenta, pois o peso do corpo suspenso, de braços abertos, immobilizando o thorax até que o pulmão perdesse a capacidade. Para uma agonia dessas, bastava admarrar os braços à trave, sem necessidade de sangrar a victima. Assim, o caso de Jesus pregado ao madeiro (feito pelos pulsos, e não pelas mãos, como pincta a tradição) paresce ter sido excepção. O martyrologio dos sanctos catholicos, em particular, e dos christãos, em geral, abriu


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nova faceta para a tortura probatoria: em vez de confissão de um crime, o que se exigia era a renegação da fé. Como isso raramente accontescia, os tormentos exerciam simultaneamente funcções probatorias e punitivas. [6.12] Assim como certos discipulos conseguem superar os mestres, as victimas apprendem com seus carrascos. Depois de terem sido quasi exterminados, os christãos se fortalesceram, fizeram sua egreja sobreviver à queda do Imperio Romano e sobrepujar todo o poder secular medieval, e accabaram usando as mesmas armas de seus antigos algozes. Primeiro contra os dissidentes ou “hereges” e, aos poucos, contra todos os “suspeitos” de qualquer “crime” em relação à fé catholica: sacrilegios, blasphemias... O termo latino inquisitio, que tambem significa inquerito, investigação ou interrogatorio, virou synonymo dos tribunaes do Sancto Officio, emquanto que a tortura, formalmente probatoria e/ou punitiva, revelou sua terceira e verdadeira faceta, que predominaria durante seculos: a intimidação. [6.13] Com effeito, não havia grande utilidade em obter confissões de crimes “espirituaes”, a não ser o facto de dar à Egreja a chance de confiscar os bens materiaes do condemnado. O que effectivamente se pretendia era atterrorizar as populações e com isso manter intangivel o poder clerical. Si a Inquisição virou synonymo de tortura (e de facto fez jus à fama), cabe aqui uma resalva: a tortura não era monopolio da Egreja. O poder secular se revelou serio concorrente. Desde sua formação, ainda na Edade Media, os Estados europeus incorporaram torturas probatorias e punitivas a suas instituições. Quasi todos os systemas legaes da Europa derivavam do codigo de Justiniano (seculo vi), que consolidou a tortura incrementada pelos creativos cesares antecessores, como Tiberio, Caligula, Nero e Commodo.


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[6.14] Ahi estão, portanto, as trez finalidades da tortura, desenvolvidas ao longo de trez millennios de historia: pena, prova e terror. Isto é, castigar os “culpados”, revelar a “culpa”, e servir de exemplo para o proprio ou outros “culpaveis”. A phase institucional da tortura vae até o fim da Edade Moderna. Foram os pensadores illuministas, como Voltaire e Bayle, que começaram a levantar a these de que a tortura seria injusta e inefficaz. Injusta, porque representa a pena antes da sentença, ou, como se dizia, “É uma invenção maravilhosa para perder um innocente debil e salvar um delinquente robusto”. E seria inefficaz por consequencia, visto que as informações obtidas podem ter sido falseadas e resultarão inuteis. [6.15] Muito antes dos philosophos modernos, ainda no seculo v, cabeças humanistas como a de Sancto Agostinho ja haviam allertado para os “inconvenientes” da tortura sob o poncto de vista juridico, ou seja, da sua fallibilidade como meio de appurar e punir as culpas, ja que o covarde pode confessar o que não fez e o valente pode morrer sem se arrepender do que fez. Mas essa these só veiu a influenciar a lei escripta a partir de 1764, quando sahiu o tractado Dos delictos e das penas, do jurista italiano Beccaria. Dahi em deante, todas as nações foram adaptando seus codigos penaes à nova mentalidade, e a tortura começou a ser considerada illegal. [6.16] No Brazil colonial, vigoravam as Ordenações do Reino, que incluiam explicitamente a tortura. Com a independencia, a constituição do Imperio (1824) introduziu um artigo só para estabelescer formalmente que “Desde ja ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis”. [6.17] Com excepção dos castigos de escravos e de algumas penalidades militares, a tortura é tida como abolida no


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Occidente a partir de meados do seculo xix. No Oriente Medio, a cultura islamica ainda conserva o principio da pena de talião, incorporado ao Corão, razão pela qual muitos paizes mussulmanos resistem às pressões internacionaes contra dispositivos como a flagellação em publico para os casos de adulterio, ou a amputação da mão dos ladrões. Quanto ao Oriente, as tradições hindus, japonezas, e principalmente chinezas, são muito ricas em supplicios punitivos. Mas, devido à influencia dos colonizadores occidentaes, as practicas mais folkloricas, como a canga e o exfollamento ao vivo e em cores, accabaram supprimidas obrigatoriamente, ainda no seculo xix. [6.18] Desde então, vivemos uma nova phase, a da tortura clandestina. Officialmente proscriptos, inclusive na guerra (convenções de Genebra), os supplicios se revestem de uma mascara de hypocrisia e se tornam roptina tacita em toda parte, mormente appós as duas guerras mundiaes. Agora que se tracta de actividade illicita, os governos adoptam technicas e tacticas requinctadas para evitar ou dissimular os vestiígios physicos, capazes de comprometter a imagem publica das auctoridades responsaveis. Ja não é o caso de obstentar e perpetuar a ferida do castigo, como no tempo da marca com ferro em braza, mas sim de camuflal-a. Dahi os advanços no emprego da electricidade e da tortura chymica, inclusive com assistencia e collaboração de medicos e psychiatras cooptados. Dahi tambem o nunca exclarescido “desapparescimento” dos cadaveres daquelles que, com ou sem marcas, não sobreviveram para depor. [6.19] As novas escholas de tortura teem suas matrizes nas grandes potencias, que exportam o know-how para o Terceiro Mundo. A Allemanha nazista, a França, a Inglaterra, e sobretudo a União Sovietica e os States são as principaes. Basta observar as experiencias da Argelia, do Vietnam e das dictaduras


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africanas e sulamericanas. As victimas mais notorias são os prisioneiros politicos, mas o preso commum é o mais sacrificado, ja que a opinião publica não toma conhescimento ou não se escandaliza com as denuncias de maus tractos contra “bandidos”. Isto porque se presuppõe que o bandido “excolheu” o crime, “optou” pela violencia, e no senso commum persiste a noção do talionato, de que a violencia meresce ser tractada com a violencia. Assim, ninguem se condóe do criminoso commum. Ao contrario: é bem feito. [6.20] Com o preso politico é “differente”. Este lucta por ideaes suppostamente nobres e ethicos, e suas armas nem sempre são mortiferas. Consequentemente, tende a ser visto como uma victima indefesa da arbitrariedade e da intolerancia, o que lhe vale maior attenção da parte dos organismos internacionaes de combatte à tortura. O mais actuante desses organismos é hoje a Amnistia Internacional, que tem demonstrado grande empenho, especialmente na defesa dos chamados “prisioneiros de consciencia” (isto é, aquelles que soffrem a violencia sem terem se utilizado della), partindo do principio de que a tortura deve ser condemnada incondicionalmente, sem concessões a nenhuma situação excepcional que possa “justificar” a punição physica ou a extorsão de informações. [6.21] E sob os auspicios da propria Amnistia Internacional é que está circulando pela Europa a exposição fascinante e sem precedentes que mostramos aqui. Tracta-se de exhibir instrumentos de tortura, principalmente medievaes e prebeccarianos de propriedade particular do italiano Nisio Papini. A collecção foi exposta na galleria Nesle, em Paris, appós ter percorrido Roma, Florença e Amsterdam. Finda a temporada parisiense, a mostra segue para Nova York. E tiremos o cavallete da chuva, que ella certamente não virá ao Brazil. O leitor terá de se contentar com estas paginas.


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[6.22] Aliaz, alguns dos visitantes que passaram pelos trez pavimentos do historico hotel de Nevers, onde fica a galleria, não se contentaram nem mesmo em ver os instrumentos. Muitos sadomasochistas deixaram recado no livro de ouro, do typo “Que pena que não dá p’ra experimentar!”, “Exposição muito orgasmatica!”, ou “Annuncio: tortura a domicilio executada por joven e deliciosa creatura (dez annos de experiencia); instrumentos apperfeiçoados, technica de poncta.” Outros chegaram a roubar objectos como a “forquilha do herege”. Paira a duvida si ella estaria agora em serviço, ou agguardando opportunidade para ser negociada como peça de antiquario. [6.23] A duvida é procedente, pois, excepto a electricidade e a chymiotherapia, os methodos de tortura mais rudimentares são os mesmos empregados, com ligeiras variantes, em todas as epochas e latitudes, a despeito dos progressos da technologia. Nada mais antigo que o expancamento e a flagellação. No entanto, a chronica policial e a litteratura erotica reservam o mais amplo de seus espaços para um e outra, respectivamente. Isso pode indicar que quem não tem sapato calça com gatto. Na falta de equipamento e pessoal treinado, o jeito é recorrer à pura e simples pancadaria, tal como accontesce em qualquer delegacia de bairro nos paizes do Terceiro Mundo. Só mesmo nos States um cidadão commum tem condições de manter seu carcere privado, munido de videocassette e tudo, para documentar o sacrificio de suas victimas, como occorreu ha pouco em Vilseyville, na California. Dois ex-combattentes dispunham alli dum apprazivel chalé, onde eram apprisionadas e mortas com requincte as pessoas que cahiam em suas mãos. [6.24] A collecção de Papini não tem nada de antiquada, portanto. E nos faz pensar no colleccionador, em suas intenções. As intenções da Amnistia Internacional são claras. Para ella


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interessa allertar e sensibilizar a opinião publica. Ja que se tracta duma collecção, seria o caso de fallar da memoria collectiva e em mantel-a viva, em signal de repudio. Ja para os colleccionadores, a memoria é selectiva. Nem todo torturador possue seu proprio arsenal de instrumentos, da mesma forma que nenhum delles é dono da alma de suas victimas. No maximo, elles podem reter os gritos e caretas. Mas isso é tão ephemero quanto um orgasmo. Não é à toa que os carrascos da California filmavam e gravavam a tortura de seus prisioneiros. Quem de nós não gostaria de registrar em grande estylo suas melhores trepadas? [6.25] Os sadomasochistas confessos são appenas a poncta do iceberg. Na verdade a quarta e maior finalidade da tortura é o sadismo. No plano collectivo e social a motivação da tortura pode ser a manutenção do poder e da propriedade. Mas no adspecto individual e psychologico, o que exsiste de facto é a interacção carrasco/victima, onde o soffrimento desta corresponde à vontade e ao prazer daquelle. Por isso acho que a melhor definição da tortura não é nenhuma dessas phrases technicas da psychologia ou da jurisprudencia, mas sim isto: o indefeso à mercê do impune. [6.26] Daqui derivam duas conclusões para pensar em casa. Uma, que, pelo menos no momento da tortura, o carrasco sabe que está livre della. Outra, que qualquer victima preferiria estar no logar do carrasco. Para a maioria que não é victima nem carrasco, resta o consolo de ler a imprensa marron, assistir lucta livre, dar trote nos calouros, caçar ferinhas com armadilha, visitar exposições como a do colleccionador Papini... ou vel-a nestas photos de Chris Queiroz. Affinal, saádicos todos somos, mas aqui no Terceiro Mundo só os torturadores mais bem pagos podem se dar ao luxo de comprar videocassette. O resto fica na base do piso salarial, repetindo com muita propriedade chavões do typo: “Ganha-se pouco, mas diverte-se p’ra cacete...”


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[6.27] cadeira inquisitorial - Modo de usar: a cadeira de tortura era usada na Europa Central, em particular em Nuremberg e em Ratisbonne, durante as instrucções judiciaes normaes. Foi utilizada até 1846. Fazia-se o accusado sentar nu e, ao menor movimento, as ponctas penetravam a carne. Esta tortura prolongava-se durante horas e frequentemente o algoz augmentava o supplicio mexendo a cadeira ou battendo nos membros da victima. Uma variação particularmente efficaz era a cadeira inquisitorial de ferro, que podia ser exquentada de maneira que os pregos sobre os quaes sentava-se a victima queimavam-lhe a pelle. [6.28] guilhotina - Modo de usar: a Revolução Franceza accabou com todos os typos de tortura, mas deixou em seu logar o egualitario cadafalso. A lamina chama-se guilhotina e é uma machina que provoca a morte automatica. O philanthropo Joseph Ignace Guillotin preconizou o seu uso durante duas intervenções na Assembléa Nacional Constituinte de 1789, argumentando democraticamente que crimes da mesma natureza deveriam ser punidos da mesma maneira, sem distincção de classe ou riqueza. No dia 3 de junho de 1791, a Assembléa votou que {toda pessoa condemnada à pena de morte teria a cabeça cortada}. Um anno mais tarde, deu-se inicio à construcção da “viuva”. Seu primeiro modello foi fabricado, de accordo com o projecto e os conselhos do doutor Louis, secretario da Academia dos Cirurgiões, por Tobias Schmidt, fabricante de cravos. Appós uma serie de testes realizados com cadaveres e carneiros vivos, a guilhotina estreou no dia 25 de abril de 1792. O carrasco Charles Henri Sansom, que teve o privilegio de inaugural-a, foi o mesmo que executou Luiz xvi. O actual governo de François Mitterrand aboliu a pena de morte e assim exstinguiu a profissão de algoz que, desde 1789, era transmittida de pae para filho.


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[6.29] vigilia - Modo de usar: A vigilia -- ao menos nas intenções de seu inventor, Ippolito Marsili -- deveria marcar uma virada determinante na historia da tortura. Este moderno systema de “confissão” não quebrava vertebras, tornozellos ou articulações. Appenas arrebentava os nervos do accusado ao impedil-o de dormir. Era o supplicio do somno. Concebida como uma tortura sem sangue, a vigilia soffreu durante a Inquisição numerosas modificações que deturparam as boas intenções de Marsili. O condemnado era alçado accyma da pyramide, em seguida abbaixado violentamente até que a poncta lhe penetrasse o anus, os testiculos ou o coccyx. Caso fosse uma mulher, a poncta deveria entrar na vagina para provocar dores atrozes. Esta operação de vaevem era repetida innumeras vezes. Frequentemente, a victima desmaiava e a sessão era suspensa até que esta recuperasse os sentidos, quando tudo recomeçava. Segundo o relato de um exsilado chileno que visitou a exposição, este instrumento de tortura continua a ser utilizado no Chile de Pinochet. [6.30] virgem de nuremberg - Modo de usar: a idéa de mechanizar a tortura nasceu, naturalmente, na Allemanha, com a Virgem de Nuremberg, assim chamada porque parescia uma joven bavara -só que de ferro -- cujo prototypo foi construido e installado nos subterraneos do tribunal secreto de Nuremberg. O condemnado era fechado nesta especie de sarcophago munido de ponctas affiadas que penetravam em seu corpo. A disposição das ponctas era scientificamente correcta: attravessavam o corpo inteiro sem tocar em partes vitaes, propiciando à victima uma longa e atroz agonia. A Virgem foi inaugurada em 1515, quando um falsario agonizou durante trez dias em seus braços ponctiagudos. [6.31] gaiola - Modo de usar: foi idealizada especialmente para os ecclesiasticos, pois era prohibido derramar o sangue dos membros da Egreja. O culpado era trancado numa gaiola de


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ferro e madeira e pendurado na parte externa das prefeituras, cathedraes ou tribunaes. O procedimento era simples: deixavase a victima morrer de fome e de sede. O desfecho fatal era accelerado durante o hinverno pelas intemperies e pela neve; durante o verão, pelas queimaduras do sol. O cadaver em estado de putrefacção permanescia na gaiola até o desprendimento dos ossos. Actualmente, algumas destas gaiolas ainda podem ser vistas: na torre dos Acerbi, no palacio ducal de Mantova e na abside da cathedral de Munster, na Suissa. [6.32] forquilha do herege - Modo de usar: os hereges soffriam um ractamento differenciado, pois eram considerados em agonia e tractados como moribundos. Mesmo nos casos extremos, procuravase por todos os meios proporcionar-lhes a salvação da alma. A Inquisição hespanhola representou a phase aguda do processo de accusação contra a heresia. Um immenso numero de instrumentos de tortura ingressou nos museus com o titulo de “hespanhoes”, pois foi justamente na Peninsula Iberica, a partir de Torquemada, que a Inquisição resolveu perseguir os hereges. Com suas ponctas enfiadas profundamente na carne accyma do esterno e abbaixo do queixo, a forquilha impedia qualquer movimento e a victima só podia murmurar a palavra “abiuro”. Caso o herege se obstinasse em não se arrepender, era encaminhado à fogueira. Durante a exposição, este objecto foi surrupiado por um visitante mais enthusiasmado. [6.33] cavallo hespanhol - Modo de usar: durante a Edade Media, as mulheres suspeitas de estarem possuidas pelo demonio eram obrigadas a montar sobre uma peça de madeira cuja aresta entrava na vagina. As pernas eram mantidas affastadas por ligaduras e o corpo não devia ter nenhum poncto de appoio. O supplicio era ampliado pela collocação ao lado do corpo nu de tochas accesas ou pela fixação sobre o ventre da condemnada de uma caixa


