Existe uma força, um fortalecimento, avassalador, quando mulheres se reúnem para criar. A Filosofia de Terreiro assenta nas Ìyami esse fundamento: não há nada que se faça sem as mulheres, sem a sua permissão. Não há poder que se roube delas, que o Cosmos não circule e não cobre de volta a elas. Elas dizem, estabelecem o que será e o que não, e assim se faz.
O poder da Palavra é político e mulherista. Diz o ìton que foi Ìyálóde aquela que primeiro estabeleceu a comunicação entre o rei Obá Nlá e o povo que vivia fora do palácio, repleto de necessidades. Foi a ela que ele ouviu, no seu modo de contar o que precisava ser dito. Com uma colher de mel e outra de dendê.
O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo (trans e cisgêneras). Portanto, em um país em que uma mulher é agredida fisicamente a cada dois minutos, é vítima de estupro a cada oito minutos, refundar as mentalidades sociais é premissa basilar de um bem viver. E isso pode ser feito nas bases... pelo dizer... pelo contar... pelas histórias... pela Palavra...
O convite que eu te faço, então — que nós fazemos — é: leia e conte e reconte estas histórias não apenas como entretenimento, mas como uma ação micropolítica: são vozes de mulheres que selecionaram histórias que expandem, que excorporam o mais honesto de si para compartilhar conosco!
Este livro é um Ação MicroPolítica.
Relembrar e recontar as histórias ancestrais, antigas e anteriores, é estabelecer o acordo com fundamentos societários que nos colocam de pé, que estão ali velados entre as palavras e o seu anunciar. E é nessa fagulha entre o silêncio e a sonoridade que a magia de criar restaura a vida. Chama Chamar Arrogar.
Essas histórias não são para amolecer, mas para atravessar; são histórias de arrogar!
Arrogar o Poder que já é nosso.
Arrogar-se de nosso ser Ìyálóde.
Tatiana Henrique mãe, ìyàwó de Òṣàálá, tecedora de dimensões e imaginações
O BRASIL CONTADO
POR MULHERES
Organizado por Camila Costa
Narradoras-autoras
Anamô Soares
Camila Costa
Emiliana Moraes
Gizele Santos
Julia Grillo
Juliana Franklin
Lúcia Morais Tucuju
Marcela Carvalho
Rita Gama
Rosana Reategui
Direção editorial: Jean Cândido Brasileiro
Design da capa: Edições Cândido
Bordado da capa: Marcela Carvalho
Ilustrações: Flávia Trizotto
Fotografia: Marcio Coutinho
Esta obra está protegida por direitos autorais de acordo com a Lei 9.610/98.
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C837
Chama das histórias : O Brasil contado por mulheres / organização Camila Costa -
1. ed. - Niterói [RJ] : Cândido, 2022.
116 p. ; 19 cm.
ISBN 978-65-87602-28-8
1. Contos brasileiros. I. Costa, Camila. II. Tabajara, Auritha
CDD: 869.3
CDU: 82-34(81)
2022
Todos os direitos dessa edição reservados à EDIÇÕES CÂNDIDO BRASILEIRO LTDA.
Rua General Andrade Neves, 63 / 401
São Domingos | 24210-000 | Niterói/RJ
Impresso no Brasil
Acendendo a fogueira
Contam alguns povos antigos, que a palavra possui o poder criador. Ela é em si um espírito vivo, seja a palavra falada ou cantada. No início de tudo, bem no começo, no tempo antes do tempo, foi por meio da palavra que os seres que vivem nasceram na Terra. A palavra cria a vida e, por isso, ela possui também o poder de regenerá-la.
Cada vez que uma história é contada em voz alta, a vida é (re)criada. Quando ouvimos uma história, é diretamente ao nosso espírito que essa qualidade de palavra se dirige. E para que o espírito possa viajar em segurança, é preciso manter o corpo aquecido. Para isso, alimenta-se o fogo. A chama que queima a madeira nos lembra também sobre o mistério que habita em tudo que vive.
Em abril de 2019, convidei narradoras que admirava para nos reunirmos ao redor da fogueira e compartilharmos histórias. Elas aceitaram o convite. Pessoas queridas vieram nos ouvir. Ali, naquela noite, ao redor do fogo e sob a luz da lua, nascia a “Chama das Histórias”. Desde então, o projeto reúne uma teia de vozes femininas que se debruça sobre o universo dos contos da tradição oral.
Ao longo dos últimos anos, apresentamos nossas Rodas de Contação de Histórias ao redor do fogo em importantes festivais e espaços de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Criamos algumas Rodas em formato audiovisual, disponíveis no nosso canal do YouTube; realizamos o seminário online “Oralidade: Caminhos dos contos de tradição oral” e este pequeno tesouro que você tem em mãos, é nosso primeiro livro publicado.
As histórias reunidas aqui, guardam importantes ensinamentos sobre quem somos ou podemos ser. São versões de contos tradicio-
nais brasileiros de variadas origens. Somos dez autoras e nas páginas adiante você poderá conhecer um pouco de cada uma de nós. A partir de pesquisas, e ao longo de um processo de estudo e criação, nossos textos nasceram para fazer eco às vozes originárias das culturas aqui reverenciadas. Você encontrará, também, as trilhas que percorremos e as fontes nas quais bebemos. Estejam elas nos rios das nossas memórias ou em bibliografias.
No ano em que se comemora o Bicentenário da Independência, colocam-se também algumas perguntas: Que vozes contam o Brasil? Independência para quem? Feita por quem? Quem são as heroínas e heróis dessa história? De que forma contar a(s) história(s) de um país tão diverso e multicultural? Somos muitas vozes reunidas nesses territórios que hoje chamamos Brasil. Ressoando das florestas, dos quilombos, dos interiores, comunidades, periferias, de todos os recantos. Vozes vivas. Vozes que sempre estiveram ecoando seus gritos de independência Brasil a fora, Brasil a dentro.
É preciso acordar os ouvidos e os sentidos. Ouvir. Ouvir sempre. Ouvir mais. Ouvir por todos os poros. De corpo inteiro. Acordada a escuta, quem sabe, seja possível construir a sociedade que sonhamos. Este livro deseja fazer ecoar as vozes da diversidade que constituem o nosso país, que tanto lutaram e lutam, até hoje, para resguardar suas liberdades e direitos. Nossa intenção é celebrar a identidade nacional por meio do reconhecimento e valorização dos múltiplos sujeitos que protagonizam a comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil.
Este é um livro-coro. Nossa escrita vem reverberar as vozes contidas nessa coleção de histórias. Este é um livro-pergunta. Que vozes contam o Brasil? Este é um livro-embate. Numa sociedade em que as narrativas estão em disputa, escolhemos estar nas trincheiras poéticas. Este é um livro-beleza. Ainda que o encontro entre culturas nessas
terras seja sangrento e opressor, a força dos universos simbólicos de cada povo que por aqui permaneceu, resiste, existe, se encontra e recria novas — antigas simbologias. Este é um livro-festa. Para nos lembrar que luta e celebração podem caminhar de braços dados. Este é um livro-roda. Construído coletivamente, a muitas mãos, por mulheres artistas da palavra que reuniram aqui seus talentos para imaginar outras realidades possíveis. A sociedade que desejamos é um projeto em construção.
Nas páginas a seguir, você irá passear por belíssimas paisagens, repletas de rios, matas, montanhas, cavernas e noites de lua cheia. Visitará o tempo em que os animais falavam. Mergulhará na profundeza dos mares e voará pela imensidão dos céus. Poderá saborear furtas suculentas. Sentirá o cheiro de fumaças perfumosas, curadoras e que podem se comunicar com os encantados. Ouvirá cantos de ninar, de embalar caminhos e de despertar sentidos. Você fará uma viagem por um Brasil profundo, por vezes, pouco escutado, e que tanto nos constitui. Mantenha o corpo aquecido. Alimente a chama. Permita-se. Boa viagem.
Camila Costa Criadora, curadora e gestora da Chama das Histórias.
Chama daS hiStóriaS
Auritha Tabajara
Qual tempo estamos falando?
Período colonial?
De quando onça falava Governada por Portugal? Quando planejavam tudo?
Aqueles homem barbudo, Matando meu ancestral?
Pai Tupã, mãe natureza, Dai me sempre inspiração, para acordar pensamentos, Da criança ao ancião, Da voz que vira semente E nascer independente, Cada nova geração.
Te peço sabedoria
Não para ganhar troféu, Mas para contar histórias Na linguagem do cordel, Na roda o fogo acender, Com ancestrais aprender Abelhas tirando o mel.
Cada cultura possui
Histórias pra se contar, Assim explicar as coisas, Uma forma de educar, Do sábio ao inteligente
Ter o dia como um presente Seu tempo valorizar.
Duzentos anos completa, Comemora a independência, De quem goza autonomia
E se diz ter competência, De um Brasil ensanguentado Onde ninguém é culpado, Morre por insuficiência.
Diversidade esquecida
E o plano de exterminar, Os povos originários
Para as terras explorar, Esquecer nossa memória
Esse Brasil tem história
Queremos livres contar.
Nossa luta tem grandeza
Desde a colonização, Ausência de muitas coisas
No pilar da educação, Falta de conhecimento
Sobre os reais movimento Das mulheres desta nação.
Para saber quem são elas
É preciso pesquisar, Na escola não se fala
Nem das do nosso lugar, Indígena então, nem existe, Isto pra nós é tão triste, Não se deve comemorar.
Quando falam de poder, Lembro logo da gasolina, Prefiro falar agora
De Rachel e Elis Regina, Dandara, Maria Quitéria
Marielle Franco e Valéria
E de Cora Coralina.
E da cacique pequena, Ara Sonia Guarani
Hamanguaí Pataxó, Yaká Huni Kuin
De Eliane Potiguara
De Auritha Tabajara
E as demais que vão surgir.
O Brasil que foi contado
De um jeito distorcido, Dizem que foi descoberto, Mentira, foi invadido, Maltrata a mãe natureza.
O que temos de riqueza
Está sendo destruído.
Nossa memória é perfeita, Das origens do sagrado, Quando vovó me contava
Que o gato era malhado, Que o guará não dormia, A onça com sabedoria, Deixava tudo guardado.
E assim tantas mulheres
Que vem pra contribuir, Darmos continuidade
E podermos construir, Semear imaginação, Pra futura geração, Boas lições atingir.
Leia o quanto puder,
E sinta a experiência, Ative sua memória, Aquelas de sua vivência,
E nos ajude a contar
Histórias para educar
As mentes de resistência.
a Saga de Nã
Apresentação
Quando soube que a “Chama das Histórias” realizaria esta publicação, busquei escutar a mim mesma e as vozes que eu sentia serem imprescindíveis para pensar um Brasil contado por mulheres. Escolhi recontar a história de Nã Agontimé, porque ela traz a beleza da condição humana com suas luzes e sombras. A batalha constante entre traição e verdade, medo e coragem. Por trazer a superação de uma mulher preta que sofreu perseguição e toda sorte de maldades.
Hoje, a mulher que vejo no espelho, caminha para frente à revelia de tudo que grite a sua volta. É nesse caminhar que os meus passos se encontram com os de Nã Agontimé.
Para escrever esta versão, revirei meu baú de memórias das conversas com minhas tias maranhenses, há muito tempo, num tempo ainda sem internet. Agora, no momento em que estou, tive sede de buscar. Encontrei caminhos na internet e os segui, site a site, até compreender a grandiosidade da Casa das Minas. Dessa forma reconstruí os caminhos trilhados por Nã Agontimé em sua saga, e compartilho aqui com vocês.
Esta é uma história cercada de mistérios, coragem e valentia, que aconteceu na Ilha de São Luís do Maranhão. Nesta cena, Nã Agontimé, uma mulher formidável que é nada menos que um dos alicerces da Casa das Minas, da nação Candomblé Jeje no Brasil.
De saias rodadas, sandálias e torso na cabeça, ela figura entre as heroínas da luta do povo preto que vive a diáspora no mundo. Como armas: sua astúcia, visão estratégica, liderança e força.
Nasceu no Vilarejo de Tendji, no Reino de Daomé, no século XVIII. Agontimé — uma das oito esposas do Rei Agonglo — foi mãe aos 20 anos, dando à luz ao Principe Gakpe. Entretanto, o futuro lhe reservava outras cores e nuances para uma nova história…
Durante o reinado de Agonglo, Ifá enviou uma revelação de que seu herdeiro e sucessor ao trono, Adandozan, seria um desastre para o reino Daomé devido ao seu temperamento e falta de senso de justiça. O rei elegeu, então, Gakpe, seu filho com Agontimé, para sucedê-lo.
O rei morreu muito jovem, aos 31 anos de idade, e contra a vontade póstuma do pai, Adandozan sobe ao trono. Incompetente como rei e cruel como homem, temendo uma reação contra à traição ao seu irmão, vendeu Agontimé como escravizada a um traficante, dando ordem que a rebatizassem para que jamais fosse encontrada novamente.
Durante muito tempo, perdeu-se o paradeiro de Agontimé nos registros históricos do Daomé. Gakpe, filho de Agontimé, fugiu para o exílio, retornando a Daomé somente anos depois, quando prendeu seu irmão traidor e subiu ao reino. Imediatamente, enviou uma expedição em busca de sua mãe nas Américas. Ele a nomeou como Kpojito — Rainha Mãe.
