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O fumo da mulher feiticeira Camila Costa
o fumo da mulher feitiCeira
Camila Costa
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Apresentação
A primeira vez que li “A origem do fumo”, fez morada em meu corpo a imagem da mulher renascendo árvore. Era, então, março de 2019. Foi a primeira história que contei. Cerca de um ano e meio após o nascimento da minha filha, Serena. Nesse tempo, eu buscava caminhos para florescer. Em meu corpo, algo ainda desconhecido, havia germinado. O caminho que encontrei foi o das histórias. Desde então, sigo caminhando de braços dados com elas.
Ao narrar “A origem do fumo”, morri e renasci, muitas e muitas vezes. Agora, ao escrevê-la, sinto-me novamente revelando algo muito íntimo, que eu mesma não sei nomear. Me fascina o dom que vive nas histórias tradicionais — serem, ao mesmo tempo, tão distantes e tão íntimas de cada uma de nós. Comigo e “A origem do fumo”, foi mais ou menos assim… Por isso, escolhi trazê-la para este livro.
Meu primeiro contato com a história se deu através do livro Contos indígenas brasileiros, de Daniel Munduruku. Em 2020, chegou até mim, por meio de Patrícia Freitas, a versão narrada por Kaliketé em língua Terena e traduzida para o português por Haháoti. Essa versão foi registrada em artigo publicado na Revista do Museu Paulista pelo alemão Herbert Baldus, em 1947. Segundo o artigo, o narrador indígena Kaliketé ouviu a história de seu pai e tinha, na época, 75 anos de idade. Esses são alguns rastros que nos permitem observar as vozes que nos fios do tempo, possibilitaram que essa história chegasse até nós. Como narradora-pesquisadora me coloco a
desembaraçar fios e colaborar na tessitura sem fim da teia de saberes que vivem nessas histórias.
A partir dessas duas fontes e do emaranhado das minhas imagens internas — que foi se construindo ao longo das muitas vezes que narrei essa história — criei a minha versão do conto, a qual chamei “O fumo da mulher feiticeira”. Entrego-a aqui a vocês.
Salve a palavra encantada dos povos da floresta! Peço licença a todas as vozes indígenas que lutaram e lutam até hoje para contar suas próprias histórias. Faço aqui coro a elas.
Desde os tempos mais remotos, as mulheres do povo Terena, quando se reúnem ao redor da fogueira para ouvir e contar histórias, escutam das mais velhas que há tempos atrás, viveu na aldeia uma mulher que não gostava do marido. Por isso, resolveu fazer um feitiço para ele. Ela era uma mulher feiticeira que conhecia muito bem as plantas e os seus poderes. Ela escolheu o caraguatá e quando seu sangue desceu, o colocou no interior da planta. As avós do povo Terena contam que desde esse dia o caraguatá passou a ser vermelho por dentro.
Tendo preparado o feitiço, a mulher ofereceu o broto do caraguatá para o marido comer. Ele aceitou. Pouco tempo depois, os efeitos começaram a aparecer. O marido se sentiu fraco, não conseguia trabalhar. Mal podia caminhar, passou dias amuado na rede e, permanecendo assim, em pouco tempo, morreria. Acontece, que o filho do casal viu a mulher preparando o feitiço e contou tudo ao pai. O marido, ainda abatido, decidiu se vingar, com a ajuda do filho.
Os dois atravessaram o pátio da aldeia, o filho amparando o pai que caminhava com dificuldade. Ao passar pela mulher, o marido disse, com a voz cansada, que os dois iam no mato buscar mel. A mulher, que sempre foi louca por mel, fez gosto e não desconfiou de nada.
Pai e filho sumiram na mata. Logo o homem avistou uma árvore com uma cobra e uma abelheira jati. Ele flechou a cobra e rasgou o tronco para tirar o mel. Em seguida, abriu a barriga da cobra, tirou lá de dentro um filhote e misturou parte do mel com as vísceras da cobra. Os dois retornaram à aldeia com duas vasilhas, uma com mel puro e outra com mel misturado.
Assim que os viu chegar, a mulher se aproximou e pegou uma das tigelas de mel. O marido disse que aquela estava separada para o filho, a dela era a outra e apontou para a vasilha com o mel misturado. Ela sequer questionou, tamanho era o seu desejo de saborear aquela iguaria. Debruçou-se sobre o pote e começou a deliciar-se. Era mel do bom, doce, espesso, dourado. Ela pegava grandes quantidades com as mãos e levava até a boca com imenso prazer. Demorou até ela perceber a coceira estranha que começava a se espalhar por todo o seu corpo. Sentindo-se como num formigueiro, a mulher se deu conta de que aquilo só podia ser uma armação, vingança do marido.