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contendo um ratto vivo: as contorções provocadas pela dor augmentavam a pressão sobre a aresta e faziam com que esta penetrasse ainda mais profundamente. A Inquisição utilizou este instrumento, tambem chamado de bode, para punir uma forma particular de adulterio, o das religiosas que tinham infringido o voto de castidade. Para tornar esta tortura ainda mais intensa, admarravam-se pedras ou pesos, de até mesmo 15 kilos, nos pés da victima, que nem sempre era uma mulher. [6.34] pera oral, rectal e vaginal - Modo de usar: a pera oral era applicada nos pregadores hereges, nos blasphemadores e nos leigos que houvessem manifestado pensamentos sediciosos. A pera vaginal, maior, era reservada às mulheres accusadas de manter relações sexuaes com Satan ou um de seus adeptos. Ja a pera rectal era destinada aos culpados de sodomia, em particular aos homosexuaes passivos. Introduzida à força na bocca, no anus ou na vagina, a pera era, em seguida, aberta por meio de um systema de parafuso até que as partes tocadas fossem irremediavelmente dilaceradas. As ponctas que saem dos trez lados deste objecto serviam para melhor rasgar o fundo da garganta, o interior do recto ou da vagina. O instrumento ponctiagudo ao lado da pera ficou conhescido como o arranca-peito e fazia parte do arsenal utilizado para combatter as feiticeiras. O procedimento era simples: suas quattro ponctas em braza eram appertadas contra o peito das mulheres que trafficavam com o diabo. Conhescido tambem pelo nome de tarantula ou aranha hespanhola, podia, eventualmente, ser applicado aos seios das jovens mães accusadas de aborto voluntario. [6.35] roda - Modo de usar: a roda era reservada aos infractores da ordem publica, taes como assassinos, ladrões e salteadores. Muito commum na Europa germanica, da baixa Edade Media até o inicio do seculo xviii, este supplicio consistia de duas etapas:


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Na primeira, a victima, nua, era extendida no chão, pés e mãos presos em anneis de metal, e o carrasco exmagava os ossos do condemnado com uma roda munida de ferros ou, muitas vezes, de simples pesos. O profissional tinha de ser bem qualificado, pois devia triturar as articulações da victima sem feril-a mortalmente. Na segunda parte do supplicio, o corpo fracturado do infractor era dobrado e aptado a uma roda de carroça, fixada horizontalmente sobre um pellourinho. A victima ficava exposta e, para que o castigo servisse de exemplo por mais tempo, era alimentada regularmente. Os mais fortes resistiam cerca de vinte dias. [6.36] bellisca-lingua - Modo de usar: com este instrumento admordaçavam-se os condemnados à fogueira, para impedir que seus gritos incommodassem os expectadores e o concerto de musica sacra que accompanhava a festa. Tambem denominada “mascara da fome”, em certas regiões da Europa, era appertado de encontro ao rosto, a parte de ferro forçada para dentro da bocca e o collar fixado attraz do pescoço. Assim admordaçada, a victima era aptada a um poste onde ficava varios dias sem beber nem comer. O buraco presente na mascara deixava passar o ar. Frequentemente, comtudo, o algoz o entupia para provocar o suffocamento do mascarado. [6.37] cincto de castidade - Modo de usar: o cincto de castidade paresce ter sido inventado por Francesco II de Carrara, senhor de Padova, durante o seculo XV. Sua utilização extendia-se por toda a Italia e logo os ferreiros de Bergamo e Milão tornaramse famosos tanto pela fabricação quanto pelo arrombamento clandestino deste precioso objecto. Applicar o cincto de castidade nas proprias mulheres ou amantes, numa epocha em que as grandes distancias e os meios de communicação pouco numerosos impunham longas ausencias, tornou-se não somente moda como uma


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necessidade da refinada aristocracia européa. Para uma mulher do seculo XV, era preferivel submetter-se ao cincto de castidade do que soffrer uma infibulação, ou seja, a sutura da vagina, practicada durante a Edade Media em certas zonas da Europa. Na França, o costume de applicar o cincto nas senhoras sozinhas foi introduzido por Henrique II e durou até o seculo XIX. Em 1885, o commercio desses appetrechos era tão prospero que se inventou um termo technico para designal-os: “edozones”, do grego Aidos, pudor, e Zone, cincto.


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[7] BIBLIOGRAPHIA COMMENTADA [7.1] Alem do que foi visto no capitulo do ateliê, vão aqui algumas dicas para quem se dispõe a batter perna, exquentar cadeira, queimar pestana e torrar grana com tão caloroso thema. [7.2] A bibliographia da tortura é fartissima em depoimentos de victimas, excassa de ensaios theorico-historicos e nulla no tocante a obras de referencia. A unica encyclopedia abbreviada é a que você está consultando. A nivel mundial, a historia compta cerca de meia duzia de titulos, sendo uns trez em inglez, dois em francez e um em italiano, todos ausentes das livrarias nacionaes e raramente encontradiços em bibliothecas (a Mario de Andrade e a Nacional do Rio teem alguns). A obra de John Swain The Pleasures of the torture chamber (Londres: 1931) foi superada pelo classico de George Ryley Scott, The History of torture throughout the ages (Londres: 1940), e este actualizado pela de Daniel Pratt Mannix, The History of torture (Nova York: 1964). Os francezes tinham só o abbreviado Tortures et supplices à travers les ages, de Fernand Mitton (F. de Valmondois) (Paris: 1908), até apparescer o tambem classico La Torture: son histoire, son abolition, sa réapparition au xxe siècle, de Alec Mellor (Paris: 1949). Os italianos teem uma Storia della tortura, de Franco di Bella (Milão: 1961). Ha varios estudos dedicados a determinado paiz ou epocha, taes como Uruguay: um campo de concentração, de A. Veiga Fialho (Rio: Civilização Brazileira, 1979); La Era del terror: las torturas, de Santiago I. Nudelman (Buenos Aires: 1960), sobre a Argentina peronista; A Tortura, de Henri Alleg (São Paulo: Zumbi, 1959), sobre a Argelia; Tortura na colónia de moçambique 1963-1974: depoimentos de presos politicos (Porto: Affrontamento, 1977); Os dissidentes sovieticos, de Tania Mathon & J. J. Marie (Rio: Difel, 1977), sobre o caso Pliuchtch; A pena de morte e a tortura na tradição judaica, de Clemens Thoma, e A pena de morte e a tortura no


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de Mohammed Arkoun, ensaios publicados no nº 140 da revista Concilium (Petropolis: Vozes, 1978). Sobre a participação da CIA na exportação do know-how americano, veja A face occulta do terror, biographia do instructor Dan Mitrione escripta pelo “brazilianist” A. J. Langguth (Rio: Civilização Brazileira, 1979). Sobre os methodos sovieticos, a melhor obra é o colossal e insuperavel Archipelago gulag, de Soljenitsin (Lisboa: Bertrand, sem data). A proposito de demonologia, feitiçaria e caça às bruxas, ha um capitulo sobre torturas em O diabo sem preconceitos, de José Alberto Gueiros (Rio: Monterrey, 1974). Em termos iconographicos, o primeiro “catalogo” é uma raridade intitulada Trattato de gli instrvmenti di martirio, de Antonio Gallonio (Roma: 1591), cujas illustrações foram recentemente incluidas em parte no luxuoso album do demonologo Roland Villeneuve, Le Musée des supplices (Paris: Henri Veyrier, 1974), este egualmente rico em texto. Quanto aos depoimentos pessoaes, a quantidade é tamanha que, só de judeus sobreviventes de campos de concentração, haveria leitura para o resto da vida (de um Mathusalem). Selectivamente, citem-se, de Christian Bernadac, O comboio da morte (Porto: Innova, sem data) [original francez, 1970]; de Giménez Moreno, Mauthausen: campo de concentração e de exterminio (São Paulo: Edições Hispanoamericanas, 1975); de Ward Rutherford, Genocidio (Rio: Renes, 1976) [Historia illustrada da 2ª guerra mundial, serie “Conflicto humano”, volume 4] e de Alan Wykes, Heydrich (Rio: Renes, 1977) [Historia illustrada da 2ª guerra mundial, serie “Lideres”, volume 17]. Quanto ao caso sulafricano, vale destaccar, de Winnie Mandela, Parte de minha alma (São Paulo: Circulo do Livro, sem data), de Indres Naidoo & Albie Sachs, A ilha aggrilhoada: 10 annos na ilha de robben contados pelo preso 885/63 (Lisboa: Editorial Caminho, 1982) e, de Breyten Breytenbach, Confissões veridicas de um terrorista albino (Rio: Rocco, 1985). Quanto ao caso cubano, de Armando Valladares, Contra toda a esperança: as prisões politicas de Fidel Castro (edição condensada, São Paulo: InterMundo, 1986).


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[7.3] Limitando-nos ao Brazil, a maior safra tem sahido nos ultimos annos, da lavra de ex-exsilados, amnistiados et caterva. Nas livrarias você ainda encontra as Memorias do carcere, de Graciliano Ramos, e as de Gregorio Bezerra, ao lado das fatias (às vezes migalhas) autobiographicas de frei Betto (Baptismo de sangue, Rio: Civilização Brazileira, 1983), Augusto Boal (Milagre no Brazil, Rio: Civilização Brazileira, 1979), Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro?, Rio: Codecri, 1979), Alvaro Caldas (Tirando o cappuz, Rio: Codecri, 1981), Emiliano José & Oldack Miranda (Lamarca: o capitão da guerrilha, São Paulo: Global, 1984), Jorge Fischer Nunes (O riso dos torturados, Porto Alegre: Proletra, 1982), Dimas Perrin (Depoimento de um torturado, Rio: Novacultura, 1979), Alex Polari (Em busca do thesouro, Rio: Codecri, 1982), André Torres (Exsilio na ilha grande, Petropolis: Vozes, 1979) e Indio Vargas (Guerra é guerra, dizia o torturador, Rio: Codecri, 1981) -- estas ultimas referentes ao post-AI-5, periodo em que Antonio Carlos Fon não teve follego para approfundar-se no seu ligeiro Tortura: a historia da repressão politica no brazil (São Paulo: Global, 1979). Sobre o periodo post-1964 e pré-ai-5 o melhor documento é Torturas e torturados, de Marcio Moreira Alves (Rio: Edade Nova, 1967), aliaz um dos protagonistas do ultimo acto. Tambem detalhados são os trabalhos de Fernando Jordão, Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no brazil (São Paulo: Global, 1979) e de Carlos Rangel, 1978: A hora de enterrar os ossos (Rio: Typo, 1979). Sobre o Estado Novo, o mais citado e completo é o de David Nasser, Falta alguem em Nuremberg: torturas da policia de Filinto Strubling Müller (Rio: O Cruzeiro, 1966). Mas foi inspirado no famoso “relatorio Sábato”, como ficou conhescido o livro Nunca más: informe de la comisión nacional sobre la desaparición de personas [conadep] (Buenos Aires: Eudeba, 1984) que accabou sahindo livro identico no Brazil. Ao caso argentino vale accrescentar Jacobo Timerman em Prisioneiro sem nome, cella sem numero (Rio: Codecri, 1982). Sobre a escravatura, a criteriosa monographia de José Alipio Goulart, Da palmatoria ao patibulo:


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(Rio: Conquista, 1971), dispensa a consulta a todos os Gilbertos Freyres e Debrets da vida. Sobre o tractamento do preso commum e dos menores, vale assignalar, respectivamente, Percival de Souza, com O prisioneiro da grade de ferro (São Paulo: Traço, 1983), e Carlos Alberto Luppi, com Agora e na hora da nossa morte: o massacre do menor no Brazil (São Paulo: Brazil Debattes, 1981), ao lado de Sandra Mara Herzer e seu A queda para o alto (Petropolis: Vozes, 1982). Finalmente, para os que preferem o “approach” juridico, ha uma these superficial sobre os Adspectos juridico-penaes da tortura, de Anna Maria B. B. Fernandes e Paulo Sergio L. Fernandes (São Paulo: Saraiva, 1982), lembrando que exsiste traducção em portuguez do cabal Michel Foucault: Vigiar e punir (Petropolis: Vozes, 1977). castigos de escravos no brazil

[7.4] Agora, a litteratura. Aqui podemos citar por epochas, a titulo qualitativo e sortido. Depois do Divino Marquez, principalmente em OS 120 dias de sodoma (São Paulo: Hemus, 1969), do seculo xix recommendo A cabana do pae thomaz, de Beecher Stowe, os contos de Hoffmann, O regicida e Memorias do carcere, de Camillo Castello Branco, o folhetim Memorias de uma forca, de Eça de Queiroz, Cinq-mars, de Alfred de Vigny, os Contos crueis, de Villiers de L’Isle-Adam, e O jardim dos supplicios, de Octave Mirbeau. No seculo XX a lista é maior: sobre a personalidade do carrasco, O verdugo, de Lagerkvist; sobre o clima carcerario, Na colonia penal, de Kafka, ou Papillon, de Henri Charrière; sobre as atrocidades da guerra, Os quattro cavalleiros do apocalypse, de Blasco Ibañez, ou O passaro pinctado, de Jerzy Kosinski; sobre as experiencias medicas em campos de concentração, Qb vii, de Leon Uris (menos realista que documentos veridicos como os livros Os medicos maldictos, de Christian Bernadac, ou Os medicos da morte, de Philippe Aziz); sobre a lucta do individuo contra a oppressão ideologica, Trevas ao meiodia ou O zero e o infinito, de Arthur Koestler; sobre o martyrio dos christãos no Occidente, Quo vadis, de Sienkiewicz (cuja primeira


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edição é do fim do seculo xix); sobre o martyrio dos christãos no Oriente, O silencio, de Shusaku Endo; sobre as phantasias eroticas, Historia de o, do pseudonymo Pauline Réage (vertido para gibi por Guido Crepax e para o cinema por Just Jaeckin) e toda a litteratura commercial dirigida ao publico appreciador do genero sm, como as anthologias de contos homosexuaes editadas pelo americano Larry Townsend em forma de revista. Particularmente interessantes são dois classicos britannicos: de Anthony Burgess, A laranja mechanica (Rio: Artenova, 1972) e de George Orwell, 1984 (São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1985). [7.4.1] Cabe registrar esta passagem do livro Papillon para illustrar o regime carcerario francez. Na presença do director da prisão, o heroe desaccapta e provoca a reacção da auctoridade: {Viro a cabeça de novo para o director e olho para elle. Elle pensa que lhe quero fallar, e me diz: -- E você, a decisão não lhe aggrada? Que tem a reclamar? Eu respondo: -- Nada, senhor director. Appenas sinto a necessidade de lhe cuspir na cara, mas não o faço de medo de sujar minha saliva. Fica tão expantado, que enrubesce e não comprehende immediatamente. Mas o inspector-chefe logo reage. Grita aos vigilantes: -- Aggarrem-no e tractem bem delle! Quero vel-o dentro de uma hora pedindo perdão de rastros. Vamos ensignal-o! Vou fazel-o limpar meus sapatos com a lingua, por cyma e por baixo. Não o tractem com bons modos, isso fica a cargo de vocês.