Nã Agontimé foi fundamental para a fundação da Casa das Minas no Brasil e como esta tradição secular ganhou força em São Luís do Maranhão, vocês agora saberão:
Durante sua vida como escravizada, pareciam longas as noites, en-
volvidas pelo véu do medo, do cansaço por tantas lutas travadas. Mas toda ameaça tem um dia seu tempo de esvair. Para o pulso forte de Nã Agontimé, era chegado o tempo de virar a mesa e dar um fim naquela dança perigosa de exploração, abusos e escravidão.
Iluminada à luz do candeeiro numa palafita, após anos sem notícias da família e sofrendo a opressão de seu senhor, Nã Agontimé fugiu para um quilombo. Fundou um reino que resistiu à escravidão e ao tempo, ensinando o culto tradicional aos voduns daomeanos, mantendo vivas as tradições espirituais na diáspora. Embevecida pela determinação, ecoou de forma altiva: o cativeiro acabou! No que todas as mulheres da Casa das Minas foram repetindo numa espiral: — O cativeiro acabou!
Maria Jesuína, como foi rebatizada pela maldade do filho de Agonglo, é Vondunsi de Toi Zomadônu, considerada o Vodun mais importante do povo Fon. Ela retorna ao Daomé, deixando raízes no Brasil onde fundou o culto de tradição Ewe-Fon.
O legado da rainha Nã Agontimé está vivo nas africanas e africanos que cultuam seus ancestrais na diáspora brasileira. Por suas lutas e por sua força de espírito é reconhecida até hoje como a Rainha de Dois Mundos.
iCamiabaS: aS
amazoNaS doS
rioS e mataS
Rosana Reategui
Apresentação
Quando chegou o convite em acender nossa Chama com a criação de um livro, pensei na tarefa um tanto difícil de escolher uma única narrativa entre tantas. Venho me debruçando há alguns anos na pesquisa dos territórios femininos. Foram as mulheres divinas e humanas que me emprestaram seus caminhos para que eu possa procurar meus propósitos como narradora de histórias e como mulher migrante latino-americana.
A dificuldade na escolha era pela urgência ante nossa sobrevivência como sociedade. Sentir nossos coletivos cansados me fez decidir por uma história de matriarcados. As temidas e misteriosas amazonas sempre me acompanharam em leituras, desenhos e poesias.
Há alguns anos venho juntando diferentes narrativas sobre elas, mas nunca as narrei e menos as escrevi. Então, este convite veio com urgência, esperança e desafio. Criei esta história autoral: “Icamiabas: As amazonas dos rios e matas”, baseada em estudos e leituras históricas e poéticas. O livro Las amazonas: Un estudio de los mitos atenienses, de William Blake Tyrrell, foi o primeiro livro que li sobre elas. Para saber do matriarcado de nosso continente, foi importante os estudos da antropóloga e escritora Betty Mindlin, sobretudo no seu artigo “Amazonas ou Icamiabas”.
Meu conto é um enorme agradecimento às primeiras feministas das florestas, as reais e sonhadas. Saber delas é saber de nós. De nossos corpos que carregam alimento e armas para seguir fundando nações.
Odeus Sol e a deusa Lua, juntos, decidiram criar um reino na floresta. De mãos dadas, olhando para a Terra, anunciaram para os ventos que tudo aquilo que pulsa guardaria as sabedorias da noite e do dia.
Desde a pedra quieta e pequenina até os súbitos e estrondosos movimentos dos trovões e das águas. “Tudo na floresta terá alma”, o deus Sol falou e “tudo que pulsa terá olhos e língua”, sussurrou a deusa Lua. Fecharam seus olhos e sonharam juntos.
Assim foi que depois de uma longa chuva, surgiu, na terra molhada, uma fenda profunda que virou uma boca enorme e se escutou um grito antigo que rasgou o manto do chão e fez brotar a maior floresta do mundo, banhada por um rio mar. Lua e Sol sorriram ao mesmo tempo e das suas bocas se escutou: “Essa grande casa estará cheia de labirintos de terras, ventos e águas e será habitada e cuidada por espíritos, plantas e bichos”. Contam que quando deram à luz a esse bosque, Sol e Lua se amaram e do prazer surgiu o arco-íris e na Terra quis ficar. Assim aconteceu nos tempos antigos, e este nascimento se soube pelas bocas dos pássaros e o murmúrio dos vaga-lumes. Cada coisa criada era abençoada, agradecida e comemorada em louvor aos deuses e as festas e cantos duravam dias e noites.
Até que um dia, um ser poderoso que vivia na floresta, chamado Jurupari, acordou, olhou em volta e franziu o cenho. Pediu licença para falar com seu pai, o deus Sol, mas não quis chamar a mãe Lua. Jurupari prometeu que faria um reino poderoso onde o Sol seria o Deus supremo e os bichos homens seriam seus guerreiros. O Sol, ao escutar essas palavras, envaidecido, envolveu Jurupari em seus raios e tomou mais força para seguir anunciando a nova ordem: Que o lugar público seria domínio só dos bichos machos, que a deusa Lua era mulher e portanto devia esperar atrás do Sol. Tomou ar e continuou sentenciando: Que a partir desse dia todas as mulheres da floresta não poderiam participar
das cerimônias e que qualquer atrevimento a essa nova ordem, sofreria punição sem piedade e haveria castigos mortais àquelas que ousassem tocar as grandes flautas cerimoniais. Com a voz cada vez mais grave, estufando o peito, Jurupari esbravejou que sendo instrumentos sagrados, não poderiam ser tocados por bichos que escorriam sangue entre as pernas.
Quando acabou, toda a floresta silenciou.
As mulheres aguardaram para contestar essa nova ordem. Pediram proteção à deusa Lua e numa noite escura deixaram esse reino solar. Cobertas pelo manto nublado do céu, deixaram suas ocas onde dormiam seus pequenos filhos homens. Partiram guiadas pelas estrelas numa floresta que sussurrava e gritava. Caminhando, correndo e se arrastando, elas deviam encontrar nas serras de Nhamundá o misterioso lago onde a deusa Lua tomava banho.
O caminho foi penoso, pois a mata estava em guerra, Sol e Lua se enfrentavam e quando isso acontecia a floresta se agitava, revelava e se escondia. Elas que fugiam para se encontrar, compreenderam que tudo na selva tem vida e também morte. Depois de muitos dias, algumas desistiram e voltaram, outras, finalmente encontraram descanso nas montanhas da mata, entrando nas misteriosas águas do lago Jaciuaruá.
E foi assim que, na maior floresta da Terra, surgiu o primeiro reino de mulheres, tendo como deusa a Lua e como rainha a matriarca Conhori.
Com a proteção da sua deusa, essas mulheres nômades aprenderam a correr e caçar na embrenhada mata, levar suas casas e crias nos corpos e saber levantar suas ocas nos esconderijos que a natureza improvisava. E de tudo o que pulsava deviam saber escutar. Sobre os mistérios da vida e da morte a floresta ensinou. Temidas e admiradas, quem delas falava as nomeava como as mulheres sem
marido, as Icamiabas. Seus peitos fartos seguravam alimento e armas. Prontas para guerrear, amarravam no peito direito lanças, tacapes, bordunas e zarabatanas, dos grandes cascos de tartarugas faziam escudos e suas montarias eram sobre os porcos selvagens.
Quando chegava a festa da grande mãe, o grande lago Jaciuaruá cintilava e as Icamiabas mergulhavam nele para trazer barro verde e dar forma às muiraquitãs, pequenas proteções em forma de anfíbios oferecidas aos homens escolhidos que se aventuravam em visitá-las. Para as Icamiabas, o encontro com o bicho homem era apenas por uma noite. Para acalmar desejos e, sobretudo, para procriar, pois quando uma menina nascia o reino das Icamiabas crescia.
E o tempo no mundo começou a ser medido com números e foi no ano de 1541, quando chegaram na floresta, homens de terras distantes que cobriam seus corpos com pelo e metal.
Para as Icamiabas, toda urgência era avisada tocando nas sapopemas, as grandes raízes das samaúmas. Seus sons atravessavam a floresta. Percebendo que o cheiro trazido pelos invasores era forte, as filhas da lua tocaram intensamente também nos troncos das árvores Mulungu. A floresta então ressoou e ressoou. O vento soprava um forte cheiro de sangue amargo.
Esses homens chegados do outro lado da floresta, carregavam armas que haviam tingido de sangue o reino do Peru. Mas a cobiça os seguia guiando e com fome de ouro atravessaram as cordilheiras para achar a misteriosa cidade abarrotada por canelas. Traziam da sua terra a crença cantada por piratas e corsários que onde houvesse canela as riquezas transbordariam. Então, armados com cruz, fogo e espada, uma grande comitiva decidiu invadir a floresta. O capitão era o temido espanhol Francisco Orellana, El Tuerto, homem de um olho só, e junto a ele, o Frei Carvajal.
Uma noite, escutaram um barulho ensurdecedor que rasgava e avi-
sava uma dura batalha. As guerreiras Icamiabas, iluminadas pela Lua, surgiram pálidas nas árvores, com os pés agarrados nas raízes parecendo mulheres gigantes. Seus cabelos se entrelaçavam nos galhos e desde o alto atiravam sem cessar suas venenosas zarabatanas e bordunas.
Atordoados, sem saber para onde correr, os homens fugiram pelo rio, gritando que estavam guerreando com encantados da selva. Foi aí que o Frei Carvajal lembrou das bravas amazonas, aquelas mulheres sem peito e sem maridos, vindas do Cáucaso. Com a cruz numa mão e a Bíblia na outra, ele gritava que eram as próprias fêmeas renascidas nesse lado do mundo.
O caudaloso rio levou o barco furado com mortos e feridos, um deles foi o capitão Orellana, atingido por uma borduna carregada com vinho de jurema. Essa planta escolhida, o faria voltar com ideias delirantes de perseguição. Para talvez em sonhos achar a cidade da canela que tanto desejava. Assim foi. Depois de muitos anos com novos barcos e homens, o capitão espanhol voltou e, abandonado, faleceu na beira de um rio.
Os que chegaram vivos escreveram para os reis de lá que as Icamiabas eram as novas amazonas. Por aqui, a deusa Lua abençoou o nome e Amazonas passou a ser chamada a terra, a mulher e o grande rio mãe.
Depois de muitos séculos, homens incrédulos continuaram voltando para guerrear com elas, para imaginá-las ou possuí-las, mas nunca as encontraram. Não souberam escutar o silêncio da mata. Elas estão aí, perto dos rios, descansando no lago espelho da lua ou avisando pelo toque das sapopemas. Nesta terra sempre haverá amazonas, icamiabas, mulheres sem marido, guerreiras solitárias, revolucionarias, feiticeiras da mata que atravessaram os tempos para fazer-nos lembrar de nossa força.
o fumo da mulher feitiCeira
Camila Costa
Apresentação
A primeira vez que li “A origem do fumo”, fez morada em meu corpo a imagem da mulher renascendo árvore. Era, então, março de 2019. Foi a primeira história que contei. Cerca de um ano e meio após o nascimento da minha filha, Serena. Nesse tempo, eu buscava caminhos para florescer. Em meu corpo, algo ainda desconhecido, havia germinado. O caminho que encontrei foi o das histórias. Desde então, sigo caminhando de braços dados com elas.
Ao narrar “A origem do fumo”, morri e renasci, muitas e muitas vezes. Agora, ao escrevê-la, sinto-me novamente revelando algo muito íntimo, que eu mesma não sei nomear. Me fascina o dom que vive nas histórias tradicionais — serem, ao mesmo tempo, tão distantes e tão íntimas de cada uma de nós. Comigo e “A origem do fumo”, foi mais ou menos assim… Por isso, escolhi trazê-la para este livro.
Meu primeiro contato com a história se deu através do livro Contos indígenas brasileiros, de Daniel Munduruku. Em 2020, chegou até mim, por meio de Patrícia Freitas, a versão narrada por Kaliketé em língua Terena e traduzida para o português por Haháoti. Essa versão foi registrada em artigo publicado na Revista do Museu Paulista pelo alemão Herbert Baldus, em 1947. Segundo o artigo, o narrador indígena Kaliketé ouviu a história de seu pai e tinha, na época, 75 anos de idade. Esses são alguns rastros que nos permitem observar as vozes que nos fios do tempo, possibilitaram que essa história chegasse até nós. Como narradora-pesquisadora me coloco
a desembaraçar fios e colaborar na tessitura sem fim da teia de saberes que vivem nessas histórias. A partir dessas duas fontes e do emaranhado das minhas imagens internas — que foi se construindo ao longo das muitas vezes que narrei essa história — criei a minha versão do conto, a qual chamei “O fumo da mulher feiticeira”. Entrego-a aqui a vocês.
Salve a palavra encantada dos povos da floresta!
Peço licença a todas as vozes indígenas que lutaram e lutam até hoje para contar suas próprias histórias. Faço aqui coro a elas.
Desde os tempos mais remotos, as mulheres do povo Terena, quando se reúnem ao redor da fogueira para ouvir e contar histórias, escutam das mais velhas que há tempos atrás, viveu na aldeia uma mulher que não gostava do marido. Por isso, resolveu fazer um feitiço para ele. Ela era uma mulher feiticeira que conhecia muito bem as plantas e os seus poderes. Ela escolheu o caraguatá e quando seu sangue desceu, o colocou no interior da planta. As avós do povo Terena contam que desde esse dia o caraguatá passou a ser vermelho por dentro.
Tendo preparado o feitiço, a mulher ofereceu o broto do caraguatá para o marido comer. Ele aceitou. Pouco tempo depois, os efeitos começaram a aparecer. O marido se sentiu fraco, não conseguia trabalhar. Mal podia caminhar, passou dias amuado na rede e, permanecendo assim, em pouco tempo, morreria. Acontece, que o filho do casal viu a mulher preparando o feitiço e contou tudo ao pai. O marido, ainda abatido, decidiu se vingar, com a ajuda do filho.