Deitado numa rede pendurada no canto da maloca, ele a observava o tempo todo. Enquanto se arrastava nas paredes de palha em busca de algum alívio para a coceira, ela topou com o marido, que disse: — Foi você quem fez a maldade comigo primeiro, mulher, eu só me vinguei. — Pois então, pai do meu filho, eu vou comer você — respondeu a mulher com os olhos em chamas.
O marido se levantou da rede aos pulos e saiu correndo. Atravessou o pátio da aldeia e se embrenhou no mato, tentando escapar da fúria da mulher. Ela corria e se coçava, se coçava e corria, gritando: — Eu vou comer você!
Já fraco e sem ar, ainda sob os efeitos do feitiço do caraguatá, enquanto corria, o marido pensava numa maneira de se livrar da mulher. Lembrou-se que, mais cedo, na mata, passou por uma árvore onde havia um ninho com três filhotes de papagaio. Ele correu ao encontro dessa árvore e subiu nela o mais rápido que pôde. Ao ver que a mulher se aproximava,
lá do alto, ele tacou um filhote de papagaio, o menor dos três, na sua direção. A mulher o devorou inteiro enquanto corria.
O marido, então, tacou um segundo filhotinho de papagaio, e a mulher o devorou ainda mais rápido que o primeiro e continuou correndo. Desesperado, ele jogou o terceiro filhote de papagaio na direção dela, esse era maiorzinho. Ela levou mais tempo para comê-lo. Nesse momento o marido conseguiu descer da árvore e saiu em disparada pela mata, tentando fugir. Logo a mulher o alcançou novamente. Ela corria e gritava: — Eu vou comer você!
A perseguição prosseguia por entre árvores, galhos, folhas, troncos, cipós, até que o marido se lembrou que, certa vez, havia feito um fojo para caçar animais e correu na direção do buraco. Ao ouvir a mulher se aproximando, escondeu-se na mata. Ela vinha veloz e voraz e, sem saber da armadilha, sentiu seus pés perderem o chão. Ouviu-se um grito rouco e, em seguida, a mata silenciou. A queda foi fatal.
O marido se aproximou e permaneceu por alguns instantes observando o corpo sem vida da mulher caído lá no fundo. Ele resolveu cobrir o buraco com terra. Feito isso, se sentou para vigiar.
Não demorou muito e o corpo da mulher começou a buscar caminhos. Empurrou, forçou e foi criando espaços, fissuras, passagens. Ramificou-se. Essas ramificações agarraram-se à terra e tornaram-se raízes fortes e profundas. Com esforço, ela alcançou a superfície. O marido, quando viu a planta que crescia sobre o túmulo da mulher, pensou se tratar de erva daninha e a arrancou. Agora ela conhecia o caminho e mais facilmente, alcançou a superfície de novo. O marido tornou
a arrancá-la. De nada adiantou, a planta voltou a crescer. O marido arrancou-a novamente. Mas ela insistia, teimava em voltar. Até que ele aceitou que ela cresceria ali, independente da vontade dele.
Rapidamente, aquela pequena planta se transformou numa árvore frondosa, com folhas largas e amareladas. Era uma árvore diferente de todas as outras ao redor. Algo que aquele homem nunca tinha visto. Curioso, ele se aproximou da árvore e percebeu que das suas folhas exalava um perfume, um cheiro que ele jamais havia sentido. Ele arrancou algumas folhas e colocou no sol para secar. Depois picotou as folhas secas e pôs no seu cachimbo de barro.
Por não saber do que se tratava, ele não acendeu seu cachimbo à luz do dia. Esperou anoitecer. Na mata, sob a luz da lua, fez uma pequena fogueira e, então, começou a pitar. Conforme ele pitava, uma fumaça cheirosa foi se espalhando pela floresta, passando por entre as folhas e galhos e chegou ao terreiro da aldeia. Ali, todos cantavam e dançavam em celebração. A fumaça dançou com os corpos dos parentes. Um a um, eles foram sentindo aquele cheiro perfumoso, até então desconhecido. Todos ficaram curiosos. O marido não quis contar o seu segredo, achava que a árvore era só dele.
As avós Terena contam que os parentes começaram a vigiá-lo, seguiram o marido pelo meio da mata e viram quando ele foi até a tal árvore desconhecida, arrancou suas folhas e colocou no sol para secar. Eles viram tudinho como o marido fazia. Em pouco tempo, todas e todos na aldeia estavam pitando o fumo da mulher feiticeira. Assim contavam as avós, assim eu conto a vocês.
Eles não sabiam que nós éramos sementes.