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Dois guardas me torcem o braço direito, dois outros o esquerdo. Estou acchatado no chão, as mãos levantadas à altura das omoplatas. Elles me põem as algemas, com umas argollas especiaes que me ligam o indicador esquerdo com o pollegar direito. O inspector-chefe me levanta do chão como a um animal, puxando-me pelos cabellos. Nem é preciso contar tudo o que me fizeram.} [7.4.2] Cabe registrar tambem uma passagem do livro O passaro pinctado, na qual Kosinski narra o facto testemunhado pelo garoto protagonista: {Só o moleiro continuava jantando calmamente, olhando os gattos, relanceando um olhar ora para a mulher ora para o convidado. (...) A mulher do moleiro e o adjudante pararam de comer. Olhavam-se fixamente, arfavam com as boccas cheias de comida. Respirando fundo, sem se dar compta do que fazia, a mulher appertou os seios com as mãos. O adjudante olhava alternadamente para ella e para os gattos; passou a lingua nos labios seccos, engoliu a custo a comida. O moleiro limpou o pratto, reclinou a cabeça para traz e bebeu de um gole seu coppo de vodka. Appesar de bebado, levantou-se brandindo a colher e, battendo com ella sobre a mesa, approximou-se do rapaz, que o olhava enfeitiçado. A mulher recolheu a saia e começou a remexer no fogão. O moleiro inclinou-se para o adjudante, murmurando-lhe alguma coisa ao ouvido. Como si espetado por uma faca, o rapaz ergueu-se, negando. Desta vez em voz alta, o moleiro perguntou-lhe si desejava sua mulher. O rapaz enrubesceu e não deu resposta. A mulher do moleiro, offegante, continuava limpando as panellas. O moleiro apponctou para o gatto e, novamente, murmurou algo para o rapaz. Este tentou affastar-se da mesa para deixar o quarto. O moleiro advançou com a colher em punho e, antes que o adjudante percebesse o que accontescia, empurrou-o contra a parede, exmagando-lhe a garganta com o braço, emquanto o seu joelho mergulhava-lhe no estomago. O rapaz estava immobilizado. Em


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panico, arquejante, murmurou alguma coisa inintelligivel. A mulher precipitou-se para juncto do marido, implorando e soluçando. (...) Com um ponctapé o moleiro affastou a mulher, e num gesto rapido, como o das mulheres ao limpar batatas, mergulhou a colher num dos olhos do rapaz e rodou-a na orbita. O olho saltou-lhe do rosto como uma gemma de ovo, rollou pela mão do moleiro e cahiu no chão. O adjudante gritava e guinchava, mas o moleiro o mantinha preso contra a parede. A colher ensanguentada mergulhou no outro olho, que saltou ainda mais depressa. Paresceu ficar por um momento indeciso, depois rollou pela camisa até o chão. Tudo tinha accontescido num minuto. Eu não conseguia accreditar no que tinha visto. (...) Gritando, a mulher do moleiro correu para o outro quarto e accordou as creanças, que começaram tambem a gritar atterrorizadas. O adjudante lançou um uivo pungente, depois, em silencio, cobriu o rosto com as mãos. Filetes de sangue jorraram por entre os seus dedos, excorreram-lhe pelos braços, pingando lentamente na camisa e nas calças. O moleiro, ainda enraivescido, empurrou-o para a janella, como si exquescido de que o outro estava cego. O rapaz tropeçou, gritou, quasi cahiu sobre a mesa. O moleiro aggarrou-o pelos hombros e, abrindo a porta com o pé, lançou-o la fora. O rapaz tornou a gritar, vacillou no humbral, e cahiu no pateo. Os cães, sem saber o que tinha accontescido, começaram a lattir. Os olhos continuavam no chão. (...) Timidamente os gattos se approximaram do centro do quarto e começaram a brincar com elles como si fossem novelos; à luz do lampeão de kerosene, suas proprias pupillas tornaram-se estreitas como fendas. Os gattos cheiravam, lambiam, rollavam os olhos, que passavam um para o outro, empurrando-os delicadamente, com as pattas macias. (...) O moleiro, evidentemente abhorrescido com a brincadeira dos gattos, chutou os animaes e exmagou os olhos sob as botas pesadas. Ouviu-se um estallo. Um espelho maravilhoso, capaz de reflectir o mundo inteiro, tinha sido partido. Ficava no chão


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appenas uma especie de geléa, e em mim o terriível sentimento de perda. Sem me dar attenção, o moleiro sentou-se, excorregando aos poucos à medida que addormescia. Levanteime silenciosamente, peguei a colher ensanguentada e comecei a junctar a louça. Era minha obrigação arrhumar e varrer o quarto. Mantinha-me affastado dos olhos, por não saber o que fazer com elles, mas affinal, sem olhar, varri-os rapidamente para dentro da pa e joguei-os no fogão. De manhan, accordei cedo. Ouvia la embaixo o resomnar do moleiro e da mulher. Com cuidado preparei uma saccola de comida, enchi o cometa de brazas e, distrahindo o cachorro com um pedaço de salsicha, abbandonei a casa. Encostado na parede do moinho, perto do estabulo, jazia o adjudante. A principio pensei em passar por elle rapidamente, mas logo lembrei-me de que elle não enxergava. Estava ainda sob o effeito do choque; o rosto coberto com as mãos, chorava e gemia, todo ensanguentado. Tive vontade de dizer alguma coisa, mas refreei-me, com medo de que me perguntasse o que havia sido feito de seus olhos, obrigando-me a contar que o moleiro os tinha exmagado. Sentia muita pena delle. (...) Ouvi sons vindos da aldeia. Temendo que o moleiro accordasse, prosegui meu caminho, tocando os olhos de vez em quando. Caminhava com cuidado, pois sabia agora que os olhos teem raiízes delicadas. Quando a gente se abbaixa, pendem como maçans no galho, e podem cahir facilmente. Resolvi pullar as cercas de cabeça erguida; mas, na primeira tentativa, tropecei e cahi. Assustado, levei os dedos aos olhos para certificar-me de que ainda estavam no logar. Depois de perceber que se abriam e fechavam correctamente, contemplei feliz a revoada de perdizes e tordos.} [7.4.3] Os prototypos de Sade se encaixam fielmente na figura da protagonista do livro HISTORIA DE O, de Pauline Réage, mulher linda e docil que, disciplinada pelo amante e pelos amigos delle, submette-se a typos que, no traço do quadrinhista Guido


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Crepax, são tão repugnantes como o lacaio magro ou o commensal gordo, ambos obrigatoriamente fellados pela dama prostituida. Tomemos como admostras as passagens do livro em que O é admestrada pelo gordo e, posteriormente, coagida a fellar aquelle que, na versão crepaxiana, ella suppõe ser o mesmo gordo que a chicoteara emquanto estava vendada: {As duas mulheres a levantaram, e desta vez levaram-na para fora. Suas sandalias faziam ruidos nos ladrilhos vermelhos dos corredores, onde se succediam portas discretas e limpas, com minusculas fechaduras, como as portas dos quartos nos grandes hoteis. O não ousava perguntar si esses quartos eram habitados, e por quem, quando uma de suas companheiras, cuja voz ainda não tinha ouvido, disse: “Esta é a ala vermelha, e o seu creado chama-se Pierre”. “Que creado?” -- perguntou O, tocada pela doçura da voz -- “e como você se chama?” “Eu me chamo Andrée.” “E eu, Jeanne”, disse a segunda. A primeira voltou a fallar: “Pierre é o creado que tem as chaves, que deverá admarral-a, desadmarral-a e chicoteal-a quando for punida ou quando não tiverem tempo para você”. “Estive na ala vermelha no anno passado”, disse Jeanne. “Elle ja estava ahi. Vinha sempre à noite; os creados teem as chaves e nos quartos que fazem parte da sua secção, teem direito de servir-se de nós.” O ia perguntar como era esse Pierre mas não teve tempo. Numa curva do corredor fizeram-na parar deante de uma porta que em nada se distinguia das outras; e, sentado num banquinho entre esta porta e a seguinte, advistou uma especie de camponez advermelhado, rechonchudo, com a cabeça quasi toda raspada, pequenos e fundos olhos negros e rollinhos de gordura na nucha. Vestia-se como um creado de operetta: camisa de peitilho de rendas, collete negro e uma casaca vermelha. Suas calças eram negras, as meias brancas e as sapatilhas envernizadas. À cinctura tambem trazia um chicote de tiras de couro. Suas mãos eram cobertas de pellos ruivos. (...) Nas ultimas horas da noite, quando ella é mais escura e mais


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fria, logo antes do admanhescer, Pierre apparesceu novamente. Accendeu a luz do banheiro deixando a porta aberta, o que projectou um quadrado de claridade no meio da cama, no logar em que o corpo de O, delicado e encolhido, enchia um pouco a coberta, que elle retirou em silencio. Como O estivesse deitada para o lado esquerdo, com o rosto voltado para a janella e os joelhos ligeiramente levantados, offerescia ao seu olhar suas nadegas muito brancas sob o tecido negro da coberta. Então, retirando o travesseiro de baixo de sua cabeça, Pierre disse-lhe polidamente: “Poderia ficar de pé, por favor?”, e quando O ficou de joelhos tendo que aggarrar-se à corrente para conseguil-o, adjudou-a segurando seus cotovellos para que se levantasse completamente e se puzesse de frente para a parede. O reflexo da luz sobre a cama negra illuminava seu corpo, mas não os gestos delle. Adivinhou, entretanto, sem ter visto, que soltava a corrente do mosquete para prendel-a a um outro elo, a fim de que ficasse bem esticada, e sentiu que se esticava. Seus pés repousavam, nus, acchatados sobre a cama. Tambem não viu que o que elle trazia à cinctura não era o chicote de couro e sim a chibata negra, semelhante àquella com que lhe tinham battido appenas duas vezes, e quasi de leve, quando se encontrava presa ao poste. A mão esquerda de Pierre affirmou-se em sua cinctura e o colchão dobrou um pouco; appoiara nelle o pé direito para conseguir um equilibrio melhor. Ao mesmo tempo em que ouviu um sibilo na penumbra, O sentiu uma queimadura atroz percorrer seus quadris, e berrou. Pierre chicoteava-a com toda a força. Não esperou que se calasse, e por quattro vezes recomeçou, tomando o cuidado de açoitar sempre abbaixo ou accyma da vez anterior, para que as marcas ficassem nitidas. Quando terminou, ella ainda gritava, as lagrymas excorrendo pela bocca aberta. “Pode se virar, por favor?”, disse, e como, attordoada, não lhe obedescia, segurou-a pelos quadris, sem largar a chibata, cujo cabo roçou sua cinctura; quando ficou de frente, recuando um


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pouco, com toda a força desceu a chibata sobre suas coxas. Tudo isso durou cinco minutos. Quando finalmente sahiu, depois de ter appagado a luz e fechado a porta do banheiro, O ainda gemia de dor, oscillando contra a parede na poncta da sua corrente, na escuridão. Até calar-se e permanescer immovel juncto à parede, cujo tecido brilhante era fresco à sua pelle rasgada, passouse todo o tempo que o dia demorou para admanhescer. (...) No La Pérousse, numa minuscula salla privada do segundo andar, onde personagens em estylo Watteau, em cores claras um pouco appagadas, sobre as paredes escuras, lembravam actores de theatro de bonecas, O foi installada sozinha num divan, com os dois amigos de Sir Stephen, um à sua direita e um à sua esquerda, cada um em sua poltrona, e Sir Stephen à sua frente. Ja tinha visto um dos homens em Roissy, mas não se lembrava de que a tivesse possuido. O outro era um rapaz alto, ruivo, com olhos cinzentos, que certamente ainda não tinha vinte e cinco annos. Sir Stephen disse-lhes em duas palavras por que tinha convidado O e o que ella era. Mais uma vez O se surprehendeu, ao escutal-o, com a brutalidade da sua linguagem. Mas tambem, como queria que fosse qualificada, sinão como prostituta, uma moça que consentia, deante de trez homens, sem comptar os garçons do restaurante que ainda entravam e sahiam, o serviço não tendo terminado, em abrir seu vestido para mostrar os seios, cujos biccos estavam pinctados e dos quaes via-se tambem, por dois sulcos violetas attravés da pelle branca, que tinham sido chicoteados? A refeição foi longa, e os dois inglezes beberam muito. Durante o café, quando foram trazidos os licores, Sir Stephen empurrou a mesa para a parede opposta, e depois de ter levantado a saia de O para que seus amigos vissem como estava marcada e ferrada, deixou-a com elles. O homem que tinha encontrado em Roissy logo appoderou-se della, exigindo immediatamente, sem deixar sua poltrona nem tocal-a siquer com a poncta dos dedos, que se adjoelhasse deante delle, que retirasse


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seu sexo e o accariciasse até chegar ao gozo em sua bocca. Depois, fazendo ainda com que o deixasse novamente composto, partiu.} [7.4.4] O effeito disciplinar -- que numa poncta tem o chicote e noutra a obrigação de chupar o penis de quem chicoteou, seja este quem for e tenha a apparencia que tiver -- fica tambem evidente numa passagem do livro Le Musée des supplices de Roland Villeneuve, na qual o auctor transcreve um trecho de certo Manuel théorique et pratique de la flagellation des femmes esclaves para explicar como e por que a femea deve ser açoitada para depois acceitar na bocca um membro erecto: {Les possesseurs d’esclaves: on n’ose imaginer le nombre des sadiques qui se devaient cacher dans leurs rangs, utilisaient la flagellation pour obtenir des complaisances très spéciales. L’auteur anonyme du “Manuel théorique et pratique de la flagellation des femmes esclaves”, déjà cité, déclare qu’il fit battre pendant un mois, à raison de deux fois par jour, une jeune personne récalcitrante: “Ainsi au bout de peu de jours la jeune fille était domptée et elle m’accordait tout ce que j’attendais d’elle, y compris certaines faveurs bucales que les femmes refusent à leurs amants les plus adorés. J’aurais appelé des négresses à corriger mon indocile esclave que, certainement, nous en serions restés à l’usage insuffisant du fouet ordinaire, alors que les autres fouets m’ont rendu le plus heureux des maîtres de chair servile.” Nous avons dit combien les origines de ce “Manuel” pouvaient apparaître douteuses. Ses considérations sur les motivations sadiques des flagellateurs n’en demeurent pas moins curieuses. Après la “fellatio” voici un moyen radical d’obtenir la soumission complète: “Le plus souvent, la femme reçoit le fouet sur le chevalet, maintenue dans une position telle que sa pudeur en est atteinte cruellement. Il n’est aucun de ses charmes qui ne soit ainsi mis en évidence, bien malgré elle, et elle sent


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parfaitement que l’étalement de sa croupe rebondie provoque les convoitises de ses bourreaux. Or rien n’est plus pénible pour une femme que de faire naître des désirs contre sa volonté.”} Em outro manual de erotismo oral, a attitude da mulher que se submette à fellação é descripta como “philosophica” caso tenha que supportar a falta de hygiene no penis ensebado. A transcripção é do livro O beijo mais intimo de Gershon Legman: {A mulher passa a lingua agilmente mas com firmeza em torno de toda a coroa da glande do penis. Assim fazendo, não dará attenção a qualquer secreção preliminar do fluido pré-coital do homem, nem a quaesquer particulas possiveis do esmegma por acaso presentes sob o prepucio. Isso será lamentavel, sem duvida, mas... (...) O leitor deve ter observado que até agora não houve referencia a lavagens ou abluções de qualquer especie. Isso é intencional. O appreciador da fellação é em geral muito refinado para permittir que as mais nobres e mais preciosas partes de sua pessoa sejam contaminadas pela sujeira. Deve-se presumir que a limpeza habitual do homem está accyma de qualquer duvida. Si esse não for, porem, o caso, não se pode negar que se tracta de uma circumstancia desaggradavel, mas à qual a mulher -- e é precisamente aqui que se faz necessaria a tendencia philosophica do seu character -- não deve dar a menor importancia.} [7.5] Da litteratura nacional suggiro ainda a leitura dos seguintes auctores e obras: José Lins do Rego (Cangaceiros), Jorge Amado (Os subterraneos da liberdade), Erico Verissimo (Incidente em antares), Josué Guimarães (Os tambores silenciosos), Antonio Torres (Essa terra), Ignacio de Loyola Brandão (Bebel que a cidade comeu), José Louzeiro (Lucio Flavio, o passageiro da agonia), Antonio Possidonio Sampaio (Sim sinhor, inhor sim, pois não), Assis Brazil (Os que bebem como os cães), Antonio Callado (Sempreviva), Octavio Ribeiro (Algemas de carne), Raduan Nassar (Um coppo de cholera), Uilcon Pereira (Outra inquisição), e João Sylverio Trevisan (Em nome do desejo).