Os dois atravessaram o pátio da aldeia, o filho amparando o pai que caminhava com dificuldade. Ao passar pela mulher, o marido disse, com a voz cansada, que os dois iam no mato buscar mel. A mulher, que sempre foi louca por mel, fez gosto e não desconfiou de nada.
Pai e filho sumiram na mata. Logo o homem avistou uma árvore com uma cobra e uma abelheira jati. Ele flechou a cobra e rasgou o tronco para tirar o mel. Em seguida, abriu a barriga da cobra, tirou lá de dentro um filhote e misturou parte do mel com as vísceras da cobra. Os dois retornaram à aldeia com duas vasilhas, uma com mel puro e outra com mel misturado.
Assim que os viu chegar, a mulher se aproximou e pegou uma das tigelas de mel. O marido disse que aquela estava separada para o filho, a dela era a outra e apontou para a vasilha com o mel misturado. Ela sequer questionou, tamanho era o seu desejo de saborear aquela iguaria. Debruçou-se
sobre o pote e começou a deliciar-se. Era mel do bom, doce, espesso, dourado. Ela pegava grandes quantidades com as mãos e levava até a boca com imenso prazer. Demorou até ela perceber a coceira estranha que começava a se espalhar por todo o seu corpo. Sentindo-se como num formigueiro, a mulher se deu conta de que aquilo só podia ser uma armação, vingança do marido.
Deitado numa rede pendurada no canto da maloca, ele a observava o tempo todo. Enquanto se arrastava nas paredes de palha em busca de algum alívio para a coceira, ela topou com o marido, que disse:
— Foi você quem fez a maldade comigo primeiro, mulher, eu só me vinguei.
— Pois então, pai do meu filho, eu vou comer você — respondeu a mulher com os olhos em chamas.
O marido se levantou da rede aos pulos e saiu correndo. Atravessou o pátio da aldeia e se embrenhou no mato, tentando escapar da fúria da mulher. Ela corria e se coçava, se coçava e corria, gritando:
— Eu vou comer você!
Já fraco e sem ar, ainda sob os efeitos do feitiço do caraguatá, enquanto corria, o marido pensava numa maneira de se livrar da mulher. Lembrou-se que, mais cedo, na mata, passou por uma árvore onde havia um ninho com três filhotes de papagaio. Ele correu ao encontro dessa árvore e subiu nela o mais rápido que pôde. Ao ver que a mulher se aproximava, lá do alto, ele tacou um filhote de papagaio, o menor dos três, na sua direção. A mulher o devorou inteiro enquanto corria.
O marido, então, tacou um segundo filhotinho de papagaio, e a mulher o devorou ainda mais rápido que o primeiro e continuou correndo. Desesperado, ele jogou o terceiro filhote de papagaio na direção dela, esse era maiorzinho. Ela levou mais tempo para comê-
-lo. Nesse momento o marido conseguiu descer da árvore e saiu em disparada pela mata, tentando fugir. Logo a mulher o alcançou novamente. Ela corria e gritava:
— Eu vou comer você!
A perseguição prosseguia por entre árvores, galhos, folhas, troncos, cipós, até que o marido se lembrou que, certa vez, havia feito um fojo para caçar animais e correu na direção do buraco. Ao ouvir a mulher se aproximando, escondeu-se na mata. Ela vinha veloz e voraz e, sem saber da armadilha, sentiu seus pés perderem o chão. Ouviu-se um grito rouco e, em seguida, a mata silenciou. A queda foi fatal.
O marido se aproximou e permaneceu por alguns instantes observando o corpo sem vida da mulher caído lá no fundo. Ele resolveu cobrir o buraco com terra. Feito isso, se sentou para vigiar.
Não demorou muito e o corpo da mulher começou a buscar caminhos. Empurrou, forçou e foi criando espaços, fissuras, passagens. Ramificou-se. Essas ramificações agarraram-se à terra e tornaram-se raízes fortes e profundas. Com esforço, ela alcançou a superfície. O marido, quando viu a planta que crescia sobre o túmulo da mulher, pensou se tratar de erva daninha e a arrancou. Agora ela conhecia o caminho e mais facilmente, alcançou a superfície de novo. O marido tornou a arrancá-la. De nada adiantou, a planta voltou a crescer. O marido arrancou-a novamente. Mas ela insistia, teimava em voltar. Até que ele aceitou que ela cresceria ali, independente da vontade dele. Rapidamente, aquela pequena planta se transformou numa árvore frondosa, com folhas largas e amareladas. Era uma árvore diferente de todas as outras ao redor. Algo que aquele homem nunca tinha visto. Curioso, ele se aproximou da árvore e percebeu que das suas folhas exalava um perfume, um cheiro que ele jamais havia sentido. Ele arrancou algumas folhas e colocou no sol para secar. Depois picotou as folhas secas e pôs no seu cachimbo de barro.
Por não saber do que se tratava, ele não acendeu seu cachimbo à luz do dia. Esperou anoitecer. Na mata, sob a luz da lua, fez uma pequena fogueira e, então, começou a pitar. Conforme ele pitava, uma fumaça cheirosa foi se espalhando pela floresta, passando por entre as folhas e galhos e chegou ao terreiro da aldeia. Ali, todos cantavam e dançavam em celebração. A fumaça dançou com os corpos dos parentes. Um a um, eles foram sentindo aquele cheiro perfumoso, até então desconhecido. Todos ficaram curiosos. O marido não quis contar o seu segredo, achava que a árvore era só dele.
As avós Terena contam que os parentes começaram a vigiá-lo, seguiram o marido pelo meio da mata e viram quando ele foi até a tal árvore desconhecida, arrancou suas folhas e colocou no sol para secar. Eles viram tudinho como o marido fazia. Em pouco tempo, todas e todos na aldeia estavam pitando o fumo da mulher feiticeira. Assim contavam as avós, assim eu conto a vocês.
Eles não sabiam que nós éramos sementes.
a leNda do tarumã
Lucia Morais TucujuApresentação
Vou contar pra vocês essa história de um moço que se encantou nas água do Rio Araguari, virou pau, madeira de amor (Ormar Jr e Amadeu Cavalcante).
A história que aqui apresento permeou minha infância, faz parte do universo no qual fui criada, muito contada no Amapá. Bateu-me essa vontade de contá-la aqui, porque além de fazer parte da minha vida e ser recheada de encantos, nasceu o desejo de que outras pessoas conheçam e possam se embrenhar no universo amazônico.
Conheci pela voz de uma grande contadora: Vovó Ana, que da maneira mais simples narrava e encantava. “A lenda do Tarumã” é retratada na música do intérprete amapaense Amadeu Amapaense, composição de Osmar Jr., intitulada “Tarumã”. O escritor maranhense, radicado no Amapá (in memoriam) Joseli Dias, escreveu a lenda do tarumã, que se encontra na obra Mitos e lendas do Amapá.
Todas as noites, após o jantar, fartos de tomarem açaí com peixe assado na brasa, temperado com limão e pimenta, iam para debaixo dos mosquiteiros. Sob a penumbra da lamparina, num clima de mistérios, a avó desfiava as histórias até tarde da noite. Ela sabia narrar com encanto e magia, de maneira que fazia a imaginação voar. Tudo era tão verdadeiro!
Enquanto ouvia as histórias que a avó contava, a menina olhava a fumaça que a lamparina expelia, imaginava os seres encantados no vapor que se formava. Era um desfile de seres girando permeados na fumaça, como se estivessem num carrossel. Pelas frestas da parede, entrava na casa o reflexo luminoso do luar. Era sempre assim, noites repletas de encantos ouvindo as histórias que a avó contava.
Dentre tantas e tantas histórias daquele repertório, tinha uma que se passava lá para as margens do rio Calçoene, de uma cidade do interior do Amapá. Essa história aconteceu há muitos anos: a lenda do Tarumã, de origem indígena, do povo Aruaque, que vivia à margem esquerda do rio Amazonas, na foz do rio Negro. Era uma aldeia indígena muito pequena, rodeada com grandes árvores frutíferas de ingá, cupuaçu, pupunha, açaí, bacaba e outras saborosas, nas quais pousavam pássaros com seus cantares, o chão coberto por uma tonalidade especial, um rosado encantador com as flores de jambu que se espalhavam nele, causando mais belezura à paisagem.
Um lugar carregado de encantos e protegido pelos espíritos da mata, do rio e igarapés. Na penumbra, refletiam seus vultos, sempre fiéis, protegendo e vigiando a natureza para que ninguém viesse causar nenhum dano àquela que alimenta, dá luz, é força e enfeita a vida de beleza: a Mãe Natureza. A aldeia inteira respeitava, o clima era de perfeita harmonia, ambiente cheio de vida. Os tarumãs sem-
pre envolvidos com suas atividades, andavam livremente, cuidando do roçado, do plantio, da colheita, da torra da farinha. Eram conhecedores da medicina caseira e das rezas das benzedeiras.
A avó contava a lenda do tarumã para filhos, netos, sobrinhos, visitantes e quem mais desejasse ouvir. Dizia assim: “Num dia de noite estrelada e enluarada, nasceu Ubiraci, com todo seu ser recebendo as energias da terra, água e céu. Foi uma noite diferente, aquela, os pássaros cantaram em coro, as águas entraram em rebuliço, os animais da terra emitiram sons sincronizados, foi uma festa. Curumim Ubiraci recebeu todas as bençãos de Tupã. Ao nascer, recebeu dons, o de falar com animais do ar, terra e água. Quando criança, passava horas conversando com o japiin, no rio as pratiqueiras, os tambaquis, tucunarés e muitos outros, ficavam horas contando as proezas das profundezas das águas para ele. Na mata, esquecia o tempo conversando com a onça, a jaguatirica, a anta e todos os animais da Terra. Todos o amavam.
“O tempo passou. Ubiraci cresceu, um jovem muito bonito se tornou, não havia um ser vivente que não amasse aquele jovem. Na aldeia, recebia carinho de todos, era um ser especial. Sempre que colocava os pés fora da oca, as borboletas vinham lhe saudar, as andorinhas faziam círculos a sua volta. Era encantador ver tanta magia. Todas as manhãs, Ubiraci fazia seu passeio, conversava com os animais, recebia palavras de sabedoria, aprendia como usar as ervas nas enfermidades.
“Um dia, quando ia andando pela floresta, avistou uma moça de cabelos negros, cobrindo seu colo com tanta beleza. Ele ficou encantado. Passou a observá-la todos os dias, sem se aproximar dela. Ela também era abençoada. Possuidora de dons de mãos mágicas, onde tocava fazia desabrochar sementes, flores perfumadas, se voltasse as mãos para o ar, podia controlar as chuvas, ventos e trovões, se tocas-
se os rios controlava as marés e as pororocas.
“Ubiraci se encantou por ela, ficou tão apaixonado. Ele não sabia que ela era a Mãe Natureza. Num dia, ele achou que não a tinha encontrado. Então passou a procurá-la por todo lado, sem entender que ela estava em todos os lugares. Ele estava tão apaixonado que nunca mais conversou com as flores, árvores, animais do ar, terra e mar. E começou a perder seu dom. Ele ficou cada dia mais entristecido e se esqueceu do dom que recebeu de Tupã desde que nasceu, esqueceu de conversar com os animais e as árvores, o perdendo para sempre.
“Um dia, quando todos dormiam, Ubiraci viu a lua refletida na água, imaginou que na Lua poderia encontrá-la. Ele mergulhou no rio, mas, quanto mais lutava contra a correnteza, mais a Lua se afastava dele. Ele se afastou tanto que não voltou mais das profundezas da água. Tupã com dó dele e do amor que ele sentia, o transformou em uma árvore, no meio do rio. Mas algo estranho começou a acontecer. Toda vez que a maré subia a árvore desprendia suas raízes e navegava contra a correnteza. Logo, os povos das aldeias viram algo estranho acontecer. Eles pensaram se tratar de misuras, ficaram muito assustados. Eles batizaram o nome da árvore de Tarumã, que significa ‘tronco que se move’.
“O tempo passou e quando alguém sofre por algum amor impossível, oferece uma oferenda para Tarumã, deixando a oferta no tronco da árvore. Dizem que se o tronco navegar e voltar vazio, o pedido se realiza. E assim acontece até hoje, os turistas indo até o rio encantado Araguari, fazem oferendas em busca de seus amores.”
Após terminar a história, a avó olhava ao seu redor, todos dormindo, só a menininha com os olhos arregalados dizia: “conta mais vovó!”
Seria Velha Jo Ca da borraCha a matiNta
Perera?
(Conto de cabocla ribeirinha)
Emiliana Moraes
Apresentação
Passei a primeira infância ouvindo histórias de visagens antes de dormir. Uma dessas era Matinta Pereira.
Ser mítico que está na mata, está em mim, está em nós, em nosso imaginário caboclo. Ela canta e apita no âmago da gente, trazendo à tona nossa ancestralidade marajoara. É identidade cultural milenar ribeirinha e indígena dos povos da Amazônia. Cada município tem suas próprias variações da Matinta. E nós, em São Sebastião da Boa Vista, no arquipélago do Marajó, tínhamos a nossa — a de que essa mulher de idade avançada, conhecida sob a alcunha de Velha Joca da Borracha, seria a Matinta Perera. Ou, pelo menos, seria uma de suas encarnações.
