MEMORIAS SENTIMENTAES, SENSUAES, SENSORIAES E SENSACIONAES
GlLAUCO MAT TOSOo
MEMORIAS SEN TIMEN TAES, SENSUAES, SENSORIAES E SENSACIONAES
São Paulo Casa de Ferreiro 2020
Memorias sentimentaes Glauco Mattoso © Glauco Mattoso, 2020 Revisão Lucio Medeiros Projeto gráfico Lucio Medeiros Capa Concepção: Glauco Mattoso Execução: Lucio Medeiros _______________________________________________________________________________________ FICHA CATALOGRÁFICA _______________________________________________________________________________________
Mattoso, Glauco
MEMORIAS SENTIMENTAES/Glauco Mattoso
São Paulo: Casa de Ferreiro, 2020 176p., 21 x 21cm ISBN: 978-85-98271-28-4
1.Poesia Brasileira I. Autor. II. Título.
B869.1
NOTA INTRODUCTORIA
Convicto de que a authenticidade da obra litteraria reside na fidelidade autobiographica, mas tambem reconhescendo na fabulação e na phantasia a maior adventura do escriptor, tractei de conciliar veracidade com voracidade no romance confessional MANUAL DO PODOLATRA AMADOR, publicado quando eu ainda enxergava, em 1986, e reeditado em 2006 quando, ja cego, actualizei a narrativa. Ironicamente, comtudo, não foi em prosa que recapitulei mais nua e cruamente minha historia de vida, e sim em innumeros sonnettos compostos entre 1999 e 2012, affora outros generos poeticos. Dahi a opportunidade de compilar taes versos em ordem chronologica, a fim de corporificar uma trajectoria que une o erotico ao exotico, o tragico ao magico, o comico ao vomico e o escatologico ao eschatologico. A primeira parte comprehende o cyclo “Meio seculo de pena e penna” (2007), accrescido de sonnettos thematicamente analogos, muitos posteriormente compostos e alguns ineditos. A segunda parte é representada pelo inedito poema heroicomico “Quattrolho oitavado” (2015), composto em oitava rhyma, à maneira camoneana, sob o heteronymo José Sylveira da Pedra-Ferro, um dos innumeros anagrammas de Pedro José Ferreira da Sylva, meu nome civil.
[1] MEIO SECULO DE PENA E PENNA
Memorias sentimentaes (1951)
Minha chronologia principia no dia de São Pedro. De glaucoma ja nasço portador, mas, nesse dia, só querem que se beba e que se coma. Sou netto de italianos, e a mania é dar diminutivos: no idioma de Dante, sou Pierin. Me offerescia um brinde o bisavô, que vinho toma. Pierin, ou Piergiuseppe, dura pouco. Ja sou Pedro-José. O ouvido mouco não é, mas um dos olhos já pifava. Na photo, faço gestos algo obscenos, unindo dois dedinhos: ja pequenos, mostravam a revolta: “Vão à fava!” Que eu tenha o sobrenome de Ferreira da Sylva, que é tambem do Virgulino, não causa expanto algum, sendo destino commum a muita gente brazileira. Mas, caso de outros dados alguem queira saber, e quando os factos examino, descubro que o bandido nordestino estava, num dos olhos, com cegueira. Glaucoma tambem teve Lampeão, molestia que, supponho, a ponctaria em nada lhe affectara no olho são. Commigo algo em commum a mais teria aquelle cangaceiro: uma visão normal da crueldade, noite e dia.
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Glauco Mattoso
Não lembro, mas disseram que precoce eu fui para fallar. Como não ha registro em gravação, resta que esboce algum palpite a raiva que me dá: “Nenê tá puto!” (pausa para a tosse) “Fudê! Tomá no cu! Gugu! Dadá!” E assim, antes que minha voz engrosse, ja digo aonde quero que alguem va. Fallei bastante coisa, mas a minha mamãe só recordava uma abobrinha ou outra, como aquella expressão brava. Agora que ella é morta, ninguem pode dizer que um bebê, quando alguem se fode, risada dá, gostosa como eu dava. Aquillo que eu dizia quando ainda bebê daria à lyra bom motivo. Passar “gugu, dadá” por qualquer crivo é coisa que, pacifica, se finda. Mas uma distorção ficou mui linda: “fufu, dedê”, recurso que, instinctivo, mostrava que jamais passei passivo por lingua que com muito ouro nos brinda. Vedada na familia a falla chula, guardei para mim mesmo o calão rico, até ficar da vida a dor mais fula. Agora que a cegueira mette o bicco em tudo quanto faço, que eu engula a falla ninguem pede, e puto fico.
Memorias sentimentaes (1953)
Contavam que, no chão, eu ja me punha, emquanto a mulherada batte pappo, a, quieto, caladinho (ha testemunha), brincar com os pés dellas, lindo e guapo. Mexia, dum mindinho, com a unha; tirava, dum dedão, o esparadrappo. Me deu alguma thia aquella alcunha de Pedro Chinellinho: nunca excappo. Pés grandes, muito gordos para quem os vê e accaricia ‘inda nenen, em meio, no tapete, aos sapatões. Mas eram pés pequenos, femininos. Mais tarde, os pés dos sadicos meninos fariam-me pensar nas proporções. Velhinhas são terriveis quando em gruppo. Cochicham, fallam mal da vida alheia. Na mesa, antes do cha, depois da ceia, partilham seu muxoxo e seu apupo. Mas quando ellas gargalham, me preoccupo, pois sei que um ar em volta se empesteia. Allegam “solfejar”, porem se leia “peidar”; e trocam “causos” sobre “estrupo”. São todas de familia de italiano, por isso cantarolam tarantellas. Seus peidos teem fedor de gaz butano. Creança ainda, eu tinha medo dellas. Gagás, agora causam maior damno: É que solfejam rindo, as tagarellas!
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Glauco Mattoso
No quarto centenario do torrão, ainda não completo meus trez annos. Rarissimo, o automovel era, então, um desses modellões americanos. Cappota arredondada, esse carrão de quattro portas era o que, nos planos da typica familia a temptação inflava, entre os maus habitos urbanos. Somente um thio choffer, que taxi tinha, levava-nos às vezes ao que minha lembrança accusa ser o velho centro. Alli, pela janella, advisto o bonde e intuo que seus trilhos vão aonde se tracta do que os olhos teem por dentro. O trollebus antigo me encantava. Creança, via nelle a magestade. Silencio no motor. Velocidade. No fio, o chifre é agulha que allinhava. De frente, parescia cara brava. No parabrisa, o olhar: severidade. A porta samphonada: o povo invade. Cappota arredondada: calvo estava. De traz, a janellinha eram narinas no meio do focinho dum leitão: symmetricas, estreitas, pequeninas. Ja não exsiste mais o tal busão. Os trollebus de agora são vitrinas quadradas num caixote de lattão.
Memorias sentimentaes (1955)
Ser unico deseja todo filho, até que sinta falta dum irmão com quem possa brincar. Assim me pilho mais velho, quando o mano é que é o chorão. Ciumes e disputas surgirão, na certa, mas ainda não me humilho e quero em mim manter toda attenção. Embalde, pois vem delle o maior brilho. Ainda sou Pedrinho, mas não fallo “gugu, dadá” que possa superal-o naquelle “nenenez” que a mãe imita. Mas tenho olho doente... Emfim, meresço cuidados dos quaes nem calculo o preço e sempre deixarão mamãe afflicta. Primeiro, era o mais velho quem battia no irmão mais novo, até que os paes um duro castigo lhe impuzeram. Ja seguro se sente o molequinho, e tripudia. Agora, o molecão vive a agonia de ser chantageado: paga o juro da divida e obedesce o irmão. Que appuro terá de supportar no dia-a-dia! “Ou faz o que eu mandar, ou vou dizer que está battendo em mim!” O maior cede, humilha-se ao menor e ao seu poder. Rebaixa-se e lhe lambe o pé, que fede. Em breve, o chupará... No fundo, ser masoca quer, embora não segrede.
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Ficou cego o mais velho. Está solteiro. Casado está o mais novo, até tem filho. Conversam, certa tarde: “Eu não me humilho! (diz este) Mas você, sim! Né, parceiro?” “Ser cego humilha a gente o tempo inteiro! (confirma aquelle) Às vezes, eu me pilho lembrando que lambi, que dei um brilho de lingua, que engraxei, senti seu cheiro...” “Mas, antes, era opção! (diz o mais novo) Agora, não: me chupa, quando eu quero, não chupa? E eu, por você, nem me commovo...” “Verdade...” E o cego escuta, em tom severo: “O jeito então é, como diz o povo, você ter que engolir! Chega de lero!”
Memorias sentimentaes (1956)
De bonde “camarão” meu pae me leva ao Hospital das Clinicas, e la lhe explicam que meu olho agguarda a treva sem prazo definido. Eu choro, ja. Embora não entenda por que neva alli, faz sol aqui, chove acolá, percebo que a sciencia não se eleva accyma do que dicta Jehovah. Voltamos e, no bonde, o vidro vejo azul sobre as janellas. Meu desejo é a cor perpetuar nesse momento. A porta samphonada abre-se. Desço. Nos olhos de meu pae, então, conhesço aquillo que, no espelho, experimento. Na minha phantasia, aquella enorme cumbuca contem sopa, mas completo o sonho me será desde que forme o maccarrão as lettras do alphabeto. Emquanto, à noite, o estomago ja dorme, o sonho só retoma seu trajecto poetico depois que se transforme na sopa de lettrinhas, com affecto. Menino que seu nome ja compoz no pratto, com pheijão ou com arroz, notou que o maccarrão melhor se lia e, quando fica cego, o adulto lê seu nome com a lingua, no ABC da sopa com sabor de nostalgia.
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Glauco Mattoso
Mudamos. Antes, Mooca; agora, a Villa que chamam Hinvernada. Em frente ao matto da typica pracinha, herma e tranquilla, estava o sobradinho ao qual sou grato. Estreito, geminado, alli burila Pedrinho sua infancia e seu mau tracto. No quarto em que uma cama se perfila a outra, à noite aggarra-se ao sapato. No escuro, põe um pé cobrindo o penis e um outro no nariz, como si o tennis lhe fosse ora o prazer, ora o suffoco. Ainda não exporra, mas presente [pressente] o que succederá ao adolescente naquelle seu fetiche appenas oco. Os livros me empolgavam desde cedo. Trepado num banquinho, nas lombadas que enchiam toda a estante, perfiladas, busquei de cada titulo o segredo. De “Noite na Taverna” do Azevedo aos “Cento e Vinte Dias” com noitadas eroticas sonhei. “Contos de Fadas” egualo à “Moreninha” do Macedo. Nem bibliothecario, e eu ja queria o acervo registrar. “Macunahyma” classifiquei de pobre allegoria. Do Mario o que gostei e ‘inda me anima são contos, num dos quaes faz poesia do amor de dois meninos: obra-prima.
Memorias sentimentaes (1958)
Emquanto, no primario, era o Pedrinho nas lettras preparado, seu momento mais intimo consagra-se ao quadrinho, ao qual, como à chartilha, estava attento. Na troca de gibis, era o “Reizinho”, “Bollinha”, “Luluzinha” o que um sedento menino procurava, entre um sobrinho ou dois do Capitão... Mas, sob o assento, no meio dos cadernos, ja circula, de mão em mão, aquillo cuja bulla tem contraindicação para menores. Aquelles “catecismos” eram para a ingenua molecada o que excancara um thema ‘inda cercado de pudores. Gostava de humilhar-nos o vizinho. Pae era duma “anjinha” e dum pivete. Comprara uma perua Vemaguette, primeira alli no bairro, o exhibidinho. Sahia meu pae cedo e eis que, a caminho do trampo, esse vizinho lhe repete aquelle seu convite que, nas septe manhans duma semana, ouve, excarninho: “Bom dia, seu Augusto! Quer carona?” Mancando duma perna, outra amputada, a pé meu pae vae. Carro? Elle ambiciona. Em outra direcção, prosegue cada um para seu trabalho. Da cafona perua, lhe buzina o camarada.
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Querendo se exhibir, o impertinente vizinho para o filho comprou uma pequena encyclopedia. Quem se arrhuma sou eu, com outros livros, persistente. Sabendo que sou mais intelligente que o filho e melhor nota tiro, espuma de raiva, esse invejoso. Então, costuma mostrar-se elle mais rico do que a gente. Brincando na calçada, sou chamado por elle para ver o que a seu filho comprou: novinho, um Lello encadernado! Figuras eu folheio e maravilho meus olhos... Ao notar isso, o saphado das mãos me toma o livro e appaga o brilho. Na Paschoa, da avó ganha de presente a “anjinha” um ovo enorme, ovo gigante! Convida o pae a todos nós, durante uns dias, para olhar o ovo, somente. Nós todos, os moleques que, na frente de casa brincar vamos, somos, ante aquelle ovo gigante, ao arrogante subjeito, seus palhaços! E eu, silente. De longe, appenas olho aquelle ovão em cyma da caminha da menina. Desejo, é claro, nelle pôr a mão, proval-o, mastigal-o... Mas termina alli minha alegria, pois eu não ganhei um teco dessa coisa fina!
Memorias sentimentaes De sua profissão elle se orgulha, embora seja mero subalterno. Capricha na gravata, veste terno comprado a prestação, coitado, o pulha! Causar inveja sempre quer! Borbulha seu ego de prazer quando um moderno televisor installa e, em pleno hinverno, convida a molecada... Ah, que fagulha! Seus olhos, que reflectem, frente à tela, a imagem preta e branca, teem o brilho dum ecstase burguez ante a favella. Mas todos nos junctamos a seu filho e, deante da tevê, que achamos bella, ficamos os reis vendo do gattilho. A esposa do subjeito, que instrucção nenhuma tem, mandar no cara sabe! Com elle falla duro, até que accabe aquillo que mandado foi... Cuzão! Babaca! Quer ser tudo, mas mandão nem sabe ser! Por menos que se gabe, meu pae auctoridade tem! Se babe o bobo, mas não manda nella, não! Grandona, cadeiruda, a mulher age com toda a educação que Deus lhe deu! Vassoura, diz “bassora”! Vagem, “bage”! Mamãe della caçoa. Appenas eu observo que o vizinho sae, de traje formal, e a esposa o xinga em tom plebeu.
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Da infancia aquellas scenas eu recordo achando muita graรงa em tudo, excepto tractando-se dum ovo que, directo, retorna si, dum sonho, estou a bordo. Agora chocolates como, engordo de tanto comer doces, locupleto o estomago sem culpa e nenhum veto prohibe meu prazer, nisso eu concordo. Mas fica essa lembranรงa do desejo frustrado, pelo ovรฃo e pelo Lello, e sempre, cobiรงoso, alli me vejo. Ja tenho um Lello, um ovo comprei, bello, immenso, varias vezes, mas o ensejo passou. Nada o compensa! Eu o congelo!
Memorias sentimentaes (1959)
Opera-se o menino. Um olho, appenas, pois teme-se perdel-o. Mesmo assim, as chances de melhoras eram plenas, dizia a professora para mim. Coitada! Entre dezenas ou centenas, a mestra dedicava-se... E então vim, achando, la no fundo, bem pequenas as chances de levar meu anno ao fim. Passei. Recuperei-me. Mas passei, tambem, a grossos oculos, por lei, usar dalli por deante: o contra e o pró. Os outros de “quattrolho” e de “cegueta” passaram a chamar-me, e eu que me metta a delles reclamar, que vou ver só. De usar oculos, quasi ninguem gosta, creança muito menos. O menino precisa delles, desde que o destino tornou seu olho grande e rubra posta. Agora tem na cara aquella josta de lentes garrafaes, e eu imagino o riso dos moleques de maligno intento, quando um delles nelle encosta. Rasteiras o derrubam pelo chão, mas elle se segura, a quebra evita dos oculos, que muito caros são. A turma se diverte e, si elle excita a sadica tendencia à perversão, esperam que essa scena se repita.
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Contei ja varias vezes, mas repito. Pegaram-me os collegas por vingança: não sou, entre os meninos, mais bonito, mas sou quem melhor nota em classe alcança. Alem do mais, meresço, não um pito: licção, alli na practica! Creança que não entra na turma, que ao agito se furta, à mercê della um dia dansa. Dos oculos um delles se appodera, emquanto, em meio ao matto, eu delles era forçado a ser cachorro lambedor. Descalças ou calçadas, suas solas marcaram minha lingua: os rapazolas dos pés me condemnaram ao fedor. Retorno eternamente àquella eschola na qual pagava todo dia o pato por ser estudioso. Com mau tracto vingavam-se os collegas do boiola. Faziam-me chupar suja a pistola. Me olhavam rastejar em meio ao matto. Pezinho de dedão mais curto, e chato, cobria minha bocca com a sola. Lambi seus tennis podres, encardidos. Bebi seu mijo quente, amarellinho. Seu riso ainda está nos meus ouvidos. Hoje não bebo mijo, bebo vinho. Não vejo cores, sonho com bandidos. Da rosa, só o perfume: nem o espinho.