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[7.5.1] Em Assis Brazil, pelo titulo Os que bebem como os cães ja se espera que os personagens sejam homens que perderam a dignidade e foram reduzidos ao comportamento animal. De facto, a condição do prisioneiro é degradante: {Sempre fora assim: quando em silencio, em paz ou em exspectativa, o zumbido voltava, em duração ennervante, directo como a falla directa do policial: “Deixa as mãos delle algemadas.” Aos poucos ia appalpando o escuro da cella, o silencio da escuridão, o zumbido do proprio corpo -- estava no chão frio: não era cimento nem tijolo, terra battida, humida, mas não molhada ao poncto de ensopar sua roupa -- os braços para traz das costas, os pulsos algemados. Aos poucos ia appalpando o chão com o corpo, de bruços, o rosto quasi a tocar a areia: -- sentia o cheiro da terra -- uma terra velha e usada, com cheiro de mofo, com cheiro de urina -sentia as paredes, mesmo sem vel-as na escuridão: a oppressão do cubiculo estava em seu corpo, em seus poros. A posição era incommoda: as mãos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na areia fria. “Deixa as mãos delle algemadas.” (...) Aos poucos foi ouvindo o que poderia ser alguem caminhando: vinha por um longo corredor, piso de pedra ou de algo que repercutia solido -- caminhava de botas, cadenciado, num rhythmo definido, como si estivesse numa parada militar. (...) Aos poucos, experimentando abrir devagar os olhos, sentia que estava num pateo illuminado e outros homens se accotovellavam a seu lado. (...) Olhou um pouco para baixo e descobriu uma especie de tanque comprido, de cuja parede central sahiam algumas torneiras. Foram empurrados pelos homens de botas até a borda do tanque. Tentou ver o rosto de alguns daquelles soldados ou policiaes, mas parou com a ordem. (...) Tentou ver melhor: o tanque ou uma especie de cocho gigante, para dar comida ou bebida a animaes, tinha duas frentes, separado no meio por uma parede que deveria alcançar o peito de um homem. As duas filas foram empurradas pelos guardas até a beira do tanque.}


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[7.5.2] Em Louzeiro, a narrativa não é autobiographica, typo Exsilio na ilha grande de André Torres. Mesmo assim, consegue retractar o que foi aquelle periodo. Nesse momento a repressão policial se confunde com a oppressão militar, o estado dictatorial unifica o poder e a opposição a elle. Basta lembrar que as facções criminosas de hoje se inspiraram na organização dos gruppos guerrilheiros de esquerda naquelle periodo. Si você viu o filme de Hector Babenco, vae notar que não é tão convincente quanto o livro. Aqui Louzeiro detalha mais ricamente a sessão de tortura em que o delegado quebra a masculinidade do bandido: {Em poucos instantes Lucio Flavio está exhausto. Arquejando por causa dos mergulhos prolongados, das bordoadas nos hombros e no rosto, da espetada com o estylete nas virilhas. Bechara encosta a cabeça perto da sua, repetindo a pergunta e Lucio não espera para ver o que ia dar: cospe-lhe na cara. O homem dá um salto, mas não se livra da cusparada, que excorre por cyma do olho direito. O delegado procura affobado pelo lenço, vae até o cantho onde havia uma pia, umas lattas vazias, uns pannos e vassouras, montes de papeis empilhados. “Não façam nada com elle. Tenho uma idéa melhor p’ra accabar com a macheza desse puto.” Retorna enxugando o rosto no lenço. Senta de novo na cadeira, manda o escrivão ligar, chamando o carcereiro. Em poucos minutos elle apparesce. O delegado cochicha, como si transmittisse um segredo. O homem vae embora. Demora um pouco e volta conduzindo trez creoulos algemados. Um delles ja é bem velho. “Agora vamos ver si tu é macho de verdade”, diz Bechara. “Conta a historia toda ou vae chupar o cacete de todos elles. E vae chupar até cada um delles gozar.” Um dos creoulos, cabeça pellada, faz um sorriso sinistro, os dentes da frente faltando, a cicatriz por cyma do nariz. O delegado dá o signal aos homens encappuzados. Lucio é arrancado da cadeira e obrigado a adjoelhar-se. Os trez marginaes tiram o calção. “Conta ou não conta?”, repete o delegado. Lucio nada responde. Um dos


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encappuzados empurra-lhe a cara com o pé. A marca do sapato fica por cyma da testa. “Cara do Cão, segura a cabeça delle e faz como si fosse uma puta do Mangue. Não quero conversa, nem demora nisso.” Cara do Cão obedesce. (...) Dois encappuzados seguram Lucio pela cabeça, um delles approxima-lhe o estylete do olho. O pau do creoulo enche-lhe a bocca, os policiaes começam a rir, o creoulo roçando as mãos grossas e desadjeitadas nos cabellos daquelle que sabia ser o rei dos bandidos. (...) E emquanto permanescia como motivo de excarneo e da mais profunda baixeza, admittiu ser chegada sua hora de morrer.} [7.6] Caso à parte é o da Amnesty International. Appós a decada de 1960 aquella organização tornou-se a maior fonte de informações sobre tortura, pena de morte e outras violencias no mundo, publicando annualmente um relatorio que resume as mais flagrantes violações de direitos humanos em cada paiz. Alem desses relatorios globaes, traduzidos em varios idiomas (ja temos traducção do volume referente a 1982, pela Editora Vozes), exsiste um especifico sobre o nosso thema (Report on torture, 2ª ed., Londres: Duckworth, 1975) e diversos enfocando situações particulares em determinados paizes: La tortura en grecia (1978), La tortura en chile (Madrid: 1983), Irak: constat de torture (1981) etc. Mencione-se ainda um Informe de una misión de la amnistía internacional a la república de filipinas (Barcelona: Editorial Blume, 1978) e o curioso relato intitulado “Ill-treatment by Israeli authorities”, na anthologia Voices for freedom (Londres: Amnesty International, 1986. Só que as publicações da Amnistia não se encontram em livrarias, devendo ser pedidas pelo correio com risco de extravio e outros contratempos. A installação da secção brazileira poderá solucionar em parte esse inconveniente para os pesquisadores do soffrimento alheio... [Observação de 1984] [7.6.1] A proposito da analogia entre dictaduras orientaes nas quaes as artes marciaes se incorporam ao “modus operandi” dos


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torturadores, cabe registrar este caso illustrativo, tendo como fonte um INFORME da Amnistia Internacional sobre as Philippinas, accyma citado: {Si no futebol mostrar a sola é golpe baixo, nas artes marciaes o pé alto accerta em cheio no physico e no moral do adversario. Em certas dictaduras asiaticas, o golpe solado faz parte daquillo que se poderia chamar de “tortura marcial”, abundantemente descripta na decada de 1970 por organismos humanitarios como a Amnistia Internacional, cujos relatorios colleccionei na epocha em que estudava a tortura. Ainda guardo alguns apponctamentos dum dossiê em hespanhol denunciando abusos em paizes como as Philippinas ou as Koréas, onde professores suspeitos de “actividades subversivas” podiam “desapparescer” temporaria ou definitivamente, sequestrados pela policia politica. Em dois casos encontrei coincidencias, nada surprehendentes, nas circumstancias do captiveiro desses professores, um philippino, outro koreano. Casei os detalhes e, tomando por base trechos daquellas notas, attentei para as seguintes particularidades: o regime mantinha o prisioneiro em “casas de segurança”, onde, com ou sem interrogatorio, com ou sem proposito ou motivo, podia a victima ser torturada à vontade pelos “agentes” e até por seus filhos menores, como neste caso. A casa em questão era uma residencia adaptada como carceragem e centro de tortura. Dotada de piscina, permittia que os “funccionarios” e seus moleques pudessem ao mesmo tempo nadar e affogar os presos, numa dupla brincadeira. Segundo depõe o tal professor X, “(...) Recibió una patada que le hizo caer de rodillas. Siguieron más puntapiés y puñetazos. (...) Se le ordenó desnudarse. (...) Se le obligó a quedarse en ropas menores. (...) Fue conducido a la piscina de la Casa de Seguridad. [e, ao redor dessa piscina] Se le obligó a caminar durante una hora de rodillas hasta que éstas quedaron en carne viva y sangrantes. (...) Le dieron puntapiés enm las piernas (...) y recibió patadas en la cara, propinadas con botas y


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zapatillas. [Levado à beira da piscina,] Su cabeza fue sumergida en el agua. Más tarde, el agente Z le arrojó a la piscina de una patada. El agente saltó tras él -- era la parte menos profunda de la piscina -- y retuvo el cuerpo prostrado del profesor X entre sus piernas. La cabeza del profesor X fue mantenida bajo el agua hasta que perdió el conocimiento y tuvo que ser reanimado con la respiración artificial. Después, el agente Z introdujo en la nariz del prisionero, el agua que brotaba a gran presión de una manguera, hasta que el profesor X se desmayó. (...) Cuando los agentes se detuvieron para descansar, llegó unm hijo adolescente del agente Z y asestó al profesor X patadas volantes de karate y puntapiés en la cara hasta que de nuevo perdió el conocimiento.” Fica, portanto, centrada a questão nesta ultima scena, em que o professor adjoelhado recebe na face os golpes desferidos pelo pé juvenil.} [7.7] Cabe registrar ainda um commentario mais detalhado sobre obra mais recente, resenhada pelo auctor no Caderno de sabbado do Jornal da tarde em 24/06/1989. “A TRAJECTORIA DE UM INSTRUMENTO DO PODER” [7.7.1] Dos quattro themas mais caros à intelligencia humana -- o Amor, o Prazer, a Dor e a Morte -- a tortura é talvez o departamento mais intrigante, pelo que tem de familiar & extranho ao mesmo tempo. Emquanto conceito subordinado à dor ou à morte, a tortura tem sido documentada desde os primordios da chamada civilização. Deschartada a ficção, os registros sobre o assumpto distribuem-se por trez vertentes: depoimentos individuaes de victimas (como Papillon ou Henri Alleg), relatoórios officiaes (como os Nunca mais argentino e brazileiro) e tractados theoricos de cunho historico ou juridico -- as duas primeiras assumidamente tendenciosas no sentido antitorcionario,


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a terceira suppostamente neutra a serviço da objectividade scientifica, mas parcial na practica, a serviço dos interesses intellectuaes do auctor. A este ultimo caso pertence a recente obra de Edward Peters, cujo titulo TORTURE é calculadamente pretensioso em sua despojada simplicidade. Publicado ha quattro annos nos Estados Unidos, o livro ja havia seduzido alguns sectores da grande imprensa brazileira antes mesmo do lançamento da cuidadosa traducção de Lila Spinelli, que accaba de sahir pela Editora Attica. A phrase {O futuro da tortura depende do futuro dos torturadores} chegou a virar bordão editorial no tracto da materia. [7.7.2] É innegavel, desde logo, a fundamental importancia dum livro como este e de sua traducção em tempo habil. Primeiro porque o trabalho vem respaldado nas credenciaes dum professor de historia da Universidade da Pennsylvania, que consumiu trez annos de pesquisa puramente cademica, sem compromissos com militancia politica ou activismo humanista. Segundo, porque o auctor actualiza a abbordagem do seculo XX até os annos 1980, revendo & completando as fontes que mais o influenciaram: a franceza de Alec Mellor (La Torture: son histoire, son abolition, sa réapparition au xxe siècle), de 1949, a italiana de Piero Fiorelli (La Tortura giudiziaria nel diritto comune), de 1953/4, e a americana de John Langbein (Torture and the law of proof), de 1977. Mas si, de um lado, Peters mantem um conveniente distanciamento do activismo politico-humanista como presupposto ethico de exempção, não excappa, por outro lado, das limitações & do artificialismo conceitual a que estão subjeitas as theses de gabinete, embora cumprindo com exito o projecto methodologico a que se propoz. [7.7.3] O livro considera a tortura como um conceito restricto ao universo institucional, mais especificamente juridico, deschartando portanto outras implicações dum phenomeno tão


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arraigadamente interligado àquillo que o auctor chama de valores “moraes-sentimentaes”. Seu proposito declarado é tentar demonstrar que {a tortura judicial é a Unica forma de tortura, seja ella administrada por um judiciario official ou por outros instrumentos do Estado}, ja que na sua opinião {outros actos emocionalmente denominados “tortura” devem receber denominação differente}. Assim, Peters arma uma perspectiva diachronica onde se emphatiza a dimensão publica (legal ou illegal) da tortura emquanto instrumento de poder politico, desde a Grecia antiga até estas ultimas decadas do segundo millennio. [7.7.4] Partindo do principio de que {não está claro até que poncto os gregos devem aos egypcios e aos persas seus methodos de tortura}, o auctor inicia sua analyse pela estructura social da Grecia, onde a tortura era chamada de Basanos; considerando que a legislação grega influenciou a romana e esta, por sua vez, originou as da Europa medieval & moderna, é nessa ordem que são estudadas a Quaestio (inquerito), nome official da tortura romana, a Inquisitio (inquisição, outro synonymo de inquerito) da egreja catholica e a Question do Ancien Régime francez & suas correlatas dos estados europeus. Essa identificação da tortura com a phase de investigação criminal, anterior à prova de culpa, à sentença e à punição, baseia-se na definição do jurista Ulpiano no seculo iii: {Por Quaestio devemos entender o tormento e o soffrimento do corpo com a finalidade de obter a verdade}, ou seja, a confissão extorquida, o que significaria desconsiderar como tortura todos os castigos applicados appós a sentença, por mais crueis que fossem, inclusive a pena de morte por via (sanguino)lenta. Tracta-se dum conceito tão cynicamente parcial & particularizado quanto as desegualdades civis perante taes leis, onde cidadãos ricos, livres & honrados tinham immunidades de que os plebeus, escravos & potencialmente suspeitos não desfructavam, chegandose ao cumulo de dar a um accusado nobre o direito de provar sua


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innocencia offerescendo seus escravos para serem torturados. Para todo typo de crime, fosse contra o Estado (lesamagestade), contra a Egreja (heresia) ou os chamados Delicta levia (delictos leves), a “rainha das provas” (Regina probationum) era a Confissão, noção que perdurou até que o Illuminismo do seculo xviii provocasse a revisão dos codigos penaes e a abolição explicita da tortura, quer para fins policiaes ou politicos. As constituições passaram a incorporar tal preceito aos direitos basicos do cidadão, e theoricamente considerou-se o fim da tortura official uma conquista equivalente à abolição da escravatura e ao direito de voto. Na practica, porem, o mundo entrou no seculo xx incrementando & sophisticando a tortura à margem da lei, practicada e/ou tolerada pelos governos, effeito que culminou na creação de apparelhos repressores sob as mais diversas ideologias, como a Gestapo nazista, a ovra fascista, a Tcheka e a kgb sovieticas, a cia americana e os dops, doi-codis & similares latinoamericanos, sem fallar nas delegacias de policia de qualquer paiz, onde a tortura sempre foi roptina clandestina, mascarada por euphemismos que vão da segurança nacional à segurança publica -- a despeito das campanhas de denuncia movidas por organismos como a onu, a Cruz Vermelha e a Amnistia Internacional. [7.7.5] Toda essa trajectoria é recapitulada por Peters de forma detalhada e bem fundamentada, embora sem se deter nos methodos de tortura em si mesmos. Ao encampar a these de Foucault em Vigiar e punir -- de que a tortura como instrumento de poder não foi “abolida” com o Illuminismo, mas habilmente substituida pelas tyrannias carcerarias das prisões propriamente dictas, alem das fabricas, escholas & quarteis, que massacram & massificam o cidadão no quotidiano, convertendo-o em objecto robotizado -- Peters questiona a tortura no final do seculo XX, sophisticada pela nova technologia da dor (recursos psychicos &


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chymicos), como parte de um Systema hypocrita & machiavellico, quasie orwelliano, onde o torturador é menos um sadico que um funccionario recrutado, treinado e recompensado, que cumpre ordens de cyma, partidas de auctoridades que se eximem de responsabilidade, e onde a victima tem a protecção da lei mas “desapparesce”, “suicida-se” ou “soffre accidente” antes que as medidas protectoras surtam effeito. [7.7.6] O livro de Peters vende bem o peixe na medida em que admarra o enfoque juridico na conclusão de que o combatte à tortura depende do proprio instrumental socio-legal de que ella é fructo, instrumental cuja efficacia repousa na proporção em que o progresso das instituições for ccompanhando o advanço technologico da tortura em si. É uma conclusão edificante (resalvado o pessimismo quanto às probabilidades de retrocesso nas noções de direitos humanos), mas que não livra o livro de suas limitações. Quanto às fontes, Peters subestima o detalhe na descripção dos methodos de tortura como subsidio à comprehensão do thema, ommittindo importantes tractados historicos como o de George Ryley Scott (History of torture) ou o do demonologo Roland Villeneuve (Le Musée des supplices), este tambem iconographico. Quanto à delimitação do conceito, elle evita encarar a tortura como um departamento não appenas da Dor, mas tambem do Prazer, assim como o Sexo ou o Bello, exquivando-se portanto duma outra porta para estudo: a do fascinio ethico & esthetico, que tanto motiva os artistas quanto o cidadão commum, o qual convive com a tortura desde a infancia, na caça aos passarinhos, até a adolescencia, no trote da faculdade, e à vida adulta, no castigo dos filhos. Mas não se pode exigir tudo dum livro só...


