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Papéis sociais, constrangimentos sociais

Olivia Acland/ Barcroft Media via Getty Images

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 Essa imagem de 2016 mostra uma mulher que sobreviveu ao ebola em Serra Leoa, no continente africano. Ela veste a camiseta da campanha para a erradicação do vírus no país. Diante da crise de saúde provocada pelo ebola em 2014 e 2015, a ONG

Street Child estima que aproximadamente 12 mil crianças nesse país perderam seu cuidador principal, forçando assim uma ampla reconfiguração das dinâmicas sociais de cuidado.

 A pesquisadora brasileira Denise

Pimenta. Imagem de 2020. A brasileira Denise Pimenta fez algumas pesquisas de campo e observações participantes quando decidiu estudar os impactos deixados pela epidemia do ebola nas relações sociais em Serra Leoa, no continente africano. Convivendo por meses com a população local, a pesquisadora foi responsável por fazer um trabalho sensível sobre o papel do cuidado nas relações interpessoais e na manutenção da sobrevivência das comunidades. Ela percebeu que o mesmo cuidado que fazia as pessoas sobreviverem foi também o motivo de muitas mortes. Olhando para as estatísticas, notou que entre os mortos pelo vírus na região havia a tendência de mais vítimas mulheres . Por que as mulheres estariam mais vulneráveis à doença em Serra Leoa? Buscando desvendar os motivos dessa situação, Denise descobriu então que grande parte da vulnerabilidade feminina durante a pandemia do ebola se devia justamente ao fato de, ali, serem as mulheres as responsáveis pelo cuidado dos doentes. Socialmente, eram elas que deviam ocupar o papel social do cuidado , e, agindo diretamente no cuidado dos doentes, eram elas as mais expostas à infecção do vírus.

Abaixo, leia um trecho da tese da pesquisadora, atentando para as práticas de cuidado analisadas. A base da vida é o cuidado. Cuidar é um ato transformador, ambivalente e ambíguo. Cuidado é phármakon: remédio, veneno e cosmético. O mesmo cuidado que salva, mata. Cuidado, entendido como decorrência do “amor ”, é um fardo que recai sobre as mulheres. Trata-se de um ônus cultural de uma existência feminina. Na Serra Leoa, uma pessoa torna-se mulher através das obrigações do cuidado. Dificilmente alguém se tornará mulher sem que tenha acendido o fogo, pilado a pimenta, carregado sobre a cabeça os pesados baldes de água, cortado toras de madeira para a feitura da lenha, lavado roupas e assistido velhos e crianças. [...] No ano de 2015, ainda sob o domínio do ebola no oeste africano, perguntei à jovem serra-leonense Aminata Koroma o porquê de mais mulheres do que homens terem morrido com a epidemia. Como se fosse algo óbvio, estranhando que eu não soubesse a resposta, disse: “Você não sabe? Por causa do amor!”. Completando: “uma mulher não tem coragem de deixar para trás seu marido doente, nem seus filhos ”. Sua resposta é praticamente espelho do que disse uma das interlocutoras da pesquisadora serra-leonense Aisha Fofana Ibrahim. Quando inquirida sobre seu posicionamento frente à epidemia na Serra-Leoa: “Eu sou uma mulher. Como poderia não ajudar?” [...]. Desse modo, o espaço de omissão ou da autopreservação não é cogitado pelas mulheres, porque não existe. Negar ajuda, sendo mulher, não está em questão nestes lugares. Mundo afora, enaltece-se o cuidado das mulheres para com os seus e também para com os outros, fala-se em “dedicação”, “sacrifício”, “devotamento”, “amor” e “amor incondicional”. De modo geral, a mulher é associada ao cuidado de forma direta, natural, como se esta fosse uma relação óbvia e dada, e não uma construção social que carrega afetos e sentimentos considerados nobres, mas também impregnada por risco e perigo. Chama-se de “amor” o cuidado promovido por mulheres desde meninas, sem que se reconheça esse cuidado como um trabalho, um investimento de tempo, dedicação, paciência e força física, bem como possíveis doenças e morte. A percepção sobre o cuidado feminino sofre uma romantização perversa que coloca mulheres em cotidiano estado de risco e enfrentamento de muitos perigos.

PIMENTA, Denise. O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa (A epidemia do ebola contada por mulheres, vivas e mortas). Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Antropologia. São Paulo, 2019. (Trecho retirado das p. 11 e 12; a tradução dos trechos em inglês é de nossa autoria.)

John Maier/MCT/Tribune News Service via Getty Images

 Em sua casa na comunidade do Cantagalo, na cidade do Rio de

Janeiro, Diva ajuda uma vizinha nas atividades escolares. Foto de 2005.

 Na comunidade da Cidade de Deus, na cidade do Rio de

Janeiro, uma mulher caminha com suas filhas enquanto o carro blindado da polícia circula pela rua, em 2018.

 Em Recife, duas mulheres cuidam de três meninos. O bebê de colo é uma das crianças nascidas com microcefalia no estado de Pernambuco após o surto do vírus Zika. Foto de 2016.

 Na cidade do Rio de Janeiro, a cena de 2019 mostra um momento de descontração entre uma mulher e suas filhas.