Memorias sentimentaes (1961)
Currado fui durante quasi um anno, embora raramente: é que me escondo, da eschola corro à casa... Pelo cano, porem, accabo entrando, e bem redondo. Mas não appenas lambo: ja me damno tambem chupando rolla, pois respondo a varios appellidos... Sempre um “mano” me chama de “cachorro”: é o “cane mondo”. Não pensem que gostei, desde o começo, daquillo que chupava! Hoje meresço, mas odio é o que eu sentia, ca no fundo. É isso o que lhes dava mais tesão: saber que cumpro minha obrigação na marra, a me ennojar, me achando immundo. Fui victima de bullying e planejo depor sobre esse evento malfazejo. Tentei narrar, em prosa e verso, mas appenas de passagem fil-o e não do jeito que eu queria, as scenas más. {Que jeito?} Detalhando tempo e espaço num typo de romance joyceano, que faça passar lento um mez, um anno, até que eu desabbafe, passo a passo. {Por que não conseguiu?} Me faltou gaz p’ra tanto canto em texto de ficção: difficil é lembrar, voltar attraz. {E agora? Está disposto?} Um novo ensejo é dar-lhe esta entrevista, ao que antevejo.
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{Onde a difficuldade? É doloroso? Ou falta só memoria ao “eu” Mattoso?} De facto, foi traumatico, mas nada me custa relembrar. O que complica é a mente do poeta, hallucinada. {Complica como?} Accabo mixturando veridico e phantastico: à punheta da epocha se somma o que intrometta a penna do escriptor, e eu tudo expando. Si eu desexaggerasse um pouco, em cada capitulo, o occorrido, aquella rica historia ficaria bem contada. {Então vamos tentar! Serei curioso!} Pois seja! E eu serei serio até no gozo. {Primeiro, o tempo certo, inicio e fim. Como é que começou, e coisa assim.} Eu tinha nove e a serie era a terceira. Só classe masculina, e a professora achava-me o melhor da turma inteira. Os outros me invejavam, por um lado; por outro, bem sabiam que eu só era melhor no que a leitura recupera. No resto, um semicego está alleijado. Na rua, em qualquer jogo ou brincadeira, levava eu desvantagem. Si não fora o estudo, quem não fede alli não cheira. Mais velhos que o philosopho mirim, impunham meus collegas medo em mim.
Glauco Mattoso
Memorias sentimentaes {Você não tinha amigos? Mais alguem que fosse, talvez, alvo do desdem?} Ninguem! Peripheria brava, aquella: emquanto num sobrado eu residia, em volta, alem do matto, só favella... Eu era, tambem, filho de proleta, mas nosso sobradinho geminado, alli, cheirava a luxo, e fui chamado de “rico” pela turma analphabeta. {Na certa isso aggravou a raiva della, não é? Não foi appenas a myopia a causa que esse assedio nos revela...} Sem duvida! Si eu fosse são, porem, tão facil não me expunha a ser refem! {Sem rede virtual nem cellular, que typo de aggressão tinha logar?} Havia disciplina, então: na frente da nossa professora, um “repetente” daquelles me tractava normalmente. Na hora do recreio ou na sahida, comtudo, de “cegueta” e “veadinho” xingavam-me e, debaixo de excarninho sorriso, alguem sozinho não revida. Às vezes, a rasteira, de repente, me desequilibrava: é duro a gente sentir-se, contra os chutes, impotente... Vexado, eu não tardava a levantar, saphando-me da eschola para o lar.
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{Seus paes sabiam disso? Não achava você que assedio assim cresce e se aggrava?} Admeacei contar ao director, à minha mãe, mas elles, em resposta, zombavam: “Conta, conta, por favor!” Sujar-me no uniforme eu ja temia, sabendo que mamãe me encher o sacco iria... alem dum outro poncto fracco: meus oculos, depois da cirurgia. Sem lentes, tudo aquillo que me impor quizessem, poderiam: quem não gosta de ver um cego morto de pavor? Pensei: será que à septima ou à oitava eu chego illeso, ou mando o estudo à fava? {Qual fora a cirurgia?} De glaucoma. {São muitos os cuidados que se toma?} Privei-me dos esportes e da pista de dansa. Nem siquer no quarteirão coragem tive para ser cyclista. Somente na leitura eu conseguia refugio, da chartilha até o gibi: ja bem precocemente percebi que aquillo eu perderia, qualquer dia. E, emquanto fraquejava a minha vista, um thema ganhou força, desde então, razão de me tornar um fetichista: O pé, como o meu proprio, cujo aroma me excita e meu desejo tange e doma.
Memorias sentimentaes {Mas, antes dos abusos, ja você sabia ser podolatra? Por que?} Brinquei, emquanto tinha uns seis ou cinco anninhos, com o filho da vizinha (e agora, mentalmente, ainda brinco): Luctavamos, brincando de “inimigo”, bandidos sem mocinho e sem pudor, e, sendo elle mais forte, ousava pôr o pé sobre meu peito, a sós commigo. Até no rosto o punha e eu, com affinco, fingia resistir. A gente tinha limites, claro: a tara tem seu trinco. Talvez o pé na cara a idéa dê daquillo que, hoje, almeja quem não vê. {Entendo: repetiu-se, então, na marra, a mesma situação que você narra...} Exacto. A differença, desta vez, estava na noção que do perigo eu tinha e no que, a serio, a turma fez. {Explique, Glauco, como, da admeaça, passaram para a practica. Algum facto serviu como estoppim para o mau tracto passar a ser roptina, como passa?} Ja vinha num crescendo a estupidez dos caras e a vontade de commigo zoarem, desde o inicio, uns dois ou trez. Mas quando num bandido a gente exbarra, o bando todo accorre e nos aggarra.
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Um delles de castigo achei, um dia, na salla, appós as aulas, com a “thia”. Cobrava a professora uma licção que o cara não fizera: ella era dura e pude ver vexado um molecão. Mais cedo, em plena classe, ella lhe dera, na frente dos collegas, um quinau: “Se espelhe no Pedrinho, ou toma pau! Ou segue o exemplo, ou não se recupera!” Fui feito, sem querer, para os que não estudam, de modello da postura correcta: isso sellou-me a sorte, então. Quiz elle desforrar, e eu presentia o pé na cara, à minha revellia. {O Glauco era Pedrinho? E se recorda você dos nomes, quando cada abborda?} Nem todos. O exemplado era Fernando. Teria então seus onze e amigos fez, mais velhos, que compunham o seu bando. Na eschola alguns estavam, outros não. Dos que não estudavam, um na minha lembrança eternizou-se: foi Tampinha seu vulgo, do qual clara era a razão: Embora ja dos dez fosse passando, mais baixo que os demais era, talvez menor que um que na eschola estava entrando. Mas era attarracado e, em sua horda, quem tinha o maior pé, ninguem discorda.
Memorias sentimentaes {Não lembre ‘inda do pé, Glauco, mas tente lembrar da cara delle, claramente.} Nenhum traço marcante, mas na cor da pelle estava o poncto principal: mais negra, como é logico suppor. A mãe era doceira, e elle vendia cocadas no portão da nossa eschola. Mas sempre preferia jogar bolla, em vez do ganhapão de cada dia. Tambem não estudava: no que for plausivel, isso explica por que mal pensava e de mim tinha tal rancor. Portanto, cedo ou tarde, frente a frente com elle eu me veria, fatalmente. {Você comprou cocada delle, então? Dinheiro elle pegou da sua mão?} Cocada e quebraqueixo. Elle suppunha, na certa, que eu ganhava alta mezada, mas era, eu tambem, filho de mãe “unha”. Difficil que eu tirasse algum trocado da velha, que pagasse o quebraqueixo: “Ah, deixa, vae, mamãe!” “Tá bom, eu deixo...” E, sexta-feira, estava eu saciado. Assim, toda semana, quem a alcunha levava de Tampinha e quem ja nada enxerga se cruzavam, si eu dispunha. Pegava a grana, dava o doce, e não me olhava cara a cara, aquelle anão.
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{Você zombava delle? Alguma vez tirou vantagem, só por ser freguez?} Não, nunca. Mas, em volta, sempre havia quem delle, a gargalhar, tirasse sarro: “Ahi, Tampinha! Trampa ahi! Não chia!” Tambem sarro tiravam da havaiana barata que elle usava, de tamanho maior que o maior tennis, ja me assanho ao, disso, me lembrar... Não sou sacana? Fallavam, dedo em riste: “Meu, espia só como elle é nannico! Eu nem exbarro no cara, só na lancha! Mamma mia!” E, attraz do tabuleiro, a pequenez do joven um contraste sempre fez. {Mas elle era da turma do ruim Fernando, não? Zoavam, mesmo assim?} Sim, claro! Todos tinham, tambem, sua patota a protegel-os. Nada extranho, pois, gangues se enfrentarem pela rua. Appenas eu, o timido cegueta, não tinha a minha turma, e foi por isso que fui, com os meus oculos, submisso e fragil, facil victima da treta. Gozavam do Tampinha a prancha nua calçando as havaianas de tamanho adulto, e a scena em mim se perpetua. Jamais eu supporia que elle em mim viesse a pisar: nunca estive a fim.
Glauco Mattoso
Memorias sentimentaes {Tampinha era, da gangue, o mais creança? E, delles, qual na edade mais advança?} Dirceu e Arimathéa tinham mais de doze, eram mais velhos que Fernando. Aquelles quattro foram infernaes! Estava Arimathéa, com Dirceu (é claro, attrazadissimos) na mesma terceira serie: cerebro de lesma na classe, mas na rua... Azar o meu! Viviam me expreitando, esses chacaes, Fernando sempre attento, no commando, e eu nada commentara com meus paes. Tramaram friamente uma vingança, não contra mim, mas contra uma cobrança. {Cobrança? Como assim? Uma pressão etaria? Social? Foi culpa ou não?} Culpados foram, claro, mas só digo que, si não fossem elles, quaesquer outros gurys fariam coisa egual commigo. Producto são do meio. Eu é que estava, na scena, deslocado: quem diria que numa tropical peripheria mais um Rimbaud se forja e se deprava? Cegueira não é bençam nem castigo. Tambem não o serão aquelles potros selvagens, que exquescer eu não consigo. Não quero analysal-os, pois estão accyma da verdade ou da ficção.
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{Você os mythificou! Como pretende, então, Glauco, que eu compre o que me vende?} Problema nenhum vejo: o que procuro é nelles descobrir como o Destino escreve a lucidez com traço escuro. {Pois bem, philosophemos, mas depois. Agora eu lhe pergunto do mais cru momento: si você fez do tabu seu thema, demos nome e rosto aos bois.} Estou dando. Não fico sobre o muro, você vem constatando, e um fescennino legado deixarei para o futuro. {Que seja, mas, agora, o que me prende é aquillo que ao leitor pudico offende.} É justo. Volto então ao meu trajecto da eschola para casa, curto e recto. Mamãe não me esperava na sahida das aulas nem, de casa, no portão. Voltava eu, si preciso, na corrida. Às vezes, eu seguia bem attraz dum gruppo de meninos que rhumasse até meu quarteirão, mesmo que, em classe, nenhum de me adjudar fosse capaz. Não era, pois, tranquilla a minha vida de alumno excepcional. E a vida é tão maligna, que ao perigo nos convida... Por causa do meu vicio predilecto cahi, por fim, nas mãos do desaffecto.
Memorias sentimentaes {Qual vicio?} Ler gibi: quem juncta, troca. E, volta e meia, estava eu na malloca. Attraz do eucalyptal ficava o tal cortiço, onde moravam Tonho e Chico, moleques cujo gosto era-me egual. Amigos, não direi, porem meus manos na quadra dos quadrinhos, quando o quarto da gente é nosso mundo e o mundo é farto de monstros e bandidos deshumanos. Mamãe desapprovava o matinal passeio que eu fazia àquelle rico contraste entre meu bairro e meu quintal. Em casa, era o quintal appenas toca, mas lances de adventura a rua evoca. Nem indo, nem voltando, nem na eschola: na rua é que a aggressão se desenrolla. Eu visto bermudão, não uniforme. No pé tenho alpargata e não sapato. No corpo, a camiseta de quem dorme. Carrego meus gibis numa mochila, voltando da malloca, onde os trocara. Sedento, appresso o passo e corro para, em casa, lel-os, na manhan tranquilla. Olhando o chão, de subito um enorme pé surge à minha frente, um pé de pato: qual tennis calçará que não deforme? Descalça sobre a terra, aquella sola não pode ser sinão dum rapazola...
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Tampinha! No campinho, uma pellada disputa com a turma e, ao ver-me, brada: “Ei, olha la o cegueta! Ah, vae ver só!” Fernando lhe cochicha algo no ouvido. Sorri o Tampinha: “Vou zoar sem dó!” Absorpto, eu só os percebo quando é tarde. Me encara, rindo, o filho da doceira: “Ahi, cegueta! Ja comeu poeira?” Agora seu olhar não é covarde. Me empurra, provocando: “Comeu pó, cegueta? Ainda não?” Pensei: Revido? Si fosse appenas elle... E eu sinto um nó. Gogó travado, não respondo nada. Só escuto do pivete a gargalhada. De longe, os outros ficam assistindo de camarote, achando aquillo lindo. “Que tem nessa mochila? Me dá aqui!” Relucto, mas entrego o meu thesouro. “Meu, olha só! Que monte de gibi!” Talvez, num corpo a corpo, eu me sahisse melhor, sendo o Tampinha tão mehudo. Seria bom surral-o muito, e tudo poder jogar-lhe, tudo que me disse... Imploro que devolva. Elle me ri na cara: “Você vae levar é couro!” Confere a pilha: “Ah, varios que eu não vi!” Paresce o meu tormento ser infindo, pois temo o que estará Tampinha urdindo.
Memorias sentimentaes Si eu corro, elles me alcançam. Si resisto, será peor. Terá qual final isto? “Só enxerga nesse fundo de garrafa?” E zomba dos meus oculos de grau, emquanto minha mente o photographa. “Me passa esse negocio! Tá me olhando assim por que? Vontade de appanhar?” Retiro o meu appendice ocular, temendo que elle o quebre. E ri-se o bando. “E agora? Tá mais cego? Desabbafa! Enxerga mal? Sem isso, então, babau!” Sem sarro, nem Sansão dalli se sapha. Não choro. Não serei Sansão nem Christo, mas mudo soffrerei este imprevisto. Fernando se approxima e me confisca os oculos. Meu olho, ardendo, pisca. Começam uma nova brincadeira: Appenas vultos vejo, e se approveita Tampinha, que me applica uma rasteira. Levanto e, rasteirado, outra vez caio. Demoro a levantar. Tampinha empurra meu rosto com o pé. Prevejo a curra. De novo em pé me ponho, ja cambaio. “Olé, cegueta! Olé!” Pela canseira me vencem: no chão fico. “Agora deita! Rasteja! Agora rolla! Beija! Cheira!” Na cara os pés cutucam, fazem isca. Canino, meu focinho os pés mordisca.
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As ordens se succedem, entre o riso e o chute, emquanto eu sirvo aos pés de piso. De tennis estão Nando e Arimathéa. Descalço, só o Tampinha. Está o Dirceu de chanca, uma chuteira bem plebéa. Fernando força o tennis no meu cu. Prefere Arimathéa que eu capacho lhe seja. Tento erguer-me e só me aggacho debaixo dum descalço pé de Itu. Tampinha, o tempo todo, faz tetéa, bilu, com seu dedão, de encontro ao meu carnudo beiço, aos gritos da platéa. Divertem-se os moleques, no improviso, e eu tento obedescer, tendo juizo. Mais medo dão as travas do quichute surrado do Dirceu, nem se discute. Prefiro si o Tampinha me expezinha: ao menos é mais fofo um pé descalço que o bicco dalgum Conga ou dum Rainha... Tampinha está gostando, ao que paresce, daquella brincadeira: seu pezão, que sempre despertara a gozação, agora as attenções geraes meresce. A sola exbofeteia e vira a minha bochecha para o lado. Um passo em falso meu olho vazaria, elle adivinha. E brinca com meu medo. Eu que relucte, e nada impedirá que elle me chute.
Memorias sentimentaes O tempo que passei sob a tal planta, si inferno paresceu, hoje me encanta. Fixei tão fortemente esse formato pedal, que para sempre ficará gravado, em cada bronha que ‘inda batto: Chatissimo, expalhado, seu dedão se apparta dos demais e é bem mais curto que o dedo “indicador”: nunca me furto a achar tal “pollegar”, em verso ou não. Tampinha, eu sei, vergonha do pé chato sentia, mas agora alegre está, me vendo alli debaixo, dando um tracto. Me manda, então, lamber, e sente tanta delicia, que Fernando até se expanta. “Assim! Assim que eu gosto! Agora passa a lingua no dedão, que eu achei graça!” “Gostoso! Agora passa bem no meio dos dedos! Sente o gosto! Vae, ceguinho!” E a unha a minha lingua accerta em cheio. Fernando se interessa e tambem dá algumas instrucções: “Agora chupa! Engole o dedão delle!” E a quem se aggruppa em volta, olhando, occorre a idéa má. “Tá vendo? O veadinho é cego, é feio, mas chupa direitinho!” Eis que, a caminho do bosque, elles me levam a passeio. Por entre os eucalyptos, mais devassa será a sessão que as rollas arregaça.
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Estou appavorado, mas consigo pensar na excappatoria do castigo. Calado até o momento, então proponho: “Tá certo! Eu vou chupar bem caprichado, mas...” Dessa transacção não me envergonho. Emfim, si recupero, ainda intactos, meus oculos, mochila e alguns gibis, valeu o sacrificio, e até com bis eu pago a chupetinha e ommitto os factos. Confesso, não sou virgem, pois no Tonho ja tinha practicado: para aggrado do Nando, esse é o boquette do seu sonho. Formada a roda, o Nando é quem commigo vem ter logo de cara, e eu bem o instigo. Calcule si a piroca dum pivete não fede! E em minha bocca é que elle a mette! Abbaixa seu calção, e ja pentelho exhibe em toda a volta do caralho. Na frente do Fernando eu me adjoelho. Curiosos todos ficam: affinal, roptina isso não é. Nando arregaça, com calma, a longa pelle e, então, a massa sebenta e amarellinha dá signal. Me affasto ante o fedor. O rapazelho, porem, recorda o accordo: ou eu trabalho na boa, ou verde volta a ser vermelho. E, emquanto o Nando masca seu chiclette, eu lambo uns floccos, antes do boquette.