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[8] APPENDICE O ensaio abbaixo foi escripto em outubro de 2000 e publicado originalmente no site pessoal do auctor, circulando na internet a proposito da subcultura skinhead na scena rockeira. Addicionalmente annotado, aqui o material interessa como subsidio à comprehensão da intolerancia e da segregação como adspectos que, entre outros, podem ser considerados motivadores da tortura dictatorial em muitos paizes. “NEONAZISTAS: HOMOPHOBOS OU AUTOPHOBOS?” [8.1] Ja virou escudo da militancia gay allegar que todo machão que odeia bicha não passa dum entendido enrustido, argumento que, embora psychanalyticamente sustentavel, é poncto nada pacifico quando se tracta da violencia antigay, tão antiga quanto a intolerancia nazista e tão nova quanto as juventudes neonazistas, mais visivelmente representadas pelos skinheads. Mesmo que estes, em parte, se preoccupem em dissociar sua imagem do racismo, respondendo à infiltração de ultradireita com frentes como o sharp (SkinHeads Against Racial Prejudice), o machismo e a violencia nunca deixaram de ser cultuados entre os carecas botinudos. [8.2] De tanto allardear brutalidade e masculinidade, os skins accabam reforçando o argumento do enrustimento, na medida em que fetichizam demais a auto-imagem e procuram nos companheiros seu espelho narcisico, inconfessavelmente erotico. Os antecedentes dessa cryptohomophilia no nazismo são bem conhescidos dos historiadores, embora nunca francamente admittidos. Sabe-se que a propria idéa do triangulo rosa para rotular prisioneiros gays nos campos de concentração (differenciando-os de outras “categorias” como judeus, ciganos,


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etc.) partiu do braço direito de Himmler, um lindo e loiro official chamado Heydrich. É curioso notar que nenhum dos figurões do Reich allemão tinha o perfil perfeito do aryano idealizado pelos theoricos da “raça superior”: Goering era gordão, Goebbels franzino e coxo, Himmler e o proprio Hitler longe do typo loiro e nordico. No entanto, Himmler fazia questão de auctorizar pessoalmente o casamento de cada um de seus commandados SS, a fim de evitar uniões racialmente impuras, e só auctorizava (si a noiva fosse loirinha) depois de examinar a photo do joven pellado, para conferir as characteristicas “aryanas”. (ver 8.25.1) Imaginem só essas sessões de photos e esses photographos, com que patriotismo trabalhavam! [8.3] Pois não é que o tal Heydrich era o unico desse alto escalão que tinha exactamente a cara (e o corpo) do garanhão teutonico? E não é que os biographos de Heydrich descobriram que elle tinha transado na marra com um superior no começo da carreira militar? (ver 8.25.2) Isso explica por que guardava tanto rancor de homosexuaes, a poncto de forjar dossiês onde accusava velhos officiaes da Wehrmacht de relações desse typo, a fim de affastal-os do caminho de Hitler no controle do poder dentro das forças armadas. Um desses officiaes foi o general Werner von Fritsch, banido vergonhosamente depois que a Gestapo, instruida pelos methodos de Heydrich, obrigou um michê a confessar que tivera um caso com aquelle que ainda conservava influencia interna contra Hitler. (ver 8.25.3) [8.4] Os proprios alliados do fuehrer foram victimas do machiavellismo de Heydrich, que poderia ser chamado de “a bicha maldicta do nazismo”. Isso porque a bicha “bemdicta”, isto é, que se assumia e obstentava seu comportamento, era Ernst Roehm, um “sargentão” feioso e corpulento, cuja fama de disciplinador era tão grande quanto a de recrutar ephebos para sua cama. Os


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ciumes de Heydrich (e de seu superior Himmler) contra Roehm eram obvios: despeitados, temiam que Roehm ficasse mais poderoso que o proprio Hitler e lhe tomasse o logar, ou pelo menos exigisse o posto de commandante supremo do exercito. De facto, Roehm organizara e commandava as SA, a tropa mais numerosa do partido (emquanto as SS eram minoritarias, como tropa de elite), mas era tão fiel a Hitler que este o tractava por “du” (aqui seria “você”), uma intimidade que não concedia a nenhum outro subordinado. (ver 8.25.4) Mesmo quando os enciumados apponctavam ao fuehrer a conducta escandalosa de Roehm, o dictador respondia que a vida privada do official não importava. (ver 8.25.5) Quem diria, o velho thio Adolpho mais tolerante que seus discipulos, e estes mais realisticamente “rainhas” que o rei! Ciume de bicha é fogo! De bicha nazista, então, é faca! [8.5] Tanto é faca, que Heydrich accabou conseguindo incluir Roehm entre os sangrentamente expurgados como “trahidores” na chacina conhescida como a Noite das Longas Facas, quando o commandante das SA foi tirado da propria cama (onde dormia com um de seus rapagões) para ser executado. (ver 8.25.6) Antes disso Roehm ja tinha sido temporariamente affastado do commando por causa das pressões das enciumadas. Passou umas feérias forçadas (Pasmem!) na Bolivia, como assessor militar, de onde escrevia aos amigos, desconsolado porque naquelle fim de mundo não havia quem o “entendesse”... (ver 8.25.7) Voltou, reassumiu seu posto à frente das tropas (Eu disse “à frente”? Disse-o bem!), mas voltou para enciumar ainda mais as “maldictas”, que não o perdoavam por desfructar tão abertamente aquillo que ellas tinham de fingir combatter com dossiês, triangulos e muito pigarro para engrossar a voz. Roehm, com sua cara brava marcada de cicatriz, morreu com fama de gostosão dos quarteis, emquanto Heydrich, com sua carinha de bebê Johnson, morreu num attemptado, victima dos guerrilheiros que resistiam à


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occupação nazista na Checoslovaquia. Bem feito, diriam as bichas communistas e capitalistas. [8.6] Com todo esse historico de alcova e bastidores, o nazismo não é o mais salutar exemplo de virtudes heterosexuaes, mas mesmo assim inspira o moralismo hypocrita duma reduzida parcella da nova geração, cuja face mais estereotypada é a dos skinheads, tidos como radicaes em seu preconceito, a poncto de lyncharem gays pelas ruas em varios canthos do mundo. As occorrencias policiaes não mentem, mas será que reflectem o comportamento da maioria desses fans da bota e do suspensorio? Para todos os effeitos, prefiro accreditar que é a musica, mais que a policia ou a politica, a fonte fidedigna para acquilatar o grau de hostilidade homophoba desses jovens arruaceiros. A banda mais representativa do rock skin, os 4-Skins, era suggestivamente phallica a partir do nome, que trocadilha com “foreskins” (prepucios) e insinua (segundo as más linguas, cujo paladar rejeita esmegma) que seriam incircumcisos e, portanto, antisemitas. Mas isso não passa de chifre em cabeça de cavallo, ou melhor, em cabeça de caralho. Na verdade, as canções da banda não attaccam judeus nem gays. Limitam-se a protestar contra a policia, os politicos, os patrões, o desemprego, o consumismo, emfim, nada mais ou menos que o themario recorrente das bandas punks na epocha de Thatcher. Em todo caso, a allusão caralhal dos 4-Skins fez eschola mundo affora: uma banda skin chilena se baptizou como Ocho Bolas, e uma alleman como Smegma... [8.7] Entre as bandas que começaram quando os 4-Skins accabavam, duas merescem attenção: a Oppressed e a Condemned 84. O vocalista da Oppressed, Roddy Moreno, foi portavoz do movimento SHARP, o que descharacteriza sua banda como nazista mas não a exempta da apologia de outros valores comportamentaes da tribu, entre os quaes a ultraviolencia e a homophobia. Sobre a


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ultraviolencia (termo popularizado entre os skins a partir do filme de Kubrick baseado no livro Laranja mechanica de Burgess), a canção homonyma vê “tretas” por toda parte, no futebol, na rua, e até nas danseterias, cujo som, a “disco music”, é universalmente identificado como “musica de veado” e inspira comprehensivel nojo aos skins. Um dos versos da Oppressed manda o clubber enfiar sua musica no cu: {Stick your disco up your ass!}, no que faz khoro com quasi todas as bandas da musica Oi!. Nunca é demais relembrar que a scena culminante do filme mostra em close o protagonista skin sendo obrigado a lamber a sola do sapato duma bichona, typo dos mais antipathicos ao joven rebelde. Quanto à Condemned 84, embora não fosse declaradamente pró-nazi, divergia das posições do SHARP e se manifestava explicitamente contra os gays, como na canção “We hate you”: WE HATE YOU (Condemned 84) We We We We

know hate know hate

who you are you and all homosexuals what you are you and all homosexuals

[8.8] O estylo de punk rock ouvido pelos skins, chamado de “Oi! music”, data de 1980, mas a tribu skinhead é bem mais antiga, contemporanea dos “bootboys” (como eram chamados os hooligans inglezes na epocha da coppa de 1966) e dos “mods” (de “modern”, tribu que se contrapunha aos “rockers”, como eram chamados os que, na Inglaterra, copiavam a “juventude transviada” americana) e, sob influencia dos immigrantes jamaicanos (rude boys) os skins ouviam reggae e ska desde 1967. Si na “Oi! music” as lettras nem sempre são tão aggressivas como seria de suppor (até para justificar o lemma “Having a laugh and having a say” ligado ao genero), no reggae skinhead o bom humor comparesce ainda mais


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frequentemente. Nesse contexto de satyra e parodia, o gay nem sempre é retractado como indesejavel, embora pinctado de forma estereotypada e pejorativa. Antes de exemplificar, faço pequena digressão para um historico da bichice no rock. [8.9] Até o final da decada de 1960 (coincidindo com o inicio do movimento gay nos States) o rock se manteve irreductivelmente machista, appesar de todo o clima de amor livre que characterizou os annos do Flower Power. Entre os pioneiros do rock’n’roll havia bichas pinctosissimas, como o negro Little Richard, cujos gritinhos hystericos e cujo topete de Madame Pompadour não davam margem a duvidas. Productores e empresarios judeus, embora mais discretamente, tambem eram gays notorios, como Phil Spector e Brian Epstein, ambos appaixonados por John Lennon. No entanto, nada apparescia nas lettras, que só se referiam a garotas, garotas e mais garotas. Nem é preciso alludir a Neil Sedaka, Simon & Garfunkel, Cat Stevens ou Marc Bolan. Quando, raramente, se alludia ao comportamento homosexual, era para criticar o menino cuja apparencia ou modos eram de menina, como na canção “Are you a boy or are you a girl?” da banda The Barbarians. A feminilidade era, aliaz, o úunico traço distinctivo para se rotular alguem de fresco, e por isso a figura do travesti accabava sendo a caricatura que desfilava na cabeça do compositor. Foi assim que, pela primeira vez, o thema surgiu, suggerido num hit, quando Paul McCartney escreveu “Get back”, em 1968. Na verdade, Paul queria thematizar outra classe de discriminados, os immigrantes pakistanezes. A canção se chamaria “No Pakistanis”, visando satyrizar o lemma dos xenophobos, mas para fugir à pecha de politicamente incorrecto o Beatle preferiu abbordar a androgynia de Jojo e Loretta. Pouco depois, em 1970, os Kinks foram mais ousados e, na canção “Lola”, narram explicitamente a classica historia do rapaz que sae com uma garota e só na hora H descobre que ella é um homem.


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA LOLA (Kinks) I met her in a club down in old Soho Where you drink champagne and it tastes just like coca cola C-O-L-A Cola She walked up to me and she asked me to dance I asked her her name and in a dark brown voice she said Lola L-O-L-A Lola Lo lo lo lo Lola Well, I’m not the world’s most physical guy But when she squeezed me tight she nearly broke my spine Oh my Lola, lo-lo-lo-lo Lola Well, I’m not dumb but I can’t understand Why she walked like a woman but talked like a man Oh my Lola, lo-lo-lo-lo Lola Lo-lo-lo-lo Lola Well, we drank champagne and danced all night Under electric candle light She picked me up and sat me on her knee And said “dear boy, won’t you come home with me?” Well, I’m not the world’s most passionate guy, But when I looked in her eyes, well I almost fell for my Lola Lo lo lo lo Lola Lo lo lo lo Lola Lola, lo lo lo lo Lola Lo lo lo lo Lola I pushed her away I walked to the door I fell to the floor

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I got down on my knees Then I looked at her and she at me Well, that’s the way that I want it to stay And I always want it to be that way for my Lola La-la-la-la Lola Girl will be boys and boys will be girls It’s a mixed up muddled up shook up world except for Lola La-la-la-la Lola Well, I left home just a week before And I’d never ever kissed a woman before But lola smiled and took me by the hand And said “dear boy, I’m gonna make you a man” Well, But I Lo lo Lo lo

I’m not the world’s most masculine man know what I am and I’m glad that I’m a man and so is Lola lo lo Lola lo lo Lola

Lola, Lo lo Lola, Lo lo Lola, Lo lo

lo lo lo lo lo lo

lo lo lo lo lo lo

lo lo Lola Lola lo lo Lola Lola lo lo Lola Lola

[8.10] É verdade que os Stones ja haviam posado vestidos de puta para promover a canção “Honky tonk women”, mas a bichice (ou a bisexualidade) de Jagger ficava só nas fofocas de bastidor. Depois dos Kinks, a déecada de 1970 assistiu a uma explosão de androgynia, como bem demonstra, entre outros, o ensaista hespanhol Eduardo Haro Ibars em seu livro Gay rock: Alice


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Cooper, Elton John, os New York Dolls, Queen, Kiss, Bowie, Reed, a discotheca, até desaguar na poesia dum Morrissey e na choreographia dum Michael Jackson nos 80. Ironicamente, Lennon, que se engajou em todas as luctas libertarias (irlandezes, negros, drogados, mulheres, presidiarios), não teve coragem de defender os gays abertamente. O maximo que fez foi uma lettra a favor da bohemia e da promiscuidade, numa solidaria parceria com Elton John: “Whatever gets you thru the night”. Muito pouco para um paladino das minorias e dos opprimidos. Seria algo a esconder? [8.11] Voltando à vacca fria, ou melhor, à gallinha fogosa, a mesma historia do travesti contada em “Lola” dos Kinks é revisitada constantemente, até na musica skinhead. Dois exemplos, o primeiro no reggae, o segundo na “Oi! music”: Judge Dread, o leão-de-chacara branco que virou cantor e rivalizou com os idolos negros como Laurel Aitken e Desmond Dekker entre o publico skin, gravou “Je t’aime”, onde satyriza a canção-thema do filme JE T’AIME MOI NON PLUS de Serge Gainsbourg, que virou trilha sonora de moteis e filmes X. Quanto à banda belga The Pride, la está o traveco na canção “She male”, cuja lettra vale transcripção: SHE MALE (The Pride) I met a girl, in a bar She said, let’s go to my place it ain’t far She looked so good, she looked so fine I couldn’t wish myself a better Valentine We’re doing O.K., we’re doing fine We started kissing, by candle light


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So now you get a private show She started dancing and stripping waah You never know what planned yours When she pushed her red lips on mine Entered her pants, with both hands I felt a cock, it was a man How could this happen to me? That lovely girl is not a she Why does it happen to me? Is this some joke from God? He’ll better not mess around with me [8.12] Outro idolo do ska skin é o gorderrimo Buster Bloodvessel, vocalista da banda Bad Manners, cuja performance no palco foi delirantemente applaudida pela carecada ingleza, ainda que debochadamente androgyna: imaginem o nosso tesudissimo João Gordo dansando cancan e rebollando, com aquelles appetitosos pezões chatos (ver 8.25.8) dentro de enormes cothurnos! Será que o bom humor dos carecas brazileiros aguentaria tanto jogo de cinctura? Não por acaso, a Bad Manners gravou uma cover de “Lola”... [8.13] Tambem satyrica é a postura dos Macc Lads, outra banda inglesza incorrectissima no tracto (intestinal) de themas sujos, cuja canção vae transcripta. Fica evidente a ambiguidade do nome trocadilhado, entre o feminino Nel (que pode ser uma variação de Nelly ou forma abbreviada dum prenome typo Penelope) e o masculino Nelson, ou seja, entre a puta e o travesti. Comtudo, si o chupeteiro é homem ou mulher, pouco importa; o que se emphatiza é a condição absolutamente antihygienica da fellação: esmegma accumulado no prepucio, fedor de latrina, halito


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nauseabundo... mas grande dose de tesão e de recordação, que o fanfarrão compositor allardeia. Reparem em dois detalhes bem typicos do sarcasmo maccladiano: aquella bocca ja engoliu mais prepucios que o balde dum medico judeu e, para conseguir abboccanhar um cacete do porte do nosso heroe, teria de extrahir os dentes... FELLATIO NEL, SON (Macc Lads) Let me tell you about the worst blow job I ever had, (It was alright, actually, it wasn’t that bad) If you just want the smeg licking off your bell end There’s a tart in Lancashire I’ll recommend She’ll do it in the pub, you don’t have to go to bed She’ll even put a beer towel on top of her head And get a round in if you keep her well fed Fellatio Nell, son, you won’t like the smell, son Gangrene and death come across in her breath, Fellatio Nell, son. I was watching the final on the TV, When the smell of a urinal wafted over to me I thought of open sewers and unflushed bogs, But the smell of manure was coming out of her gob Nobody’s snogged her since ‘71 Coz her gob’s always full of somebody’s come And there’s seven types of dick cheese under her tongue Fellatio Nell, son, you won’t like the smell, son She’ll gobble up your scrote and fit it down her throat, Fellatio Nell, son.


