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Icamiabas: As amazonas dos rios e matas Rosana Reategui

iCamiabaS: aS amazoNaS doS rioS e mataS

Rosana Reategui

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Apresentação

Quando chegou o convite em acender nossa Chama com a criação de um livro, pensei na tarefa um tanto difícil de escolher uma única narrativa entre tantas. Venho me debruçando há alguns anos na pesquisa dos territórios femininos. Foram as mulheres divinas e humanas que me emprestaram seus caminhos para que eu possa procurar meus propósitos como narradora de histórias e como mulher migrante latino-americana.

A dificuldade na escolha era pela urgência ante nossa sobrevivência como sociedade. Sentir nossos coletivos cansados me fez decidir por uma história de matriarcados. As temidas e misteriosas amazonas sempre me acompanharam em leituras, desenhos e poesias.

Há alguns anos venho juntando diferentes narrativas sobre elas, mas nunca as narrei e menos as escrevi. Então, este convite veio com urgência, esperança e desafio. Criei esta história autoral: “Icamiabas: As amazonas dos rios e matas”, baseada em estudos e leituras históricas e poéticas. O livro Las amazonas: Un estudio de los mitos atenienses, de William Blake Tyrrell, foi o primeiro livro que li sobre elas. Para saber do matriarcado de nosso continente, foi importante os estudos da antropóloga e escritora Betty Mindlin, sobretudo no seu artigo “Amazonas ou Icamiabas”.

Meu conto é um enorme agradecimento às primeiras feministas das florestas, as reais e sonhadas. Saber delas é saber de nós. De nossos corpos que carregam alimento e armas para seguir fundando nações.

Odeus Sol e a deusa Lua, juntos, decidiram criar um reino na floresta. De mãos dadas, olhando para a Terra, anunciaram para os ventos que tudo aquilo que pulsa guardaria as sabedorias da noite e do dia.

Desde a pedra quieta e pequenina até os súbitos e estrondosos movimentos dos trovões e das águas. “Tudo na floresta terá alma”, o deus Sol falou e “tudo que pulsa terá olhos e língua”, sussurrou a deusa Lua. Fecharam seus olhos e sonharam juntos.

Assim foi que depois de uma longa chuva, surgiu, na terra molhada, uma fenda profunda que virou uma boca enorme e se escutou um grito antigo que rasgou o manto do chão e fez brotar a maior floresta do mundo, banhada por um rio mar. Lua e Sol sorriram ao mesmo tempo e das suas bocas se escutou: “Essa grande casa estará cheia de labirintos de terras, ventos e águas e será habitada e cuidada por espíritos, plantas e bichos”. Contam que quando deram à luz a esse bosque, Sol e Lua se amaram e do prazer surgiu o arco-íris e na Terra quis ficar. Assim aconteceu nos tempos antigos, e este nascimento se soube pelas bocas dos pássaros e o murmúrio dos vaga-lumes. Cada coisa criada era abençoada, agradecida e comemorada em louvor aos deuses e as festas e cantos duravam dias e noites.

Até que um dia, um ser poderoso que vivia na floresta, chamado Jurupari, acordou, olhou em volta e franziu o cenho. Pediu licença para falar com seu pai, o deus Sol, mas não quis chamar a mãe Lua. Jurupari prometeu que faria um reino poderoso onde o Sol seria o Deus supremo e os bichos homens seriam seus guerreiros. O Sol, ao escutar essas palavras, envaidecido, envolveu Jurupari em seus raios e tomou

mais força para seguir anunciando a nova ordem: Que o lugar público seria domínio só dos bichos machos, que a deusa Lua era mulher e portanto devia esperar atrás do Sol. Tomou ar e continuou sentenciando: Que a partir desse dia todas as mulheres da floresta não poderiam participar das cerimônias e que qualquer atrevimento a essa nova ordem, sofreria punição sem piedade e haveria castigos mortais àquelas que ousassem tocar as grandes flautas cerimoniais. Com a voz cada vez mais grave, estufando o peito, Jurupari esbravejou que sendo instrumentos sagrados, não poderiam ser tocados por bichos que escorriam sangue entre as pernas.

Quando acabou, toda a floresta silenciou.

As mulheres aguardaram para contestar essa nova ordem. Pediram proteção à deusa Lua e numa noite escura deixaram esse reino solar. Cobertas pelo manto nublado do céu, deixaram suas ocas onde dormiam seus pequenos filhos homens. Partiram guiadas pelas estrelas numa floresta que sussurrava e gritava. Caminhando, correndo e se arrastando, elas deviam encontrar nas serras de Nhamundá o misterioso lago onde a deusa Lua tomava banho.