Memorias sentimentaes “Ahi, linguinha porca!”, a turma exclama. E eu penso: ja ganhei futura fama... Mas tracto de chupar, pois quanto mais depressa elle gozar, mais cedo accaba aquillo, e outras manhans serão normaes. Na rolla passo a lingua como o Tonho me disse que gostava: sob a glande, emquanto o labio agguarda que elle mande mammar mais fundo. E à turma, assim, me exponho. “Engole, cego, engole!”, urra o rapaz. Fernando exporra, uivando, e ja se gaba: “Olé! Gozei! Olé! Não sou demais?” Nem cuspo: não me attrevo. Si na lama chafurdo, engulo... e a porra se derrama. Repete Arimathéa o ritual. Dirceu não quer, porem, fazer egual. Quer, antes, que eu chupite, como fiz na lancha do Tampinha, o seu dedão. Com nojo ou não, farei o que elle diz. Descalço-lhe o quichute: uma geléa besuncta-lhe os artelhos, cujo cheiro compara-se ao do lodo dum chiqueiro, segundo o negro humor do Arimathéa. “De lingua, cego porco! Anda, infeliz! Dá banho no chulé!” Digo que não? E foda-se o podolatra apprendiz! Me abbaixo e lambo, feito um animal (menor que o do Tampinha), um pé normal.
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Sentindo-me a saliva, que lhe lava os dedos, Dirceu dura sente a clava. “Ja chega, cego! Agora chupa aqui!” E empunha um membro grosso para a edade. Consigo os trez, si dois ja consegui. Não passa da cabeça o meu beição aberto, mas dou gozo e o cara exporra. E, como quem, gritando, vae à forra, Dirceu grita: “Golaço do Timão!” Depois que engulo a porra, elle sorri com sadico prazer, e persuade um cego a degluttir o seu xixi: “Aguenta ahi, veado!” E a bocca escrava, servindo de latrina, se deprava. Beber urina eu nunca tinha feito, e quasi que, no vomito, a rejeito. Fedida, ella tambem, salgada e quente, me engasga e, ao bando, é motte à gargalhada. Da porra o gosto é muito differente. Por sorte, o que elle tinha na bexiga só rende uns poucos goles. O Tampinha, notando que um mictorio virou minha garganta, tambem scisma e me castiga: “Vem ca, cego, abre a bocca! De repente, senti vontade! Ei, bocca de privada!” E, appós mijar, seu pincto um prazer sente. Tesão? Somente allivio? E eu, quieto, acceito a bimba me bombando em bom proveito.
Memorias sentimentaes Quem sabe si o cabaço dum caçula não tiro, emquanto manda que eu engula? “Ah, cego, chupa, chupa!” E vae bombando, não para de bombar. Tranquillo, aguento um penis bem menor que o do Fernando. Adjudo, passo a lingua na cabeça, espero até que goze. Elle, emfim, goza: paresce ser a coisa mais gostosa que um pubere imagina que accontesça. “Valeu, Tampinha!”, applaude, em khoro, o bando. Ainda lhe degusto o pau sebento, de modo que se sinta no commando. Demonstra seu orgulho e me encabula: um tapa eu levo, alem da expressão chula. Requincte de sadismo tem Tampinha depois que em minha cara dá o tapinha: “Gostou, cegueta? Espera, que eu excarro na sua bocca suja! Vae abrindo ahi!” Tiram os outros mais um sarro. Passivo, eu excancaro esta boccarra, à espera da espumante cusparada. Não falta ao meu vexame, então, mais nada: de todos vem catarrho, em meio à farra. Mixturo à minha baba o que o cigarro deixou naquellas boccas: um malvindo sabor, que ‘inda me ennoja emquanto narro. Percebo que a sessão ja se encaminha ao termino: ouço a voz duma vizinha.
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Chamando pelo Chico, a mãe procura por elle onde a turminha me tortura. Podia essa mulher ter percorrido mais cedo aquelle bosque... Mesmo assim, a tempo salva um joven offendido. Prometto não contar, e elles me dão de volta os grossos oculos, a pilha mais grossa de gibis, da qual ja pilha Tampinha uns exemplares... e se vão. Encontro a mãe do Chico, e não duvido que entenda o que fizeram. Mas de mim só indaga: “Viu Chiquinho, meu querido?” Na scena suburbana, a vida é dura. Ninguem patrulha a alheia travessura. Mamãe extranhará: sujo, attrazado, eu volto, mas explico o meu estado: “Só fui trocar gibi! La no campinho, brincamos de luctar... rollei no chão...” Engulo a bronca: é facto comezinho. À noite é que a sessão recapitulo, ainda sem gozar com tudo aquillo. Lembrando, actualmente, nem vacillo e, lubrico, meu membro manipulo. Na classe, alguem repara que o Pedrinho está muito calado, porem não suspeitam si espetei o pé no espinho... Appenas Nando, quieto, alli do lado, sorri por dentro e finge ler Machado.
Memorias sentimentaes Machado não direi que fosse tão legivel para aquelle molecão. Mas, para mim, fallava, na entrelinha, contando o que na eschola, occulto, rolla. Um dia, de contar a vez é minha... Na hora da sahida é que não vejo Tampinha e seu famoso tabuleiro. Não vejo nem durante o mez inteiro, até que pincta, olhando-me sem pejo. Comprar delle, de novo, um doce, tinha sabor que, de tão cumplice, consola: no olhar trocado, tudo se adivinha. Notou elle que eu olho seu pezão com outros olhos, quando miro o chão. {Mas, Glauco, você disse que não ia fingir, nem cederia à phantasia...} Bem... vamos e venhamos, eu não fallo mentira sobre a prancha do Tampinha, nem minto si do Nando fede o phallo... Tampouco eu inventei sobre o chulé da chanca do Dirceu, ou sobre o mijo que tive de provar... Que fosse rijo o pincto do Tampinha, não dei fé... Portanto, como irei phantasial-o, si o facto é mais real até que a minha memoria? Ou cozinhei demais o gallo? Incrivel que paresça, a secca e fria ficção jamais supera a poesia.
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{Que seja... Mas lhe peço que exclaresça si a turma foi mais vezes tão travessa.} Não tantas como as ponho em meu sonnetto, talvez, mas repetiu-se aquelle evento trez vezes, si um enganno eu não commetto. {Mas como? Foi descuido seu ou quiz você cahir de novo aos pés do Nando: Ainda o tocayava aquelle bando? São mesmo delinquentes juvenis?} Você bem perguntou: naquelle ghetto da Zona Leste, em Sampa, um desattento qualquer soffria abuso, branco ou preto. Alli foi natural o que paresça, agora, violento... e eu que padesça! {Mas lembra-se você de cada uma das vezes? Ou é tudo envolto em bruma?} Recordo, sim. Bastou mais um quinau da “thia” no Fernando, em que de exemplo de novo fui citado, e chupei pau. Fernando me obrigava, desde aquella primeira curra, a dar-lhe assessoria em todos os trabalhos para a “thia”. Não era eu infallivel, achou ella. Errei nalgum quesito, e ficou mau meu credito de “genio”. Hoje contemplo aquillo como azar de menor grau. Mas Nando é quem assume a falha: espuma de raiva contra mim, e eu que lh’a assuma.
Memorias sentimentaes “Você vae me pagar!”, Nando promette. E sei o que esperar desse pivete. “Me espera na sahida! Minha nota baixou por sua causa! Seu castigo vae ser pagar boquette p’ra patota!” Não tenho alternativa: de uniforme, trazendo meus cadernos, sou levado por elle ao mattagal, onde, a seu brado de guerra, accorre certo pé disforme. Tampinha chama uns outros: calça bota o Sylvio e um velho tennis o Rodrigo. Terei que ser-lhes alvo da chacota. Chupar é uma licção que se repete sem erro, affora callo e joannete. Tampinha, novamente, foi quem fez melhor este boccão de seu freguez. Lambi, claro, a botina do Sylvinho. Senti do Rodriguinho a sola gasta na lingua, cujos sulcos exquadrinho. Mas sempre o pé chatissimo, que faz papel protagonista no meu sonho, se impõe: o do Tampinha, quando o ponho na cara, e nunca o achei noutro rapaz. Practico a fellação, mais me admesquinho bebendo uma mijada, mas não basta, si o Nando quer vingar-se do Pedrinho. Na bocca, então, me cospe, desta vez, catarrho maturado faz um mez.
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Não temo, numa proxima sessão, perder cadernos, oculos, no chão. Confisca-me Fernando o material até que eu desempenhe meu serviço a gosto e aggrade ao publico em geral. Preoccupa-me somente que me sujem o raio do uniforme: si emporcalho aquillo, mamãe ralha. Quebra o galho Fernando, quando o poupa, de lambugem. Dispensam-me de estar, feito animal, de rastos ou de quattro, si eu, submisso, chupar, adjoelhado, cada qual. Joelhos encardidos? Sim, estão. As calças, que se salvam, curtas são. {Entendo, Glauco: a estréa é que é peor. Depois, o actor discursa ja de cor.} Exacto. O maior medo é a dependencia do incognito. Passada a exspectativa, a chaga ja nos pede que repense-a. Jamais me mactaria eu por aquillo de sordido a que a gangue me forçou. Sujeira ja faz parte do meu show; cegueira, sim, é o poncto a discutil-o. Mais soffre quem terá deficiencia total e irreversivel, auditiva, mental ou visual: eis a violencia. São todos, de maior ou de menor edade, eguaes ao palco a seu redor.
Memorias sentimentaes {Me diga, Glauco, e falle francamente: que tal reencontrar aquella gente?} Pensei bastante nisso. Eu não teria nenhum problema, appós os meus cincoenta, si fosse à tal fatal peripheria. Quem sabe ainda vive o tal Tampinha, calçando as havaianas no pezão, agora callejado, de dedão mais curto, que me tempta e endemoninha? Quem sabe o tal Fernando até judia dalgum outro Pedrinho, que o sustenta e assiste, ‘inda que morta esteja a “thia”? Carentes todos somos, e carente serei desse passado em minha mente. {Você não visitou aquella zona, mais tarde? Ainda agora se emociona?} Não só pelo episodio da libido: está a Villa Hinvernada cincoentista gravada em minha mente pelo ouvido. Naquelles verdes annos, verdejava, tambem, um novo estylo musical, que dava para ouvir do meu quintal, e a nova geração ainda grava. Chamado rockabilly, elle tem sido motivo de querella: ha quem insista em dar-lhe outros baptismos sem sentido. Depois daquillo, passa a ser cafona qualquer som comportado: a turma abbona.
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Tem trilha, pois, sonora a minha scena de curra estudantil, que a torna plena: Canção, que “Blue suede shoes” tinha por nome, no radio se escutava, e este quartetto compuz para que o clima se retome: O rock’n’roll podolatra excancara! Um classico é, no genero, exemplar, dizendo: “Você pode me jogar no chão e pisar bem na minha cara!...” No bosque de eucalyptos, não me come o rabo a molecada: appenas metto na bocca uns pés, uns paus, e macto a fome. Não foi, por ser oral, menos amena a scena que eu repiso em minha penna.
Memorias sentimentaes (1962)
Collyrios que eu usei: pilocarpina, um cujo nome lembra “charlatão”, um outro a me soar como “propina”, alguns ao mesmo tempo e occasião. Mas que dor de cabeça que me dão! Mamãe, que m’os pingava, em medicina ainda accreditava, mas eu não: achei que tudo aquillo só azucrina. Levei um anno inteiro sem no estudo cursar, como devia, mas fiz tudo que um joven punheteiro ja faz bem. À espera da exporrada, o que deseja não é só pretender que um olho veja, mas ser expezinhado por alguem. Si, em vez desses collyrios, eu pudesse usar uma ballinha de maconha, talvez mais tempo desse para a bronha, pois dizem que é mais facil que a dor cesse. Dizia Peter Tosh o que accontesce a quem usar maconha se disponha: a face, alem de estar menos tristonha, paresce-lhe que até rejuvenesce. A minha até mais triste, dia a dia, ficando vae por causa do collyrio que em nada a tal pressão alta allivia. Restou-me, nos momentos de delirio orgastico, um chulé que me seria da dor a cura, sempre que eu adspire-o.
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Glauco Mattoso
Ingresso no gymnasio e, à noite, estudo num bairro ‘inda carente desse ensigno. Embora nada forte, nem thalludo, eu era, àquella altura, mais ladino. Tractei de proteger-me: meu escudo formado era por caras que de fino tracto nada revelam, mas são tudo que quer quem levou curra ‘inda menino. Bastava que eu lhes desse alguma colla, fizesse-lhes trabalhos para a eschola, e minha segurança eu garantia. Cheguei a me vingar dum aggressor, mandando que meu gruppo com “amor” pagasse o que na bocca fez-me um dia. Pensavam que eu seria sempre o pato. Entrando no gymnasio, porem, mudo: Me torno um lider, pois sou sabetudo, e alguem a quem dei colla fica grato. Ninguem mais me dá pau: sou eu que batto. Embora fracco, a turma é meu escudo. Sou tão bom de banzé quanto de estudo. Glauquinho Mattosão, eis meu retracto. Um dia, peguei um dos que me usaram, no tempo do primario, como escravo. Curravam-me, mas hoje nem me encaram. Cobrei-lhe até seu ultimo centavo: Obrei no chão. Meus cabras o obrigaram na marra a degluttir meu desaggravo!
Memorias sentimentaes Na porta das escholas, pipoqueiro é coisa que não falta. À noite, quando cursei eu o gymnasio, havia um bando em volta do carrinho o tempo inteiro. Faltava luz na rua, mas o cheiro gostoso da pipoca ia chamando a gente. Unico foco, illuminando o muro escuro... e estava eu sem dinheiro. Mamãe nem sempre dava algum trocado. Então, apparescia esse collega mais velho, sempre attento, do meu lado. Alem de proteger-me na refrega com outros molecões, elle, abbonado, pagava-me um cartucho: o amor não nega. Fallando em pipoqueiro, que bom era olhar o chafariz dessa pipoca, jorrando no carrinho! Até colloca a gente o narigão nessa paquera! No vidro illuminado, quem, à espera está do seu cartucho, o nariz toca: é como quem namora, a olhar, masoca, aquillo que fascina uma gallera! Explica-se: o tamanho do cartucho, pequeno, mehudinho, mal sacia a gente, nem preenche o nosso bucho! Por isso, mal findavamos um, ia alguem pôr o nariz, algum gorducho, de encontro ao vidro, olhando: era mania!
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Glauco Mattoso
Emquanto a dictadura aqui se installa, aquella molecada nada saca. As coisas de que um joven de então falla são Beatles, futebol, navalha, faca. Peripheria brava: numa salla de “jaula”, emquanto o professor destacca os ponctos importantes, uma balla novinha de revolver é o que emplaca. De mão em mão passada, alguem suggere que, mesmo pequenina, não differe daquillo que dispara algo cremoso. Em casa, ja de bruços no colchão, em vez de masturbar-me com a mão, rebollo, e uma pistola exguicha gozo. Da infancia o que a memoria ainda grava, alem das brincadeiras que um estudo folklorico qualquer troca em mehudo, é um nada ingenuo jogo que rollava. Treinando uma creança a ser escrava na mão do mais travesso ou mais parrudo, o jogo era chamado, então, de “tudo que seu mestre mandar”. E elle mandava! Passei por outras coisas, mais pesadas, mas vi quando occorreu com um moleque menor, que executava as ordens dadas. Que lave o pé do mestre, enxague e seque! Que enxugue e massageie! Das risadas me lembro: ‘inda a mão fazem que eu melleque.
Memorias sentimentaes (1965)
Os Beatles pedem “Help!” e o Pedro pede soccorro, pois nenhuma cirurgia paresce ter successo! Que succede com nossa medicina?, eu me inquiria. Ja tinha ido a Campinas, onde a sede dum optimo instituto só attendia pessoas que dos olhos soffrem: mede minha pressão quem premios recebia. O que se troca, appenas, são as lentes por outras mais pesadas, mais potentes, mas da preoccupação não me assossego. Ouvindo “Nowhere man” no “Rubber soul”, desejo ser quem nunca marca gol mas faz lettras daquellas, mesmo cego. John Lennon era myope e não queria usar oculos, como o Buddy Holly. Um dia, algo fará que melhor colle vidrinhos pôr na cara, sem phobia. Surgiu a moda hippie e da tithia ou da vovó o modello faz que rolle legal algo retrô. Nada se abole, appenas se recycla, se dizia. Tambem me recyclando fui: usei uns oculos mais leves, mas a lente mais grossa foi ficando, reparei. Até que um ar me deu de intelligente o vidro redondinho. Como gay não quero que me veja aquella gente.