Mauro Pimentel/AFP via Getty Images

Mario Tama/Getty Images

Thelma Amaro Vidales/Shutterstock

As imagens ao lado mostram algumas cenas brasileiras de interação entre adultos e crianças. O que há em comum entre elas? Que reflexões essas imagens provocam em comparação com a descrição anterior feita pela pesquisadora Denise Pimenta em Serra Leoa e com a narrativa sobre o atendimento de saúde no Complexo do Alemão, escrita pela antropóloga Natália Fazzioni?

No Brasil, nutrir, cuidar, dar carinho e ensinar são ações que imaginamos ser de responsabilidade central das mães em relação a seus filhos. Cozinhar para a família, zelar pelos idosos e limpar a casa são , na maioria das residências , tarefas executadas por mulheres. As mulheres, desde muito pequenas, são socializadas para estarem sempre disponíveis ao cuidado do outro. No grupo social ao qual pertencemos, podemos dizer que nossa cultura estabelece que o cuidado é, de forma predominante, um papel social feminino.

Isso não quer dizer, é claro, que não haja homens também comprometidos com o cuidado. Ao contrário, há inúmeros casos de pais que são zelosos em relação aos filhos, responsáveis pelo trabalho doméstico de sua casa e excelentes cozinheiros. Porém, quando conhecemos algum homem que age assim, geralmente reagimos com surpresa e admiração, ressaltando como eles são diferentes dos outros. Quem nunca ouviu, por exemplo, uma mulher elogiando seu parceiro ao contar a alguém que ele a “ajuda muito”?

Mas aí é que está a brecha através da qual precisamos olhar quando quisermos analisar uma sociedade: as situações que vemos como exceção e que nos causam admiração são as mesmas que nos mostram quais são as regras. Tendemos a valorizar os trabalhos doméstico e de cuidado masculinos justamente porque sabemos que tais indivíduos estão agindo fora das regras e das expectativas sociais. Quer um dado mais interessante para analisarmos essa situação do que aquele que mostra a proporção de homens e mulheres que ocupam funções especialmente voltadas ao cuidado com o outro? No Brasil, cerca de 83% de todos os profissionais formados na área de educação são do sexo feminino e, na área de saúde e bem-estar social, 68,1% dos profissionais também são mulheres. Um exemplo cotidiano sobre tais expectativas sociais de que o cuidado seria um papel desempenhado por mulheres está na própria divisão de alguns banheiros em locais públicos. Você já reparou que shoppings e restaurantes instalam o fraldário com trocador para bebês dentro do banheiro feminino ? Por que não há fraldários também dentro dos banheiros masculinos ou, melhor, em espaços neutros, nos quais qualquer familiar

possa entrar ? Esse tipo de divisão de papéis sociais está tão implícito na maneira como nos comportamos e no modo como a sociedade nos molda que, em muitos lugares, a situação de localização dos fraldários em banheiros públicos só pode mudar depois que legisladores elaboram algum tipo de lei exigindo a readequação dos estabelecimentos comerciais. Esse foi o caso da cidade de São Paulo, que precisou promulgar em 2017 uma lei específica para garantir que tanto homens como mulheres pudessem trocar as fraldas de seus bebês (Lei no 16.736, de 1o de novembro de 2017).

E na observação de campo que você está desenvolvendo : são mais homens, meninos, mulheres ou meninas os responsáveis pelo trabalho familiar de cuidado?

 Professora em aula em Paragominas (PA), 2018.

No país, 83% dos educadores são do sexo feminino.  Profissional de saúde aplica vacina em bebê, em Eunápolis (BA), 2010. No Brasil, 68,1% dos profissionais da área são mulheres.

Joa Souza/Shutterstock ngaga/Shutterstock

 No símbolo indicativo de fraldário, a figura representada fazendo a troca de fralda é feminina.

Devemos lembrar que nem todos os indivíduos aceitam passivamente os papéis sociais que a sociedade tenta impor. Isso pode acontecer, entre outros motivos, porque um papel social pode também ser um elemento limitador na vida de um sujeito, ou seja, um constrangimento social.

Qualquer sociedade é organizada com base em regras , algumas delas explicitamente impostas aos indivíduos, como as leis escritas , e, caso alguém não as cumpra, pode ser alvo de violência ou penalidade criminal. Mas há também um enorme conjunto de regras e normas que não estão escritas, pois são im- PARE e PENSE plícitas em nosso processo de socialização. Tais normas preveem como cada indivíduo deve agir, se comportar, o que pode ou não 1. O que a pesquisadora Margaret esperar do futuro, indicando até mesmo com quem pode ou não Mead descobriu sobre os papéis sose relacionar. São normas que definem estereótipos ao dissemi- ciais de um indivíduo em sociedade? nar entre a população quais são as pessoas que socialmente po- 2. Por que o cuidado é um ato social tão derão fazer uma coisa ou outra. Nesse sentido, podem funcionar importante para os seres humanos? como uma amarra muito forte das vontades individuais.

 Nesta foto de 2015, policiais chegam à comunidade Nelson

Mandela, em Osasco (SP), para expulsar cerca de 10 mil pessoas que reivindicavam o estabelecimento de suas moradias no local.  Momento em que a corredora Kathy Switzer é empurrada por um homem durante a Maratona de Boston (EUA), em 1967.

Naquela época, era proibida a participação feminina em corridas de rua, e Kathy se tornou pioneira nessa luta.

Paul Connell/Boston Globe via Getty Images

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