Ciências Humanas e Sociais Aplicadas - PNLD 2021 – Objeto 2

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Olivia Acland/ Barcroft Media via Getty Images

Essa imagem de 2016 mostra

uma mulher que sobreviveu ao ebola em Serra Leoa, no continente africano. Ela veste a camiseta da campanha para a erradicação do vírus no país. Diante da crise de saúde provocada pelo ebola em 2014 e 2015, a ONG Street Child estima que aproximadamente 12 mil crianças nesse país perderam seu cuidador principal, forçando assim uma ampla reconfiguração das dinâmicas sociais de cuidado.

PAPÉIS SOCIAIS, CONSTRANGIMENTOS SOCIAIS A brasileira Denise Pimenta fez algumas pesquisas de campo e observações participantes quando decidiu estudar os impactos deixados pela epidemia do ebola nas relações sociais em Serra Leoa, no continente africano. Convivendo por meses com a população local, a pesquisadora foi responsável por fazer um trabalho sensível sobre o papel do cuidado nas relações interpessoais e na manutenção da sobrevivência das comunidades. Ela percebeu que o mesmo cuidado que fazia as pessoas sobreviverem foi também o motivo de muitas mortes. Olhando para as estatísticas, notou que entre os mortos pelo vírus na região havia a tendência de mais vítimas mulheres. Por que as mulheres estariam mais vulneráveis à doença em Serra Leoa? Buscando desvendar os motivos dessa situação, Denise descobriu então que grande parte da vulnerabilidade feminina durante a pandemia do ebola se devia justamente ao fato de, ali, serem as mulheres as responsáveis pelo cuidado dos doentes. Socialmente, eram elas que deviam ocupar o papel social do cuidado, e, agindo diretamente no cuidado dos doentes, eram elas as mais expostas à infecção do vírus. Abaixo, leia um trecho da tese da pesquisadora, atentando para as práticas de cuidado analisadas. A base da vida é o cuidado. Cuidar é um ato transformador, ambivalente e ambíguo. Cuidado é phármakon: remédio, veneno e cosmético. O mesmo cuidado que salva, mata. Cuidado, entendido como decorrência do “amor”, é um fardo que recai sobre as mulheres. Trata-se de um ônus cultural de uma existência feminina. Na Serra Leoa, uma pessoa torna-se mulher através das obrigações do cuidado. Dificilmente alguém se tornará mulher sem que tenha acendido o fogo, pilado a pimenta, carregado sobre a cabeça os pesados baldes de água, cortado toras de madeira para a feitura da lenha, lavado roupas e assistido velhos e crianças. [...] No ano de 2015, ainda sob o domínio do ebola no oeste africano, perguntei à jovem serra-leonense Aminata Koroma o porquê de mais mulheres do que homens terem morrido com a epidemia. Como se fosse algo óbvio, estranhando que eu não soubesse a resposta, disse: “Você não sabe? Por causa do amor!”. Completando: “uma mulher não tem coragem de deixar para trás seu marido doente, nem seus filhos”. Sua resposta é praticamente espelho do que disse uma das interlocutoras da pesquisadora serra-leonense Aisha Fofana Ibrahim. Quando inquirida sobre seu posicionamento frente à epidemia na Serra-Leoa: “Eu sou uma mulher. Como poderia não ajudar?” [...]. Desse modo, o espaço de omissão ou da autopreservação não é cogitado pelas mulheres, porque não existe. Negar ajuda, sendo mulher, não está em questão nestes lugares.

Silvia Zamboni/Valor/Agência O Globo

Mundo afora, enaltece-se o cuidado das mulheres para com os seus e também para com os outros, fala-se em “dedicação”, “sacrifício”, “devotamento”, “amor” e “amor incondicional”. De modo geral, a mulher é associada ao cuidado de forma direta, natural, como se esta fosse uma relação óbvia e dada, e não uma construção social que carrega afetos e sentimentos considerados nobres, mas também impregnada por risco e perigo. Chama-se de “amor” o cuidado promovido por mulheres desde meninas, sem que se reconheça esse cuidado como um trabalho, um investimento de tempo, dedicação, paciência e força física, bem como possíveis doenças e morte. A percepção sobre o cuidado feminino sofre uma romantização perversa que coloca mulheres em cotidiano estado de risco e enfrentamento de muitos perigos.

A pesquisadora brasileira Denise Pimenta. Imagem de 2020.

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CAPÍTULO 2

PIMENTA, Denise. O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa (A epidemia do ebola contada por mulheres, vivas e mortas). Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Antropologia. São Paulo, 2019. (Trecho retirado das p. 11 e 12; a tradução dos trechos em inglês é de nossa autoria.)


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