O Movimento de Contadores de Histórias da Amazônia — MOCOHAM — realiza, anualmente, o Baile da Matinta, quando rolam histórias das mais diversas sobre as muitas aparições dessa visagem. Ao receber o convite de Chama das histórias: O Brasil contado por mulheres, para levar para a escrita um conto tradicional brasileiro, este se apresentou! E eu trouxe a minha versão, memórias do meu Pará, como menina cabocla da beira do rio.
Lá pelos idos da década de 70 do século XX, eu e minha família morávamos no interior do Estado do Pará, os rios eram as nossas ruas, e a mata, lugar de onde poderia vir muitas histórias de arrepiar, por conta de seus misteriosos e vibrantes sons noturnos. Nos reuníamos antes de dormir, para ouvir histórias de visagens, de assombrações, sob a luz de lamparinas, candeeiros ou lampiões.
Naquela época, as diversões eram o rádio, que nem todo mundo tinha — aliás, só “rico” possuía — e o circo, que aparecia de tempos em tempos, causando sensação na cidade e, ao se aprumar, os artistas montavam o picadeiro, geralmente atrás do grupo escolar.
Uma penca de filhos, com diferença de dois anos de idade de um para outro, soltos pela cidadezinha, tomávamos banho no rio, corríamos descalços, ou com um chinelo de dedos, subíamos em árvores e comíamos fruta no pé. Brincávamos de roda, de ciranda, de macaca e de cemitério, quase todo dia. Jogávamos peteca, que era um dos melhores presentes que podíamos ganhar, e jogos de botão, que os meninos amavam e eram vidrados! Até ao cemitério de verdade íamos passear!
Havia um respeito dentro de mim, ao cuidar de recolocar cruzes que tinham caído dos jazigos no chão, ou ao ajeitar algum ramo de flores, que porventura um parente tivesse ofertado ao seu querido falecido…
Mas ir até à casa da anciã, que respondia pela alcunha de Velha Joca da Borracha, huum… Na-na ni-na nã-o! Ninguém se aventurava! Ela era uma senhora de idade, que vivia sozinha e quieta em sua casa. Não conversava e nem dava papo para ninguém, e nem dava abertura para se entrosar com a vizinhança. Inclusive, jamais soube qual era seu nome de verdade. Era sequinha, bem magra, desprovida de dentes, e seu rosto parecia um maracujá esquecido na gaveta, de tão engilhado que era, ééégua!
De uma distância segura, víamos andar meio curvada, a se embalar na sua rede, ou a limpar seu terreiro com vassoura feita de cacho seco
de açaizeiro. Diziam que era a Matinta Pereira e ia nos pegar! E pegaria sem motivo nenhum! Cada cidade tem a sua pessoa encantada, que carrega a maldição macabra de virar essa bruxa, a Matinta. E a Velha Joca da Borracha era a nossa. Que apelido mais matintoso, né? Às vezes, aparecia com os cotovelos e joelhos ralados, então, minha irmã afirmava: “É a Matinta Perera, sim! Olhem como está toda batida!”
Falavam para nos assustar que, nas noites de lua cheia, tirava a própria cabeça e colocava dentro de sua rede e se transformava num “catitu”, um porco do mato, para assombrar quem quer que fosse! Diziam que no percurso pela estrada de São Sebastião até o Cocal, ela se socava dentro de uma imensa samaúma, em frente ao sítio Mirizal, pois essa árvore tinha um buracão por trás. E assim que estava deserto e algum desprevenido passava por ali, flagravam essa senhorinha sair de trás desse tronco enorme, em forma de curupira, mulher de branco, lobisomem ou Matinta!
Essas aparições aconteciam nas noites de plenilúnio com muita latumia, ruído e barulho, e sucedia essa transfiguração, essa metamorfose de homem, em lobisomem; de mulher, em mulher de branco; e de velha senhora, em Matinta Pereira!
Maty Taperê, Sererê
Saci Pererê, Siriri!
Rasga Mortalha, Saperê!
Matinta Pereira, Ave Saci!
Anos depois, descobri que a Matinta podia amedrontar, também, na forma de um pássaro agourento, chamado rasga mortalha, ave saci, e podia voar pelas cercanias do lugar, pedindo fumo. Se não fosse atendida, lançava uma maldição, uma praga, sobre a pessoa
solicitada. Em muitas culturas, aves e/ou pássaros simbolizam almas de pessoas mortas, podendo significar a visita de um parente falecido. Maty Taperê, chamado popularmente de Matinta Perera ou Saci, tem o canto estridente, associado ao pássaro tapera naevia.
Saci Tapererê, Maty Taperê!
Rasga mortalha, Saperê!
Tapera naevia, Sererê!
Siriri, Saci Pererê!
Eu ouvia tudo isso e imaginava um monte de história, mas o que ficou mesmo na lembrança, foi um grande medo de algum dia passar na ilharga, ou dar de cara com a Matinta! Virgem Maria! Nossa Senhora de Nazaré nos proteja!
Diz a lenda que na escuridão noturna, ela sopra um assobio agudo no telhado, e que nunca se sabe de onde vem. Ele é inquietante e medonho. E silva tanto, a ponto de perturbar o sono das pessoas e de dar um arrepio congelante no espinhaço da gente, assustar as crianças, arrebatar gemidos e resmungos, momento em que o dono da casa deve prometer tabaco ou fumo.
“Fiuuuuuuu! Fiuuuuuu! Fiuuuuuu!”
“Oh, Matinta, pode passar amanhã pra pegar seu tabaco.”
Hum! Tabaco! Fumo! Palavras mágicas para enfim, a Matinta calar o bico, fazer silêncio e a paz retornar ao lar atormentado. Entretanto, no dia seguinte, uma senhora bem velhinha aparece e bate na porta da residência onde a promessa foi feita, e cobra o fumo!
Tudo fica bem se a pessoa cumpre a promessa, porque a Matinta ama pitar em seu cachimbo, em seu petyngua, que é um objeto muito importante para o povo guarani m’byá, usado na casa de reza como meio de comunicação com as divindades, posto que a fumaça proveniente do tabaco
imitaria a neblina verdadeira, subindo para os céus, levando consigo o pensamento.
Esse domínio da bruma seria fortalecimento espiritual na busca para o conhecimento sobre a origem e evolução do Universo. Então a fumaça do petyngua subiria e o pensamento subiria junto, até alcançar Nhanderu, o Criador, a divindade. Quem sabe a Matinta, faz conexão com Nhanderu através do domínio da fumaça do seu cachimbo?
No petyngua que a Matinta pita Fumaça dela sobe e agita!
Essa bruxa agoura, assusta e grita! Fiuuuuuuuuuu! Fiuuuuuuuuuu!
Ah, tem mais! Contam que, na ocasião em que a pessoa que carrega a sina está para morrer, ouve-se uma pergunta no ar: “Quem quer, quem quer?”. Se alguma desavisada responde: “Eu quero!” Já era! Essa pessoa herdará e receberá o fado de ser a próxima Matinta Perera.
Tu queres?
Glossário
Visagens: Assombrações, aparições imaginárias de seres sobrenaturais ou inexplicáveis que provocam medo.
Macaca: Amarelinha ou Jogo da Macaca no Pará é uma brincadeira popular entre crianças; O nome brasileiro do jogo vem do francês marelle, que por adaptação popular ganhou a associação com amarelo e o sufixo diminutivo.
Cemitério: Também conhecido como queimada ou jogo do mata, é um esporte coletivo em que os jogadores de duas equipes tentam acertar os oponentes com uma ou mais bolas, evitando serem atingidos. O objetivo de cada equipe é eliminar todos os membros da equipe adversária, acertando-os com bolas lançadas.
Peteca: Bolinhas de Gude. A brincadeira reúne inúmeras crianças numa disputa que exige habilidade e precisão no jogo com pequenas esferas de vidro coloridas.
Engilhado: Engelhado. Que tem rugas, encarquilhado, enrugado.
Égua: Palavra usada por paraenses, não só para expressar surpresa, mas também raiva, frustração e outros sentimentos.
Batida: Machucada; ferimento físico.
Latumia: Assuada, ruído, barulho, lamentação.
Ilharga: Lateral do corpo, direito ou esquerdo; lado.
Pitar: Fumar cachimbo.
Petyngua: Tipo de cachimbo guarani feito de madeira ou cerâmica e utilizado em rituais ou no dia a dia. É um objeto de grande importância social e espiritual na cultura m’byá.
a leNda do beiJa-flor
Apresentação
No ano de 2007, comecei a trabalhar em uma biblioteca escolar. Logo me interessei pela estante de livros do folclore, que trazia além de edições ilustradas próprias para o manuseio das crianças, coletâneas de contos direcionados à professora mediadora de leitura, que daria voz à literatura oral na sala de aula. Assim, me apeguei ao título de Henriqueta Lisboa: Literatura oral para a infância e a juventude: Lendas, contos e fábulas populares do Brasil. De lá pra cá, contei infinitas vezes “O beija-flor”, narrativa recolhida pela poeta mineira no acervo da folclorista Alexina M. Pinto, ambas mulheres interessadas em levar a cultura popular para as crianças nas escolas do Brasil.
Diz Henriqueta que “o sentimento estético da criança, encontrará no folclore, acima de tudo, um mundo prodigioso de imagens e ritmos (…) e mais tarde saber, que essa tradição tem caracteres idênticos ou semelhantes aos de outros povos será recolher uma lição de amor.” (LISBOA, 2002, p. 15). Para mim, a lenda do beija-flor é uma “lição de amor” pelo tanto que nesses anos aprendi com essa pequena história, pelas memórias dos encontros em torno dessas palavras e pela força com que ela se atualiza a cada vez que é evocada inaugurando um ar puro de passarinhada matutina. Como são as manhãs de cada dia com sol nascente óbvio e ao mesmo tempo surpreendente. Passarinho, fruta e cantiga em enredo de repetição são um convite aos ouvintes bem pequenos que apreciam essa narrativa e nos ensinam tanto com seu modo de escuta.
Na época, me chamava a atenção o som de pássaros e poder assobiar de muitas formas durante a narração, também
Marcela Carvalhoo verso em canção entremeando palavra contada com melodia cantada… possibilidades e belezas da oralidade! A cantiga da primeira versão (sem partitura) diz: “Ingerê como gambê/ como na chacará não há/ Ingerê ingerê, cra crá…” Criei uma melodia para esses versos e entoei por muito tempo mesmo sem saber o significado. Sempre quis saber o que dizia a canção e nunca encontrei uma referencia que desse uma pista, também sempre gostei da brincadeira de roda “Laranja madura” do álbum Abra a Roda tim do le lê, de Lydia Hortélio e de brincar próximo ao momento da história. Depois de uns dez anos, contudo, juntei a cantiga ao conto e tem sido um momento prazeroso entoar junto ao público em uma só voz: “laranja madura…”
No outono de 2021, um beija-flor entrou na nossa casa, as laranjeiras estavam carregadas no quintal lá fora e ele passou horas lá dentro. Eu o peguei nas mãos e o levei até a janela, e por duas vezes ele ganhou os ares, deu meia-volta e voltou pra dentro de casa. Ele tinha mesmo algo para contar a nós cinco. E contou! 15 anos gera intimidade e hoje gosto de dizer que foi um beija-flor quem me contou sua própria história. Com cheirinho de flor de laranjeira luminosamente branca que seja bom o voo da leitura!
Naquela manhã, os pássaros acordaram fazendo tamanha algazarra. Tinham chegado na terra as primeiras árvores de laranja. As laranjeiras estavam carregadas daquela frutinha redondinha cor de ouro. Tinha um cheiro… Devia ter um gosto…
Os passarinhos queriam saber se a fruta era ou não de comer e também como se chamava. Juntos, em alvoroço (e som de passarada), se organizaram em roda em uma grande assembleia de pássaros e elegeram o tico-tico para ir até o céu perguntar ao Nosso Senhor qual era o nome da fruta e se ela era ou não de comer.
Tico-tico se despediu dos outros pássaros e foi voando… Voou… Voou… Chegou lá no alto e bateu na porta do céu. São Pedro veio abrir:
— O que queres, meu filho?
— Sois Cristo, Sois Cristo! — Respondeu o tico-tico.
Nosso Senhor, agora junto com São Pedro, veio até a porta e perguntou:
— O que queres, meu filho?
— Sabe o que é, Nosso Senhor, é que acaba de chegar lá na terra uma árvore que tem uma fruta redondinha, cor de ouro, tem um cheiro… Deve ter um gosto… Eu e os outros pássaros queremos saber qual o nome da fruta e se ela é ou não de comer.
E Nosso Senhor respondeu:
— A fruta se chama “laranja”! E ela é sim de comer, mas para você não se esquecer o nome dela é preciso entoar toda vez que a trovoada roncar, abaixando a cabeça e cantando, essa canção que vou te ensinar:
“Laranjas Maduras que cor são elas Laranjas Maduras que cor são elas
Elas são verde e amarelas
Elas são verde e amarelas…”
E continuou:
— E além disso, passarinho, você deve beijar todas as flores do seu caminho.
Tico-tico tomou a benção de Nosso Senhor, tomou a benção de São Pedro e foi voando… Voou… Voou e quando chegou lá pelo meio do caminho, a trovoada roncou e o tico-tico nada fez. Seguiu voando e quando chegou na terra não beijou nem uma florzinha sequer. Do alto, avistou os outros pássaros que já se aproximaram perguntando:
— E então? E então? Como foi a viagem ao céu? Qual o nome da fruta?
