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Acendendo a fogueira - Camila Costa

Acendendo a fogueira

Contam alguns povos antigos, que a palavra possui o poder criador. Ela é em si um espírito vivo, seja a palavra falada ou cantada. No início de tudo, bem no começo, no tempo antes do tempo, foi por meio da palavra que os seres que vivem nasceram na Terra. A palavra cria a vida e, por isso, ela possui também o poder de regenerá-la.

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Cada vez que uma história é contada em voz alta, a vida é (re)criada. Quando ouvimos uma história, é diretamente ao nosso espírito que essa qualidade de palavra se dirige. E para que o espírito possa viajar em segurança, é preciso manter o corpo aquecido. Para isso, alimenta-se o fogo. A chama que queima a madeira nos lembra também sobre o mistério que habita em tudo que vive.

Em abril de 2019, convidei narradoras que admirava para nos reunirmos ao redor da fogueira e compartilharmos histórias. Elas aceitaram o convite. Pessoas queridas vieram nos ouvir. Ali, naquela noite, ao redor do fogo e sob a luz da lua, nascia a “Chama das Histórias”. Desde então, o projeto reúne uma teia de vozes femininas que se debruça sobre o universo dos contos da tradição oral.

Ao longo dos últimos anos, apresentamos nossas Rodas de Contação de Histórias ao redor do fogo em importantes festivais e espaços de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Criamos algumas Rodas em formato audiovisual, disponíveis no nosso canal do YouTube; realizamos o seminário online “Oralidade: Caminhos dos contos de tradição oral” e este pe-

queno tesouro que você tem em mãos, é nosso primeiro livro publicado.

As histórias reunidas aqui, guardam importantes ensinamentos sobre quem somos ou podemos ser. São versões de contos tradicionais brasileiros de variadas origens. Somos dez autoras e nas páginas adiante você poderá conhecer um pouco de cada uma de nós. A partir de pesquisas, e ao longo de um processo de estudo e criação, nossos textos nasceram para fazer eco às vozes originárias das culturas aqui reverenciadas. Você encontrará, também, as trilhas que percorremos e as fontes nas quais bebemos. Estejam elas nos rios das nossas memórias ou em bibliografias.

No ano em que se comemora o Bicentenário da Independência, colocam-se também algumas perguntas: Que vozes contam o Brasil? Independência para quem? Feita por quem? Quem são as heroínas e heróis dessa história? De que forma contar a(s) história(s) de um país tão diverso e multicultural? Somos muitas vozes reunidas nesses territórios que hoje chamamos Brasil. Ressoando das florestas, dos quilombos, dos interiores, comunidades, periferias, de todos os recantos. Vozes vivas. Vozes que sempre estiveram ecoando seus gritos de independência Brasil a fora, Brasil a dentro.

É preciso acordar os ouvidos e os sentidos. Ouvir. Ouvir sempre. Ouvir mais. Ouvir por todos os poros. De corpo inteiro. Acordada a escuta, quem sabe, seja possível construir a sociedade que sonhamos. Este livro deseja fazer ecoar as vozes da diversidade que constituem o nosso país, que tanto lutaram e lutam, até hoje, para resguardar suas liberdades e direitos. Nossa intenção é celebrar a identidade nacional por meio do reconhecimento e valorização dos múltiplos sujeitos

que protagonizam a comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil.

Este é um livro-coro. Nossa escrita vem reverberar as vozes contidas nessa coleção de histórias. Este é um livro-pergunta. Que vozes contam o Brasil? Este é um livro-embate. Numa sociedade em que as narrativas estão em disputa, escolhemos estar nas trincheiras poéticas. Este é um livro-beleza. Ainda que o encontro entre culturas nessas terras seja sangrento e opressor, a força dos universos simbólicos de cada povo que por aqui permaneceu, resiste, existe, se encontra e recria novas — antigas simbologias. Este é um livro-festa. Para nos lembrar que luta e celebração podem caminhar de braços dados. Este é um livro-roda. Construído coletivamente, a muitas mãos, por mulheres artistas da palavra que reuniram aqui seus talentos para imaginar outras realidades possíveis. A sociedade que desejamos é um projeto em construção.

Nas páginas a seguir, você irá passear por belíssimas paisagens, repletas de rios, matas, montanhas, cavernas e noites de lua cheia. Visitará o tempo em que os animais falavam. Mergulhará na profundeza dos mares e voará pela imensidão dos céus. Poderá saborear furtas suculentas. Sentirá o cheiro de fumaças perfumosas, curadoras e que podem se comunicar com os encantados. Ouvirá cantos de ninar, de embalar caminhos e de despertar sentidos. Você fará uma viagem por um Brasil profundo, por vezes, pouco escutado, e que tanto nos constitui. Mantenha o corpo aquecido. Alimente a chama. Permita-se. Boa viagem.

Camila Costa

Criadora, curadora e gestora da Chama das Histórias.

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