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Seria Velha Joca da Borracha a Matinta Perera? Emiliana Moraes

Seria Velha JoCa da borraCha a matiNta Perera? (Conto de cabocla ribeirinha)

Emiliana Moraes

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Apresentação

Passei a primeira infância ouvindo histórias de visagens antes de dormir. Uma dessas era Matinta Pereira.

Ser mítico que está na mata, está em mim, está em nós, em nosso imaginário caboclo. Ela canta e apita no âmago da gente, trazendo à tona nossa ancestralidade marajoara. É identidade cultural milenar ribeirinha e indígena dos povos da Amazônia. Cada município tem suas próprias variações da Matinta. E nós, em São Sebastião da Boa Vista, no arquipélago do Marajó, tínhamos a nossa — a de que essa mulher de idade avançada, conhecida sob a alcunha de Velha Joca da Borracha, seria a Matinta Perera. Ou, pelo menos, seria uma de suas encarnações.

O Movimento de Contadores de Histórias da Amazônia — MOCOHAM — realiza, anualmente, o Baile da Matinta, quando rolam histórias das mais diversas sobre as muitas aparições dessa visagem. Ao receber o convite de Chama das histórias: O Brasil contado por mulheres, para levar para a escrita um conto tradicional brasileiro, este se apresentou! E eu trouxe a minha versão, memórias do meu Pará, como menina cabocla da beira do rio.

Lá pelos idos da década de 70 do século XX, eu e minha família morávamos no interior do Estado do Pará, os rios eram as nossas ruas, e a mata, lugar de onde poderia vir muitas histórias de arrepiar, por conta de seus misteriosos e vibrantes sons noturnos. Nos reuníamos antes de dormir, para ouvir histórias de visagens, de assombrações, sob a luz de lamparinas, candeeiros ou lampiões.

Naquela época, as diversões eram o rádio, que nem todo mundo tinha — aliás, só “rico” possuía — e o circo, que aparecia de tempos em tempos, causando sensação na cidade e, ao se aprumar, os artistas montavam o picadeiro, geralmente atrás do grupo escolar.

Uma penca de filhos, com diferença de dois anos de idade de um para outro, soltos pela cidadezinha, tomávamos banho no rio, corríamos descalços, ou com um chinelo de dedos, subíamos em árvores e comíamos fruta no pé. Brincávamos de roda, de ciranda, de macaca e de cemitério, quase todo dia. Jogávamos peteca, que era um dos melhores presentes que podíamos ganhar, e jogos de botão, que os meninos amavam e eram vidrados! Até ao cemitério de verdade íamos passear! Havia um respeito dentro de mim, ao cuidar de recolocar cruzes que tinham caído dos jazigos no chão, ou ao ajeitar algum ramo de flores, que porventura um parente tivesse ofertado ao seu querido falecido…

Mas ir até à casa da anciã, que respondia pela alcunha de Velha Joca da Borracha, huum… Na-na ni-na nã-o! Ninguém se aventurava! Ela era uma senhora de idade, que vivia sozinha e quieta em sua casa. Não conversava e nem dava papo para ninguém, e nem dava abertura para se entrosar com a vizinhança. Inclusive, jamais soube qual era seu nome

de verdade. Era sequinha, bem magra, desprovida de dentes, e seu rosto parecia um maracujá esquecido na gaveta, de tão engilhado que era, ééégua!

De uma distância segura, víamos andar meio curvada, a se embalar na sua rede, ou a limpar seu terreiro com vassoura feita de cacho seco de açaizeiro. Diziam que era a Matinta Pereira e ia nos pegar! E pegaria sem motivo nenhum! Cada cidade tem a sua pessoa encantada, que carrega a maldição macabra de virar essa bruxa, a Matinta. E a Velha Joca da Borracha era a nossa. Que apelido mais matintoso, né? Às vezes, aparecia com os cotovelos e joelhos ralados, então, minha irmã afirmava: “É a Matinta Perera, sim! Olhem como está toda batida!”

Falavam para nos assustar que, nas noites de lua cheia, tirava a própria cabeça e colocava dentro de sua rede e se transformava num “catitu”, um porco do mato, para assombrar quem quer que fosse! Diziam que no percurso pela estrada de São Sebastião até o Cocal, ela se socava dentro de uma imensa samaúma, em frente ao sítio Mirizal, pois essa árvore tinha um buracão por trás. E assim que estava deserto e algum desprevenido passava por ali, flagravam essa senhorinha sair de trás desse tronco enorme, em forma de curupira, mulher de branco, lobisomem ou Matinta!

Essas aparições aconteciam nas noites de plenilúnio com muita latumia, ruído e barulho, e sucedia essa transfiguração, essa metamorfose de homem, em lobisomem; de mulher, em mulher de branco; e de velha senhora, em Matinta Pereira!