Todos os pássaros juntos em som de passarinhada, em grande algazarra. Mas o tico-tico foi chegando meio tonto, zonzo, cambaleante, e quando chegou bem pertinho da passarinhada caiu duro no chão. Os pássaros em volta olhavam pra ele desconfiados.
— Ora! Tico-tico é um bobo! Foi até o céu e não soube trazer a resposta. E agora?
Mais uma vez os passarinhos fizeram uma grande roda e todos juntos em grande assembleia elegeram agora um pássaro miúdo que naquele tempo ainda não tinha nome, de bico fino de agulha e com um voo tão ligeiro que em um instante traria a resposta que todos precisavam.
O passarinho se despediu do bando e foi voando… Voou… Voou… Logo já estava lá no céu e bateu na porta gritando:
— Sois Cristo! Sois Cristo!
Nosso Senhor e São Pedro vieram até porta:
— O que queres, meu filho?
E o passarinho foi respondendo:
— Sabe o que é… Tico-tico chegou de volta, cambaleando, e não trouxe a resposta que precisamos sobre aquela fruta redondinha, cor
de ouro e cheirosa que acaba de chegar lá na terra. Nós, os pássaros, precisamos saber como ela se chama e se é ou não de comer.
E Nosso Senhor foi dizendo:
— Ora! A fruta se chama “laranja”! E ela é sim de comer. Mas para você não se esquecer qual o nome da fruta você deve abaixar a cabeça e cantar toda vez que a trovoada roncar a canção que ensinei a Tico-tico e agora vou te ensinar:
“Laranjas Maduras que cor são elas
Laranjas Maduras que cor são elas
Elas são verde e amarelas
Elas são verde e amarelas…”
— E além disso, passarinho, você deve beijar todas as flores do seu caminho!
O passarinho de bico de agulha e voo ligeiro tomou a benção de nosso senhor, tomou a benção de São Pedro e foi voando em um longo bater de asas…Voou… Voou e quando chegou lá pelo meio do caminho, a trovoada roncou. Ele, então, abaixou a cabeça e cantou a linda canção que havia aprendido.
Quando chegou na terra, beijou cada uma das florzinhas do seu caminho… Zum br, Zum br… Zuuum br… Beijou pequenos botões de rosa, beijou grandes lírios, camélias, azaleias, dálias, copos de leite, beijou florzinhas miúdas e rasteiras e também beijou as trepadeiras. Lá do alto mesmo avistou os outros pássaros reunidos próximos às laranjeiras e já foi assobiando e gritando, convocando toda a passarinhada.
— A fruta se chama “laranja”! E ela é sim de comer. Agora vão pássaros, vamos saborear esse maravilhoso perfume cor de ouro.
Os pássaros não perderam tempo. Avançaram nas laranjeiras sem deixar uma única frutinha no pé. Chuparam tantas laranjas sucu-
lentas que ficaram com seus bicos melados, as barriguinhas cheias e fartas deixando um tanto de bagaço de fruta no chão ao redor da árvore e mais uma vez fizeram uma grande roda. Todos queriam saber como tinha sido a viagem ao céu e o encontro com Nosso Senhor.
O passarinho de bico de agulha e voo ligeiro ensinou todos os outros pássaros a cantar a canção que ele tinha aprendido, dizendo: Vamos cantar juntos? E todos entoaram em um lindo sopro uníssono a cantiga da fruta redondinha, cor de ouro e perfumosa:
“Laranjas Maduras que cor são elas
Laranjas Maduras que cor são elas
Elas são verde e amarelas
Elas são verde e amarelas…”
E foi de tanto beijar as flores do caminho que o passarinho de voo ligeiro ganhou o nome de beija-flor.
Entrou pela perna do pato
Saiu pelo bico do pinto
Nossa Senhora mandou dizer que é pra contar mais cinco.
Gizele Santos
Apresentação
Aqui apresento meu reconto de Maria Gomes, recolhido e apresentado pelo mestre Câmara Cascudo.
Uma das razões de minha escolha se baseia no fato da protagonista ser minha xará, pois embora assine somente como Gizele Santos, meu nome completo é Gizele Maria Gomes Ferreira dos Santos! E além disso, os Contos de Encantamento sempre tiveram assento confortável na sala de minhas preferências. Sou uma canceriana legítima, romântica e admiradora das belas histórias de amor.
Em meu texto, trago a narrativa para o a atualidade, em pleno século XXI, onde à revelia de toda a modernidade, ainda convivemos com o que há muito deveria ter evoluído, em termos de comportamento humano, justiça social, e questões ambientais.
No mais, que seja doce o deleite da leitura! E que jamais desistamos de difundir o que a tradição oral nos traz, mantendo acesa a “Chama das Histórias”.
Gomes era homem nem tão velho, nem tão moço. Viúvo, pobre e pai de muitos filhos. Vivia em constante aflição, pois não tinha emprego fixo, e fazia biscates. A única renda certa vinha do lixo, da venda diária de papelões, vidros, plásticos e latinhas de alumínio que os filhos coletavam pelas ruas.
Certa feita, tomado pelo desespero de ver, novamente, os filhos adormecerem com fome, Gomes se pôs a pensar, e decidiu que abandonar um dos filhos na mata, era sua única saída.
Escolheu Maria, a décima terceira de seus filhos. O primogênito, Adão, iniciou um quase alfabeto completo, interrompido com o falecimento da esposa, no parto de Quimera.
Decidido, Gomes tomou Maria pela mão e adentrou o Parque da Pedra Branca, avançando na mata, entre jequitibás e ipês. Caminharam em silêncio. Barulho havia na cabeça dos dois. O pai, pensando na inteligência da cria, tentava abrandar a sua culpa, acreditando que ela ia sobreviver. A filha refletia o porquê de estarem ali.
Caminharam um par de horas, até a ordem para que Maria sentasse, e ali ficasse, dizendo Gomes, que ia colher mel. Ela o alertou do perigo de ser picado por muitas abelhas. O pai tirou, do saco de ráfia que carregava, uma espécie de capa, feita com sacolas plásticas, coletadas no lixo, e costuradas pela própria filha. A moça disse que faria tapetes, para dar aos que dormem nas ruas, sobre papelões, que molham com a chuva. Gomes a ouviu, emocionado; beijou-a na testa e foi se afastando, sem nada dizer, e sem olhar para trás.
As horas avançaram, e como o pai não voltava, e logo anoiteceria, a jovem pôs-se a andar. Depois de esgueirar-se entre duas grandes pedras, chegou a um adro, em frente ao que parecia ser uma gruta. Perto da entrada, um cavalo branco e manso pastava.
— Que lugar incrível! — Exclamou a jovem.
Parecia uma casa esculpida pela natureza. Um platô lisinho e ovala-
do, parecia uma mesa, com pedras mais baixas, feito bancos; e outro, mais extenso e retangular, uma cama. Ao lado deste, havia um violino pendurado. Maria o pegou, tocou e encantou-se. A música ganhou o ar, embalando seu sono.
Em sonho, viu um cantinho protegido de vento, onde do alto caía generoso fio d'água. Despiu suas vestes, e banhando-se avistou uma pequena pilha de panos dobrados. Percebeu que eram roupas limpas, adequadas a seu tamanho. Vestida, sentou-se à mesa de pedra, onde comidas quentinhas, e uma jarra com água a esperavam. Alimentou-se bem, coisa bastante incomum para ela, e, alegre, pôs-se a conversar com o cavalo, que lhe disse que a partir dali seriam somente os dois, um cuidando do outro.
Maria despertou com o canto dos pássaros, ao amanhecer. De pé, se viu com as roupas vestidas no sonho. Sobre a mesa de pedra, agora havia pães, bolos e suco de frutas. Sentou-se para comer, respondendo, com um sorriso, ao “bom dia” de Inácio, o cavalo branco. O novo amigo, gostava de conversar, e a convidou para um passeio. Ela aceitou, com coração tranquilo, e olhos atentos. Caminharam entre flores e borboletas amarelas, chegando a um riacho, onde saciaram a sede.
Tempos adiante, certa noite, Maria foi surpreendida por uma fala muito séria do cavalo:
— Teu pai está doente. Quer visitá-lo, Maria Gomes?
— Quero! — Respondeu a moça.
— Pois amanhã cedo estarei selado, à tua espera. Debaixo da pedra redonda, ao lado de onde dormes, há muito dinheiro. Leve o quanto desejar dar à tua família, mas precisas saber que há regras inegociáveis, e terás de obedecê-las. Primeiro, nada poderás dizer sobre onde e como estás vivendo. A segunda regra é que terás que atentar aos relinchos que darei. Serão três: ao ouvir o primeiro, des-
peça-se imediatamente de seu pai e irmãos. Ao segundo, dirija-se à porta; no terceiro relincho já deverás estar montada, para voltarmos. Se desobedeceres a qualquer das regras, nada poderei fazer!
Na manhã seguinte tudo se deu como Inácio havia dito, e em questão de segundos, Maria Gomes bateu à porta de sua antiga casa. Seu pai, de imediato, aparentou melhoras, vendo a filha tão bem, e ainda lhe trazendo dinheiro. Os irmãos festejaram sua presença, pois a imaginavam morta, depois de perdida na floresta.
O tempo voou entre saudades e sorrisos. Quando Maria Gomes ouviu o primeiro sinal do cavalo, despediu-se rapidamente de seu pai, irmãos e irmãs, ignorando as incontáveis perguntas que lhe faziam. Ouvindo o segundo sinal, já na porta, montou em Inácio; e ao terceiro relincho partiram em disparada.
Longo tempo se passou até que mais uma visita fosse feita à família. Agora seu pai estava à beira da morte. Na tristeza do momento, abraçada aos irmãos, e chorando aos soluços, Maria não ouviu o primeiro relincho de Inácio. Somente ao segundo sinal, despediu-se. No terceiro chegou à porta, de onde viu a partida do cavalo. Imediatamente pôs-se a correr atrás dele, até o limite de suas forças, quando caiu. Foi surpreendida pelo retorno do animal. Ouviu do amigo que, se não tivesse corrido e se esforçado para alcançá-lo, ele voltaria, mas para matá-la, a coices.
No tempo que seguiu, os dias eram preenchidos por longas conversas entre os dois amigos. De noite, após jantar, Maria tocava violino, até o sono chegar para eles.
Certo dia, Maria Gomes, sentada à sombra de um flamboyant, ouviu de Inácio:
— Até aqui fomos parceiros quase perfeitos. É chegada a hora de ajudar-te, e de completar minha sina. Amanhã deverás cortar os cabelos, e vestir-se de homem, partindo, montada em mim. Sairemos e
deverás buscar um emprego, sem jamais afastar-se do amigo que vos fala, está entendido?
— Por que precisarei usar vestes masculinas?
A resposta veio, de supetão:
— O mundo é machista, Maria… por demais. Fingir-te homem facilitará tua vida, e deverás cuidar, também, de tua postura, para convencer as pessoas, e assim te proteger.
Na manhã seguinte, José — que era Maria —, encheu os bolsos de dinheiro, e cavalgou, até deparar-se com um sítio, onde por conta de sua de boa apresentação e desembaraço, logo se empregou como jardineiro. Era a propriedade de uma família rica. Ali moravam uma viúva e seu filho único, mestre em Botânica. Todas as manhãs, ele ia ao jardim, agora bem cuidado por "José Gomes", e assim ficaram amigos.
Em confidência à sua mãe, o rapaz falou do encantamento pelos olhos do empregado, que mais pareciam ser de uma mulher, não d'um homem. Nascia ali uma paixão.
Temerosa pelo sofrimento do filho, a experiente senhora sugeriu:
— Leve Gomes para caçar, e de noite arme as redes sob o jasmineiro encantado. O vento e o orvalho fazem as folhas recaírem sobre homens; e as flores, sobre as mulheres. Ao raiar do dia, atente para onde caíram as flores.
Assim procedeu, mas ao nascer do sol, um relinchar de Inácio, que permaneceu por perto, inverteu as coisas, e José foi visto coberto de folhas. Decepcionado, o rapaz voltou para casa, e ouviu da mãe uma segunda proposta:
— Convide José para um banho no rio. A nudez revelará a verdade.
Convite aceito, e chegando lá, o rapaz logo se despiu, e caiu na água, chamando pelo amigo, que se despia de costas, devagar. Antes
que se livrasse das ceroulas, o jardineiro novamente foi salvo pelo cavalo, que relinchando chamou violento temporal, e rapidamente os dois retornaram para casa.
Depois de duas tentativas fracassadas, a mãe aconselhou:
Precisam dormir uma noite no mesmo quarto. Chame o jardineiro para organizar sua biblioteca.
Eram muitas as estantes, do chão ao teto. O empregado acabou dormindo nos aposentos do amigo, que no meio da noite levantou, foi até o adormecido, e passou levemente as mãos em seu peito, sentindo a saliência dos seios. Despertou a moça, declarou sua paixão e a pediu em casamento.
De manhã, bem cedo, José correu e contou ao cavalo da grave situação, e escutou dele a confissão: — Não temos saída. Se aproxima o tempo da Liberdade. Em poucos dias chegaremos a 13 de junho, Dia de Santo Antônio, meu poderoso padrinho.
Vá até a dona da casa, e sugira uma cavalhada festiva, com toda a gente da região. Eu te resgatarei, pois teu noivo, Maria, sou eu!
Sugestão aceita. No dia, o comparecimento dos convidados superou as expectativas: eram muitos os cavaleiros e cavalos, lindamente paramentados. Inácio e José foram vitoriosos, e após reverenciarem a anfitriã, dispararam em galope mágico, não sendo alcançados por ninguém. O botânico viu sua amada sumir na poeira do vento.