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Running sores round her cakehole, but I took the chance You can’t see her face when its in your underpants She’s swallowed more foreskins than a Yid doctor’s bucket She sees a bulging crotch, she just has to suck it Fellatio Nell, son. You won’t like the smell, son She can suck your bollock through the hole in your cock, Fellatio Nell, son. She can drool on your tool faster than blinking She won’t even mind if you carry on drinking She’ll even put a beer towel on top of her head And get a round in if you keep her well fed Nobody’s snogged her since ‘72, Her gob’s always full of somebody’s tool Fuck off down the chemists get some listerine Your breath smells like the creature from the black latrine She’ll clean out your Jap’s eye with the tip of her tongue Eat the worms round your warhead if you’re very well hung Her face is always buried in somebody’s flies But she had to take her teeth out to accomodate my size. [8.14] Mas a verdade é que nem só de brincadeira vive o gay no cancioneiro skinhead. Ha muita manifestação seria e combattiva, tanto a favor como contra. A contraria fica, é claro, por compta das bandas da ala White Power, assumidamente nazistas e engajadas no RAC (Rock Against Communism), como a No Remorse, a Battlezone ou a Unruly. A defensiva, por parte das antinazistas, como a Oi Polloi. Vejamos alguns exemplos. [8.15] Em “Another one bites the dust”, a No Remorse associa o gay à epidemia de aids (ver 8.25.9):


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA ANOTHER ONE BITS THE DUST (No Remorse) Read it in the papers Another one bites the dust They hail him as a hero, Ignore his twisted lust They only reap what they sew, Open up your eyes AIDS is their just deserts See them drop like flies Another one bites the dust From his sexual deviant twisted ways Another one bites the dust Let’s raise and cheer -- there’s one less gay Another one bites the dust Segregation now -- save us from AIDS Another one bites the dust Gay genocide -- It’s nature’s way Nature will reject Things that have no worth, From a homosexual popstar, To a junkies babies birth Nature has shown us A true prosperous way If we outlaw homosexuals We just might save the day So one day, might watch TV And see any gays Because they’ll all be in the Hospice Or laying in their graves

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Then we can all sit back And let morality reign And pray that our people Never let it happen again [8.16] Em “Shadow of death”, o alvo da banda é o michê, associado à droga: SHADOW OF DEATH (No Remorse) When you were twelve you first tried glue You thought it was good to be one of the crew Sniff in the park, sniff on the train Feeling high, you’re killing your brain A plastic bag was all you lived for Addiction set in, you want more! more! more! In the shadow of death, I’ll see you there You were the one, you didn’t care After a while you started to feel ill Feeling down, you’re taking some pills You saw the world through a fucked up haze You’re going down hill for a teenage craze Your mates have stopped, you’re left on your own Kicked out of school, kicked out of home In the shadow of death, I’ll see you there You were the one, you didn’t care You know you are dying as you stumble to your feet Thieving and poncing, to make ends meet Picked up, up town by a man with a tash He says he’s got a job for you, with plenty of cash A lot of rich clients, who pay for their needs


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Now you’re on the game, you’ll never be free In the shadow of death, I’ll see you there You were the one, you didn’t care The time is getting nearer, you’re in the shadow of death No one will hear you, in your last dying breath Lying in the gutter is what the paper said Another young rent boy has ended up dead In modern day England, how can this be? Drugs and abduction are set to run free In the shadow of death, I’ll see you there You were the one, you didn’t care [8.17] Em “Rent boy”, a Battlezone tambem excolhe o michê como inimigo: RENT BOY (Battlezone) You look like a skinhead but that as far as it goes You dress like us for kicks or just to pose Your client get turned on by our style of dress You ain’t one of us, you’re just a fucked up mess Rent Rent Rent Rent

boy, boy, boy, boy,

you’re you’re you’re you’re

the scum of the earth a down and out the scum of the earth the lowest of the low

You’re not a real skinhead but you dress the same Dirty perverted rent boy, you’re on the fucking game If I saw you on the street I’d vent my rage I’ve got no time for a dirty filthy gay


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Why choose skinheads and try and dress our way People know that you are given us a bad name Just you keep away from me, keep right out of my sight Cos if I see you you’ll get a fucking fight [8.18] Em “10%”, o gruppo americano Unruly invoca a estatística populacional para estigmatizar a minoria gay: TEN PERCENT (Unruly) 10 percent of the human race 10 percent are such a fucking disgrace You claim that I am insecure The truth is you’re the cancer, my boot is the cure Army of faggots trying to conquer We ain’t gonna take it any longer Man humiliated on television Cause another man looked at him with perversion Exploiters of our country don’t see it that way Because they get their ratings by promoting the gays Time to strengthen our morals and get tougher Time to crush their uprise before they get stronger It ain’t enough for it to be taboo I don’t wanna see the likes of you Day of judgement soon will be here For the round up of all those queers [8.19] Tambem no discurso da Grievance Committee, outra garagistica banda americana, a bota é a cura para o “queer”


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no convivio com os intolerantes do quarteirão, a exemplo da Unruly. A canção “Lick the boot” (faixa-titulo de EP da banda de Detroit, lançado em 1989) tem lettra bem explicita quanto à victima das botinadas e quanto à lambeção forçada. LICK THE BOOT (Grievance Committee) You’re walking up and down the block people talk about your sanity You got nothing to say for yourself cuz it runs in the family - hey You’re just an arse and swine you aint no friend of mine we only kick you around cuz we do it for the fun You’re crawling across the floor I know what you’re after and then ya, stick out your juicy little tongue Lick the Boot You’re sister’s losing patches of hair and your Mom’s doing one to three Your brother fuck’s dogs for crack and your dad’s eating dinky-dee Lick the Boot you’re just an arse and swine you aint no friend of my we only keep you around cuz we do it for the fun You’re crawling across the floor I know you want some more and then ya, stick out your juicy little tongue and lick the boot- hey!


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[8.20] Por que será que esses skins nazistas teem tanta ogeriza ao michê, mais que ao travesti? A resposta me paresce evidente: é porque o michê se veste e se porta, muito commummente, da mesma forma que elles proprios, masculos, musculosos, tattuados, carecas, usando suspensórios e cothurnos, fallando grosso, cantando as mesmas musicas, dansando nos mesmos passos pesadões, frequentando os mesmos ponctos. Um travesti é alguem que podem apponctar e dizer: “Eu não sou isso!”, mas um michê é alguem com quem podem ser confundidos, e que, peor ainda, pode deixal-os confusos quanto à propria sexualidade. [8.21] O mais curioso é que, ao contrario do que os proprios nazistas commentam em suas canções, não são appenas michês os homosexuaes que se identificam com a imagem e os costumes dos skins. Quando estive em Londres, em 1993, travei contacto com um gruppo organizado, que hoje tem similares na Allemanha e em outros paizes europeus: o GSG (Gay Skinhead Group), que editava um fanzine chamado SKINHEAD NATION e promovia encontros e correspondencia entre skins gays. Na epocha, fui informado de que a maioria dos filiados era composta por authenticos skinheads, isto é, suburbanos, operarios, appreciadores de cerveja, futebol, ska e Oi!, com um unico detalhe a differencialos da parcella majoritaria do movimento: tinham attracção pelo mesmo sexo. Appoiavam, é claro, a ala SHARP e, na politica, as correntes mais libertarias e progressistas, esquerdistas ou anarchistas, mas sem abrir mão dos valores e signos da tribu: esportes violentos, tattuagens, porres, farra, torcida fanatica. Ou seja, uma surprehendente demonstração de que ha espaço para tudo quando o preconceito é combattido em mão dupla, e não appenas no “sentido obrigatorio” signalizado pela midia e pelas auctoridades ou patrulheiros ideologicos. [8.22] Naquella opportunidade tambem fiquei sabendo de outras fofocas que rollavam na scena. Uma, que o famoso John Byrne,


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photographo dos skins, cujos postaes corriam mundo e até illustravam as paginas de abertura dos capitulos da Biblia do skinhead de George Marshall (uma historia antiracista do movimento, que traduzi para o portuguez), declarou-se gay em entrevistas a fanzines. Outra, que o famoso skin que apparesce mostrando a sola do cothurno em pose de artes marciaes na cappa do anthologico album Strength thru oi! estava entre os guardacostas do proprio Ian Stuart, o Dylan dos naziskins: era um tal de Nicky Crane, que tambem se declarou gay num programma de TV. Boatos ou factos, a verdade é que esse mesmo Stuart, que incluia o attaque aos gays entre os themas das canções que compunha para sua banda Skrewdriver, era o grande admirador de gays celebres como Jagger e Townshend, de cujas canções a Skrewdriver fazia covers, isso para não fallar de Elton John (que caricaturou um skinhead no filme Tommy), cuja “Saturday night’s alright for fighting” foi tocada à exhaustão por diversas bandas skins, nazistas ou não. Ao que paresce, o discurso antigay é um tanto ou quanto relativo, valendo mais quando se tracta de apponctar bodes expiatorios para o que consideram mazellas sociaes: drogas, prostituição, epidemias. Em summa, o gay faz o papel, na falta de alguem mais visivel, de Judas no sabbado de halleluiah. [8.23] Si gays famosos são “tolerados”, os anonymos pagam o pato e raramente encontram quem os defenda no plano musical. Nessa direcção, a banda escoceza Oi Polloi (trocadilho com o som Oi! e a expressão grega “hoi polloi” que significa a plebe) fez a canção mais porrada em favor do respeito à liberdade de excolha, comportamento e expressão. WHEN TWO MEN KISS (Oi Polloi) When two men kiss, Walk hand in hand


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The fear of what you don’t understand Explodes into violence Screams break the silence “The guy was a poof”, “The guy was queer” Dehumanised and living in fear No, you’re not thick And you say “They’re sick” But the only sickness I can see Is the cancer of your bigotry [8.24] A canção está no disco Total anarchoi, que deveria servir de modello, mais no sentido lyrico que instrumental, tanto para os que combattem indiscriminadamente qualquer skinhead (caso dos AnarchoPunks) quanto para alguns troglodytas carecas brazileiros, cujo terceiromundismo os impede de enxergar mais longe e em varias direcções. De cego ja basto eu, mas minha lingua ainda sente o paladar da poeira na sola dum cothurno e meu ouvido sabe distinguir nitidamente uma guitarra bem-tocada duma lettra bem-escripta, embora preconceituosa. [8.25] NOTAS [8.25.1] No livro Ss e gestapo: a caveira sinistra, escreve Roger Manvell: {A partir de 1932, os membros das SS tinham de obter seu “Livro do Clan” (Sippenbuch) e tirar um certificado de approvação para qualquer moça que excolhessem para casar. Assim, o departamento de Darré mantinha registros de “reproductores” para todo homem das SS, o qual tinha de provar que seu sangue “aryano” não estava contaminado desde 1750! Inventaram-se formas complicadas para levar a cabo esse processo e, com o passar dos annos, e com o augmento dos effectivos das SS, a equipe de pesquisa augmentou proporcionalmente, para realizar essas


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laboriosas pesquisas. Mesmo durante os annos de guerra, quando Himmler trazia os mais pesados fardos sobre os hombros, elle ainda encontrava tempo para examinar os registros genealogicos de algum individuo, sem fallar que elle se reservava pessoalmente o exame da photo do noivo nu, para verificação anthropologica visual. Isso se tornara um fetiche para elle.} [8.25.2] No livro Heydrich, escreve Alan Wykes: {Heydrich não era propriamente um revolucionario, mas um carreirista nato, um sequioso de poder pessoal. Canaris, muito habil na advaliação do character dos homens, como todos os machinadores teem de ser, não deixou de reconhescer nelle um conspirador potencial que, enthusiasmado com as narrativas de espionagem do proprio Canaris, era um material malleavel. Desse modo, cuidou para que o joven cadete recebesse o typo certo de bons bolletins. Tambem preparou as circumstancias necessarias a que Heydrich participasse de um acto de homosexualidade com um official de marinha. Canaris conseguiu copias das chartas trocadas entre os dois homosexuaes e photos do coito por elles practicado, pois, para Canaris, a qualquer momento pode surgir a necessidade do uso da chantagem e, embora Heydrich tivesse sido mais victima do que propriamente um parceiro complacente, a prova do facto podia ser usada de varias maneiras. Os negativos foram cuidadosamente guardados no cofre de Canaris e Heydrich recebeu insinuações da sua exsistencia e talvez do seu paradeiro. Numa pasta havia uma annotação em que se dizia que “Heydrich não reagiu como eu esperava. Sua reacção revelaria menos receio às consequencias, que odio typico do homosexual”. (...) Sendo assim, não é de extranhar que elle conseguisse manter em segredo o caso de homosexualidade que teve com o Tenente do Corpo de Communicações que fora seu parceiro activo, retirando, sem que se saiba como, do cofre de Canaris as provas que alli se encontravam.}


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[8.25.3] No livro Stauffenberg, escreve Gerry Graber: {Sabia-se que Blomberg e Fritsch tinham tido o descaramento de discordar de Hitler quanto ao rhumo que devia tomar o imminente attaque que seria desfechado à Tcheco-Eslovaquia e à Polonia. O primeiro foi demittido por ter-se casado com uma joven, sua secretaria, que havia practicado a prostituição, e o segundo teve sua carreira arruinada devido a uma accusação forjada de homosexualismo; este foi um dos primeiros exemplos da predisposição da Gestapo de inventar accusações infamantes para desaccreditar creaturas innocentes. (...) Quando o General Werner von Fritsch continuou mantendo opinião contraria à de Hitler nas conferencias militares em Berchtesgaden, o bando de Hitler não conseguiu descobrir nada de desabbonador em seu passado. Assim, Goering arrebanhou um criminoso num districto de má fama em Berlim que jurou que Fritsch o abbordara num mictorio publico naquella cidade. Os protestos de innocencia de Fritsch de nada lhe valeram e com isso não teve outra alternativa sinão demittirse do seu posto.} Outro auctor na mesma collecção biographica, Roger Manvell, exclaresce melhor no livro GOERING: {O problema seguinte era o General Barão Werner von Fritsch, CommandanteChefe do Exercito e successor natural de Blomberg. Do poncto de vista de Hitler, elle era um reaccionario antiquado que se oppunha à nova politica aggressiva traçada para o exercito. Coube a Himmler e à Gestapo incriminar falsamente Fritsch, o que foi feito com presteza, de modo que, a 26 de janeiro, Hitler, appoiado por Goering, pôde confrontar Fritsch com um dossiê preparado pela Gestapo que pretendia provar ser elle homosexual. Hitler chegou a poncto de receber pessoalmente a unica testemunha da Gestapo na questão -- um degenerado, chamado Schmidt, que foi preparado para jurar que vinha extorquindo dinheiro de Fritsch por causa de seu homosexualismo. Segundo uma testemunha ocular, Goering estava muito excitado nesse confronto entre Fritsch e seu supposto chantagista. Essa testemunha era


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o Coronel Friedrich Hossbach, um dos Adjudantes-de-Ordens de Hitler e que o fora tambem de Fritsch. Sentia-se elle tão ennojado com o que accontescia, que conseguiu advisar Fritsch antecipadamente, a fim de que se preparasse para enfrentar a accusação. Fritsch refutou as allegações, mas, mesmo assim, foi dispensado do posto.} [8.25.4] No livro A noite das longas facas, escreve Nikolai Tolstoy: {Tanto quanto era capaz de verdadeira affeição, Hitler, ao que tudo indica, sentia amizade verdadeira pelo velho guerreiro. Elle e Amann, seu editor, eram as unicas pessoas a quem carinhosamente tractava pelo familiar pronome “du” -- tu.} [8.25.5] Ainda Tolstoy, aspeando palavras do proprio Roehm e de Hitler: {Esses hypocritas... O homosexualismo não constitue razão sufficiente para affastar um lider capaz e honesto de qualquer posição, na medida em que seja discreto, pois maior ou menor abnormalidade não é da compta de ninguem. Mas ao inferno com a pederastia. Faço o que quizer dentro de quattro paredes, como qualquer outro...} [...] E ainda: {Nada mais falso do que a chamada ethica social. Declaro, solennemente, que me recuso a fazer parte desse gruppo de “quadrados” e não nutro ambições de tornar-me um delles. Não faço questão alguma de ser considerado homem de moral, pois apprendi, pela experiencia, que a “moral” desses “moralistas” não é assim tão severa...} [...] {Quando as queixas sobre o comportamento de Roehm começavam a se tornar frequentes a seus ouvidos, o Fuehrer desviava o assumpto e declarava tacitamente: “Por que devo preoccupar-me com a vida particular de meus seguidores? Minha preoccupação deve ser com o serviço que prestam à causa. Em tempo de crise não se fazem mudanças em postos importantes, appenas por essas razões. Ridiculo! Gosto da musica de Wagner; devo tapar os ouvidos a ella simplesmente porque seu auctor é pederasta? Isto