Maty Taperê, Sererê Saci Pererê, Siriri!

Rasga Mortalha, Saperê! Matinta Pereira, Ave Saci!

Anos depois, descobri que a Matinta podia amedrontar, também, na forma de um pássaro agourento, chamado rasga mortalha, ave saci, e podia voar pelas cercanias do lugar, pedindo fumo. Se não fosse atendida, lançava uma maldição, uma praga, sobre a pessoa solicitada. Em muitas culturas, aves e/ou pássaros simbolizam almas de pessoas mortas, podendo significar a visita de um parente falecido. Maty Taperê, chamado popularmente de Matinta Perera ou Saci, tem o canto estridente, associado ao pássaro tapera naevia.

Saci Tapererê, Maty Taperê! Rasga mortalha, Saperê! Tapera naevia, Sererê! Siriri, Saci Pererê!

Eu ouvia tudo isso e imaginava um monte de história, mas o que ficou mesmo na lembrança, foi um grande medo de algum dia passar na ilharga, ou dar de cara com a Matinta! Virgem Maria! Nossa Senhora de Nazaré nos proteja!

Diz a lenda que na escuridão noturna, ela sopra um assobio agudo no telhado, e que nunca se sabe de onde vem. Ele é inquietante e medonho. E silva tanto, a ponto de perturbar o sono das pessoas e de dar um arrepio congelante no espinhaço da gente, assustar as crianças, arrebatar gemidos e resmungos, momento em que o dono da casa deve prometer tabaco ou fumo.

“Fiuuuuuuu! Fiuuuuuu! Fiuuuuuu!”

“Oh, Matinta, pode passar amanhã pra pegar seu tabaco.”

Hum! Tabaco! Fumo! Palavras mágicas para enfim, a Matinta calar o bico, fazer silêncio e a paz retornar ao lar atormentado. Entretanto, no dia seguinte, uma senhora bem velhinha aparece e bate na porta da residência onde a promessa foi feita, e cobra o fumo!

Tudo fica bem se a pessoa cumpre a promessa, porque a Matinta ama pitar em seu cachimbo, em seu petyngua, que é um objeto muito importante para o povo guarani m’byá, usado na casa de reza como meio de comunicação com as divindades, posto que a fumaça proveniente do tabaco imitaria a neblina verdadeira, subindo para os céus, levando consigo o pensamento.

Esse domínio da bruma seria fortalecimento espiritual na busca para o conhecimento sobre a origem e evolução do Universo. Então a fumaça do petyngua subiria e o pensamento subiria junto, até alcançar Nhanderu, o Criador, a divindade. Quem sabe a Matinta, faz conexão com Nhanderu através do domínio da fumaça do seu cachimbo?

No petyngua que a Matinta pita Fumaça dela sobe e agita! Essa bruxa agoura, assusta e grita! Fiuuuuuuuuuu! Fiuuuuuuuuuu!

Ah, tem mais! Contam que, na ocasião em que a pessoa que carrega a sina está para morrer, ouve-se uma pergunta no ar: “Quem quer, quem quer?”. Se alguma desavisada responde: “Eu quero!” Já era! Essa pessoa herdará e receberá o fado de ser a próxima Matinta Perera.

Tu queres?

Glossário

Visagens: Assombrações, aparições imaginárias de seres sobrenaturais ou inexplicáveis que provocam medo.

Macaca: Amarelinha ou Jogo da Macaca no Pará é uma brincadeira popular entre crianças; O nome brasileiro do jogo vem do francês marelle, que por adaptação popular ganhou a associação com amarelo e o sufixo diminutivo.

Cemitério: Também conhecido como queimada ou jogo do mata, é um esporte coletivo em que os jogadores de duas equipes tentam acertar os oponentes com uma ou mais bolas, evitando serem atingidos. O objetivo de cada equipe é eliminar todos os membros da equipe adversária, acertando-os com bolas lançadas.

Peteca: Bolinhas de Gude. A brincadeira reúne inúmeras crianças numa disputa que exige habilidade e precisão no jogo com pequenas esferas de vidro coloridas.

Engilhado: Engelhado. Que tem rugas, encarquilhado, enrugado.

Égua: Palavra usada por paraenses, não só para expressar surpresa, mas também raiva, frustração e outros sentimentos.

Batida: Machucada; ferimento físico.

Latumia: Assuada, ruído, barulho, lamentação.

Ilharga: Lateral do corpo, direito ou esquerdo; lado.

Pitar: Fumar cachimbo.

Petyngua: Tipo de cachimbo guarani feito de madeira ou cerâmica e utilizado em rituais ou no dia a dia. É um objeto de grande importância social e espiritual na cultura m’byá.

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