Maria segurou firme e fechou os olhos, abrindo-os somente ao sentir o cavalo parar.
Apeou, e com os dois pés no chão, em frente à caverna em que moraram, a moça ouviu um estrondo, e das pedras surgiu um verdadeiro palacete, com luxos e luzes. Maria Gomes sentiu suas mãos entrelaçadas às de um cavaleiro. Inácio, o cavalo encantado, agora transformado em belo rapaz.
Os dois se casaram, e ainda hoje vivem felizes, no mesmo lugar. Se alguém tiver dúvida, confira! Adentre a mata do Parque da Pedra Branca, procure, e os encontrará.
Apresentação
A primeira vez que me encontrei com "O espelho mágico" foi em 2014, no livro Contos tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo. A versão compilada por ele foi narrada por Cícero Salvino de Oliveira, no Rio Grande do Norte. Logo me encantei pelo conto, por suas imagens e estrutura, pela escrita sintética e pela expressão "botar reparo", tão cara a essa história.
De lá pra cá, venho contando "O espelho mágico" em diferentes contextos, seguindo meu percurso de aprendizado com esse conto. Ocorre também que, de lá pra cá, o verbo reparar ganhou mais espaço na minha história como narradora. Em 2016, Ana Gibson e eu demos início ao projeto "A arte de reparar histórias".
Juntas, fizemos uma imersão no conto "O espelho mágico", que nos rendeu muitos reparos sobre as histórias e a arte de narrar, sobre a alma humana, sobre o Brasil e sobre nós mesmas.
Nesse caminho, conheci a versão desse conto narrada por Ricardo Azevedo. E, há pouco tempo, a versão da Luzia Tereza, grande narradora paraibana. Na versão que apresento aqui, para essa nossa Chama das Histórias, me baseei naquela compilada por Câmara Cascudo, pois é a que tenho mais familiaridade e apreço. Quis também homenagear Luzia Tereza, incluindo uma de suas frases que me encheram os olhos: "Que tu serás valido".
Hoje, diante de todas as maravilhas desse conto de fadas brasileiro — os animais, os esconderijos, um espelho que tudo vê… — continua a me chamar a atenção a importância de nos fazermos valer do pequeno, do miúdo, da delicadeza, daquilo que é quase imperceptível e que, no entanto, é extremamente poderoso.
FranklinNos confins do mundo, pra lá de Caixa Prego, vivia um rapaz, pobre de marré de ci, órfão de pai e mãe, chamado João. Um dia, ele resolveu sair pelo mundo afora em busca de sua sorte.
Anda que anda e João topou com uma pedra em cima de um formigueiro. Formiga que estava fora não podia entrar, formiga que estava dentro não podia sair. Ai que dó que ele sentiu das formigas!
O moço tinha bom coração. Fez uma força danada e, com todo o cuidado, arredou a pedra. Quando acabou, uma formiga lhe falou:
— Se um dia precisar de ajuda, é só dizer: “Valha-me o Rei das formigas!” Que tu serás valido.
João seguiu sem rumo certo. E toca a andar. Não demorou e deu com um carneiro com uma pata presa num arame. O coitado berrava que só. Ô dó que ele sentiu do carneiro!
João soltou o bichinho com todo o cuidado. O carneiro, agradecido, lhe falou:
— Se um dia estiver em necessidade, é só dizer: “Valha-me o Rei dos carneiros!” Que tu serás valido.
No curso da caminhada, João viu um peixe numa poça d’água, estrebuchando. Sentiu muita dó do peixe! Devolveu o bicho para o mar ali perto. O peixe foi no fundo, fez borbulhas e voltou:
— Se um dia carecer de ajuda, é só dizer: “Valha-me o Rei dos peixes!” Que tu serás valido.
Dá-lhe de andar quando João se deparou com um gavião largado no chão, todo sujo e pesado de lama, seco de sede. Mas que dó que ele sentiu do gavião! Com todo cuidado, deu-lhe um banho. Deixou o gavião limpinho e leve. Deu-lhe água para beber e pronto: o gavião voou alto.
Planou ao vento, desenhou círculos no ar. Lá de cima, disse:
— Se um dia estiver em qualquer dificuldade, basta chamar: “Valha-me o Rei dos pássaros.” Que tu serás valido.
João andou mais um tanto de chão e chegou num reinado. Avistou
um castelo majestoso e, numa janela, uma moça mais formosa que os amores. De uma só vez, João ficou de queixo caído, boca aberta e perna tremida. O coração batia mais rápido que asa de beija-flor.
O rapaz logo soube, pelo disse me disse do reino, que aquela moça era a princesa e que ela tinha um espelho mágico que encontrava tudo o que era escondido. Não escapava nada. Soube também que o tal do espelho só era mágico de meia-noite até o primeiro cantar do galo. E que aquele que se escondesse e a princesa não descobrisse, casava com ela. Mas, caso ela encontrasse, o pretendente perdia a cabeça. Cada um dispunha de três noites para lograr sucesso. João, que não tinha nada a perder e tinha tudo a ganhar, resolveu tentar a sorte.
Na primeira noite, saiu dos limites do reino e chamou com força: “Valha-me o Rei dos carneiros!”. Feito uma flecha, o carneiro apareceu. João lhe contou da sua necessidade.
— Suba nas minhas costas! — Falou o bicho.
João montou e o rei dos carneiros disparou. Entrou numa floresta, depois numa gruta. No escuro da gruta, deitou o rapaz, cheio de carneiro por cima, de modo que, se fosse possível enxergar alguma coisa, não se veria outra coisa que não fosse carneiro.
Quando soaram as doze badaladas, a princesa pegou o espelho. Procurou. Procurou bem. Lá pela madrugada, encontrou. Tomou nota e foi dormir.
No outro dia, João se apresentou e perguntou se ela o tinha achado. Ela respondeu que sim: “dentro da gruta , deitado no chão, coberto de carneiros”. O moço suspirou.
Na segunda noite, João foi à beira-mar. Fincou os pés na areia fria, respirou a maresia e chamou alto: “Valha-me o Rei dos peixes!”. O peixe riscou na praia. Suas escamas douradas-prateadas cintilavam na água salgada. João lhe contou do que carecia. O Rei dos peixes mandou um tubarão engolir o rapaz e uma baleia engolir o tubarão.
Depois mandou a baleia ir para o fundo mais fundo do mar e ficar lá, esquentando a areia com a barriga. E assim foi.
Na hora exata, a princesa puxou o espelho. Procurou. Procurou. Procurou muito bem. Até que descobriu.
O sol raiando, João se apresentou e perguntou à princesa se ela sabia onde ele tinha passado a noite. Ela respondeu que sim: “Dentro de um tubarão, dentro de uma baleia, no fundo mais fundo do mar”. O moço saiu cabisbaixo.
A essa altura a princesa estava pra lá de interessada nos esconderijos mirabolantes do rapaz. Pretendente algum tinha se escondido assim.
Era a terceira e última chance. João foi para fora do reino e chamou pelo Rei dos pássaros. Num instante o gavião riscou o céu. O rapaz lhe contou sua agonia. O gavião se abaixou e João subiu nas suas costas. Desse jeito, voaram. Atravessaram o escuro do firmamento. As estrelas piscavam. Subiram e subiram. Cada vez mais alto. Pararam dentro de uma nuvem azulada-quase-preta que se perdia de vista no manto da noite. Lá apareceu o maior pássaro dos céus que cobriu o rei dos pássaros com suas asas.
Meia-noite: a princesa caçou seu espelho e procurou. Procurou nas águas e nada. Procurou na terra e nada. Procurou nos ares. Botou reparo e descobriu tudo.
Manhã cedinho, João foi ao palácio e perguntou à princesa se ela sabia onde ele tinha passado a noite.
— Em cima de um gavião, coberto por outro pássaro gigante, dentro de uma nuvem azulada-quase-preta! — ela respondeu, com tiquinho de pesar.
João engoliu seco. Foi condenado à morte. Mas, como os seus esconderijos eram um tanto portentosos, a princesa concedeu ao moço uma derradeira chance.
À noite, João foi para perto do castelo. Fez valer-se do Rei das formi-
gas, que ouviu todo o aperreio do rapaz. Depois, revelou:
— O espelho pode ver tudo e todos. Só não vê a princesa. Vou virar você numa formiga. Você suba no vestido dela e trate de ficar lá bem escondido, quieto e parado, para não tomar tapa. Vindete in formigorum agorum!
O rapaz virou formiga. Andou um bocado. Entrou no palácio. Atravessou um corredor comprido. Chegou no quarto da moça. Subiu vestido acima. Era pano que não acabava mais. Foi devagar para ela não pressentir. Escondeu-se na bainha da camisa, bem nos ombros. Ficou ali só sentindo o perfume perfumoso do cabelo dela.
Na hora de sempre, a princesa pegou o seu espelho. Procurou com afinco, em toda parte. Pelejou. E nada. Até que:
— Cocorocó… — o galo cantou e o encanto do espelho acabou.
João voltou a ser gente. Dessa vez, foi a princesa quem perguntou onde ele tinha passado a noite.
— Só digo depois que você casar comigo!
A princesa, que já estava derretida de amores, apressou o casamento. Foram sete dias e sete noites de festa. Há quem diga que na noite do casório João contou do seu esconderijo para a moça. Outros dizem que João guardou seu segredo bem escondido, que era para o caso de precisar se valer de novo dele. Nunca se sabe.
Apresentação
Ouvi pela primeira vez uma versão de “O Príncipe Lagartão” há muitos anos, no Encontro Internacional de Contadores de Histórias Boca do Céu, contada por Madalena Monteiro. A cena final, com as muitas peles e os muitos vestidos, me impactou fortemente e sempre me acompanhou. Só depois conheci a versão de Câmara Cascudo e, embora a história calasse fundo em mim, nunca me senti inclinada a contá-la na minha voz. Com o convite para escolher um conto popular brasileiro e recontá-lo em texto escrito neste livro, senti que havia chegado o momento de finalmente me aproximar deste conto e conhecê-lo a fundo.
Debrucei-me sobre duas versões contadas por narradores orais: a de Francisco Ildefonso, do Rio Grande do Norte, compilada por Luís da Câmara Cascudo em seus Contos tradicionais do Brasil, e a versão de Luzia Teresa, da Paraíba, compilada na antologia Estórias de Luzia Teresa, organizada pelo professor Altimar Pimentel. Tive ainda como referência a versão contada por Rosana Pamplona em seu Outras novas histórias antigas, em que o conto se intitula “O príncipe que ninguém queria”.
Valendo-me da experiência de estudar e contar histórias da tradição oral e dos recursos que me acompanham no ofício de narrar, pude mergulhar no processo de encontrar a minha forma de contar este clássico do repertório de contos populares brasileiros, seguindo o fio do que é essencial ao conto e encontrando as palavras que lhe dão corpo nesta versão.
Era uma vez um grande reino, onde tudo funcionava na mais perfeita paz e serenidade. Contudo, o rei e a rainha, que eram muito bons, ainda não tinham tido a alegria de ter filhos, e isso vinha lhes causando muita tristeza e preocupação. Todos os pais haviam tido alguma vez um bebezinho, só eles que não… E a rainha não se conformava com isso de jeito nenhum.
Um dia, ela ia caminhando pelos jardins do castelo, pensando, como sempre, por que será que ainda não tinha tido um bebezinho dentro da sua própria barriga, como tantas mulheres no reino, quando aconteceu de ver um enorme lagarto, imóvel, bem no meio do caminho. Era grande e verde, com olhar fixo. A rainha parou, ficou olhando… E disse baixinho:
“Senhor, meu Deus, faz crescer a minha barriga, nem que seja com um lagarto dentro.”
O lagarto esgueirou-se depressa, atravessando o caminho, e desapareceu no meio das folhas. O que ela não sabia era que aquele era um animal encantado por uma poderosa e secreta magia.
No mês seguinte, a rainha não sangrou. Logo, sua barriga começava a crescer. Ah, quanta alegria! Mas não tardou para que a gravidez se transformasse num suplício; a cada mexida daquele serzinho dentro dela, a rainha se retorcia de dor. Mais sofrido que tudo foi o momento do parto, por pouco ela não morreu ali mesmo. E quando finalmente veio à luz o seu filhinho, dito e feito: era um lagarto! Nasceu com um rabo comprido e um couro esverdeado, cheio de escamas, mas chorando feito um menino e com olhos de criança.
O desconcerto no castelo foi imenso. Ninguém nunca havia visto nada assim, mas ali estava, era o filho da rainha, nascido de seu ventre. O desespero maior era que não havia jeito de fazê-lo parar de chorar. Mal a ama de leite pôs o bebê lagarto para mamar e ele arrancou o bico de seu seio. O rei mandou, então, um chamado por todo o reino, ofere-
cendo uma recompensa a qualquer mulher que viesse amamentar o príncipe lagarto. Muitas vieram, mas todas saíram chorando de dor.
Não muito longe dali, numa casinha simples, vivia uma moça chamada Maria. Vivia com sua avó, era órfã de pai e mãe. Maria era linda, inteligente e prestimosa, adorada por todos que a conheciam. Em torno dela parecia haver sempre uma luz suave a brilhar. Pois Maria ouviu falar do chamado do rei, da aflição da rainha e da triste sina do príncipe que nasceu lagarto. Nesse mesmo dia, teve um sonho. No sonho, ela soube, com toda certeza, que precisava ir até lá.