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56 (1966)
Glauco Mattoso
Medalha não recebo ao concluir o curso, como fora no primario. Agora o que mais quero é me assumir perante algum collega, mesmo hilario. “Revolver” sae, dos Beatles. Mas dispare-o você na minha bocca, é o que, a fingir, eu grito em pensamento frente ao Mario, ao Sylvio, ao Zeca, ao Marcos, ao Valdir. Somente um delles foi mais companheiro a poncto de eu poder sentir-lhe o cheiro das meias só por bem, sem ser na marra. Mas hoje essa lembrança se dissipa tal como um papagayo ou uma pipa que cae, e outro moleque corre e aggarra. A bocca do menino que eu amei de forma tão platonica, ao suppor um principe encantado com odor de meia chulepenta, ainda a sei. Me sabe a tenro pessego, que um gay diria ser carnudo, de sabor dulcissimo. Mas, quando a fructa for morder, eu sempre beijo o que beijei. Aquelles labios grossos, os relembro com terna nostalgia de moleque frustrado por jamais lhe ver o membro. Até que mais um gozo se me seque, um anno chegaria a seu dezembro com minha adolescencia ainda em xeque.
Memorias sentimentaes (1967)
Então, “collegial” não se chamava: ou era “scientifico” em exactas, ou “classico” em humanas. Eu à fava mandei a mathematica, em bravatas. Embora psychodelicas as datas ja fossem quando o gruppo um “Pepper’s” grava, a gente se ligava mais nas chatas disputas entre o samba e a turma brava. Naquelles festivaes me vi compondo canções que, si não fazem grande extrondo, ao menos ja não são como eram antes. Latim, philosophia, lettras... nada do que apprendi foi como aquella ousada performance de Gil e dos Mutantes. Uma anthropophagia, até tardia, tornou a nossa musica salada de fructa, nacional ou importada, naquella tropicalia de alegria. Sessenta foi a decada do dia: solar, viva na cor, illuminada. Creou-se como não se cria nada. Valia tudo e tudo, então, valia. Caetano, Gil, Mutantes, circo e pão. Modernantiga guarda, esquerdireita. (*) Barroco’n’roll. Mambossa. Rumbaião. (*) Eu era adolescente e, certa feita, senti num festival que uma canção é lettra, e tudo nella se approveita.
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Glauco Mattoso
Regimes endurescem na Latina America. Do gruppo um “Album branco” outra revolução nos vaticina, capaz de superar tamanho tranco. Começo a trabalhar. Emquanto ensigna o espirito uma musica, no banco ensigna meu olfacto a fedentina das notas, que não são dollar nem franco. Ja ganho minha grana e, assim, ja pago meus discos. A victrola o effeito gago não tem, pois foi trocada, é nova em folha. Ja não appenas Beatles ouço: Gil, Mutantes, Gal, Caetano... Si o fuzil governa, em minha mente exsiste excolha. Em maio, os estudantes de Paris prohibem que prohiba a caretice as jovens esperanças. Mas quem disse que estão nossos direitos mais civis? Então estou no “classico” e ja fiz contacto com Platão e com seu vice, que fez com que erudito me sentisse e fosse dos meus idolos juiz. Notei que os personagens ser bem podem maiores que os auctores e que são os mestres quem talvez mais nos engodem. Dialogos socraticos noção me deram sobre as normas que nos fodem e impedem que exerçamos o tesão.
Memorias sentimentaes (1969)
Excappo do serviço militar por causa dos meus oculos: pé chato não tenho, o que me explica desejar nos outros encontral-o e achar-me grato. Não fumo, não namoro, não sou par dansante, não me emballo num barato. Careta! Sim, fui desses e, de facto, excolho, appós o classico, estudar: Ser um bibliotheconomo é o caminho de quem nunca escreveu em pergaminho, papyro ou palimpsesto, mas escreve. Ja meus primeiros contos eu esboço. Poetas somos: nesse officio nosso, passamos pela prosa, embora breve. De terno ao quartel vou e me appresento, de terno, com collete e com o meu de bolso reloginho, que me deu imagem de turrão e rabugento. Quem sabe impressionou isso o sargento ou seja la quem for que me attendeu. O facto foi que, sendo bem plebeu, livrei-me, mesmo assim, do treinamento. Cheguei a ver, pellados, os da minha edade examinados para ver quem ia, no quartel, entrar na linha. Notei que excapparia ao seu dever aquelle que mais chata sola tinha, a sola que sonhei em meu prazer.
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Do trote ja contei tudo que vi fazerem nos calouros. Tambem, disse, deixei-me trotear. Não cabe aqui voltar ao que passei nessa sandice. Ficou aquella imagem que, por si, resume a humilhação: quem quer que risse do bicho ria mais do que já ri de mim mesmo, lambendo uma immundicie. De lingua engraxei tennis: foi a estréa no sadomasochismo com platéa, do qual jamais, depois, tive coragem. Entre quattro paredes, ‘inda lambo sapatos, mas a tanto não descambo na rua, como os bichos que assim agem. Chegando à faculdade, me deparo, ao vivo, com o trote. Não na minha, porem na engenharia, alli vizinha. Calouros nesse tempo pagam caro. Um typo de engraxate não tão raro os fazem performar: um delles tinha que usar a lingua em vez da flanellinha! A scena me desperta o velho faro. Disfarso-me de bicho e, noutro dia, mixturo-me aos demais, até ser pego. Agora virei alvo da folia! Engraxo o veterano mais labrego, lambendo-lhe a poeira que cobria os tennis. Mas, fingindo, peço arrego.
Glauco Mattoso
Memorias sentimentaes (1971)
No curso é maioria o sexo opposto. Accabo me entregando à experiencia de alguma namorar: nem foi por gosto, mas não ha rapaz virgem que dispense-a. Transei, troquei carinho. Mas imposto não era o acto carnal: tive sciencia, então, que, sem um pé sobre meu rosto, jamais satisfaria minha urgencia. Foi personagem minha a japoneza, mixtura de pessoas às quaes presa mantem-se, na memoria, a mocidade. Não foram namoradas: foram gente que se nos apparesce quando urgente é nossa solidão, nossa saudade. De bibliothecario foi o grau primeiro que collei, e uma collega nisei foi a primeira que se entrega a mim. Não titubeio, e creio: Crau! Não fui, porem, appenas lobo mau, nem ella brincou só de pega-pega. A gente cria laços e se appega ao outro, quando está na mesma nau. Tambem ella soffrera hostilidade dos paes, mais japonezes que os do Imperio, e tinha em mim alguma affinidade. Nós eramos à parte, um caso serio. Kodama foi do Borges, mas quem ha de ser minha, quando cego? Que mysterio!
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Glauco Mattoso
Collei grau, mas grau alto era o da lente, e o nivel da pressão pressa pedia. Me afflijo: sei que tenho pela frente, pela segunda vez, a cirurgia. Ainda a medicina incompetente revela-se: si augmenta a myopia, no maximo a receita faz que augmente o peso dos meus oculos... E eu lia! Desesperadamente, eu lia tudo que desse algum prazer ou que um estudo acaso me exigisse... Foi a base. Agora que não leio, essa bagagem salvou-me de mediocre ter a imagem e deu-me munição na actual phase. Nos livros respirei litteratura. De bibliothecario para auctor a differença é pouca: está na cor da cappa ou na lombada da brochura. Mas nunca encontra aquillo que procura quem sonha em ser do Borges seguidor: Terá seu labyrintho aonde for e a cada dia a noite é mais escura. Meus livros e os de Borges, mesma estante? Será? Que paulistano desvario! Serei Bocage ou Sade? Homero ou Dante? Meu olho ja estaria por um fio. Planejo um suicidio, mas distante, e parto de São Paulo, rhumo ao Rio.
Memorias sentimentaes (1973)
Vernaculas cursei. Vestibular jamais me foi problema: nem cursinho eu fiz... Mas o problema era pullar da Zona Leste à USP: era um pullinho. Iria abbandonar... Mas fabular ficções foi solução nesse caminho urbano, o que me fez accumular os contos e poemas que escrevinho. Chamei de “Noxo: estorias” esse maço de textos, mas com elle nada faço, e as fabulas absurdas colligia. No campus, de chapéu e terno, fiz imagem dum Pessoa que não quiz a practica viver, só theoria. As lettras são problema para quem as tenta appenas, celere, estudar. Poetas nem precisam patamar assim alto attingir, nem lhes convem. Deixei o curso, menos por desdem que por necessidade, pois do lar até chegar tão longe, ia levar mais horas do que todo um dia tem. Deu tempo, todavia, para ler uns classicos com olho mais attento àquillo que me dava mais prazer. Deu tempo para achar no soffrimento de certos personagens um dever astral de quem missão tem, como eu tento.
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Glauco Mattoso
Si tenho meu pseudonymo, Mattoso ainda não assigna livro algum. Terceira operação o volumoso tamanho do olho exige: é ja commum. Desisto de estudar, mas tedioso se torna ser bancario... Appós mais um momento de vacillo, o caprichoso destino na cabeça me faz “bum!” Num gruppo de theatro me libero e um pouco da auto-estima recupero, vivendo de Ionesco o personagem. Compuz “Kaleidoscopio”, meu poema primeiro como Glauco, e nesse thema ophthalmico projecto minha imagem. Perdeu-se na memoria em que anno aquillo commigo accontesceu: operação espirita, em que o medium tem a mão guiada por um medico, a assistil-o. Deitei-me num divan e, sem vacillo, o medium, meio medico, razão mostrou ter ao dizer-me, de antemão, meu quadro exacto: “viu-me”, a seu estylo. Mexeu, sem verter sangue, bem no centro dum olho condemnado à atroz cegueira. Senti que me cortava, la por dentro. Visão, eu não ganhei, mas não me cheira fajuto aquillo: ainda me concentro no assumpto, nem da morte estando à beira.
Memorias sentimentaes (1975)
“Apocrypho...” chamei a anthologia na qual fiz minha estréa. Completava o nome “...Apocalypse” e resumia o anarchico e o chaotico, onde estava. Foi livro marginal. Não pretendia mais longe circular. Mas ja me achava herdeiro duma genealogia que vae dum verso livre até uma oitava. Mixturo alli vanguarda e forma antiga, ainda sem excolha do que siga ou queira, nessa epocha cinzenta. Talvez haja no Rio alguma cor mais viva e, quando para o Rio eu for, ver mais um pouco ainda a gente tenta. Testando o experimento espacial na pagina, com dactylographia commum pouco progresso eu conseguia fazer num concretismo “official”. Pensei nalgum processo artezanal, mechanico, que, empirico, daria vazão a toda sorte de anarchia poetica, mas era só mental. Mais tarde, no “Dobrabil”, a tal arte concreta attingiria seu formato padrão, que ja das chronicas faz parte. A musa à qual, no “Apocrypho”, sou grato e nunca deixarei que se descharte, no olhometro prevê que não me macto.
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Glauco Mattoso
Segunda collectanea eu organizo: “Maus modos...” a chamei por ser grosseira; “...do verbo” porque, emfim, era preciso dizer alguma coisa, era a maneira. Não foi, na poesia brazileira, nenhuma sensação. Nem dor, nem riso lhe marcam os poemas como eu queira, nem ponho nella o mundo que anarchizo. Mas algo ja publico e, nesse Rio ao qual não me acclimato, ja copio o estylo do jornal mais cultuado. Parodias e pastiches eu planejo, e agguardo só que surja algum ensejo de dar qualquer formato àquelle achado. Mudei-me para o Rio desolado. Perdi minha nisei. Nem vi o diploma. Temendo o aggravamento do glaucoma, queria me attirar do Corcovado. Pensei no Assis Valente, outro coitado que de autocompaixão fatal se toma. A calma da visão, porem, me embroma e a tragica opção fica, então, de lado. Ao pé do Pão de Assucar, pelo Atterro, caminho, sob o effeito azul do clima, tentando achar as causas de algum erro. A luz do sol me acquesce e reanima. Farei um bom proveito do desterro. Fiquei por baixo. Agora estou por cyma.
Memorias sentimentaes (1977)
“Dobrábil”, “Dobrabil”: indifferente é como pronuncia-se. O que importa é a forma do pamphleto irreverente, que a todo iconoclasmo se reporta. No Rio, em folhas soltas, a semente plantei desse fanzine, emquanto a torta libido ‘inda convida-me a que tente transar o sexo opposto, e me comforta. Com Sandra um filho tive, mas mentira a coisa revelou-se. O casal gyra na America do Sul, até a Argentina. Tambem “Queda de braço”, anthologia do conto marginal eu colligia, e um anno productivo assim termina. Na dactylographia a gente tinha preparo para o officio de escriptor. À mão ainda hoje se escrevinha, mas tudo passará ao computador. Se “dactylographava” e, a cada linha, movia-se o cylindro; hoje, quem for um texto “digitar”, nem adivinha o que foi “martellete” ou “corrector”. Meu zine foi todinho feito à mão, bem artezanalmente, quando não havia, ao meu alcance, uma “de esphera”. As machinas electricas são tão inuteis, hoje em dia, quanto o são as valvulas e o chipe que as supera.
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Glauco Mattoso
Um dia, conhesci no Rio a Sandra, garota loira, esqualida e sardenta. Foi la em Sancta Thereza, nos septenta. Appellidei-a Sandra Salamandra. Não era de favella, mas malandra. Não era de alta classe, mas luxenta. Com ella tive um filho. Ou ella inventa? Sei la. Nem foi assumpto de cassandra. Passou-se o tempo, e agora sou poeta, depois de masochista, cego e usado, e a Sandra, tão sapeca, hoje está quieta. Pergunto-me que fim terão levado. Disseram-me que a Sandra ja tem netta. Meu filho ou não, o cara foi levado. No Rio exsiste um bairro sobre o morro, antigo, arborizado, todo urbano. Alli, em septenta e septe, o melhor anno vivi desta vidinha de cachorro. Não é Sancta Thereza que percorro. Agora sou de novo um paulistano. Ja cego, vejo o mundo de outro plano. Em sonho, deixo o corpo, mas não morro. Viajo pelas ruas sobre o trilho. O bonde aberto corre, beira o abysmo. Sou livre, não me escondo nem me humilho. Mas volto ao meu exsilio quando scismo que posso ter deixado alli meu filho, dum tempo em que amor livre era anarchismo.
Memorias sentimentaes E Buenos Aires volta à minha mente! Mansardas, bulevares, bosques, tudo alli lembra Paris! Na Boca a gente se sente em Sampa ou Napoles, comtudo. Cantinas italianas, sopa quente. De volta ao obelisco, o acho mehudo, comparo a Sampa e Washington. Somente maior era a avenida à qual alludo: Nueve de Julio: abbaixo della, passo, num tunnel, pelas lojas. Muito espaço percebo, nas vitrines, ao nazismo. Medalha, capacete, a farda em trappo. Reliquias da Wehrmacht e da Gestapo. “Tão multipla, a metropole!”, é o que scismo.
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Glauco Mattoso
Retorno a Sampa, emquanto participo da fundação do SOMOS, do jornal “Lampeão”, e affinal acho meu typo nos gays de descendencia oriental. São Paulo sempre teve um povo nippo bastante populoso, por signal. Vivendo o gueixo gay, aqui me equipo com artes e massagens para tal. Convivo com o classico dilemma de ver-me libertario e ter na algema, na bota e no chicote a minha tara. É que a podolatria se extravasa sem pejo, e ja não temo quando em casa recebo quem me ponha o pé na cara. Uns são Napoleões, outros são Momos. Ninguem excolhe si é plebeu ou rei, ou de onde vem, ou pr’onde vae. Voltei do Rio appós colher amargos pomos. Nem sempre intimamente nos expomos. A contribuição, si é que uma dei, ao foro nacional da causa gay foi ter proposto um nome ao gruppo Somos. Primeiros activistas da libido, luctei, com elles, pela identidade, mantendo o masochismo reprimido. Deixei de lado, um pouco, o culto a Sade. Amei o egualitario sem ter sido. Fui gay no platonismo e na amizade.
Memorias sentimentaes Voltei a me envolver com japoneza, depois de militar na causa gay. Vencido pelo olhar de outra nisei, rendi-me àquelle typo de belleza. Foi firme companheira, mas não presa. Por que terminou rapido? Não sei. Talvez falhou naquillo em que falhei: não termos posto as chartas sobre a mesa. Deviamos ter dicto mutuamente: De quattro! De joelhos! Chupe! Lamba! Appenas nos tractamos como gente. Meu caso por descaso não descamba: deslancha, mas não é sufficiente si a chorda vae por bem com a caçamba. As raras namoradas são, de facto, o caso em minha vida mais secreto. Fui algo parescido ao come-quieto, embora bem bissexto fosse o pratto. Agora que pertenço ao syndicato dos cegos, excluidos e sem-tecto, carencia dum carinho, dum affecto, não é maior problema, é o que constato. Ter sido pouco amado accaba sendo vantagem, pois não fico accostumado ao beijo, e dos abbraços não dependo. Na hora de dormir, porem, de lado me deito, e ao pesadello mais horrendo me rendo, em almofadas aggarrado.
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72 (1979)
Glauco Mattoso
Dois themas me dividem a attenção: a merda tem por symbolo ser arte; o pé, como fetiche, meu tesão concentra, accyma de outra qualquer parte. O que fiz no “Dobrabil” foi, então, dar voz escatologica ao que parte da bocca e chega ao cu na digestão, alem do mero senso do descharte. O pé meresceu pouca poesia naquella occasião, ja que teria maior papel real que metaphorico. Lambi, sem symbolismos, solas sujas, e nunca cogitei, nas dictas cujas, de achar que o chulé fosse algo allegorico. “Cagando estava a dama mais formosa...” Assim fallou Bocage num sonnetto do mesmo naipe deste que commetto sobre a reputação que a merda goza. A critica a compara à rara rosa si obrada na miseria dalgum ghetto. Politicos proferem-na: “Eu prometto...” e a midia a thematiza em verso e prosa. É tanto incompetente appadrinhado fazendo merda e sendo promovido que, quando comecei o apprendizado, pensei: “Que seja proprio o seu sentido, porque ja me ennojei do figurado!” E então fui rei da merda com que aggrido.