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é absurdo... e tanto quanto diz respeito a Roehm, sei, pelo que ja fez, que posso depender de maneira absoluta delle e confiar cegamente nelle...”} [8.25.6] Escreve Wykes no livro Heydrich: {Era claro que precisava haver “justificativa”. Himmler registrou que “Heydrich encontrou provas da exsistencia de uma admeaça de revolta nas fileiras das SA; esta é a parte do seu trabalho que elle realiza melhor -a descoberta de toda sorte concebivel de provas, independente da necessidade”. E não há duvida de que ahi se incluiam tambem as provas inconcebiveis. Na invenção de mentiras, Heydrich não perdia para o Dr. Goebbels, embora com objectivos differentes. A ordem concreta para “liquidar os inimigos do estado” partiu de Hitler no dia 27 de junho. Ella foi dada pessoalmente a Himmler, que recebeu de Heydrich a lista completa dos que deveriam ser executados. A relação de nomes foi entregue aos agentes da Gestapo, que deveriam ir a suas residencias, ou aonde quer que estivessem, e fuzilal-os immediatamente. (...) Não se sabe ao certo quantos, naquelle sangrento final de semana, foram assassinados. Sabe-se entretanto que montaram a mais ou menos mil. Gregor Strasser, a quem Hitler jamais perdoara por haver tentado disputar com elle a direcção do partido, foi fuzilado em seu escriptorio; e Ernst Roehm, que era para Heydrich o epitome do odiado homosexualismo, foi retirado do quarto em que dormia com seu amante e fuzilado, recebendo tiros na cabeça, no peito e no ventre. Mais tarde, Heydrich foi ver o cadaver, levando comsigo alguns bebados que vomitaram sobre o corpo obeso do excamarada de Hitler. Diz-se que “seu riso de hyena, que explodiu ao ver a prophanação do cadaver, foi atterrador”.} Tolstoy tem versão algo differente desse desfecho, dizendo que quem foi tirado da cama que dividia com o amante era Heines, amigo do commandante, emquanto Roehm, preso pessoalmente por Hitler, foi executado separadamente do motorista que seria seu parceiro


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na occasião: {Emquanto Hitler corria na direcção do quarto onde estava Roehm, um destaccamento das SS arrombava a porta do quarto do lider Conde von Spreti. Elle e seu collega, o Standartenfuehrer Uhl, sem entender o que se passava, tiveram pés e mãos admarrados e sem a menor ceremonia foram feitos prisioneiros. Em outro quarto, o Obergruppenfuehrer Heines era encontrado, nu, na cama com seu joven motorista. Ambos foram immediatamente mortos a tiros e seus corpos, a sangrar, arrastados para fora do edificio.} (...) {Mas, ao deixar Stadelheim, Hitler se revelou, subitamente, o sadico que procura livrar-se de suas dores infligindo-as aos outros. “Fuzilem seu motorista, Max”, gritou nervosamente, “depois contem-lhe o que accontesceu. Tranquem-no na cella e agguardem minhas ordens”. Só dois dias depois é que Roehm morreu. Hitler determinou que se lhe deixasse um revolver na cella, a fim de que pudesse suicidarse “honrosamente”. Roehm recusou e agguardou seu destino com o mesmo estoicismo e coragem que revelara ao longo de sua carreira. A 2 de julho, dois guardas das SS, cumprindo ordens de “Sepp” Dietrich, penetraram na cella de Roehm. Despido da cinctura para cyma, Roehm levantou-se como si quizesse dizer alguma coisa, mas suas palavras foram silenciadas por um barulho que lhe fora familiar toda a vida, o dos tiros de pistola. E, com expressão de profundo desprezo no rosto, rollou morto pelo chão.} [8.25.7] Escreve Tolstoy no livro A noite das longas facas: {Sem duvida não sentia saudades de La Paz, pois havia escripto, mesmo, innumeras chartas a amigos da Allemanha lamentando a solidão que sentia numa cidade “onde nada se sabe a respeito dessa nossa forma de amor”.} [8.25.8] Quando fiquei sabendo que João Gordo tem pé chato e o dedão mais curto que o segundo, me appaixonei immediatamente,


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pois sou doente por esse formato de pé, chamado “grego”, o mesmo de Zico, Ayrton Senna e do cartunista Laerte... Mas houve quem desmentisse a informação sobre a conformação de taes pés. [8.25.9] Curiosa coincidencia: exactamente o mesmo discurso da nossa imprensa marrom e de alguns televangelicos, que chamavam a AIDS de “peste gay”...


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[9] INDICE ANALYTICO Abu Ghraib, prisão de [2.25.2] açoite [ver flagellação] admaciamento [2.5] [3.22] admarração [3.14.1] admordaçamento [2.14] [3.19.2] [6.36] advogados [5.8/11] [5.16] [5.23] affogamento [2.13] [3.19.2] [3.21] [7.6.1] Afghanistão [2.25.3] Africa [3.3] Africa do Sul [2.16] [3.15.1] [3.20] agua [2.13] Aitken, Laurel [8.11] Alencar, José de [4.15] Alexandria [2.20.4] Alfonsín, Raúl [5.9] Alleg, Henri [3.21] [5] [5.19] [7.2] [7.7.1] Alleijadinho [4.7] Allemanha [2.20.4] [3.8] [3.11] [3.19] [3.25.1] [4.9.1] [4.14.5] [5.25.8] [6.30] Almeida Jr., Antonio [3.25.2] Alves, Castro [4.17] Alves, Marcio Moreira [2.7.5] [7.3] Amado, Jorge [7.5] Amazonia [3.3] America do Norte [3.3] America hespanhola [3.21.1] Americo, Pedro [4.6] Amnistia Internacional [2.22] [2.28] [3.5.2] [5.2] [5.10] [5.21] [5.23] [7.6] [7.7.4] Andrade, Jorge [4.16] animaes [2.17] [3.4] [3.17] [4.15] [5.25.8] [6.33]


246 antisemitismo [ver judeus] apartheid [2.16] [3.15.1] Apollinaire, Guillaume [4.12] appedrejamento [3.4] Aquino, Alfredo [4.6] aranha hespanhola [6.34] Argelia [3.19] [3.21] [4.9] [5.17] Argentina [3.21] [5.9] [5.25.9] Arkoun, Mohammed [3.15] [7.2] Arns, Paulo Evaristo [5.13] [5.22] Arrabal, Fernando [4.9] [4.16] arranca-peito [6.34] asphyxia [3.4] Assis, Machado de [4.13] assyrios [4.7] Astúrias, Miguel Angel [4.14] Auschwitz [3.20] Austria [4.14.5] [4.14.7/8] auto-de-fé [3.6] Azevedo, Aluizio [4.15] Aziz, Philippe [7.4] aztecas [3.3] Babenco, Hector [4.10] [7.5.2] Barasch, Moshe [2.20.4] Bartolo, Taddeo di [4.4] Basilio II [2.20.4] Basilio II (Temmy) [2.20.4] bastonadas nas solas [3.18] [3.21] Bataille, Georges [4.9] Beccaria, Cesare [3.13] [5.23] Bella, Franco di [7.2] bellisca-lingua [6.36] Benazzi, Luciane [2.20.4]

GLAUCO MATTOSO


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA Benjamin, Iramaya [5.22] Bernadac, Christian [5.25.8] [7.2] [7.4] Bernini, Gian Lorenzo [4.7] Bezerra, Gregorio [3.21.5] [7.3] Biblia [2.20.4] [3.5.1] [3.6] [4.4] [4.7] [4.9] Bloodvessel, Buster [8.12] Boal, Augusto [1.4] [2.7.2] [7.3] bode [6.33] Boccaccio [4.12] Bolan, Marc [8.9] bondagismo [3.14.1] bootlicking [ver lambeção] Bosch, Hieronymus [4.4] botas ou brodequins [3.10] Brandão, Ignacio de Loyola [7.5] Brazil [3.12/14] [3.19/20] [3.21.4] [4.6] [4.9/10] [5.20/22] [7.3] Brazil, Assis [7.5] [7.5.1] Brecht, Bertolt [4.16] Brentano, Clemens [3.4.1] Breytenbach, Breyten [3.15.1/2] [7.2] Bruegel, Pieter [2.20.4] Buñel, Luís [4.9] Burgess, Anthony [4.14.2] [7.4] [8.7] Byrne, John [8.22] byzantinos [2.20.4] Cabral, Reynaldo [5.22] cadeira-do-dragão [2.19] [3.21] cadeira electrica [ver electricidade] cadeira inquisitorial [6.27] calabouço [ver carcere, solitaria] Caldas, Alvaro [2.2.2] [3.21.6] [7.3] Caligula [3.4] [4.9]

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GLAUCO MATTOSO

Callado, Antonio [7.5] Calmon, Antonio [4.10] Caminha, Adolpho [4.15] Camões [4.17] campos de concentração [3.19/21] [4.9.1] [5.2] Canaris, Wilhelm [8.25.2] canga [3.16] cappuz [2.2] [3.1] [3.21.6] carcere [2.20] [3.16.4] [7.7.5] carrasco juvenil [3.3.2] [3.25.1] [4.9.1] [5.25.1] [5.25.7] [7.6.1] carrasco profissional [3.4.1] [3.16.1] [4.14] [5.27/29] [5.33] [6.3] [6.7] [6.24/26] [6.28] [6.35] [7.4] [7.7.5] Castello Branco, Camillo [7.4] Castro, Fidel [5.3] Castro, Pedro de [5.23] cavallete [3.4] [3.11] cavallo hespanhol [6.33] cegueira [2.20.3/4] [3.23/24] [7.4.2] cella [ver carcere, solitaria] Charrière, Henri [7.4] [7.4.1] [7.7.1] Chaves Neto, João Ribeiro [4.16] Chile [3.20] [3.21.8] [6.29] [7.6] China [2.20.4] [3.16] choque electrico [ver electricidade] christianismo [2.20.4] [2.25] [3.4] [3.5.1] [3.18] [4.4] [5.31] Christo, Jesus [2.20.4] [3.4] [3.4.1] [4.4] [4.6] chumbo derretido [ver queimaduras] CIA [3.19.1] [5.20] [7.7.4] Cicero [2.20.4] cincto de castidade [6.37] Commodo [3.4]


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA Constantinopla [2.20.4] coprophagia [2.20.1/2] [4.4] [5.25.5] corredor polonez [5.25.5] Crane, Nicky [8.22] creanças [ver menores] Crepax, Guido [7.4] [7.4.3] crucificação [3.4] [4.4] [4.8] Cruz Vermelha [5.21] [7.7.4] Cuba [2.14.1] Dachau [4.14.7] Damiens, Robert [3.10] Debret, Jean Baptiste [3.20] [3.21.2] [4.6] decapitação [3.4] [4.4] [4.6/7] deceppação da lingua [4.4] deceppação da mão [3.4] [3.15] deficientes prisioneiros [2.20.3/4] [3.23/24] Dekker, Desmond [8.11] Demosthenes [3.4] Didymo [2.20.4] DOI-CODI [1.4] [2.19] [3.21.6] [7.7.4] Domiciano [3.4] Doré, Gustave [4.4] Dostoievski, Fiodor [4.13] Dread, Judge [8.11] Drummond de Andrade, Carlos [4.17] Dungi, codigo de [3.4] Eco, Umberto [4] edozone [ver cincto de castidade] egypcios [2.20.4] [3.3.1] electricidade [2.18/19] [3.19.2] [3.21] [5.9.3] [5.19] Emerick, Anna Catharina [3.4.1] empalamento [2.9] [3.21] [4.7] Endo, Shusaku [7.4]

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GLAUCO MATTOSO

entaipamento [2.16] enucleação [2.20.3/4] [3.3] [3.24] [5.10] [7.4.2] Epstein, Brian [8.9] escadinha [3.11] Eschylo [4.12] escravos [3.20/21] [3.21.1/4] [4.6] [4.17.1] [5.23] [7.3] [7.7.4] Estado Islamico [3.15] Estado Novo [3.19] [4.10] [7.3] Estados Unidos [3.13] [3.19] [3.21.3] [3.22] [3.24] estatua [3.21] estrappada [3.7] [3.21] estupro [ver tortura sexual] excarneo [2.16.1] [2.20.1/2] [3.3.2] [3.4.1] [3.19.2] [3.25.1] [4.9.1] [4.14.7] [4.17.1] [5.25.3] [5.25.8] [5.30] [5.32] exfollamento [4.4] [4.7] exgotto [2.14.1] exmagamento [3.11] [3.17] expancamento [2.5] [2.21] [3.22] [5.25.3/5] [5.25.7] [5.25.10] exquartejamento [3.10] [4.4] [4.6] Farias, Roberto [4.10] FEBEM [3.21] [5.25.5/6] [5.25.8] fellação [3.3.1] [7.4.3] [7.4.4] [7.5.2] [8.13] Fernandes, Anna Maria [7.3] ferro em braza [ver queimaduras] fetichismo [2.25] fezes [2.14] [3.24/25] [5.25.5] Fialho, A. Veiga [7.2] Fidji, ilhas [3.3.2] Fiorelli, Piero [7.7.2] flagellação [3.4] [3.4.1] [3.14/15] [3.21] [3.21.2] [4.4] [4.6] [4.12] [4.17.1] [5.25.7] [7.4.3] [7.4.4] Flemming, Alex [4.6] Fleury, Sergio Paranhos [5.28]


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA

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fogo [2.15] [3.4] [3.6] [3.21.9] [6.36] fome [2.20] [3.4] [6.31] [6.36] Fon, Antonio Carlos [2.7.7] [7.3] Fonseca, Rubem [4.15] forquilha do herege [6.32] Foucault, Michel [3.10.1] [7.3] [7.7.5] Four Skins ou 4-Skins [8.6] França [2.20.4] [3.8] [3.10] [3.13] [3.19/20] [3.22] [5.25.9] [6.28] [7.4.1] [7.7.4] Frei Betto [5.13] [7.3] Frei Tito [5.13] Fritsch, Werner von [8.3] [8.25.3] Gabeira, Fernando [1.4] [2.25.5] [7.3] Gainsbourg, Serge [8.11] gaiola [6.31] Gallonio, Antonio [4.4] [7.2] Gandhi, Mahatma [2.24] Gavras, Costa ou Konstantinos [4.9] geladeira ingleza [3.19] Genet, Jean [4.16] [5.25.9] [5.25.11] genuflexão [2.21] [2.25] [3.15.2/3] [4.14.4] [4.14.7/8] [4.14.11] [5.25.3] [5.25.5] [7.6.1] Gestapo [3.19/20] [7.7.4] [8.3] [8.25.3] [8.25.6] Gibson, Mel [3.4] [3.4.1] Goebbels, Joseph [8.2] [8.25.6] Goering, Hermann [8.2] [8.25.3] Goldkorn, Roberto [2.7.3] Gomes, Gil [5.25] Goulart, José Alipio [3.21.4] [7.3] Goya, Lucientes [4.5] Graber, Gerry [8.25.3] Grecia [2.20.4] [3.4] [5.9/10] [7.6] [7.7.4] Grotius, Hugo [1.1]


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GLAUCO MATTOSO

Guantanamo, base de [2.25.3] [3.24] Gueiros, José Alberto [7.2] Guignard, Alberto da Veiga [4.6] guilhotina [6.28] Guillotin, Joseph Ignace [6.28] Guimarães, Josué [7.5] Guyanas [3.3] Haiti [3.20] Hammurabi, codigo de [3.4] Hassel, Sven [4.14.11] Hennebelle, Guy [4.9] Herzer, Sandra Mara [3.21] [5.25.2/3] [7.3] Herzog, Vladimir [1.4] [4.16] [7.3] Hesiodo [2.20.4] Hespanha [3.8] [4.7] [4.9] [6.32] Heydrich, Reinhard [4.14.7] [8.2/5] [8.25.2] [8.25.6] Himmler, Heinrich [4.14.7] [8.2] [8.4] [8.25.1] [8.25.3] [8.25.6] Hippocrates [5.6/7] Hitler, Adolf [3.25.1] [4.14.7] [8.2/4] [8.25.3/6] hittitas [3.3.1] Hoffmann, Ernst Theodor [7.4] Holbein (o Moço), Hans [4.4] Hollanda [3.8] Homero [2.20.4] homosexuaes [3.15.2] [3.25.1] [6.34] [7.4] [8.1/24] [8.25.3] [8.25.5/6] hospicios [ver tortura psychiatrica] Hugo, Victor [4.14] humilhação [2.21] [2.25] [3.5.1] [3.25.1/2] [4.14] [5.9.2] [5.25.11] [7.5.1] Ibañez, Blasco [7.4] Ibars, Eduardo Haro [8.10] India [3.17]