O caminho foi penoso, pois a mata estava em guerra, Sol e Lua se enfrentavam e quando isso acontecia a floresta se agitava, revelava e se escondia. Elas que fugiam para se encontrar, compreenderam que tudo na selva tem vida e também morte. Depois de muitos dias, algumas desistiram e voltaram, outras, finalmente encontraram descanso nas montanhas da mata, entrando nas misteriosas águas do lago Jaciuaruá.

E foi assim que, na maior floresta da Terra, surgiu o primeiro reino de mulheres, tendo como deusa a Lua e como rainha a matriarca Conhori.

Com a proteção da sua deusa, essas mulheres nômades aprenderam a correr e caçar na embrenhada mata, levar suas casas e crias nos corpos e saber levantar suas ocas nos esconderijos que a natureza improvisava. E de tudo o que pulsava deviam saber escutar. Sobre os mistérios da vida e da morte a floresta ensinou. Temidas e admiradas, quem delas falava as nomeava como as mulheres sem marido, as Icamiabas. Seus peitos fartos seguravam alimento e armas. Prontas para guerrear, amarravam no peito direito lanças, tacapes, bordunas e zarabatanas, dos grandes cascos de tartarugas faziam escudos e suas montarias eram sobre os porcos selvagens.

Quando chegava a festa da grande mãe, o grande lago Jaciuaruá cintilava e as Icamiabas mergulhavam nele para trazer barro verde e dar forma às muiraquitãs, pequenas proteções em forma de anfíbios oferecidas aos homens escolhidos que se aventuravam em visitá-las. Para as Icamiabas, o encontro com o bicho homem era apenas por uma noite. Para acalmar desejos e, sobretudo, para procriar, pois quando uma menina nascia o reino das Icamiabas crescia.

E o tempo no mundo começou a ser medido com números e foi no ano de 1541, quando chegaram na floresta, homens de terras distantes que cobriam seus corpos com pelo e metal.

Para as Icamiabas, toda urgência era avisada tocando nas sapopemas, as grandes raízes das samaúmas. Seus sons atravessavam a floresta. Percebendo que o cheiro trazido pelos invasores era forte, as filhas da lua tocaram intensamente também nos troncos das árvores Mulungu. A floresta então ressoou e ressoou. O vento soprava um forte cheiro de sangue amargo.

Esses homens chegados do outro lado da floresta, carregavam armas que haviam tingido de sangue o reino do Peru.

Mas a cobiça os seguia guiando e com fome de ouro atravessaram as cordilheiras para achar a misteriosa cidade abarrotada por canelas. Traziam da sua terra a crença cantada por piratas e corsários que onde houvesse canela as riquezas transbordariam. Então, armados com cruz, fogo e espada, uma grande comitiva decidiu invadir a floresta. O capitão era o temido espanhol Francisco Orellana, El Tuerto, homem de um olho só, e junto a ele, o Frei Carvajal.

Uma noite, escutaram um barulho ensurdecedor que rasgava e avisava uma dura batalha. As guerreiras Icamiabas, iluminadas pela Lua, surgiram pálidas nas árvores, com os pés agarrados nas raízes parecendo mulheres gigantes. Seus cabelos se entrelaçavam nos galhos e desde o alto atiravam sem cessar suas venenosas zarabatanas e bordunas.

Atordoados, sem saber para onde correr, os homens fugiram pelo rio, gritando que estavam guerreando com encantados da selva. Foi aí que o Frei Carvajal lembrou das bravas amazonas, aquelas mulheres sem peito e sem maridos, vindas do Cáucaso. Com a cruz numa mão e a Bíblia na outra, ele gritava que eram as próprias fêmeas renascidas nesse lado do mundo.

O caudaloso rio levou o barco furado com mortos e feridos, um deles foi o capitão Orellana, atingido por uma borduna carregada com vinho de jurema. Essa planta escolhida, o faria voltar com ideias delirantes de perseguição. Para talvez em sonhos achar a cidade da canela que tanto desejava. Assim foi. Depois de muitos anos com novos barcos e homens, o capitão espanhol voltou e, abandonado, faleceu na beira de um rio.

Os que chegaram vivos escreveram para os reis de lá que as Icamiabas eram as novas amazonas. Por aqui, a deusa Lua

abençoou o nome e Amazonas passou a ser chamada a terra, a mulher e o grande rio mãe.

Depois de muitos séculos, homens incrédulos continuaram voltando para guerrear com elas, para imaginá-las ou possuí-las, mas nunca as encontraram. Não souberam escutar o silêncio da mata. Elas estão aí, perto dos rios, descansando no lago espelho da lua ou avisando pelo toque das sapopemas. Nesta terra sempre haverá amazonas, icamiabas, mulheres sem marido, guerreiras solitárias, revolucionarias, feiticeiras da mata que atravessaram os tempos para fazer-nos lembrar de nossa força.

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