No dia seguinte, arrumou um trouxa de roupa e algo para comer. Pediu a benção de sua avó e tão logo o dia raiou, pôs-se a caminho do castelo. Ao meio-dia, ia passando por uma grande árvore na beira do caminho e lá, sentada à sombra da árvore, estava uma velha que lhe estendeu a mão.
“Alguma comida para uma pobre senhora que tem fome, por misericórdia”.
Maria parou e buscou na sua trouxa um pedaço de pão. Entregou-o à velha, que levantou o olhar para ela e sorriu em agradecimento. A velha começou a comer e depois disse,
“E para onde vai a moça, tão determinada, com bagagem tão leve?”
Maria contou-lhe para onde ia, do sofrimento no castelo e do sonho que tivera.
“Pois escute bem o que vou lhe dizer…”
E contou-lhe uma forma de solucionar aquela grande dificuldade. Maria se despediu e seguiu seu caminho até o castelo. Lá de fora já se ouvia o choro forte e rouco do príncipe esfomeado. Maria pediu para ser apresentada à rainha e disse,
“Majestade, sei um jeito de alimentar o príncipe e acabar com esse sofrimento, se me permite”.
“E como é, minha filha? Conte-me logo pois já não aguento mais”.
“Mande fazer um seio de ferro que possa ser amarrado ao meu corpo. Nós o enchemos de leite e o príncipe vai poder mamar tudo o que quiser”.
Assim foi feito; o ferreiro da corte fabricou o artefato e encheram-no de leite. Maria amarrou-o ao busto, segurou o lagarto nos braços e finalmente ele mamou. Mamou, mamou e mamou. Ouviu-se um silêncio que preencheu todo o castelo, e o príncipe pôde dormir um sono profundo em seu berço macio. Durante um ano inteiro, Maria deu de mamar ao príncipe lagarto no seio de ferro e ele foi crescendo… Tudo nele era lagarto, exceto os olhos e a voz de menino, quando começou a balbuciar as primeiras palavras.
O tempo passou e ele foi ficando grande, tão grande, que as pessoas passaram a chamá-lo de Príncipe Lagartão. Quando completou dezoito anos, metia medo em qualquer um que o visse, com seu jeito de ficar completamente imóvel e, de repente, mover-se depressa… Sem falar do chicotear de seu imenso rabo. E como costuma acontecer, de tanto que as pessoas o olhavam com medo, o olhar do príncipe foi se tornando cada vez mais assustador, quase feroz.
Mas, ainda que tivesse corpo de lagarto, era um príncipe, filho do rei e da rainha, e chegou o momento em que quis para si uma bela jovem com quem pudesse se casar. Os pais fizeram de tudo para tirar essa ideia de sua mente, mas não teve jeito, já tinha decidido. Queria se casar, e logo. Um chamado foi enviado a todas as jovens do reino, mas ninguém se apresentou. Nem uma única moça teve coragem de ser aquela que se casaria com o Príncipe Lagartão. Passado um tempo, quando o rei disse a seu filho que não havia nenhuma candidata, ele respondeu:
“Não seja por isso, meu pai. Eu já sei quem pode se casar comigo. Mande buscar Maria, aquela que me amamentou, e veja se ela aceita.”
E assim foi que enviaram um mensageiro até Maria com o pedido.
Maria pediu três dias para considerar, e durante três dias se recolheu e rezou, pedindo a Deus que lhe mostrasse o caminho reto. Ao final do terceiro dia, estava pronta. Pediu a benção de sua avó, preparou uma trouxa de roupa e alguma comida e partiu, no primeiro raiar do dia.
Ao meio-dia, com o sol a pino, chegou àquela mesma árvore com a copa larga à beira do caminho. À sombra da árvore, a velha. Maria sentou-se ao seu lado, ofereceu-lhe pão e água. A velha olhou-a nos olhos e sorriu. Depois comeu e bebeu. Enfim, disse:
“Minha filha, a tarefa não é fácil. Preste bem atenção, siga à risca o que vou lhe dizer. Com seu coração sábio e sua vontade firme, tudo há de sair bem.”
Depois a abençoou e Maria seguiu seu caminho.
Chegando ao castelo, foi recebida pelo rei, a rainha e o príncipe, que aguardava ansiosamente. Maria saudou a todos com uma reverência. Depois, quando ficou a sós com a rainha, disse-lhe que estava ali para se casar com o príncipe, mas que só se casava com as condições de que pudesse antes preparar o quarto de núpcias, que lhe fosse dado tudo o que ela pedisse nesse dia, e que ela mesma escolhesse a roupa de seu casamento. Assim foi feito.
Chegado o dia da cerimônia, Maria parecia uma fada, com um vestido branco todo bordado de pérolas. O Príncipe Lagartão também ia vestido com uma roupa elegante, um manto de seda, um cinto de pedras preciosas na cintura e sua coroa de príncipe. Ia rastejando ao lado dela em direção ao altar, impaciente por terminar de uma vez com aquilo.
Estavam presentes todos os membros da corte e pessoas que vieram ver com os próprios olhos o casamento. A reação era de espanto ao ver aquela moça tão bonita e delicada ao lado do monstruoso réptil que era um príncipe.
Tão logo terminou a cerimônia, foram os dois para o quarto de
núpcias. Maria fez uma oração e sentou-se na beira da cama, como havia lhe orientado a velha senhora. O Príncipe Lagartão chicoteava com o rabo de um lado para o outro, olhando-a fixamente.
“Pode tirar sua roupa”, disse ele.
“Tiro sim, mas só depois que você tirar a sua”, respondeu Maria.
Ele se esgueirou para fora de seu manto e Maria tirou seu vestido bordado de pérolas. Por baixo dele, vestia outro vestido branco. Mais que depressa, agarrou o vestido e o manto e atirou-os na lareira acesa, repetindo sua oração. O fogo subiu, lambendo as roupas, e Maria voltou a sentar-se na beira da cama, com o príncipe lagarto olhando-a fixamente, seu rabo agora movendo-se devagar.
“Tire a roupa”, disse.
“Só depois que você tirar essa capa de couro”, disse ela.
O príncipe apertou os olhos. Depois, com um som sibilado, esgueirou-se para fora de sua pele rugosa, verde escura. Por baixo dessa pele havia outra, de um verde mais claro, ainda grossa e com escamas, mas um pouco mais suave do que a primeira.
Maria tirou seu segundo vestido. Por baixo dele, havia mais um. Atirou o vestido e a pele ao fogo, repetindo sua oração, e mais uma vez as labaredas subiram, queimando tudo. Voltou a sentar-se na beira da cama, e o príncipe:
“Tire a roupa”.
“Só depois que você tirar a sua”.
E assim foi. Por baixo de seu vestido de noiva, Maria vestia mais sete vestidos brancos. Por baixo de seu manto de seda, o Príncipe Lagartão tinha sete capas de couro, cada uma um pouco mais fina do que as outras. Uma a uma, Maria atirou-as ao fogo, sempre dizendo sua oração. Quando foram jogados ao fogo o último vestido e a última capa, fez-se um clarão em todo o quarto, como um relâmpago.
Diante de Maria estava agora um homem. Um jovem, todo humano,
com a pele lisa, mãos e pés, ombros, pernas, tudo, e com o olhar mais doce que já se viu. Maria conduziu-o até uma banheira já preparada com água de flor de laranjeira e banhou seu corpo inteiro, com o maior carinho, entoando baixinho sua oração. Depois, ela mesma se banhou.
E foi assim que, no dia seguinte, diante do olhar de puro maravilhamento do rei e da rainha, o príncipe feito homem e Maria, feita princesa, saíram de seu quarto para o primeiro de muitos dias felizes que viveriam juntos. Até o fim de suas vidas.
aS trêS irmãS
Rita GamaApresentação
O conto “As três irmãs” me encontrou há alguns anos como conto colombiano. Contei uma vez e ficou guardado muito tempo, mas eu sempre voltava a ele… a intriga, a troca e abandono dos bebês me comoviam, e os cuidados e sortes nessa história, apesar dos desafios, iam me iluminando desde dentro nas minhas próprias travessias e processos de curas, descobertas e espantos.
De repente me chegaram muitas versões! Fiquei encantada quando descobri que no fio remoto do tempo esse conto estava na coletânea As mil e uma noites, que reúne desde o século IX histórias que circulavam oralmente. Na versão de Antoine Galland, esse teria sido o último conto ouvido por Chariar antes que ele perdoasse a todas as mulheres e se sentisse curado pelas palavras de Scheherazade.
Me espantei com as andanças desse conto de boca em boca, ouvido em ouvido, atravessando tempos e continentes. Sempre o mesmo e sempre diferente. Entre os títulos, aparecem “As três irmãs”, “A rainha e suas irmãs”, “A história das duas irmãs que invejavam a mais nova” e “Farisad do sorriso de rosa, a montanha mágica e as três maravilhas”.
Demorei a descobrir as versões brasileiras. Eu folheava Os contos tradicionais brasileiros, e quase caí pra trás quando o encontrei… Percebi que ele me acenava com desejo de participar desse livro. Câmara Cascudo o classifica como “Conto de Encantamento”, e levanta amplo histórico de versões, desde Portugal no século XVI, África Setentrional, Índia e Espanha.
Depois conheci versões recolhidas recentemente na Bahia por Rogério Soares (que a escutou de Dona Elita) e por Marco Haurélio, que o escutou de Jesuína Magalhães. Ele me apresentou à versão de Silvio Romero, a que mais serviu de inspiração a essa. Agradeço pela indicação e por ter me contado ser a sua preferida — tendo se tornado também a minha nesse momento. Silvio Romero a entitula “Os três coroados”, e apresenta elementos que se aproximam de outros contos que circulam no imaginário de nossa terra.
Essa história se desenrola como um longo fio que atravessou os continentes, sendo semeado nas terras brasileiras por uma cadeia de narradores e ouvintes, até chegar ao livro em suas mãos. Deixo aqui um último mistério: há alguns anos atrás, foi essa a história que Camila ouviu quando me chamou pra integrar a Chama das Histórias, que segue aqui aumentando mais um ponto enquanto conto o conto. Vamos à história!
Era uma vez três irmãs. Elas eram fiandeiras e toda noite, enquanto trabalhavam, conversavam muito. Eram amigas. Acontece que nesse tempo e nesse lugar havia um rei que nas noites saía vestido de gente simples escutando os assuntos atrás das portas e janelas de seu povo.
Nessa noite em que o ouvido do rei encostou na porta das três irmãs, elas conversavam sobre seus desejos… A mais velha disse que queria casar-se com o cozinheiro do rei, que ia comer assados, iguarias… slurp! As bocas enchiam de água e elas riam e riam. A irmã do meio disse que gostaria de casar-se com o confeiteiro real… hum!… imagina quantos doces, sorvetes, compotas e tortas comeria. A caçula demorou a manifestar o desejo de seu coração. Seus olhos faiscavam como os de quem fosse compartilhar um segredo profundo. As irmãs insistiam, ansiosas. E ela disse: eu desejo casar-me com o próprio rei, e dar a ele três filhos com uma estrela brilhante na testa. Elas riram e coroaram a mais nova com o cesto furado onde guardavam os novelos.
O rei tinha ouvido tudo atrás da porta, lembram? No dia seguinte ele pediu que as irmãs fossem levadas até o palácio. Elas ficaram abobalhadas com a sofisticação de tapetes, vitrais e pinturas. Na sala do trono, o rei apontou para a mais velha e afirmou:
— Você deseja casar-se com meu cozinheiro! – Imagina, meu rei
— disse a jovem — era brincadeira!
— Se desejou, assim será!
Virou-se para a do meio e disse:
— E a senhorita deseja casar-se com meu confeiteiro.
— Não, majestade, era galhofa, aquilo — a moça tentou conversar, mas foi interrompida pelo rei:
— Se desejou, assim será — e ordenou o casório no mesmo dia.
Então o rei olhou fundo nos olhos da caçula e disse:
E você deseja casar-se comigo e se tornar rainha. Ela retribuiu a profundeza do olhar e afirmou que sim, era esse o seu desejo. E assim foi. A festança durou sete dias e sete noites, com muita comida, bebida, abraços e sorrisos, e a alegria contagiou todo o reino.
A rainha estava feliz de estar com as irmãs no castelo… Mas adivinhem o que aconteceu? As irmãs começaram a sentir uma inveja danada, que as fazia morrer de frio em pleno verão. Elas até disfarçavam, mas no invisível dos dias não paravam de tramar para destruir a caçula e tomar o seu lugar.
Foi então que a rainha engravidou! Ah! Ficou com uma barriga imensa, esparramando esperanças de um herdeiro justo e de prosperidade para todos. As irmãs viram ali uma oportunidade. A rainha confiava tanto nelas que no dia do parto dispensou médicos, curandeiros e parteiras pra ser acompanhada só por elas. E o dia em que ela acreditava ser o mais feliz da sua vida acabou sendo o mais triste.
Nasceram dois meninos rechonchudos e uma bebezinha bonita como os amores, cada um com uma estrela brilhante na testa. Mas as tias nem viram: enrolaram os três num pano e entregaram à criada, pra que ela os jogasse no rio e acabasse com aquilo. Os bebês foram trocados por um sapo, uma cobra e um gato, e a mãe tomada por um desespero, um vazio profundo. Passou a lidar com o luto dos seus três filhos tão esperados. O rei não perdoou à rainha. Há muitos anos atrás ele ouvira bem sobre os filhos estrelados, e resolveu castigá-la: mandou que fosse enterrada na porta do castelo até o pescoço e qualquer um que ali passasse deveria xingar e cuspir na rainha. Assim foi feito, e a rainha ficou no duro seco do chão cuidando daquele abismo que ela tinha por dentro.