Memorias sentimentaes (1980)
Si a Mecca do islamismo é a propria Mecca, a Mecca gay é Frisco. Sendo fresco, tractei de visitar, como quem pecca, a capital do erotico arabesco. Do predio onde John Lennon leva a breca, passei em frente, como si da UNESCO ja fosse patrimonio. Feito um jeca, vaguei por “Nova Iorque”. Foi grottesco. Appós uns dias, Lennon tomba morto, e choco-me que a fama e que o comforto não tenham impedido uma tragedia. De São Francisco trago melhor saldo: revistas gays que deram meu respaldo da tara e do poema que arremede-a... Curiosa coincidencia me accontesce: Um mez antes do facto (Que idiota!), parei defronte à porta do Dakota, mas não peguei autographo. Annoitesce. E logo Nova York estava em prece. O Central Park, em lucto, o povo lota. Em choro, cantam juncto a mesma nota. John Lennon lembra sonho, e não se exquesce. Turista entristescido, fui ao predio em que o gorilla enorme trepa e morre. A torre gemea, o Empire State, o tedio. Só tem arranhacéu aqui! Que porre! Sem Lennon nem gorilla (Que remedio?), que um poster dos dois, pois, meu quarto forre.
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74 (1981)
Glauco Mattoso
“Dobrabil” ganha, em livro, uma edição completa, ao mesmo tempo que publico, numa “Primeiros passos”, collecção de bolso, um thema então em topo e picco: “Poesia marginal”, um verbetão com que, na theoria, pago o mico de fazer positiva advaliação daquillo que nem tanto qualifico. Mas outra operação, mais duradoura, soccorre o olho que resta e que ja extoura de tanto humor aquoso accumulado. A cada vez que torno ao hospital, percebo que é mais critico meu mal e um dia tudo é breu para o meu lado. Lançado num septembro, aos dezesepte, de oitenta e um, meu album reunia as folhas do “Dobrabil”, poesia concreta e marginal, sem ser plaquette. As photos dessa festa, ha quem collecte? Flagraram muita gente: em companhia de Piva a Augusto estive nesse dia, de Néstor a Darcy; trava a pivete. Naquelle dezesepte de septembro, estava eu com visão, de visual barbudo e farda verde, ao que me lembro. Accesso teem as photos, virtual agora, e ja não posso ser um membro da rede que as accessa, a “social”.
Memorias sentimentaes (1982)
Si o “Jornal do Brazil” mantinha sua “Revista de Domingo”, meu fanzine teria um supplemento bem de lua: “Revista Dedo Mingo”, que o define. Sahiram dois fasciculos à rua, mas pouco circularam... Quem assigne tal coisa, ja suppõe: não continua, ainda que algum bolso a patrocine. E duas collectaneas, em tal anno, me saem: “Pueteiro”, um feliz plano, mais o “Linguas na pappa”, concretista. A midia dá registro, me rotula de “marginal à margem”, bella bulla na pillula que douro e que despista. Ser bardo marginal tem parallelo, nos dias que ora correm, com alguem que da peripheria dar nos vem seu proprio testemunho pelo prelo. Não era do suburbio, mas do bello scenario carioca a lyra sem nenhuma ceremonia que detem a marginalidade em seu anhelo. A minha maldicção foi differente, mais autobiographica. Alem disso, sou eu da Zona Leste procedente. Aquillo que me entende encontradiço no rotulo será, provavelmente, a tara à qual estou ‘inda a serviço.
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76 (1983)
Glauco Mattoso
Na imprensa collaboro, do “Pasquim” a zines e gibis e, no extrangeiro, alguns contos eroticos em mim reforçam o papel de punheteiro. Si a tornar-me academico não vim, ao menos fui patrono dum celleiro de bandas de garagem, hoje, emfim, famosas no scenario brazileiro: Foi Madame Satan chamado o bar, no qual todo poeta encontra par num gothico, num punk ou num maluco. Não tenho um companheiro de fetiche, nem quem commigo empatte no pastiche, mas sempre um callo eu piso e um cu cutuco. Fiz minhas amizades pela scena rockeira alternativa paulistana e tive minha chance de sacana ser juncto à molecada que se antenna. Fiz tudo que a moral christan condemna com elles, que aliaz fazem insana idéa da funcção que puritana jamais foi duma bocca torpe e plena. Lambi do punk o chato pé fedido, chupei o pau do gothico garoto, bebi do metalleiro o que vertido foi pela suja rolla. Desse exgotto me lembro vagamente e até duvido que tenha accontescido, ou tudo é ropto.
Memorias sentimentaes (1984)
“Tortura” foi volume na citada serie “Primeiros passos”, pois o thema com sadomasochismo não tem nada a ver, ou tudo tem, na poncta extrema. A coisa pode até ser combinada: prazer e dor fazer podem que gema alguem, e os dois papeis definem cada parceiro, quer na mascara ou na algema. Tortura não é só, da auctoridade, o abuso, que maltracte ou que degrade alguma dignidade nos viventes. Tambem é lei divina, pois o Deus que amamos bem cruel tem sido aos seus devotos, masochistas penitentes. Perverso e pervertido, eu participo, o tempo todo, desse verbo impuro chamado “perverter”. Mas, si sou duro no verso, soffro e faço o falso typo. Eu fodo, arrombo, roubo, estupro e extripo no symbolo, somente, admitto. Juro, comtudo, que quem viu e está no escuro mais sadico é que um “kapo” teuto ou nippo. Cruel e revoltado, meu desejo é ser torturador, mas indefeso, submisso e subjugado é que me vejo. Odeio, mas me humilho e, sob o peso da bota de quem vê, meu malfazejo impulso alvo é do riso e do desprezo.
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Glauco Mattoso
Bandidos todos somos, e até mais que o bruto criminoso, condemnado por roubo ou homicidio. Nosso lado villão, porem, se esconde entre os “normaes”. Por sermos conscientes, racionaes, sabemos nos conter e, em meio ao gado humano, nos portamos. Delegado algum que nos prendesse houve jamais! A sós, na phantasia, é que nós pomos em practica a tortura, a crueldade, e somos o carrasco que não fomos. Eu macto, expanco, estupro! Ao proprio Sade provoco inveja! Os Bacchos, Neros, Momos, Caligulas, eu tranco attraz de grade!
Memorias sentimentaes (1985)
“Calvario dos carecas” foi ensaio historico do trote estudantil. Metti torta colher nesse balayo de gattos e cachorros no Brazil. Provei que a coisa é velha, mas num raio maior do que se pensa: a pueril e sadica cultura fez lacaio do bicho até na Europa do anno mil. Junctei cada relato da tortura imposta ao calourão, que tudo attura levar do veterano na chegada. Deixei para depois meu proprio caso, pois troteado fui com sadomaso intento, revertendo a scena armada. Andando de bengala na calçada, o cego passa em frente duma eschola na hora em que um inquieto rapazola tropeça-lhe na vara e esta é largada. O joven cavallão se desaggrada: na vara pisa, e o cego, como esmolla, que tracte de abbaixar-se onde está a sola, emquanto outros moleques dão risada. O cego appalpa o tennis do estudante. Só falta pôr a bocca sobre o couro. Offega e sente o cheiro do pisante. O peso do vexame e do desdouro lhe passa pela mente nesse instante: Ja velho, tem seu dia de calouro.
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Não fui um fellador profissional nem cobro por fazer esse favor. Mas como homo podolatra, outro egual difficil é encontrar, seja onde for. Até la nos Esteites, onde ha tal mercado que não falta comprador, um livro meu é thema cultural: “Manual do podolatra amador”. Fallei alli dum intimo amiguinho que em sexo iniciara o tal Pedrinho, depois fallei da turma que me pisa. As solas mappeei, ao lamber cada rapaz que procurasse a annunciada massagem que creei para a pesquisa. Massificada está toda massagem holistica que, como a acupunctura, em ponctos energeticos procura curar com scientifica roupagem. Em tudo vejo logo a sacanagem: A planta do pé puz numa gravura e em vez da mão a lingua, menos dura, propuz como systema de lavagem. Creei assim um vivo typo novo: o podofellador profissional. Meu nome andou na má lingua do povo. Ja cego estou, mas não me saio mal: Frieiras mentalmente ‘inda removo do pé de quem me xinga de abnormal.
Glauco Mattoso
Memorias sentimentaes (1987)
O “Manual” tem tal repercussão que, alem das entrevistas no jornal mais sensacionalista, fortes são os toques na tevê, que falla mal. Não perde Hebe Camargo a occasião e abborda com desdem; noutro canal, me dá Sylvio Luiz um saphanão, chamando “vagabundo” um porco tal. Approveitando a deixa, entrei aqui: “Chiclette com Banana”, este o gibi no qual uma columna porca assigno. “Banana purgativa”, um zine punk: alli, sem ter censura que me trunque, deslancho meu estylo fescennino. Cansei ja de fallar, mas pouca gente em mim accreditou. Agora um novo evento patenteia como o povo de la tem seu costume differente. Refiro-me aos Esteites: nota urgente agita as redacções, e eu me promovo, pois, graças, de Colombo, a mais um ovo, estou, faz tempo, nisso experiente. Consiste num concurso de chulé a exotica noticia que, aos jornaes daqui, foi facto extranho, mas não é. Um joven (quinze anninhos) foi quem mais narizes convenceu de que seu pé meresce menos bronca de seus paes.
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Glauco Mattoso
Ja desde a velha decada de oitenta que eu faço do torneio propaganda, mas custa, por aqui, que a coisa expanda seu nivel de interesse, e a marcha é lenta. O patrocinador que, la, sustenta o evento é algum perfume de lavanda ou pinho, que o custeia e aos jovens manda que exhibam a chulapa chulepenta. Moleques cujos tennis tenham cheiro mais podre, e que à distancia o jury o sinta, são fortes candidatos a primeiro. Porem só ganha o premio quem la pincta disposto a ver seu pé cheirado, inteiro, por “velhos” que até tenham mais de trinta. Quando é preliminar, julga a disputa um corpo de jurados bem menor, de appenas trez ou quattro, que o suor do joven acquilata em regra arguta. Ja fui desses juizes: quasi chuta meu rosto um marmanjão, que era o peor chulé da California, um pé maior até que o dum adulto, e expressão bruta. Na sola lhe fucei, e o cara ria emquanto entre seus dedos meu nariz metti, pois desse jeito se advalia. Lhe dei ponctuação que o fez feliz e, appós ganhar o premio, elle queria até me dar seu tennis... E eu o quiz!
Memorias sentimentaes Guardei essa reliquia, e ainda a adspiro, mas ja perdeu o cheiro que ganhara o titulo local. Aquelle cara venceu mais campeonatos, virou “hero”. A scena está bem viva: lhe retiro do pé, bem lentamente, a joia rara que à prancha do skatista se compara, tamanho o comprimento... E quasi piro! Por dentro, aquelle tennis parescia a fossa destampada e envenenada que a gente ja cheirou, na vida, um dia! Bem fundo cafunguei e, para cada quesito, constatei, com alegria, mais podre não haver, em jogo, nada! Quem eram, me perguntam, os juizes que estavam, a meu lado, dando nota a um joven que descalça sua bota, seu tennis, seu sapato...? Astros? Actrizes? Será que elles se sentem tão felizes e honrados quanto eu mesmo? Não denota nenhum delles pedir a quem lhe bota na cara a sola: “Quero que me pises!” São mães, são pharmaceuticos, são, numa local communidade, quem lecciona, quem treina, e com “teenagers” se accostuma. No meio delles, claro, está um cafona e sobrio funccionario, que não fuma, só vende seu Advanço ou seu Rexona.
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Glauco Mattoso
No tempo do “Chiclette com Banana”, gibi no qual fui sujo columnista, fiz sobre o caso um texto, a que a revista deu optimo destaque e um ar sacana. Lidissimo na zona suburbana, por toda uma gallera de skatista, rockeiro e fanzineiro, está na lista dos “classicos” o artigo que me uffana. Por causa do relato, ainda sou, às vezes, convidado, mas ja não viajo: cego e triste, perco o show. Anima-me, entretanto, que um pezão fedido ‘inda concorra, e agora estou torcendo pela nova geração...
Memorias sentimentaes (1988)
No emballo do gibi, peguei carona no rock e, alem das lettras que compuz, dei officinas onde se lecciona a forma e cada norma se traduz. Na “Estrada do rockeiro” se ambiciona appenas resumir a breve luz na scena onde uma Ritta foi Madonna e um Elvis a um Roberto se reduz. Chamei “Rockabillyrics” a selecta na qual a longa lettra se interpreta no espirito das velhas, boas eras. Algumas musicadas foram, mas, em disco, appenas pouco tempo faz que estão gravadas por da scena feras. Tambem de sapatão fiz collecção, tal como a Ritta Lee, mas só pisante usado por quem batta o pé bastante no baile funk ou neste, de rockão. Aqui vou reparando que quem não calçou o maior numero garante calçar quarenta e quattro e que, durante a dansa, em quem se accerca dá pisão. Então vou me chegando e ja me deixo chutar, levar uns coices com o salto e, quando caio ao chão, um pé no queixo. Depois proponho ao cara: si mais alto não for o preço, eu compro, e nem me queixo, a bota que elle ralla pelo asphalto.
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Glauco Mattoso
Adopto, em “Limeiriques”, a proposta que fez Braulio Tavares: trazer para o verso brazileiro a bem composta quinctilha que, em inglez, mais se excancara: O “limerick” assume, como gosta o bardo nordestino, a mesma cara da glosa fescennina que, em resposta ao motte, faz piada com a tara. Ja no “Jornal Dobrabil” eu compunha, no estylo chordelistico que a cunha, a tal “litteratura de bordel”. Em livro, crystalliza-se o formato e, cada vez que em versos desaccapto, o molde faz da decima o papel. Quem gosta do deboche e do debique na certa gostará do que, em inglez, de “lim’rick” é chamado. Quem o fez aqui bem o chamou de “limeirique”. Ainda que nem sempre eu me dedique a um genero que extranho ao portuguez paresça, fiquei deste mui freguez, segui Braulio Tavares nesse pique. É claro que imprimi na forma a tara podolatra, sardinha à qual eu puxo a braza quando a verve se excancara. Mas pode esse formato ser um luxo synthetico ou syntactico si, para o officio, punhetando-me, extrebucho.
Memorias sentimentaes (1990)
Em mim, o palavrão tão facil flue que fiz um diccionario que traduz, do inglez ao portuguez, tudo que fui junctando, ao sublinhar termos tabus. Marcatti, que exquadrinha minha mui fiel biographia, deu à luz um album, “Glaucomix”, que me attribue a fama, agora em traço, à qual fiz jus. Assim encerro a decada: cegueta ja quasi totalmente, sem que metta no sacco minha erotica viola. Agguardo, doradvante, que a cegueira complete seu serviço quando queira e enfie meu violão na sua saccola. Ha coisas que se comem por costume e algumas que são gosto pessoal. O queijo fedorento é natural, mas todos acham mau o odor do estrume. Ninguem nega nas fructas o azedume. Na conna, só o tarado acceita o sal. “Cock-cheese” é o tal sebinho prepucial. “Toe-jam” é o chulezinho com volume. Só mesmo o americano p’ra dar nomes tão bons a um paladar desse quilate! Ao menos satisfazem minhas fomes! O nosso “guaraná com chocolate” é merda masochista, quanto aos comes, e mijo, quanto aos bebes. Deu empatte.
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88 (1991)
Glauco Mattoso
Emfim apposentado, a invalidez me tira do bancario ramerrão. Teimoso, ainda tento, alguma vez, poemas meus compor, ou em versão. Gibis ‘inda circulam e freguez me fazem de entrevistas, porem não me animo a pensar nelles, e vocês na certa meu desgosto entenderão. Aos poucos retirado, anthologias começam a surgir, mesmo tardias, e fazem-me justiça entre os maldictos. Mas sinto-me incapaz de motivar-me e, como a solidão dá seu allarme, recolho-me, evitando mais agitos. Imagem bem propicia ao autoghetto que imponho, aos poucos, sobre esta roptina de semicego, um olho exhibe, fina nos oculos, a lente em tom de preto. Ainda à transparencia me submetto na lente do olho cuja van retina distingue vultos, como uma londrina neblina, ao rock o thema dum quartetto. Fiquei com uma cara de pirata, até por ser careca no momento daquella condição que me maltracta. Si fui desse skinhead mais violento chamado, nem proveito da bravata tirei: de palavrões só xingo o vento.
Memorias sentimentaes (1992)
Poemas paulistanos, sempre os tive. Alguns delles sahiram em formato chamado “Admostra gratis”, que revive aquelles microlivros bons ao tacto. Haikais, poemas livres... Me mantive fiel a Sampa, a ella sempre grato, ainda que de seu brilho me prive si agora me recolho e amo o recapto. Racistas se approveitam e meu nome fajutam em fanzines: ninguem tome por minhas as versões que a corja imputa. Appenas estudei os que, la fora, chamados de skinheads, andam agora posando de nazistas e indo à lucta. Haikais os fez Guilherme e até Millor, ao jeito brazileiro. Quanto a mim, fecaes os fiz, de cheiro bem ruim, que espelha dum exgotto o mau odor. Si alguem de fossa fetida aqui for fallar, como do thema a fallar vim, de Sampa fallará! Como não? Sim! Por isso duns haikais fui, sim, auctor. Appenas procurei ambientar a merda paulistana no contexto urbano de quem vive sem bom ar. Admitto que me sirva de pretexto à verve escatologica a vulgar piada circulante em oral texto.
