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A lenda do beija-flor Marcela Carvalho

a leNda do beiJa-flor

Marcela Carvalho

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Apresentação

No ano de 2007, comecei a trabalhar em uma biblioteca escolar. Logo me interessei pela estante de livros do folclore, que trazia além de edições ilustradas próprias para o manuseio das crianças, coletâneas de contos direcionados à professora mediadora de leitura, que daria voz à literatura oral na sala de aula. Assim, me apeguei ao título de Henriqueta Lisboa: Literatura oral para a infância e a juventude: Lendas, contos e fábulas populares do Brasil. De lá pra cá, contei infinitas vezes “O beija-flor”, narrativa recolhida pela poeta mineira no acervo da folclorista Alexina M. Pinto, ambas mulheres interessadas em levar a cultura popular para as crianças nas escolas do Brasil.

Diz Henriqueta que “o sentimento estético da criança, encontrará no folclore, acima de tudo, um mundo prodigioso de imagens e ritmos (…) e mais tarde saber, que essa tradição tem caracteres idênticos ou semelhantes aos de outros povos será recolher uma lição de amor.” (LISBOA, 2002, p. 15). Para mim, a lenda do beija-flor é uma “lição de amor” pelo tanto que nesses anos aprendi com essa pequena história, pelas memórias dos encontros em torno dessas palavras e pela força com que ela se atualiza a cada vez que é evocada inaugurando um ar puro de passarinhada matutina. Como são as manhãs de cada dia com sol nascente óbvio e ao mesmo tempo surpreendente. Passarinho, fruta e cantiga em enredo de repetição são um convite aos ouvintes bem pequenos que apreciam essa narrativa e nos ensinam tanto com seu modo de escuta.

Na época, me chamava a atenção o som de pássaros e poder assobiar de muitas formas durante a narração, também o

verso em canção entremeando palavra contada com melodia cantada… possibilidades e belezas da oralidade! A cantiga da primeira versão (sem partitura) diz: “Ingerê como gambê/ como na chacará não há/ Ingerê ingerê, cra crá…” Criei uma melodia para esses versos e entoei por muito tempo mesmo sem saber o significado. Sempre quis saber o que dizia a canção e nunca encontrei uma referencia que desse uma pista, também sempre gostei da brincadeira de roda “Laranja madura” do álbum Abra a Roda tim do le lê, de Lydia Hortélio e de brincar próximo ao momento da história. Depois de uns dez anos, contudo, juntei a cantiga ao conto e tem sido um momento prazeroso entoar junto ao público em uma só voz: “laranja madura…”

No outono de 2021, um beija-flor entrou na nossa casa, as laranjeiras estavam carregadas no quintal lá fora e ele passou horas lá dentro. Eu o peguei nas mãos e o levei até a janela, e por duas vezes ele ganhou os ares, deu meia-volta e voltou pra dentro de casa. Ele tinha mesmo algo para contar a nós cinco. E contou! 15 anos gera intimidade e hoje gosto de dizer que foi um beija-flor quem me contou sua própria história. Com cheirinho de flor de laranjeira luminosamente branca que seja bom o voo da leitura!

Naquela manhã, os pássaros acordaram fazendo tamanha algazarra. Tinham chegado na terra as primeiras árvores de laranja. As laranjeiras estavam carregadas daquela frutinha redondinha cor de ouro. Tinha um cheiro… Devia ter um gosto…

Os passarinhos queriam saber se a fruta era ou não de comer e também como se chamava. Juntos, em alvoroço (e som de passarada), se organizaram em roda em uma grande assembleia de pássaros e elegeram o tico-tico para ir até o céu perguntar ao Nosso Senhor qual era o nome da fruta e se ela era ou não de comer.

Tico-tico se despediu dos outros pássaros e foi voando… Voou… Voou… Chegou lá no alto e bateu na porta do céu. São Pedro veio abrir: — O que queres, meu filho? — Sois Cristo, Sois Cristo! — Respondeu o tico-tico. Nosso Senhor, agora junto com São Pedro, veio até a porta e perguntou: — O que queres, meu filho? — Sabe o que é, Nosso Senhor, é que acaba de chegar lá na terra uma árvore que tem uma fruta redondinha, cor de ouro, tem um cheiro… Deve ter um gosto… Eu e os outros pássaros queremos saber qual o nome da fruta e se ela é ou não de comer.