A criada jogara mesmo os três bebês no rio. O cesto desceu pela correnteza sendo avistado por um jardineiro que, intrigado, o pescou com sua ferramenta de trabalho. Ele correu pra desvendar com a companheira aquele mistério que ele achava ser um tesouro. Abriram o cesto e vi-
ram bebês tão pequenos, ainda com os cordões presos aos umbigos. Era um presente divino! Filhos para amar e cultivar, há tanto tempo desejados. E assim foi. Brincavam muito e, maiorezinhos, estudaram tudo o que há pra saber sobre a natureza, o céu, a terra, os grandes mistérios, a vida e a morte. Caçavam e bordavam. Usavam um gorrinho para proteger as estrelas em suas testas. Cresceram fortes e unidos. Um dia foram vistos pelas tias malvadas que estavam na janela do palácio. De algum modo elas sabiam.
Então os chamaram e deram a eles três frutas cheirosas, que eles morderam assim que entraram em casa… e adivinha? No tempo de uma piscadela, tornaram-se estátuas de pedra maciça. A mãe soltou um grito de aflição e espanto! Decidiu então iniciar uma viagem até a casa do Sol pra ver se ele conhecia um jeito de meninos virados em pedra virarem gente novamente. Ela botou o caminho no pé e andou, andou, e andou.
Encontrou um rio grande e o rio, sabendo da jornada da mulher, pediu se ela poderia perguntar ao Sol porque ele, sendo tão limpo, profundo e de águas cristalinas, não tinha um peixe sequer? A mulher se comprometeu. Mais adiante havia uma árvore frondosa cheia de passarinhos. Ela se sentou pra comer e a árvore pediu que ela perguntasse ao Sol porque ela, tão majestosa, não dava frutos. Mais adiante três moças que moravam no caminho a chamaram para um café. As moças falaram que ninguém passava ali, que elas não tinham amigos e nem podiam sonhar em namorar… Será que aquela jovem mãe não poderia levar mais esse problema para o Sol resolver? E a mãe levou com ela mais esse pedido.
Quando chegou à Casa do Sol, ele ainda não havia chegado. Ela sentou-se com a mãe do Sol e tocaram a prosear naquelas perguntas e curas que a mulher vinha buscar. Dali a pouco o Sol chegou fazendo tanto barulho, esbravejando, e a mulher, assustada, se escondeu e
ficou bem quietinha, piscando para a mãe do Sol. Ele vinha queimando tudo pelo caminho, e dizendo
— Fi, Fo, fei, Fum, sinto cheiro de sangue de gente. Mas a mãe dele desconversou, sorridente, dizendo que era uma caça que ela preparara para a refeição. Sentaram. A mãe do Sol perguntou por que um rio forte e caudaloso não dá peixe?
— Ora — ele disse — é porque ninguém nunca morreu nesse rio.
Ah!, disse a mãe… e continuou: — E por que será que uma árvore imensa e forte não dá frutos?
— É porque tem um tesouro nas raízes que precisa ser retirado pra árvore prosperar — disse ele, já impaciente com tanto assunto. Mas a mãe seguiu perguntando:
— E por que três moças não encontram amigos nem namorados? — É porque de manhã elas fazem xixi pro lado que eu nasço. Elas têm que fazer pro outro lado, ué! — respondeu o Sol com jeito de encerrar a conversa. Ele estava irritado, reclamando da mãe cheia de assuntos demais… Mas ela prosseguiu pra saber da cura dos meninos:
— Só mais uma coisa: como será que três jovens virados em pedra podem tomar de novo forma de gente?
A mãe dos meninos abriu bem os ouvidos e ouviu que o jeito era pegar uns bocados de dentro da boca do Sol quando ele estivesse comendo… Aí pronto, dali a pouco a mãe do Sol pediu que ele deixasse ela tirar um cisquinho da boca dele, “dá licença, meu filho”, e depois um fio de cabelo na comida, e depois uma pedrinha… e foram três os bocadinhos mastigados que a mãe do Sol pegou e guardou no bolsinho. O Sol estava furioso, porque aquele comer naquele dia estava muito cheio de porcaria, e que desde o início do tempo ele não tinha descansado e agora ia dormir. Humpf!!
Então, a mãe agradecida, pegou os bocadinhos, abraçou a mãe do Sol e voltou o mais rápido que pôde… Encontrou as três moças e orientou
que o xixizinho da manhã fosse feito do outro lado. Mais adiante passou pela árvore e contou sobre o tesouro na raiz… o desenterraram e a mãe levou o tesouro pra casa.
O rio perguntou a resposta a sua pergunta e ela gritou lá de longe depois de atravessar: “foi porque ninguém nunca morreu nas suas águas”… E o rio na mesma hora aprontou uma tromba d’água daquelas. Ela chegou em casa, pegou os bocadinhos de comida e abençoou com esperança no cucuruto de cada filho de pedra, e viu os três queridos voltando a ser quem eram. Ufa! E seguiram a vida.
Um dia, o rei viu os três irmãos e os chamou pra uma refeição no palácio. Era delicado recusar um convite real, então eles foram. Mas antes, a mãe disse a eles que veriam uma mulher quase morta na porta do castelo, num canto sujo imundo, com a cabeça pra fora da terra. “Cumprimentem essa mulher, levem seus pratos de comida até ela e a alimentem. Ela é sua outra mãe” — ela orientou.
Era uma comida fresca, apetitosa, com uma fatia de melão bem doce em cima. Eles levaram pra compartilhar com a rainha a cada bocado que ela comia lhe voltava o viço e a vitalidade… e riam, se olhando com afeto.
As tias foram até lá xingar a rainha, dizendo que era muito gulosa pra comer três pratos de uma vez. Então os meninos tiraram seus gorrinhos deixando as estrelas iluminando tudo. O rei chegou bem a tempo de escutá-los dizer que a mãe não só comia três pratos como já tivera três bebês na barriga. E foi dada à luz a verdade dos três príncipes estrelados finalmente retornando para casa. A rainha foi cuidada e se regenerou. As tias saíram correndo dali e devem estar correndo até agora.
O reino prosperou, as curas chegaram para todos e foi possível novamente sonhar. E o que era de vidro, quebrou-se. O que era papel, molhou-se. Entrou por uma porta, saiu pela outra, e quem quiser que conte outra.
biografiaS
Anamô Soares
Professora, escritora e contadora de histórias. Idealizadora dos projetos Lê Comigo, selecionado para concorrer ao prêmio Nacional LED – Luz na Educação, e Mãos no Mundo. Especialista em Literatura Infantil e Juvenil, cursando Especialização em Literatura Brasileira de Autoria Feminina. Em seu trabalho como professora da rede pública de ensino, contadora de histórias, escritora e empreendedora literária busca construir espaços de valorização da cultura negra. É estudante da Escola Portátil de Música e Capoeirista no grupo Capoeira Rucungo.
Camila Costa
Contadora de histórias, professora de teatro e atriz. Especialista em Literatura Infantil e Juvenil e mestranda em Ensino de Artes Cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com pesquisa em oralidade na sala de aula. Atua como professora no Colégio de Aplicação da UFRJ. É artista integrante do Teatro Caminho. Criou e coordena a Chama das Histórias, projeto por meio do qual tem materializado sonhos no campo das narrativas orais em muito boa companhia, como é o caso deste livro.
Emiliana Moraes
Paraense, nascida como cabocla ribeirinha no município de Bagre, na região do Marajó. Contadora de Histórias, Arte Educadora, Escritora. Formada em Direito e Artes Cênicas pela UFPA, Técnica Circense pela Escola Nacional de Circo do RJ e pesquisadora da ancestralidade ribeirinha e indígena amazônica. Brincante, leva para as infâncias afora sua infância marajoara.
Gizele Santos
Contadora de Histórias, especialista em Literatura Infantil e Juvenil, colaboradora da Associação Viva e Deixe Viver, e do Rio de Histórias; membro do coletivo Chama das Histórias. Participações individuais em Paixão de Ler (PMRJ); Bienal de Livros/RJ; Maratona Rio das Mil e Uma Histórias; Festival Carioca de Contação de Histórias e FIL — Festival Internacional Intercâmbio de Linguagens. Leitora profissional, em níveis domiciliar e corporativo; e coordenadora de edições de livros para autores independentes.
Julia GrilloContadora de histórias, poeta, tradutora e arte-educadora. Formada em Letras e em Dança, com mestrado em Artes, dedica-se a pesquisar o universo das histórias de tradição oral e o processo criativo na arte de contar histórias. Publicou com Nicia Grillo a compilação de contos O Guerreiro Invisível e outros contos do Tempo . É diretora da Oficina Escola de Arte Granada, em São Pedro da Serra, dedicada a difundir a educação pela arte e as histórias da tradição oral.
Juliana Franklin
Pesquisadora e narradora de histórias da tradição oral. É integrante do Grupo Palavra Chave de Contadoras de Histórias, junto com Julia Grillo e Marcela Carvalho. Com Ana Gibson, realiza o projeto “A arte de reparar histórias” e escreveu o livro Uma história e uma história e uma história: Contos dos contos da tradição oral, (Folio Digital).
Lucia Morais Tucuju
De origem indígena do povo Galibi Marworo, do Amapá, Especialista em Literatura Infantil e Juvenil, professora, escritora, narradora de histórias, membro da Academia Internacional de Letras do Brasil e do Mulherio das Letras Indígenas. Atriz do espetáculo teatral “Arandu Lendas Amazônicas”, em cartaz em todos os Centros Culturais Banco do Brasil, Palestrante de Literatura e Cultura indígena.
Marcela Carvalho
Nascida no Rio de Janeiro em 1984, com graduação em Artes e Design e com mestrado em Literatura na PUC-Rio. É bordadeira, narradora e pesquisadora de contos de tradição e da relação com as artes do fio. Integra o Grupo Palavra-Chave de contadoras de histórias. É autora e ilustradora. Seu livro, “Lampião e o vovô da vovó na cidade de Mossoró!” foi selecionado para o catálogo da ONU 2030. Entre outras publicações destaca a ilustração da canção “A linha e o linho”, do compositor Gilberto Gil.
Contadora de histórias, brincante do grupo Céu na Terra e percussionista. É colaboradora do projeto Chama das Histórias e da Espiral da Palavra. É museóloga, mestre em Sociologia e atua na Fundação de Arte de Niterói. É autora e organizadora de livros ligados ao universo dos museus. Adora ouvir e contar histórias da tradição viva e acredita que os tesouros ficam melhores quando compartilhados.
Rosana Reategui
Atriz, narradora oral e gestora cultural peruana-brasileira, integrante fundadora do grupo “Os Tapetes Contadores de Histórias” e diretora do coletivo têxtil “Manos que Cuentan”. Formada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Escola de Teatro da UniRio. As histórias a levam para estudos sobre as narrativas femininas e as manifestações das oralidades dos povos originários latino-americanos.
Bibliografia
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Agradecimentos
Agradecemos a todas as vozes que ao longo dos tempos contribuíram para que as histórias permaneçam vivas, percorrendo os fios das memórias, até chegar a este livro. Que elas sigam se perpetuando na tessitura da vida, no balbuciar dos lábios, no tamborilar dos corações e no trepidar do fogo!
Agradecemos às mestras e aos mestres da palavra que, através de suas vozes, ensinam e deixam sementes, germinando mundos.
Agradecemos a todas as pessoas que tornam esse sonho possível desde a nossa primeira fogueira.
Ana Cristina Santos, Ana Gibson, Anamô Soares, Anna Clara Carvalho, Alexandre Pimentel, Alexandre Rios, Assis de Oliveira, Auritha Tabajara, Barbara Pelacani, Cíntia Barreto, Claudio Barria, Daniela Nunes Araujo, Daniele Ramalho, Delmares Costa, Dora Gadelha, Eliza Morenno, Emiliana Moraes, Gisele Lopes, Gizele Santos, Gui Stutz, Gregorio Tavares, Heloísa Abrantes, Iara Souto, Julia Grillo, Juliana Franklin, Lena Martins Abayomi, Lina Hoeppner Pimentel, Lucia Morais Tucuju, Luiza Toschi, Maricléa Dias Soares, Marcela Carvalho, Marcela de Paula, Mariana Borgerth, Mariah Miguel, Marília Gorito, Padu, Raquel Mascarenhas, Ricardo Gadelha, Serena Costa Gadelha, Tatiana Henrique, Teatro Caminho, Violeta Araujo Barria e todas as pessoas que já vieram nos ouvir.
Ficha técnica do projeto
Concepção e Curadoria:
Camila Costa
Direção Artística:
Camila Costa e Ricardo Gadelha
Narradoras-autoras:
Anamô Soares, Camila Costa, Emiliana Moraes, Gizele Santos, Juliana Franklin, Julia Grillo, Lucia Morais Tucuju, Marcela Carvalho, Rita Gama e Rosana Reátegui.
Ilustrações e arte gráfica:
Flávia Trizotto
Palestrantes:
Auritha Tabajara, Ana Gibson, Juliana Franklin e Julia Grillo.
Captação de imagens e edição de vídeo:
Carolina Calcavecchia
Direção de Produção:
Camila Costa
Produção Executiva e Prestação de contas:
Mariana Borgerth
Coordenação Administrativa:
Faz Fazendo Produções Artísticas – Gregório Tavares
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Este livro foi composto na tipologia Adobe Devanagari 11, títulos em 14. Impresso em São Paulo em papel Polen Natural 80 pela Psi7, para Edições Cândido, em novembro de 2022.