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90 (1993)
Glauco Mattoso
A Londres viajei, ja quasi cego, e ainda na sciencia esperançoso. As ultimas imagens que carrego na mente são dum omnibus famoso. Vermelho, dois andares... Quando o pego, lhe subo à “sobreloja”: alli, com gozo, contemplo a paizagem que, não nego, é semelhante a Sampa, um chaos nervoso. Os parques, ‘inda verdes vel-os pude. O gothico, a que tanta gente allude, da torre do Big Ben, o vi nublado. De volta, nada mais me restaria, excepto interpellar Virgem Maria, si nella accreditasse um punk irado. Noventa e trez foi anno de anxiedade. Ja quasi sem visão, em Londres tento buscar num oculista algum alento, mas tudo em vão. La vem fatalidade! Sem rei nem roque, andei pela cidade e, em vez dum quadro lugubre e cinzento, vi cores, da abbadia ao parlamento. Vi parques e palacios pela grade. Um omnibus vermelho, em dois andares, levou-me à extranha feira na avenida e ao pub, em nada egual aos nossos bares. Na feira, comprei bota ja lambida. No bar, bebi cerveja com meus pares, pessoas que uma vez só vi na vida.
Memorias sentimentaes Vermelho, dois andares, abbahulada cappota e direcção do lado opposto ao nosso: este o busão que, da calçada londrina, advisto. Estou à chuva exposto. Embarco e, pela estreita e curva escada, alcanço o andar de cyma. Com que gosto me sento, a contemplar esta nublada cidade, onde o rockão fora composto! Um omnibus foi magico, e não só à banda que fez delle seu xodó: tambem meu coração saudade sente. Agora me disseram que abolido seria o vermelhinho, mas duvido que alguem possa appagal-o em minha mente. De telephone eu tenho um apparelho antigo, em tom berrante de vermelho. Amigos mais discretos dessa cor me dizem que é “Ferrari” no seu tom, que a Casa Branca ou Batman faz suppor. A bicha, mais sincera, nem relucta ao ver aquelle brilho de tomate, e nem me expanto caso o phone tracte, no sarro, como sendo “estylo puta”. Emquanto da cegueira eu tinha horror, ainda vendo um pouco, justo com aquella cor senti-me perdedor. Meu olho o rubro ao cinza fez parelho bem antes de sumir-se-me no espelho.
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Glauco Mattoso
Na falta da leitura e da graphia, voltei-me para a musica, onde, ao lado do Portuguez, que toca batteria, fundei a Rotten Records, um achado. Foi Rotten porque Podre ja seria o Pedro, mas tambem pelo passado do Johnny. O Portuguez é quem mais via nos seus Garotos Podres um recado. Lançamos varias bandas em cedê e, emquanto nada nisso a midia vê, a gente accreditava em nosso sello. Aquillo me adjudou a superar a phase em que, na falta do que olhar, se escuta, e o rock até me eriça o pello. Ter muito livro em casa dá problema. Depois que toda a estante fica cheia, deitado vae por cyma, e deixa feia a estreita pratteleira em que se exprema. E logo nos assalta o tal dilemma: por onde começar? Até que leia a bibliotheca inteira, vida e meia terá passado em meu calloso thema. Somente a poesia pouco espaço occupa e economiza na lombada centimetro tão caro quanto excasso. Poemas visuaes, então, vão cada vez mais alto, p’ra longe do meu braço, pois delles ja não posso gozar nada.
Memorias sentimentaes De todos os poetas que ja li, bem poucos a ler volto. Minha estante é minima: si chega um livro aqui, só fica quando é classico o bastante. Dos novos, um ou outro: “parti pris” não é, mas quando surge um novo Dante, algum Petrarcha, um Belli, um Valéry, Rimbaud, Verde ou Drummond que nos encante? Leoni, Emilio, Tigre, Cruz, Delphino, Martins Fontes, Guilherme, Auta, Faustino, Francisca, Gilka, Leila... Arrhumar como? Mixturam-se as lombadas. Por tamanho se ordenam... Mas espaço, mesmo, eu ganho si egual ao do Dos Anjos for o tomo. Ouvi, quando passava na calçada: a joven voz, sarcastica, de estallo repicca, martellando seu badalo prophano, gargalhando, debochada. Risada de moleque, mas marcada ja pelo tymbre adulto. Ando e bengalo, sabendo que dou gozo e, ao provocal-o, me sinto reduzido a caca, a nada. De mim falla o rapaz ao seu collega: “Tá vendo aquelle la, cara? Que sarro! Ficou cego! Ou tropeça, ou excorrega!” Os dois ficam torcendo, e quasi exbarro no poste. Sei que a mão elle até exfrega na rolla, quando atolo o pé no barro.
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Glauco Mattoso
Appós a derradeira tentativa, o globo que restava inteiro implode. Alem da má visão, da qual me priva, agora a hemorrhagia é o que me fode. À verdadeira dor, que é ja afflictiva, eu sommo a dor da perda, e não me accode ninguem com qualquer droga lenitiva que impeça que a tortura me incommode. Maldigo a medicina, em que meus paes ainda confiavam, pois jamais me conformei com tanta incompetencia. Talvez seja “impotencia” o termo certo: embora seja o medico um experto, precaria é sempre a droga da sciencia. No Dia do Glaucoma, a midia illude o ouvinte e até o leitor, ao dizer: “Quem a cego ficar chega é quem não tem cuidado bem dum olho com sahude...” Alguns advisam: “Desde a juventude a sua pressão meça e, quando vem signal de que augmentou, se tracte! É bem possivel evitar que a sorte mude...” Mentira! Eu, de nascença, sei que tinha glaucoma! Me tractei, collyrio usei a vida inteira! Acaso a culpa é minha? Fiz varias cirurgias! Não falhei em nada! Segui tudo que a mesquinha sciencia disse! Ah! Tive azar, ja sei!
Memorias sentimentaes (1996)
Passado o maior trauma, verifico que amigos que eu suppunha serem meio chegados dão o fora: pago o mico de ter accreditado no hombro alheio. Sozinho em meu apê, me mortifico na idéa de entregar-me a um cara feio, fedido, sujo e bruto, e, desde o bicco da bota até seu pau, lambo e tacteio. O cara pode, às vezes, tomar forma concreta entre as visitas: qual a norma capaz de me filtrar só gente boa? Um cego não excolhe quem recebe. Si o cara rouba, macta, fuma ou bebe, de mim faz o que quer: me fode e zoa. Masturbo-me ‘inda muito, mas agora contento-me com tennis ou com bota da minha sapateira. Foi embora, faz tempo, o ultimo par da alheia quota. Si alguem fosse jogar um tennis fora, pedia eu, pagava até uma nota e o cara perguntava: “Você adora chulé de tennis podre?” Que chacota! Eu pouco me importava com o sarro: queria era gozar com meu bizarro prazer de quem fareja odor de queijo. Mas hoje ja não peço: só si alguem quizer presentear-me com um bem podrão, é que aggradesço e o pé lhe beijo!
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Telephonema anonymo. “É o Mattoso?” Confirmo. O cara brinca com a voz. Primeiro imita bicha e affina. Appós, engrossa, offende e zoa em tom raivoso. “Ja li seu livro! É lindo!”, diz, baboso. E logo se transforma em meu algoz: “Você não é um careca como nós! Seu noia! Cheira-meia! Trava! Bozo! Vem ca, vem! Vem lamber! Me lambe a bota! Vem ca chupar meu pau! Seu porco! Puto!” Vomita zorra bruta e a raiva arrocta. Não corto nem respondo. Attento, escuto, até que elle desliga. Foi um ota. Mal sabe que do abuso oral desfructo! Achou-se, emfim, o filme que commigo foi feito annos attraz: a scena pega, em close, minha lingua, que se exfrega na sola duma bota, e as ordens sigo. O actor, que a calça, entrou por ser amigo do proprio director e meu collega de penna, não de pena. A vista cega não tendo, elle relaxa e eu, só, me obrigo. A camera empunhando, o director exige: “Passa a lingua, Glauco, passa de novo! Agora! Assim! Sente o sabor!” E eu raspo, na borracha, esta devassa e grossa posta: aguento o azar, a dor, ao passo que os dois jovens acham graça.
Memorias sentimentaes (1997)
Paresce a minha vida sem sahida, restricta entre a cegueira e o som rockeiro. Mas eis que, de repente, me convida um sabio professor para parceiro. De Borges traductor me vi, na lida: meu par é Jorge Schwartz, um verdadeiro amigo. Nossa lavra consolida, na obra, aquelle titulo primeiro: “Fervor de Buenos Aires” nos rendeu, alem dum Jaboty, na mesa o meu primeiro e salvador computador. E Borges revelou-se mesmo um bruxo: a mim sua cegueira foi cartucho guardado, que me inspira e dá vigor. No tempo do “Dobrabil”, uma phrase dizia que os concursos eu venci todinhos... O segredo é bom que vaze: experto, em nenhum delles me inscrevi. Torneios litterarios, nessa phase, como este, badalado, agora e aqui, ja eram marmellada pura, ou quasi: se salva algum Nobel ou Jaboty. Os votos nunca vão para quem sae por sello independente e faz haikai, quadrinha, “limeirique” ou grossa glosa. Mais ponctos só recebe, de quem julga, a casa que publica e que divulga, jamais a lingua suja e pegajosa.
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Ha premio que é melhor si não foi ganho! Si a lista finalista inclue o cara de estylo tosco e espirito tacanho que, quando era editor, me boycottara, ou si, na commissão, for o tamanho dos membros menor, quando se compara ao meu e ao de qualquer que seja extranho àquella panellinha tão preclara, emfim, si rolla grana, o favorito é algum appadrinhado, e não maldicto, ou, quando é só o trophéu, algum novato. Portanto, eu, que escholado estou no ramo, mais lucro si homenagens não programmo e a premios taes jamais me candidato. Devido a serio trauma que soffri, sahindo à rua, dia desses, quero pedir perdão a todos, mas daqui por deante, a quem chamar, serei sincero: Não topo! Não acceito! Recupero a tal “privacidade”: resolvi ficar em casa! A chance é egual a zero que eu saia, até si ganho um Jaboty! Pensando bem, ao premio eu comparesço, sinão paresceria desappreço por uma estatueta honrosa e rara. Mas, como tal hypothese affastada está, posso dizer que não, que nada me leva, então, na rua a pôr a cara.
Memorias sentimentaes (1998)
Fallante, meu systema digital permitte que uma tecla, ao ser tocada, aquella lettra cante em voz normal, voz de homem ou mulher, conforme cada: Maiuscula é de macho, por signal; minuscula a de femea. E digitada passou a ser a obra marginal que estava, desde muito, engavetada. Achei que, resgatada, a poesia ja feita anteriormente é que valia por saldo positivo duma phase. Mal posso imaginar o que me agguarda! Si achei que algo que fiz seja vanguarda, esperem só, que a bomba ja está quasi... São quattro ou trez as folhas que, num trevo, tacteio? Quantas ponctas tem um xiz, um ypsilon? Percebo os seus perfis bastando-me appalpar-lhes o relevo. O braille é, pois, inutil. Por que devo achar que aquelles ponctos imbecis são lettras? Poncto é poncto! Eu nunca quiz, por isso, usar o braille quando escrevo. Usei, por algum tempo, uma prancheta com lettras imantadas: no confronto é como comparar penna e canneta. Ao micro me refiro: agora, apprompto um texto num instante! E não se metta ninguem a vir com braille! É poncto, e poncto!
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Com odio fico quando acham que leio usando o braille! Cego totalmente fiquei ja quarentão! Lendo com lente ainda estava! Odeio braille, odeio! Ao cego de nascença exsiste um meio de se alphabetizar: o braille a gente acceita, neste caso! Mas não tente alguem me convencer que é bello o feio! Recordo-me das lettras: teem seu traço de recta e curva feito, não de poncto, que nada significa e que eu rechaço! Passar o dedo em ponctos, que eu nem compto, de tantos que são, frustra! Cansa o braço! Só noto que um inutil jogo eu monto!
Memorias sentimentaes (1999)
Me veiu sem adviso: appós o gozo nocturno, entre uma insomnia e um pesadello, percebo que a memoria é poderoso recurso e que preciso conhescel-o. Succedem-se os sonnettos: volumoso paresce ser o veio... Em breve, o sello Sciencia do Accidente dum Mattoso febril publica a praga, o berro, o appello: Entre uma “Centopéa” e uma “Geléa de rococó”, completa “Paulysséa ilhada” a trilogia que hei creado. Começa a nova phase, que não finda nos mil, nem nos dois mil, pois muito ainda virá calar quem quiz me ver calado. A gente quer parar, mas não consegue. Sonnetto é vicio bravo, como a droga, o fumo, a compulsão de alguem que joga ou bebe, até o diabo que o carregue. A cada qual que accabo, outro se segue e os versos anteriores não revoga. Tentei esporte, spa, dieta, yoga, mas é feito uma fé que o crente cegue. Passei dos quattrocentos, e outros tantos não sei si attingirei. São muitos centos! Opero mais milagres do que os sanctos! Primeiro, em CENTOPÉA, fiz nojentos. Depois, em PAULYSSÉA, cantei canthos. GELÉA não bastou. Quantos tormentos!
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Glauco Mattoso
Publico “Panacéa” e ja preparo um disco só de lettra musicada. Mas algo em minha vida fica claro: sozinho, tanto verso vale nada. Poetas querem musa, que, não raro, seria a propria esposa, a propria amada, alguem com quem conviva e que elle, avaro, possua para si e jamais se evada. Um cego só teria tal parceiro si fosse mago, bruxo ou feiticeiro, ou tenha, dos espiritos, a adjuda. Paresce ser o caso, pois, mal vira o seculo, um nisei chamado Akira me chega, feito um anjo, e a vida muda. Chegando ao meio seculo de vida, me achava, feio e cego, na desdicta. Agguardo, em vão: não veiu mais visita. Paresce o appartamento muda hermida. Com Borges tanta coisa é parescida! Fui bibliothecario; deixo escripta a saga inaccabada. Agora dicta quem antes annotava, e a consolida. Que tudo coincide, quem diria? Si alguem for meu biographo, confira: cegueira, poesia, bruxaria... Effeito que o feitiço não surtira, emfim surtiu: ja tenho companhia. Em vez duma Kodama, meu Akira!
[2] QUATTROLHO OITAVADO POEMA HEROICOMICO de José Pedra-Ferro
CANTO PRIMEIRO
Memorias sentimentaes I:1
Desarma-se um varão assignalado por nata praga ophthalmica e se damna luctando a vida toda contra o fado cruel e irreversivel que um sacana decide ser cantavel e gozado a poncto de valer camoneana parodia e ser satyrico, com arte poetica, que só do azar faz parte.
I:2
Sacana sou eu mesmo e o tal varão nasceu glaucomatoso, porem só cegou de todo quando quarentão. Cantar-lhe a vida aqui quero, sem dó, de forma a que os leitores, com tesão, me adjudem a gozal-o qual si a mó movesse o mais pathetico Sansão, perante debochados philisteus que appenas Baccho querem como deus.
I:3
Pedrinho era chamado esse menino de olhão arregalado e azeda cara. Brincando na calçada, eu o defino, sem erro, como um mongo, e alguem compara a um pobre retardado, genuino lunatico, a correr, brandindo a vara que pensa ser espada ou espingarda mortal contra um villão que se accovarda.
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I:4
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Soffrendo, desde cedo, de myopia, só vultos enxergava, pois ainda nem oculos usava e pouco via. Correndo, tropeçava e, dessa linda imagem toda a turma zombaria fazia: extatellando-se, bemvinda seria a poça d’agua, ou antes, lama na qual mergulha um corpo e se exparrama.
I:5
Bemvinda à molecada aquella scena seria por si mesma, mas mais era por causa duma tactica pequena: a casca de banana em que, pudera, um cego que excorrega se condemna ao comico accidente ante a gallera. Casquinha se tirou que, no caminho jogavam, os moleques, do Pedrinho.
I:6
Mais tarde, alphabetiza-se o Pedroca nos olhos encostando, quasi, a grossa chartilha, em cujas paginas colloca dejectos um collega e a classe troça da cara que, de nojo, bem evoca esgares dum palhaço ante uma fossa. Pedrim ao riso presta-se na sua tristeza e quasi ao caso se habitua.
Memorias sentimentaes I:7
Em annos posteriores usa ja seus oculos de lentes garrafaes. Usal-os não queria, mas não dá mais para ser do contra, e accapta os paes. Maior vontade, então, provocará, naquelles que taes oculos jamais terão de usar, de abusos practicar às custas de quem teve tal azar.
