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A lenda do tarumã Lucia Morais Tucuju
a leNda do tarumã
Lucia Morais Tucuju
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Apresentação
Vou contar pra vocês essa história de um moço que se encantou nas água do Rio Araguari, virou pau, madeira de amor (Ormar Jr e Amadeu Cavalcante).
A história que aqui apresento permeou minha infância, faz parte do universo no qual fui criada, muito contada no Amapá. Bateu-me essa vontade de contá-la aqui, porque além de fazer parte da minha vida e ser recheada de encantos, nasceu o desejo de que outras pessoas conheçam e possam se embrenhar no universo amazônico.
Conheci pela voz de uma grande contadora: Vovó Ana, que da maneira mais simples narrava e encantava. “A lenda do Tarumã” é retratada na música do intérprete amapaense Amadeu Amapaense, composição de Osmar Jr., intitulada “Tarumã”. O escritor maranhense, radicado no Amapá (in memoriam) Joseli Dias, escreveu a lenda do tarumã, que se encontra na obra Mitos e lendas do Amapá.
Todas as noites, após o jantar, fartos de tomarem açaí com peixe assado na brasa, temperado com limão e pimenta, iam para debaixo dos mosquiteiros. Sob a penumbra da lamparina, num clima de mistérios, a avó desfiava as histórias até tarde da noite. Ela sabia narrar com encanto e magia, de maneira que fazia a imaginação voar. Tudo era tão verdadeiro!
Enquanto ouvia as histórias que a avó contava, a menina olhava a fumaça que a lamparina expelia, imaginava os seres encantados no vapor que se formava. Era um desfile de seres girando permeados na fumaça, como se estivessem num carrossel. Pelas frestas da parede, entrava na casa o reflexo luminoso do luar. Era sempre assim, noites repletas de encantos ouvindo as histórias que a avó contava.
Dentre tantas e tantas histórias daquele repertório, tinha uma que se passava lá para as margens do rio Calçoene, de uma cidade do interior do Amapá. Essa história aconteceu há muitos anos: a lenda do Tarumã, de origem indígena, do povo Aruaque, que vivia à margem esquerda do rio Amazonas, na foz do rio Negro. Era uma aldeia indígena muito pequena, rodeada com grandes árvores frutíferas de ingá, cupuaçu, pupunha, açaí, bacaba e outras saborosas, nas quais pousavam pássaros com seus cantares, o chão coberto por uma tonalidade especial, um rosado encantador com as flores de jambu que se espalhavam nele, causando mais belezura à paisagem.
Um lugar carregado de encantos e protegido pelos espíritos da mata, do rio e igarapés. Na penumbra, refletiam seus vultos, sempre fiéis, protegendo e vigiando a natureza para que ninguém viesse causar nenhum dano àquela que alimenta, dá luz, é força e enfeita a vida de beleza: a Mãe Natureza.
A aldeia inteira respeitava, o clima era de perfeita harmonia, ambiente cheio de vida. Os tarumãs sempre envolvidos com suas atividades, andavam livremente, cuidando do roçado, do plantio, da colheita, da torra da farinha. Eram conhecedores da medicina caseira e das rezas das benzedeiras.
A avó contava a lenda do tarumã para filhos, netos, sobrinhos, visitantes e quem mais desejasse ouvir. Dizia assim: “Num dia de noite estrelada e enluarada, nasceu Ubiraci, com todo seu ser recebendo as energias da terra, água e céu. Foi uma noite diferente, aquela, os pássaros cantaram em coro, as águas entraram em rebuliço, os animais da terra emitiram sons sincronizados, foi uma festa. Curumim Ubiraci recebeu todas as bençãos de Tupã. Ao nascer, recebeu dons, o de falar com animais do ar, terra e água. Quando criança, passava horas conversando com o japiin, no rio as pratiqueiras, os tambaquis, tucunarés e muitos outros, ficavam horas contando as proezas das profundezas das águas para ele. Na mata, esquecia o tempo conversando com a onça, a jaguatirica, a anta e todos os animais da Terra. Todos o amavam.
“O tempo passou. Ubiraci cresceu, um jovem muito bonito se tornou, não havia um ser vivente que não amasse aquele jovem. Na aldeia, recebia carinho de todos, era um ser especial. Sempre que colocava os pés fora da oca, as borboletas vinham lhe saudar, as andorinhas faziam círculos a sua volta. Era encantador ver tanta magia. Todas as manhãs, Ubiraci fazia seu passeio, conversava com os animais, recebia palavras de sabedoria, aprendia como usar as ervas nas enfermidades.
“Um dia, quando ia andando pela floresta, avistou uma moça de cabelos negros, cobrindo seu colo com tanta beleza. Ele ficou encantado. Passou a observá-la todos os dias,
sem se aproximar dela. Ela também era abençoada. Possuidora de dons de mãos mágicas, onde tocava fazia desabrochar sementes, flores perfumadas, se voltasse as mãos para o ar, podia controlar as chuvas, ventos e trovões, se tocasse os rios controlava as marés e as pororocas.
“Ubiraci se encantou por ela, ficou tão apaixonado. Ele não sabia que ela era a Mãe Natureza. Num dia, ele achou que não a tinha encontrado. Então passou a procurá-la por todo lado, sem entender que ela estava em todos os lugares. Ele estava tão apaixonado que nunca mais conversou com as flores, árvores, animais do ar, terra e mar. E começou a perder seu dom. Ele ficou cada dia mais entristecido e se esqueceu do dom que recebeu de Tupã desde que nasceu, esqueceu de conversar com os animais e as árvores, o perdendo para sempre.
“Um dia, quando todos dormiam, Ubiraci viu a lua refletida na água, imaginou que na Lua poderia encontrá-la. Ele mergulhou no rio, mas, quanto mais lutava contra a correnteza, mais a Lua se afastava dele. Ele se afastou tanto que não voltou mais das profundezas da água. Tupã com dó dele e do amor que ele sentia, o transformou em uma árvore, no meio do rio. Mas algo estranho começou a acontecer. Toda vez que a maré subia a árvore desprendia suas raízes e navegava contra a correnteza. Logo, os povos das aldeias viram algo estranho acontecer. Eles pensaram se tratar de misuras, ficaram muito assustados. Eles batizaram o nome da árvore de Tarumã, que significa ‘tronco que se move’.
“O tempo passou e quando alguém sofre por algum amor impossível, oferece uma oferenda para Tarumã, deixando a oferta no tronco da árvore. Dizem que se o tronco navegar e voltar vazio, o pedido se realiza. E assim acontece até hoje, os
turistas indo até o rio encantado Araguari, fazem oferendas em busca de seus amores.”
Após terminar a história, a avó olhava ao seu redor, todos dormindo, só a menininha com os olhos arregalados dizia: “conta mais vovó!”