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA

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infibulação [6.37] Inglaterra [2.20.4] [3.11] [3.13] [3.19] [3.21.1/2] [8.8] [8.21] injecção de ether [2.27] [3.19.2] Inquisição [2.4] [3.5/6] [4.7] [5.2] [5.13] [5.35] [6.32/33] [7.7.4] insectos [2.17] [3.4] [5.2] [5.25.6] insomnia [2.20] [6.29] interrogatorio [2.26] [3.4] [3.19] [5.16/19] [5.23] [7.7.4] Irak [2.25.2/4] [7.6] Iran [1.1] [3.15] Irlanda do Norte [3.19] islamismo [2.25] [3.15] Italia [3.8] [4.14.10] Jaeckin, Just [7.4] Jagger, Mick [8.10] Japão [2.20.4] [2.25] [3.18] Jarry, Alfred [4.16] Jazadji, Afanasio [5.25/26] Jockyman, Sergio [4.16] John, Elton [8.10] [8.22] Jordão, Fernando [2.7.6] [7.3] José, Emiliano [7.3] judeus [2.20.4] [3.4] [3.5.1/3] [3.25.1] [4.6] [4.14.7/8] [5.9.2] [5.25.8] [7.2] [7.6] [8.6] [8.9] Justiniano [3.4] Juventude Hitlerista [4.9.1] [4.14.8] [5.25.1] [5.25.8] Kadhafi, Muammar [3] Kafka, Franz [7.4] Kanji [4.6] Karpinski, Janis [2.25.3] KGB [3.19] [7.7.4] Khomeini, Ruhollah [3.15] Kinks [8.9]


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GLAUCO MATTOSO

Koestler, Arthur [7.4] Kosinski, Jerzy [7.4] [7.4.2] Kubrick, Stanley [4.14.2] [8.7] Kurnaz, Murat [3.24] La Bruyère, Jean de [5.23] La Tour, Georges [2.20.4] Lagerkvist, Pär [7.4] Lakhdar-Hamina, Mohamed [4.9] Lamarca, Carlos [7.3] lambeção [2.21] [2.25] [3.4] [3.5.1] [3.25.1] [4.14.4] [4.14.5] [4.14.11] [5.9.2] [7.4.1] [8.19] Lampeão [2.9] Langbein, John [7.7.2] Langguth, A. J. [3.19.1] [7.2] Lapa, Ronaldo [5.22] lapidação [ver appedrejamento] lavagem cerebral [3.21] [4.14.2/4] Lefebvre, Marcel [5.13] Legman, Gershon [7.4.4] Lennon, John [8.9/10] L’Isle-Adam, Villiers de [7.4] Llosa, Mario Vargas [4.14] Louzeiro, José [7.5] [7.5.2] Luppi, Carlos Alberto [5.25.2] [5.25.4/7] [7.3] Luyken, Jan Van [4.4] lynchamento [2.24] [3.6] [5.25] Macc Lads [8.13] Macedo, Fausto [2.9] Macedo, Joaquim Manuel de [4.15] Magritte, René [4.5] Mailer, Norman [3.3.1] Mandela, Winnie [2.16.1] [7.2] Mannix, Daniel Pratt [7.2]


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA Manu, codigo de [2.20.4] Manvell, Roger [8.25.1] [8.25.3] Marcos, Plinio [4.16] Márquez, Gabriel García [4.14] Marshall, George [8.22] Marsili, Ippolito [6.29] mascara da fome [6.36] masmorra [ver carcere, solitaria] Masoch [ver sacher-masoch] masochismo [2.25] [5.31] [5.34] Massu, Jacques [5.17] [5.19] Mathon, Tania [7.2] Matsuura, Paulinho [4.6] Mauthausen [4.9.1] Mayer, Antonio de Castro [5.13] McCartney, Paul [8.9] medicos [5.2] [5.5/7] [5.9.2] [6.28] Medina, Enrique [5.25.9/10] Meirelles, Victor [4.6] Mellor, Alec [3.2] [7.2] [7.7.2] Mengele, Josef [5.6] menores victimados [2.20.4] [5.25.1] [5.25.5] Miller, Geoffrey [2.25.3] Mirbeau, Octave [3.16.1] [7.4] Mitrione, Dan [3.19.1/2] [7.2] Mitton, Fernand [7.2] Moçambique [3.21] [7.2] Moreira, Tide [4.16] Moreno, Giménez [7.2] Moreno, Roddy [8.7] Müller, Filinto [3.19] [5.28] [7.3] Musil, Robert [4.14] mutilação [3.16] [4.4] [4.7] [5.10]

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GLAUCO MATTOSO

Nações Unidas [2.22] [5.6] [5.21] [7.7.4] Naidoo, Indres [2.16.1] [3.15.3] [7.2] Namibia [3.21] Napoleão, codigo de [3.13] Nassar, Raduan [7.5] Nasser, David [2.10] [7.3] nazismo [ver allemanha] Nero [3.4] Nudelman, Santiago [5.33] [7.2] nudez [2.4] [3.4.1] [4.4] [4.9.1] [5.25.3] [5.25.5] [8.2] Nunes, Jorge Fischer [2.7.4] [2.14] [7.3] Nuremberg [3.25.1] [4.7] [5.6] [5.9] [6.27] [6.30] Oceania [3.3] oleo fervente [ver queimaduras] Oliveira, Plinio Correa de [3.5.3] Orwell, George [4.14.2] [7.4] [7.7.5] Oshima, Nagisa [4.9] Pagu [2.10] Paiva, Marcello Rubens [4.16] Paiva, Rubens [4.16] palestinos [3.5.2] palmatoria [3.19.2] [3.21] Papini, Nisio [6.21] [6.24] Paraguay [3.21] [4.15] Pasolini, Pier Paolo [4.9] pau-de-arara [2.1] [2.7] [3.19.2] [3.20] [4.6] Peckinpah, Sam [4.9] Pedrolo, Manuel de [4.16] pellourinho [3.21.1/3] pena de morte [2.28] pena de Talião [3.4] [3.15] [5.25] pendura [3.4] [3.7] [3.18] pera oral/vaginal/rectal [6.34]


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA Pereira, Uilcon [7.5] Perillo [4.7] Perrin, Dimas [2.2.3] [7.3] Person, Luiz Sergio [4.10] Peru [3.3] Pessoa, Fernando [4.17] Peters, Edward [7.7.1] petroleo, sondar [3.21] Petronio [4.12] Phalaris [4.7] Philippinas [3.21] [7.6] [7.6.1] philosophia [1.2/3] [1.5] picana [ver electricidade] Pilar, frei Ricardo do [4.6] Pilatos, Poncio [3.4.1] Pinochet Ugarte, Augusto [6.29] pisoteamento [3.21.5/8] [4.14] [5.25.3] Pliuchtch ou Pliushch, Leonid [5.3] [7.2] Podro, Joshua [3.25.1] Poe, Edgar Allan [4.13] Polari, Alex [2.7.1] [2.14] [7.3] polé, tractos de [3.7] Pompéa, Raul [4.15] Pontecorvo, Gillo [4.9] pornographia [2.29] [2.31] [3.25.1] Portugal [2.28.1/7] [3.8] [3.12] Poussin, Nicolas [2.20.4] Pratta, Mario [4.16] Procusto, leito de [ver cavallete] Prometheu [4.4] Prussia [2.20.4] [3.13] Puget, Pierre [4.7] quaesttio [1.3] [3.4] [7.7.4]

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GLAUCO MATTOSO

quarto grau [3.22] queimaduras [2.15] [2.20.4] [3.3.2] [3.6] [3.10] [3.14] [3.18] [3.21.9] [4.4] [4.7] [4.15] Queiroz, Chris [6.26] Queiroz, Eça de [7.4] questão [ver quaestio] Rabelais, François [4.12] Radford, Michael [4.14.2] Ramos, Graciliano [7.3] Rangel, Carlos [2.2.1] [5.20] [7.3] rattos [2.17] [6.33] Ravaillac, François [3.10] Ravensbrück [3.21] Réage, Pauline [7.4] [7.4.3] Rego, José Lins do [7.5] Ribeiro, Octavio [7.5] Richard, Little [8.9] ritual de iniciação [3.3] Robben, ilha de [2.16] [3.15.1] Rocha, Glauber [4.10] roda [3.4] [3.21/22] [6.35] Roehm, Ernst [8.4/5] [8.25.5/7] Roma [2.20.4] [3.4] [7.7.4] Rossellini, Roberto [4.9] Rugendas, Johann Moritz [4.6] Russell, tribunal [5.21] Russia [3.11] [3.19/21] Rutherford, Ward [4.14.8] [7.2] Sábato, relatorio [5.9.2] [7.3] Sacher-Masoch, Leopold Von [4.12] [5.31] Sade, marquez de [3.10.3] [4.5] [4.9] [4.11] [7.4] [7.4.3] sadismo [2.26] [3.25.1] [5.27/30] [5.34] [7.7.6] sadomasochismo [2.25] [3.5.1] [3.25.2] [4.19] [5.9.1] [5.34]


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA [6.22] [7.4] sal [3.4] Sampaio, Antonio Possidonio [7.5] Sancta Agatha [4.4] Sancta Luzia [2.20.3] Sancto Agostinho [5.23] Sancto André [3.4] Sancto Hippolyto [4.4] Sands, Bobby [2.24] Sansão [2.20.3] [4.9] Sansom, Charles Henri [6.28] São João Baptista [4.4] [4.6] São João Evangelista [2.20.4] [4.4] São Lourenço [4.4] [4.8] São Pedro [3.4] São Sebastião [4.4] sarcasmo [ver excarneo] Sarcinella, Luigi [4.14.10] Sartre, Jean-Paul [5] satanismo [4.4] [6.34] [7.2] Schuschnigg, Kurt von [4.14.7] Scott, George Ryley [2.22] [3.2/3] [7.2] [7.7.6] Sedaka, Neil [8.9] sede [2.20] [3.4] [6.31] [6.36] Segall, Lasar [4.6] sequestro [2.24] Setubal, Paulo [4.15] sevicias [ver expancamento] Shakespeare, William [4.16] Sienkiewicz, Henryk [7.4] Sigaud, Eugenio [4.6] Simon & Garfunkel [8.9] solitaria [3.24] [5.25.7] [5.35]

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260 Soljenitsin, Alexandre [1] [7.2] Sophocles [4.12] soro da verdade [ver tortura chymica] Souza, Percival de [7.3] Spector, Phil [8.9] Stevens, Cat [8.9] Stowe, Harriet Beecher [7.4] Streicher, Julius [3.25.1] Stuart, Ian [8.22] submarino [ver affogamento] Sudão [3.15] Swain, John [2.22] [3.21.3] [7.2] Swift, Jonathan [4.12] talionato [ver pena de talião, codigo de hammurabi] Tantalo, supplicio de [4.4] Tapajós, Renato [4.15] tarantula [6.34] Tarkovsky, Andrei [4.9] Taunay, visconde de [4.15] Tavora, Franklin [4.15] telephone [3.21] Tempesta, Antonio [4.4] terceiro grau [3.22] territio [2.4] terror/terrorismo [2.4] [2.26] [3.5] [3.24] TFP [3.5.3] Thatcher, Margaret [8.6] Thoma, Clemens [3.4] [7.2] thuriano, codigo [3.4] Tiberio [3.4] Timerman, Jacobo [3.21] [5.9.3] [7.3] Tiradentes [4.6] Tiresias [2.20.4]

GLAUCO MATTOSO


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA

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Tolstoy, Nikolai [8.25.4/7] Tomoka, prisão de [3.24] Torah [3.4] Torquemada, Tomás de [3.8] [6.32] Torres, André [7.3] [7.5.2] Torres, Antonio [7.5] tortura chymica [2.21] [2.27] [7.7.5] tortura probatoria [2.26] [3.4] [5.25] tortura psychiatrica [3.19] [4.13/14] [5.2/3] [7.7.5] tortura psychologica [2.21] [2.25] [2.27] [3.19] [3.22] [5.28] [7.7.5] tortura punitiva [2.26] [3.4] [5.25] tortura sexual [2.6] [2.9/11] [2.27] [2.29/30] [3.24] [4.4] [5.9.2] [5.25.5] [5.25.7] [6.29] [6.33/34] [6.37] tortura, aulas de [3.19.1] tortura, camara de [2.3] tortura, conceito de [2.22/23] [5.23] [7.7.3/4] tortura, finalidades da [2.26] [7.7.4] tortura, graus da [2.4] [2.22] [3.10] [3.22] tortura, typos de [2.26/7] torturador [ver carrasco] touro de bronze [4.7] Townsend, Larry [7.4] trampling [ver pisoteamento] Trevisan, João Sylverio [7.5] Trinquier, Roger [5.16] tronco [3.21.1/2] trote estudantil [2.28.1/7] [3.21] [3.23] [3.25] [4.14] [5.27] Trouille, Clovis [4.5] Turquia [3.21] Ulpiano, Domicio [7.7.4] ultraviolencia [8.7]


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GLAUCO MATTOSO

União Sovietica [ver russia] urina [2.14] [2.16.1] [3.24/25] [4.14.1] Uris, Leon [7.4] Uruguay [1.1] [3.21] [4.9] Ustra, Carlos Alberto Brilhante [5.28] Valladares, Armando [2.14.1] [7.2] Vargas, Getulio [ver estado novo] Vargas, Indio [5.21] [7.3] Verissimo, Erico [7.5] Vespasiano [3.4] Vianninha [4.16] Vietnam [2] [2.24] [3.19] vigilia [3.21] [6.29] Vigny, Alfred de [7.4] Villella, Theotonio [5.22] Villeneuve, Roland [3.3.2] [3.10.2] [7.2] [7.4.4] [7.7.6] virgem de ferro [3.25.1] [4.7] [6.30] Wagner, Richard [8.25.5] Wykes, Alan [3.25.1] [4.14.7] [7.2] [8.25.2] [8.25.6] yazidis [3.15]


BREVE ENCYCLOPEDIA DA TORTURA

263

[10] NOTA BIOGRAPHICA Glauco Mattoso, academicamente estudado como um caso “queer” de poeta satyrico e fescennino, é auctor de mais de septe mil sonnettos e mais de cem livros de poesia, alem de ficção e ensaio, particularmente sobre a perversidade e a perversão na natureza humana, como nos volumes O que é tortura e O calvario dos carecas, este historiando o trote estudantil à guisa de bullying, os quaes constituem o embryão desta condensada ENCYCLOPEDIA. Mattoso tambem assigna um tractado de versificação e um diccionario orthographico, este systematizando sua reacção esthetica às reformas cacophoneticas soffridas pelo portuguez escripto. Paulistano de 1951, perdeu a visão nos annos 1990 devido a um glaucoma congenito que lhe ensejou o pseudonymo litterario. Sua producção mais volumosa occorre appós a cegueira, graças a um computador fallante.



Titulos publicados: A PLANTA DA DONZELLA ODE AO AEDO E OUTRAS BALLADAS INFINITILHOS EXCOLHIDOS MOLYSMOPHOBIA: POESIA NA PANDEMIA RHAPSODIAS HUMANAS INDISSONNETTIZAVEIS LIVRO DE RECLAMAÇÕES VICIO DE OFFICIO E OUTROS DISSONNETTOS MEMORIAS SENTIMENTAES, SENSUAES, SENSORIAES E SENSACIONAES GRAPHIA ENGARRAFADA HISTORIA DA CEGUEIRA INSPIRITISMO MUSAS ABUSADAS SADOMASOCHISMO: MODO DE USAR E ABUSAR DESCOMPROMETTIMENTO EM DISSONNETTO DESINFANTILISMO EM DISSONNETTO SEMANTICA QUANTICA INCONFESSIONARIO DISSONNETTOS DESABRIDOS SONNETTARIO SANITARIO DISSONNETTOS DESBOCCADOS RHYMAS DE HORROR DISSONNETTOS DESCABELLADOS NATUREBAS, ECOCHATOS E OUTROS CAUSÕES A LEI DE MURPHY SEGUNDO GLAUCO MATTOSO MANIFESTOS E PROTESTOS LYRA LATRINARIA DISSONNETTOS DYSFUNCCIONAES O CINEPHILO ECLECTICO A HISTORIA DO ROCK REESCRIPTA POR GM SCENA PUNK CANCIONEIRO CARIOCA E BRAZILEIRO CANCIONEIRO CIRANDEIRO SONNETTRIP THANATOPHOBIA DESILLUMINISMO EM DISSONNETTO INGOVERNABILIDADE PEROLA DESVIADA O POETA PORNOSIANO


São Paulo Casa de Ferreiro 2022




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