I:8
Descreve, em outros versos, o poeta a practica abusiva que supporta Pedrinho emquanto ainda não completa effeito o seu glaucoma, em linha torta escripta pelo Alem, na mais abjecta das sagas, com que o Demo nos exhorta ao gozo impiedoso da desgraça alheia, pela lyrica devassa:
I:9
{Appenas vultos vejo, e se approveita Tampinha, que me applica uma rasteira.} (do proprio esta versão creio insuspeita) {-- Olé, cegueta! Olé! -- Pela canseira me vencem: no chão fico. -- Agora deita! Rasteja! Agora rolla! Beija! Cheira! Na cara me cutucam, fazem isca. Canino, meu focinho os pés mordisca.}
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112 I:10
{Descalço, só o Tampinha. Está o Dirceu de chanca, uma chuteira bem plebéa.} (assim sua versão Pedrinho deu) {Tampinha, o tempo todo, faz tetéa, bilu, com seu dedão, de encontro ao meu carnudo beiço, aos gritos da platéa. Divertem-se os moleques, no improviso, e eu tento obedescer, tendo juizo.}
Glauco Mattoso
CANTO SEGUNDO
Memorias sentimentaes II:1
{Ao menos é mais fofo um pé descalço que o bicco dalgum Conga ou dum Rainha...} (do Pedro é o testemunho que eu realço) {A sola exbofeteia e vira a minha bochecha para o lado. Um passo em falso meu olho vazaria, elle adivinha. E brinca com meu medo. Eu que relucte, e nada impedirá que elle me chute.}
II:2
{Fixei tão fortemente esse formato pedal, que para sempre ficará. Tampinha, eu sei, vergonha do pé chato sentia, mas agora alegre está, me vendo alli debaixo, dando um tracto.} (assim sua versão Pedrinho dá) {Me manda, então, lamber, e sente tanta delicia, que Fernando até se expanta.}
II:3
{- Vae, lambe! Passa a lingua bem no meio dos dedos! Sente o gosto! Vae, ceguinho! -- Tá vendo? O veadinho é cego, é feio, mas chupa direitinho!} {Eis que, a caminho do bosque, elles me levam a passeio.} (assim sua versão nos dá Pedrinho) {Por entre os eucalyptos, mais devassa será a sessão que as rollas arregaça.}
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II:4
{Calado até o momento, então proponho: -- Tá certo! Eu vou chupar bem caprichado! Confesso, não sou virgem, pois no Tonho ja tinha practicado: para aggrado do Nando, esse é o boquette do seu sonho.} (Pedroca aqui masoca expõe seu lado) {Formada a roda, o Nando é quem commigo vem ter logo de cara, e eu bem o instigo.}
II:5
{Abbaixa seu calção, e ja pentelho exhibe em toda a volta do caralho. Na frente do Fernando eu me adjoelho.} (Pedroca evoca o algoz menos pirralho) {Me affasto ante o fedor. O rapazelho me intima. Sinto nauseas, mas trabalho. E, emquanto o Nando masca seu chiclette, eu lambo uns floccos, antes do boquette.}
II:6
{Mas tracto de chupar, pois quanto mais depressa elle gozar, mais cedo accaba. -- Engole, cego, engole! -- urra o rapaz. Fernando exporra, uivando, e ja se gaba: -- Olé! Gozei! Olé! Não sou demais?} (Pedrim a galla sente em meio à baba) {Nem cuspo: não me attrevo. Si na lama chafurdo, engulo... e a porra se derrama.}
Memorias sentimentaes II:7
{Dirceu quer que eu chupite, como fiz na lancha do Tampinha, o seu dedão. Com nojo ou não, farei o que elle diz.} (Pedrinho expõe assim sua versão) {-- De lingua, cego porco! Anda, infeliz! Dá banho no chulé, filho dum cão! Me abbaixo e lambo, feito um animal (menor que o do Tampinha), um pé normal.}
II:8
{-- Ja chega, cego! Agora chupa aqui! E empunha um membro grosso para a edade. Depois que engulo a porra, elle sorri com sadico prazer, e persuade um cego a degluttir o seu xixi.} (tudinho diz Pedrinho que é verdade) {-- Aguenta ahi, veado! -- E a bocca escrava, servindo de latrina, se deprava.}
II:9
{Urina entra, a jorrar. Salgada e quente, me engasga e, ao bando, é motte à gargalhada. Da porra o gosto é muito differente. -- Ahi, ceguinho! Bocca de privada! E, appós mijar, prazer completo sente.} (veraz é, de Pedrim, a versão dada) {Tesão? Somente allivio? Eu, quieto, acceito a bimba me bombando em bom proveito.}
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{Tampinha tambem mette e vae bombando, fazendo-me mammar. Tranquillo, aguento um penis bem menor que o do Fernando.} (do Pedro este ĂŠ o cabal depoimento) {-- Valeu, Tampinha! -- applaude, em khoro, o bando. Ainda lhe degusto o pau sebento. Tampinha exhibe orgulho e me encabula: um tapa eu levo, alem da expressĂŁo chula.}
CANTO TERCEIRO
Memorias sentimentaes III:1
{-- Gostou, cegueta? Espera, que eu excarro na sua bocca suja! Vae abrindo! Mixturo à minha baba o que o cigarro deixou naquellas boccas: um malvindo sabor, que ‘inda me ennoja emquanto narro.} (do Pedro o testemunho assim é findo) {Percebo que a sessão ja se encaminha ao termino: ouço a voz duma vizinha.}
III:2
Ouvindo da mulher a voz, o gruppo liberta seu refem alli no matto. Pedrim, agora, pensa: {Ja não chupo aquelles pivetinhos, mas do chato pezão, ao punhetar-me, só me occupo emquanto o phantasio, pelo tacto, mexendo em esculpturas que alguem queira trazer-me à mão, lavradas em madeira.}
III:3
Ex-votos são as peças que o ceguinho agora collecciona, mas nenhuma tem forma egual ao fetido e excarninho pé chato em que o fetiche se consumma: mais curto o “pollegar” que seu vizinho, o artelho “indicador” e, ja na bruma do tempo uma figura se evapora, o vulto do Tampinha, vago, agora.
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III:4
Voltando ao semicego adolescente, sahindo do “primario”, Pedro enfrenta seus annos de “gymnasio” e se resente do augmento da myopia que, agourenta, precede uma cegueira permanente. Ao longo desses annos, o que augmenta, tambem, é seu ridiculo papel perante os que excarnescem de seu fel.
III:5
{Medalha não recebo ao concluir o curso, como fora no primario. Agora o que mais quero é me assumir perante os que me tractam como hilario...} (Pedrinho falla em Sylvio, Osmar, Valdir) {REVOLVER sae, dos Beatles. Mas dispare-o você na minha bocca, em sonhos peço a algum collega, até fazer progresso.}
III:6
{Somente um delles foi mais companheiro} (assim, ao sonnettar, Pedrinho narra) {a poncto de eu poder sentir-lhe o cheiro das meias só por bem, sem ser na marra...} Mas mesmo num “namoro” passageiro terá que excancarar sua boccarra o Pedro à fellação do pau que goza, num cego, mera tara caprichosa.
Memorias sentimentaes III:7
-- Pedrinho, chupa aqui, sinão nem deixo você lamber meu pé -- diz, certa feita, um typo mais gaiato a quem desleixo não falta e que dum cego se approveita sem culpa nem remorso, cujo queixo erguido fica quando se deleita mettendo o pau na bocca dum garoto que seja cego, ou surdo, ou só canhoto.
III:8
Depois que do gymnasio Pedro sae, em vez do “scientifico”, procura o “classico” e estudar humanas vae, advesso à mathematica, tortura da qual sempre fugiu, como seu pae. Mas, em compensação, litteratura será, mais tarde, a sua vocação, embora saiba como as coisas são.
III:9
No classico, estudou desde latim até philosophia, alienado daquillo que occorria de ruim nas ruas do Brazil, de cada lado, à esquerda ou à direita, com Caim mactando Abel, peão contra soldado. Indehiscentemente, Pedro assume, das botas oppressoras, o costume.
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Glauco Mattoso
O sadomasochismo que, latente, afflora totalmente no porão dos predios militares, de repente se appossa dum Pedroca com tesão da pelle à flor, tesão que o joven sente pensando, em cada bota, num pezão egual ao que, no tennis dum collega, quer lingua que se entrega e a sola exfrega.
CANTO QUARTO
Memorias sentimentaes IV:1
Pedrinho, que ao ridiculo se arrisca, expreita o vestiario do collegio. Seu faro ronda os tennis, que são isca cheirosa aos fetichistas, como rege o padrão das perversões, que segue à risca. Anxeia, attento, pelo privilegio de alguns delles cheirar, lamber por fora, por dentro, em cyma, embaixo, o bicco, a espora...
IV:2
Embora não confesse o facto em sua fugaz biographia, Pedro passa, alguma vez, por algo que o accua flagrado que foi quando, por mordaça, na bocca um tennis punha que, da rua, poeira accumulava e, suadaça, a meia dentro tinha, admassadinha, pedindo que alguem cheire essa morrinha.
IV:3
O dono do pisante, de surpresa, pegou Pedrinho quando este suppunha estar alli sozinho: eis que, indefesa, a tara do rapaz tem testemunha sarrista que lhe flagra a rolla tesa! Pedrinho, o Sneaker Licker, ganha alcunha peor que a de Ceguinho ou de Veado, pois micos pagará, chantageado.
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IV:4
Ouvindo, do marmanjo, a gargalhada, ainda tenta Pedro disfarsar. Inutil, pois agora não ha nada que possa allegar, para seu azar. Assume, vexadissimo, o que aggrada ao faro e ao paladar: a popular palavra, a sua “tara”, que daria ensejo a um pappo franco em putaria:
IV:5
-- Ahi, Quattrolho! Gosta de chulé? -- Pois é, cara, confesso que é meu fracco... -- Chupar rolla, cê chupa, tambem, né? -- Ja tive que chupar, mas acho um sacco... -- Então o seu negocio é chupar pé? -- Por isso é que me escondo e nunca attacco... -- Não tem excolha! Ou paga em grana, ou paga chupando rolla, cego! É sua praga!
IV:6
Pedrinho o meio termo negocia com Claudio, que tem pé quarenta e trez e calça aquelles tennis que phobia provocam em quem seja mais freguez de talcos e perfumes que de orgia podolatra: dar, uma vez por mez, um troco e uma chupada em sua picca, mas outro poncto certo tambem fica.
Memorias sentimentaes IV:7
Consente Claudio, alem da fellação que Pedro lhe faria mensalmente e alem duma mezada em sua mão, que o cego o pé lhe lamba, mas na frente dos outros marmanjões, que exigirão identico tributo. Pedro, quente sentindo a orelha, a face, compromette a sua honra e em todos faz boquette.
IV:8
Do cego a fama corre, mas não dava mais tempo para a má reputação fazer maior effeito, pois estava o curso em seu final e, em breve, não poria o pau ninguem na bocca escrava. Talvez, porem, alguns delles terão do cego a mais ridicula lembrança, pois nunca de gozal-o alguem se cansa.
IV:9
O proprio Pedro lembra-se de quando nos tennis dos marmanjos dava um banho de lingua, a deslumbrar-se, babujando naquelles pés enormes, do tamanho de athletas do baskete ou de quejando esporte, embora a todos fosse extranho alguem que tem mania assim tão suja e em lanchas taes, sem nojo algum, babuja.
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130 IV:10
Pedrinho viajou, por certo, nessa pirada phantasia, mas, em breve, terá mais uma chance, rica à bessa em typico sadismo, quando deve prestar vestibular e se confessa disposto a achar um curso bem mais leve que lettras ou direito: a profissão de bibliothecario excolhe, então.
Glauco Mattoso
CANTO QUINCTO
Memorias sentimentaes V:1
Diz elle em seu sonnetto, linha a linha: {Chegando à faculdade, me deparo, ao vivo, com o trote. Não na minha, (a bibliotheconomica, onde é raro) porem na engenharia, alli vizinha. Calouros nesse tempo pagam caro.} Refere-se ao Mackenzie o semicego e é disso reportar que me encarrego.
V:2
Prosegue Pedro e, em versos, escrevinha: {Um typo de engraxate, ao desamparo, os fazem performar: um delles tinha que abrir seu paladar ao gosto amaro e usar a lingua em vez da flanellinha! A scena me desperta o velho faro.} Pedrim então decide, disfarsado, soffrer qual fosse ovelha desse gado:
V:3
{Disfarso-me de bicho e, noutro dia, mixturo-me aos demais, até ser pego. Agora virei alvo da folia! Engraxo o veterano mais labrego, lambendo-lhe a poeira que cobria os tennis. Mas, fingindo, peço arrego...} Assim foi troteado o intromettido, cumprindo, em parte, aquillo que tem lido:
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V:4
Glauco Mattoso
Chinellos ao “doutor” levar na bocca; lamber-lhe os pés descalços e o sapato; gannir de muita dor; graça, achar pouca. Lattir, abbannar rabo e ‘inda ser grato; rosnar jamais; bem alto e com voz rouca jurar que é “bicho” e escravo dum pé chato. Não foi numa republica o occorrido com Pedro, mas da rua ante o ruido.
V:5
Depois da experiencia, Pedro para, durante certo tempo, de buscar taes opportunidades para a cara metter sob algum casco cavallar, porquanto novamente se depara com uma cirurgia de ocular urgencia que, entretanto, mal addia a perda da visão, breve ou tardia.
V:6
Emquanto ainda enxerga, pouco e mal, Pedrinho experimenta o que consegue fazer um burocratico e normal bancario em horas vagas, caso entregue seu caso a Zeus: theatro marginal e tudo onde admarrar possa seu jegue. Poeta marginal tambem se torna, martello se alternando com bigorna.
Memorias sentimentaes V:7
Publica algumas obras, na gaveta conserva algumas outras, mas é cada vez menos roptineiro o que um cegueta consegue produzir e quasi nada compensa as phantasias da punheta e um verso não reflecte uma exporrada. Pedroca se apposenta com precoce edade, em meio à insomnia, à dor, à tosse.
V:8
Os ultimos momentos de visão destinam-se às leituras, mas somente depois da cabal perda é que serão narrados em detalhe e a toda gente um cego se revela, qual Sansão, capaz de ser escravo efficiente, fazendo-se palhaço, ante a platéa risonha, na comedia philistéa.
V:9
Assim é que Pedrinho dizer pode: {Appós a derradeira tentativa, o globo que restava inteiro implode. Alem da má visão, da qual me priva, agora a hemorrhagia é o que me fode...} Pedrim à medicina não se exquiva, mas nada impede o advanço do glaucoma e dor nervosa à dor mental se somma.
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Glauco Mattoso
Pedrinho põe na salla mais um bode: {À verdadeira dor, que é ja afflictiva, eu sommo a dor da perda, e não me accode ninguem com qualquer droga lenitiva que impeça que a tortura me incommode...} E, em pouco, cede ao fado e se captiva. Aos “normovisuaes” é, vez mais cada, um cego bom motivo de piada.
CANTO SEXTO
Memorias sentimentaes VI:1
Eis como a narrativa desembocca aqui, sendo motivo de piada um cego que, assumindo-se masoca, compensa o soffrimento e, emquanto aggrada ao sadico leitor, recebe, em troca, na cara um pé com callo, unha encravada, chatissimo, expalhado, de dedão mais curto, e chulepento em cada vão.
VI:2
Tão logo fica cego por completo, Pedrinho vae sentindo a differença com que será tractado, sem o affecto dos paes, ja fallescidos, sem a crença em velhas amizades, no dilecto parceiro que lhe falta. Appenas pensa em como se virar, morando só, comptando com quem delle tenha dó.
VI:3
Dinheiro, ganha pouco, apposentado, por ser “invalidez” a condição do cego e, ao telephone, do outro lado da linha está um collega entre os que são, ainda, funccionarios que do Estado recebem. Quando Pedro as magoas chora, o “amigo” põe as garras para fora:
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Glauco Mattoso
VI:4
-- Você não vê mais nada, então? Nadinha? -- Não, nada... Estou fodido, amigo... É foda! -- Caralho, cara! Ainda bem que a minha visão tá melhorando! Me incommoda até ter de usar oculos, e eu tinha! -- Você tem sorte! Tudo, à minha roda, é treva! Ouço que as vozes teem um ar de quem me diz: “Tem mais é que chupar!”
VI:5
Gargalha, ao telephone, seu collega: -- Você tem que engolir, cara! Não tem mais jeito, cara! A sua sorte é cega! -- Si estou fodido, engulo, claro! Alguem me disse que é na bocca, e ninguem nega... -- Disseram certo! Chupa, cego! Sem ter pena é que lhe digo, meu querido! -- Eu sei... Si cê tá rindo, eu nem duvido...
VI:6
Em outras ligações, mesmo teor se nota nos dialogos, tal qual naquelle em que seu interlocutor lhe diz: -- Minha visão está normal, ainda bem, não acha? Nem suppor eu quero, um dia, estar num barco egual! -- Nem queira, mesmo, estar no meu logar! -repete Pedro -- Eu tenho é que chupar!
Memorias sentimentaes VI:7
Ainda versejando, de cabeça, Pedrim alguns sonnettos faz e conta, rhymando, o que se espera que accontesça com quem perdeu a vista, andando à tonta. Num delles, a conversa é bem travessa, ao Chaves imitando a velha affronta que soffre quando escuta da Chiquinha a phrase, na mão tendo ella o que tinha:
VI:8
-- Eu tenho um pirolito e não te dou! Tentando apparentar que lhe desdenha o doce, Chaves falla: -- Eu nem estou ligando! Ja chupei o meu! Nem venha com essa ladainha, que não sou guloso... -- Mas Pedrinho dera a senha à turma de moleques que se aggruppa em volta: -- Ja chupou, ceguinho? Chupa!
VI:9
{Mas, para uma pessoa que está cega, preenche o mais difficil dos quesitos, (Pedrinho, num sonnetto, assim allega) por causa dos dialogos, escriptos com mão de mestre e amor de quem se appega!} Endossa Pedro todos esses mythos e, como um cego nunca será rico, faz parte da “gentalha”, diz o Kiko.