E Nosso Senhor respondeu: — A fruta se chama “laranja”! E ela é sim de comer, mas para você não se esquecer o nome dela é preciso entoar toda vez que a trovoada roncar, abaixando a cabeça e cantando, essa canção que vou te ensinar:

“Laranjas Maduras que cor são elas Laranjas Maduras que cor são elas Elas são verde e amarelas Elas são verde e amarelas…”

E continuou: — E além disso, passarinho, você deve beijar todas as flores do seu caminho.

Tico-tico tomou a benção de Nosso Senhor, tomou a benção de São Pedro e foi voando… Voou… Voou e quando chegou lá pelo meio do caminho, a trovoada roncou e o tico-tico nada fez. Seguiu voando e quando chegou na terra não beijou nem uma florzinha sequer. Do alto, avistou os outros pássaros que já se aproximaram perguntando: — E então? E então? Como foi a viagem ao céu? Qual o nome da fruta?

Todos os pássaros juntos em som de passarinhada, em grande algazarra. Mas o tico-tico foi chegando meio tonto, zonzo, cambaleante, e quando chegou bem pertinho da passarinhada caiu duro no chão. Os pássaros em volta olhavam pra ele desconfiados. — Ora! Tico-tico é um bobo! Foi até o céu e não soube trazer a resposta. E agora?

Mais uma vez os passarinhos fizeram uma grande roda e todos juntos em grande assembleia elegeram agora um pássaro miúdo que naquele tempo ainda não tinha nome, de bico fino de agulha e com um voo tão ligeiro que em um instante traria a resposta que todos precisavam.

O passarinho se despediu do bando e foi voando… Voou… Voou… Logo já estava lá no céu e bateu na porta gritando: — Sois Cristo! Sois Cristo!

Nosso Senhor e São Pedro vieram até porta: — O que queres, meu filho?

E o passarinho foi respondendo: — Sabe o que é… Tico-tico chegou de volta, cambaleando, e não trouxe a resposta que precisamos sobre aquela fruta redondinha, cor de ouro e cheirosa que acaba de chegar lá na terra. Nós, os pássaros, precisamos saber como ela se chama e se é ou não de comer.

E Nosso Senhor foi dizendo: — Ora! A fruta se chama “laranja”! E ela é sim de comer. Mas para você não se esquecer qual o nome da fruta você deve abaixar a cabeça e cantar toda vez que a trovoada roncar a canção que ensinei a Tico-tico e agora vou te ensinar:

“Laranjas Maduras que cor são elas Laranjas Maduras que cor são elas Elas são verde e amarelas Elas são verde e amarelas…”

— E além disso, passarinho, você deve beijar todas as flores do seu caminho!

O passarinho de bico de agulha e voo ligeiro tomou a benção de nosso senhor, tomou a benção de São Pedro e foi voando em um longo bater de asas…Voou… Voou e quando chegou lá pelo meio do caminho, a trovoada roncou. Ele, então, abaixou a cabeça e cantou a linda canção que havia aprendido.

Quando chegou na terra, beijou cada uma das florzinhas do seu caminho… Zum br, Zum br… Zuuum br… Beijou pequenos botões de rosa, beijou grandes lírios, camélias, azaleias, dálias, copos de leite, beijou florzinhas miúdas e rasteiras e também beijou as trepadeiras. Lá do alto mesmo avis-

tou os outros pássaros reunidos próximos às laranjeiras e já foi assobiando e gritando, convocando toda a passarinhada. — A fruta se chama “laranja”! E ela é sim de comer. Agora vão pássaros, vamos saborear esse maravilhoso perfume cor de ouro.

Os pássaros não perderam tempo. Avançaram nas laranjeiras sem deixar uma única frutinha no pé. Chuparam tantas laranjas suculentas que ficaram com seus bicos melados, as barriguinhas cheias e fartas deixando um tanto de bagaço de fruta no chão ao redor da árvore e mais uma vez fizeram uma grande roda. Todos queriam saber como tinha sido a viagem ao céu e o encontro com Nosso Senhor.

O passarinho de bico de agulha e voo ligeiro ensinou todos os outros pássaros a cantar a canção que ele tinha aprendido, dizendo: Vamos cantar juntos? E todos entoaram em um lindo sopro uníssono a cantiga da fruta redondinha, cor de ouro e perfumosa:

“Laranjas Maduras que cor são elas Laranjas Maduras que cor são elas Elas são verde e amarelas Elas são verde e amarelas…”

E foi de tanto beijar as flores do caminho que o passarinho de voo ligeiro ganhou o nome de beija-flor.

Entrou pela perna do pato Saiu pelo bico do pinto Nossa Senhora mandou dizer que é pra contar mais cinco.

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