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O filho da Florinda é o mais perfeito dos symbolos aos quaes Pedro associa as novas amizades que “do peito” não podem ser chamadas, pois, um dia, algum daquelles Kikos seu defeito explora com authentica euphoria, propondo brincadeiras que um adulto encara como ao Demo feito um culto.
Glauco Mattoso
CANTO SEPTIMO
Memorias sentimentaes VII:1
Ao joven que, mimado, tennis calça de griffe e tem pezão quarenta e quattro, difficil é suppor que seja falsa, dos paes, tanta riqueza e só theatro montasse a burguezia, quando a valsa transforma-se em som funebre e num atro scenario elle mergulha ao ver que os paes fallescem e ja mimos não tem mais.
VII:2
Na vida solto, Kiko cedo faz, às bichas, michetagem, para ter dinheiro ganho facil, que o rapaz precisa achar no bolso ao perceber um tennis na vitrine, e se compraz calçando o tal pisante, num prazer burguez de consumir tudo que a moda lhe vende e que elle compra ao vender foda.
VII:3
Não tarda, Kiko informa-se, na scena nocturna, que um ceguinho pagaria appenas para a sola que, sem pena, na cara lhe puzessem, lamber. Cria, assim, um bom pretexto e, da pequena mas boa kitchenette, um bello dia, consegue ver-se, à porta, recebido por quem, pela cegueira, está fodido.
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VII:4
-- Então, Kiko, você tem appellido perfeito, pois me lembro de ter visto que o Chaves, certa feita, deu polido serviço em seu pisante... Eu nem despisto, brincando de engraxate, e me decido a disso me fingir, mas querer isto vou: faço, em vez de usar uma flanella, a coisa, com a lingua, bem mais bella.
VII:5
-- Ah, cego, mas o Chaves enxergava! Tá certo que elle estava na peor, mas não que nem você! Si elle engraxava, “saliva era de graça” e com suor ganhava algum ttrocado, mas se aggrava seu caso, si um pisante bem maior você vae engraxar, como este meu, usando a sua lingua: se fodeu!
VII:6
Do Chaves ao contrario, Pedro paga bom preço para a lingua usar por cyma, dos lados e por baixo, sua saga cumprindo por completo, em obra prima de sadomasochismo, expondo a chaga da sua condição, que se approxima da sordida funcção que, qual capacho, exerce quem se humilha aos pés dum macho.
Memorias sentimentaes VII:7
O tennis é lambido lentamente, solado appós biqueira, na borracha, no couro, em cada poncto. O joven sente prazer mais visual que tactil. Acha, comtudo, que o ceguinho, mais à frente, irá chupar com gosto a rolla macha e exporra degluttir, azeda e espessa, baixando e erguendo, aos trancos, a cabeça.
VII:8
Pois Kiko estava certo: mal termina o cego de lustrar na lambeção, a bocca se excancara, qual latrina que agguarda o jacto quente da micção. Ao ver que um cego àquillo se destina, e, emquanto não lhe exporra, um bofetão applica-lhe na cara, vigoroso, sorrindo e prelibando mais um gozo.
VII:9
-- Ahi, ceguinho! Engole! Sente o gosto! Você meresceu isto! Então, não acha? Assim que eu gosto! Estou até disposto a ver como é que um cego mais se excracha comendo a minha merda, ao nojo exposto e à photo que eu batter! -- E ja se aggacha, no piso defecando o duro e grosso tolete, que não sabe ser insosso.
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O cego, que com isso não comptava, até se desespera, mas accaba comendo, a fedentina achando brava. E, louco, embriagado, verte a baba da lingua que, pendente, vira escrava do fetido e rolliço troço. Enraba, emquanto mastigando vae a bosta, até sua bengala, de que gosta.
Glauco Mattoso
CANTO OITAVO
Memorias sentimentaes VIII:1
Marrento e fanfarrão, Kiko expalhara boatos sobre o cego, mas ninguem siquer viu as taes photos que da cara tirou-lhe a comer merda. Está, porem, alguem photographando aquella rara sessão de humilhação, e não é bem o Kiko, e sim um bom profissional do ramo, que as expõe na biennal.
VIII:2
Deixemos que Pedrinho, o proprio, cante: {Photographo famoso elle não é, mas tem valor artistico o flagrante dos typos que, da elite ou da ralé, encontra pelas ruas: o ambulante, a velha, o vendedor de piccolé. Publica, no fanzine ou na revista, aquillo a que, assistindo, não resista.}
VIII:3
{Mas, como si não fosse isso o bastante, tambem produz ensaios, com tripé e tudo: uma bellissima, elegante mulher, que ser disseram, de má fé, “modello”, adjoelhada, no pisante de todos dando um brilho e beijo, até. Teria accontescido bem no centro, dum typico sallão, portas addentro.}
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VIII:4
{Qual engraxataria que não queira servir de estudio à camera do cara, si a moça que alli posa é tão faceira? Junctou povo, e neguinho, que engraxara jamais seu borzeguim, quiz na cadeira sentar, beiço babando, olhar de tara... Foi photo registrando, calmamente, os gestos della, frente a toda gente.}
VIII:5
{Agora, eis a verdade, crua e fria: foi delle, esse photographo, a risada feliz ao lhe contarem que eu perdia, embalde a medicina addeantada, meu resto de visão e a luz do dia ja não me serviria para nada. Nem todos de mim riram, mas quem rira mais franco foi, e aggrada à minha lyra.}
VIII:6
{O auctor de tão fatal photographia foi sadico, é verdade. Mas em cada pessoa é natural essa euphoria. Quem é que não libera a gargalhada ao ver se desgraçar quem tripudia em cyma das desgraças da manada? Vingou-se, justamente, do que eu fiz emquanto ‘inda enxergava e era feliz.}
Memorias sentimentaes VIII:7
{Eu era ovelha negra em poesia e sempre ironizei a sordidez humana. Agora eu proprio me fodia. Gostinho de vingança foi, talvez, aquillo que sentiu quem de mim ria. Não tarda, e de cobaya elle me fez. Mais tarde, outros ririam, mas aquella vez fora a que mais franca se revela.}
VIII:8
{E ja que alguem que eu conte está pedindo, rollou a coisa assim: quando um amigo contou-me que elle rira, eu, engolindo o orgulho, confessei que até bemdigo a offensa e revelei que ao Demo brindo si alguem diz que a cegueira foi castigo. Humana ou deshumana, a tal justiça cegou-me e, aos punheteiros, hoje attiça.}
VIII:9
{Repito, e sei que estou me repetindo: sou franco, e é nessas horas que lhes digo que tenho de acceitar. E foi bemvindo, passado pela bocca desse amigo, meu proprio commentario ao cara: rindo, decide elle encontrar-se, então, commigo. Mandei-lhe este recado: -- Você tem razão para sorrir, mais que ninguem!}
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154 VIII:10
Glauco Mattoso
{O amigo faz a ponte e, me propondo papel protagonista num ensaio, o artista brinca: -- É plano pouco hediondo... Você vae me engraxar... -- Me parta um raio, pensei, e si meu riso não escondo, percebe elle que em suas mãos eu caio. Quem tenha paciencia que decida seguir-me na adventura decidida.}
CANTO NONO
Memorias sentimentaes IX:1
{Então, directo ao poncto me encaminho: Cahi-lhe aos pés, de facto: elle me quiz, sabendo ser podolatra o ceguinho. Dispoz-se a ver meus gestos mais servis no posto do engraxate. Eis que, excarninho, se senta, appoia a bota, clica, e diz: -- Está ja preparado para tudo? Não sei si lhe respondo ou fico mudo.}
IX:2
{Empunha a sua camera e me allinho. -- Eu vou photographando. Dê um verniz no couro. É p’ra lustrar devagarinho. Sem pressa, que do tempo eu sou juiz. Assim... Olhe p’ra cyma... -- Eu exquadrinho, appalpo a bota, exhibo o esgar feliz. Palhaço ja me sinto, otario e trouxa. Tacteio-lhe o cadarço, que se affrouxa.}
IX:3
{Aos poucos, sem a minima vergonha, exige que eu encoste o rosto ao bicco, que exfregue a bocca à sola, que me exponha. A machina metralha. -- Emquanto eu clico, você mostra a linguona... Isso! -- Uma bronha mental me vem, mas, tenso, a lingua estico. Viscosa e desdobrada, a espicho e creio que, para quem a enquadra, faz recreio.}
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IX:4
{É nitida a memoria em minha penna: de todos, quaesquer angulos, a photo me flagra na humilhante, crua scena que ainda recupero emquanto annoto e a pena de cegueira me condemna a nunca contemplar. Mas me devoto. Concentro-me naquillo que me pune e nunca quem cegou lhe fica immune.}
IX:5
{E chego a conclusão nada serena: percebo que, engraxando, não exgotto a sadica sessão. Menos amena (não fora tal momento tão remoto) ainda será a proxima: é que a pena prevista está no codigo que adopto: quem deixa de enxergar melhor se presta à photo que lhe capta a dor funesta.}
IX:6
{O cara sabe disso. Inda ironiza: -- Cansou? Agora eu quero o pé descalço, não pense que accabou! -- E a mão me pisa. Retiro-lhe a botina com um falso signal de asco no olhar. A sola lisa tacteio sob o panno e ao nariz alço. Immediatamente, enche a narina o odor que exhala a meia nada fina.}
Memorias sentimentaes IX:7
{Bem longe estava, ainda, o desenlace: -- Sentindo o chulezinho? -- elle pergunta, soltando a gargalhada -- Agora passe a lingua devagar... -- obra conjuncta de pelle com mucosa, e minha face à sola suarenta, então, se juncta. Saliva com suor se mixturando vae, pouco a pouco, a cada seu commando.}
IX:8
{Não houve, em tempo algum, qualquer impasse. A farsa pudibunda ja defuncta estava desde sempre: eu que arregace os labios, que excancare a bocca. Assumpta melhor, no pensamento, o gozo. Nasce na mente a idéa, e a baba os dedos uncta. Do pé posso chamar de pollegar o artelho que, mais grosso, vou fellar.}
IX:9
{-- Ei, chupe o meu dedão! Feito um caralho! Belleza! -- E escuto o clique, o flash expouca seguidas vezes. -- Isso! Bom trabalho! Me anima esse elogio, embora pouca se faça a differença, pois, si eu falho, escuto o ralho e allargo mais a bocca. Emquanto o seu dedão meu paladar instiga, elle paresce appreciar.}
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160 IX:10
Glauco Mattoso
{Commigo mesmo, as ordens ja confundo. A camera dispara emquanto eu chupo e as ordens se succedem: -- Bem mais fundo, mais fundo! -- Eu mesmo applico-me um apupo. -- Agora, sĂł na poncta! -- O dedo inundo de baba e do vaevem, docil, me occupo. Entrando e reentrando, o dedĂŁo faz da minha bocca a vulva ao pau fodaz.}
CANTO DECIMO
Memorias sentimentaes X:1
{Descreva-se o dedão, as leis segundo: bem largo, porem curto, elle do gruppo dos outros dedos dista. Mais immundo será que esses artelhos. Me preoccupo, tambem, com essa unhona. Seu jocundo adspecto é mesmo phallico, e me entupo. O pé chamado “grego” tem dedão mais curto, e raros typos desses são.}
X:2
{Comprida, a unha fere-me por dentro da bocca, e o cara pensa que engasguei. -- Tá achando muito grosso? -- Eu me concentro. Engulo o dedão todo, mas ja sei que pouco engolirei si, bem no centro da glotte, um pau me foda como a um gay. Dedão daquelles serve como admostra do pau deante do qual um gay se prostra.}
X:3
{Curtindo essa comedia philistéa, a sadica intenção ja manifesta, maldoso, o director da minha estréa pornô, que me maldiz e me molesta sem dó, na exposição cuja platéa não acha a collecção nada indigesta. Ja consta do programma: “Ensaio accerca de quem perca a visão e os brios perca...”}
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Glauco Mattoso
X:4
{Platéa que é selecta e não plebéa, o publico verá, quando da festa na chique galleria, que do pé à piroca pouco falta e que me resta render-me às evidencias: a trachéa foi quasi penetrada, a photo attesta. O cego, fellador que se revela, fellou como, ao algoz, um Sansão fella.}
X:5
{Garganta profundissima não tenho, mas tento compensar abboccanhando de leve, mollemente, o longo lenho. Exacto, meus leitores: ao commando do sadico photographo, ferrenho e dextro fellador vou me tornando. Até nos KAMA SUTRA o cego é casta mais baixa, e “auparishtaka” é o que lhe basta.}
X:6
{E, para que isto não me comprometta, idéa original não dou certeza que seja retractar uma chupeta, (nem vez será a primeira tal vileza) daquella perspectiva de quem metta no cego e photographe a rolla tesa. Na certa ja foi feita a baixaria com outros, sem, talvez, photographia.}
Memorias sentimentaes X:7
{Si um cego mamma, como numa teta, impacto, porem, causa uma indefesa garganta sendo feita de boceta. E mais ponho argumentos sobre a mesa, tornando essa faceta mais faceta por não ter visto o cego a luz accesa. Dizer “irrumação” não faz sentido egual à “fellação”, bem entendido.}
X:8
{Ridiculo, mais feio que o da Linda no filme da garganta, passa um cego na photo que o revela e que o deslinda. Sequencias na parede são, não nego, a prova irrefutavel de que ainda em verso allegarei mais do que allego. Quem chupa, si é seguro pela orelha, só move o craneo, emquanto se adjoelha.}
X:9
{Que faça, quem penetra, bom proveito! Não ha, mais implacavel e vil, nada que ter da minha imagem o direito cedido sem poder checar, vedada ao cego tal certeza, o bello effeito que causa a aberta scena da chupada. Mas elle se imagina, ao olho alheio, aquelle fellador que mais faz feio.}
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Glauco Mattoso
{Por isso tal conceito nem rejeito: appenas imagino, agglomerada, aquella gente toda, mas suspeito que alguem questionará si, em photo cada, num crime não incorre o tal subjeito auctor das photos, pela coisa errada. Por pura ingenuidade é que suppuz que alguem censuraria uns lances crus...}
CANTO UNDECIMO
Memorias sentimentaes XI:1
{Me contam, todavia, que reage sem pena nem repulsa o espectador, em sua maioria, àquelle ultraje. Nem tenho o que extranhar: foi-se o pudor do publico actual. Na vernissage, um reco, um padre, um tira e um promotor. O guia do ceguinho, um lheguelhé qualquer, tambem lhe ordena: -- Chupa, lhé!}
XI:2
{Pois, feita a digressão, digo a vocês: mammei, não só daquella vez, a picca fedida do photographo: me fez pensar, com mais empenho, em minha zica. Fiquei “particular” e, elle, freguez da minha chupetinha, o que se explica. Bem commodo é dispor de alguem que felle sem nojo dum sebinho sob a pelle...}
XI:3
{Sem “mas”, sem “todavia”, sem “talvez”, mais practico é foder, sem compta rica no banco, sem poder nem honradez, a bocca sempre prompta e que se mica, mettendo nella a rolla e, toda vez que queira, alli gozar: é minha a zica. Azar como o do cego, nem Satan deseja a Deus, na sanha mais malsan!}
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XI:4
{Sou eu que, rebaixado pela falta do maximo sentido, me subjeito às horas e deshoras do peralta. Sou eu que encaro a camera, em proveito do mestre, emquanto a midia só lhe exalta o “exotico” talento, o ensaio feito. Tambem um cineasta, não demora, fará commigo um show, como o de agora.}
XI:5
{Não ha por que faltar com a verdade. Porem eu não me queixo. Que mais pode um cego desejar? Qual quiddidade? Sou lettra de forró, sou de pagode... Que posso ser? Então... que elle se aggrade fodendo minha bocca como fode! Noção de ser capaz só tem um cego si eximio for naquillo em que me emprego.}
XI:6
{Ainda que de tanta acção me enfade, me sinto contemplado, sem bigode postiço, sem a venda, a identidade sem mascara, exhibida a quem me fode de facto ou mentalmente, pois não ha de faltar quem se divirta ou se accommode. -- Eu não queria estar no seu logar! -é tudo o que me dizem deste azar.}
Memorias sentimentaes XI:7
{Faz parte do meu show servir de gozo buccal e visual, me contentando appenas na punheta. Vergonhoso? Não acho. Quando estou sob o commando de quem me photographa, sou Mattoso: Si minha luz lhe cedo, a fama expando.} Mattoso foi, tambem, o nome usado por Pedro ou por José, conforme o lado.
XI:8
Assim Pedrinho encerra a narrativa de mais um episodio singular na vida de quem quer que sobreviva fazendo da cegueira seu azar orgastico, a gastar sua saliva nos tennis dum rapaz que, a gargalhar, no cego reconhesce esse palhaço que os deuses transformaram num devasso.
XI:9
Adviso aos navegantes que o ceguinho dispõe-se a conversar sobre isto tudo e muitos internautas, ja adivinho, só querem ver Pedrinho ficar mudo emquanto tem na bocca um excarninho caralho ou um fedido pé desnudo, à parte os borzeguins, as sujas botas que exigem as lambidas mais devotas.
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172 XI:10
Caralho! Musas, chega! A lyra tenho ja flaccida, de tanto que exporrei! Que importa si, sem arte ou sem engenho, com mais um heroicomico accabei? Appenas desabbafo o meu ferrenho dever de confessar tudo o que sei accerca dum ceguinho sem sahida que inveja de SansĂŁo teve na vida.
Glauco Mattoso
SĂŁo Paulo Casa de Ferreiro 2020