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José que era Maria Gizele Santos
JoSé que era maria
Gizele Santos
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Apresentação
Aqui apresento meu reconto de Maria Gomes, recolhido e apresentado pelo mestre Câmara Cascudo.
Uma das razões de minha escolha se baseia no fato da protagonista ser minha xará, pois embora assine somente como Gizele Santos, meu nome completo é Gizele Maria Gomes Ferreira dos Santos! E além disso, os Contos de Encantamento sempre tiveram assento confortável na sala de minhas preferências. Sou uma canceriana legítima, romântica e admiradora das belas histórias de amor.
Em meu texto, trago a narrativa para o a atualidade, em pleno século XXI, onde à revelia de toda a modernidade, ainda convivemos com o que há muito deveria ter evoluído, em termos de comportamento humano, justiça social, e questões ambientais.
No mais, que seja doce o deleite da leitura! E que jamais desistamos de difundir o que a tradição oral nos traz, mantendo acesa a “Chama das Histórias”.
Gomes era homem nem tão velho, nem tão moço. Viúvo, pobre e pai de muitos filhos. Vivia em constante aflição, pois não tinha emprego fixo, e fazia biscates. A única renda certa vinha do lixo, da venda diária de papelões, vidros, plásticos e latinhas de alumínio que os filhos coletavam pelas ruas.
Certa feita, tomado pelo desespero de ver, novamente, os filhos adormecerem com fome, Gomes se pôs a pensar, e decidiu que abandonar um dos filhos na mata, era sua única saída.
Escolheu Maria, a décima terceira de seus filhos. O primogênito, Adão, iniciou um quase alfabeto completo, interrompido com o falecimento da esposa, no parto de Quimera.
Decidido, Gomes tomou Maria pela mão e adentrou o Parque da Pedra Branca, avançando na mata, entre jequitibás e ipês. Caminharam em silêncio. Barulho havia na cabeça dos dois. O pai, pensando na inteligência da cria, tentava abrandar a sua culpa, acreditando que ela ia sobreviver. A filha refletia o porquê de estarem ali.
Caminharam um par de horas, até a ordem para que Maria sentasse, e ali ficasse, dizendo Gomes, que ia colher mel. Ela o alertou do perigo de ser picado por muitas abelhas. O pai tirou, do saco de ráfia que carregava, uma espécie de capa, feita com sacolas plásticas, coletadas no lixo, e costuradas pela própria filha. A moça disse que faria tapetes, para dar aos que dormem nas ruas, sobre papelões, que molham com a chuva. Gomes a ouviu, emocionado; beijou-a na testa e foi se afastando, sem nada dizer, e sem olhar para trás.
As horas avançaram, e como o pai não voltava, e logo anoiteceria, a jovem pôs-se a andar. Depois de esgueirar-se entre
duas grandes pedras, chegou a um adro, em frente ao que parecia ser uma gruta. Perto da entrada, um cavalo branco e manso pastava. — Que lugar incrível! — Exclamou a jovem.
Parecia uma casa esculpida pela natureza. Um platô lisinho e ovalado, parecia uma mesa, com pedras mais baixas, feito bancos; e outro, mais extenso e retangular, uma cama. Ao lado deste, havia um violino pendurado. Maria o pegou, tocou e encantou-se. A música ganhou o ar, embalando seu sono.
Em sonho, viu um cantinho protegido de vento, onde do alto caía generoso fio d'água. Despiu suas vestes, e banhando-se avistou uma pequena pilha de panos dobrados. Percebeu que eram roupas limpas, adequadas a seu tamanho. Vestida, sentou-se à mesa de pedra, onde comidas quentinhas, e uma jarra com água a esperavam. Alimentou-se bem, coisa bastante incomum para ela, e, alegre, pôs-se a conversar com o cavalo, que lhe disse que a partir dali seriam somente os dois, um cuidando do outro.
Maria despertou com o canto dos pássaros, ao amanhecer. De pé, se viu com as roupas vestidas no sonho. Sobre a mesa de pedra, agora havia pães, bolos e suco de frutas. Sentou-se para comer, respondendo, com um sorriso, ao “bom dia” de Inácio, o cavalo branco. O novo amigo, gostava de conversar, e a convidou para um passeio. Ela aceitou, com coração tranquilo, e olhos atentos. Caminharam entre flores e borboletas amarelas, chegando a um riacho, onde saciaram a sede.
Tempos adiante, certa noite, Maria foi surpreendida por uma fala muito séria do cavalo: — Teu pai está doente. Quer visitá-lo, Maria Gomes?
— Quero! — Respondeu a moça. — Pois amanhã cedo estarei selado, à tua espera. Debaixo da pedra redonda, ao lado de onde dormes, há muito dinheiro. Leve o quanto desejar dar à tua família, mas precisas saber que há regras inegociáveis, e terás de obedecê-las. Primeiro, nada poderás dizer sobre onde e como estás vivendo. A segunda regra é que terás que atentar aos relinchos que darei. Serão três: ao ouvir o primeiro, despeça-se imediatamente de seu pai e irmãos. Ao segundo, dirija-se à porta; no terceiro relincho já deverás estar montada, para voltarmos. Se desobedeceres a qualquer das regras, nada poderei fazer!
Na manhã seguinte tudo se deu como Inácio havia dito, e em questão de segundos, Maria Gomes bateu à porta de sua antiga casa. Seu pai, de imediato, aparentou melhoras, vendo a filha tão bem, e ainda lhe trazendo dinheiro. Os irmãos festejaram sua presença, pois a imaginavam morta, depois de perdida na floresta.
O tempo voou entre saudades e sorrisos. Quando Maria Gomes ouviu o primeiro sinal do cavalo, despediu-se rapidamente de seu pai, irmãos e irmãs, ignorando as incontáveis perguntas que lhe faziam. Ouvindo o segundo sinal, já na porta, montou em Inácio; e ao terceiro relincho partiram em disparada.
Longo tempo se passou até que mais uma visita fosse feita à família. Agora seu pai estava à beira da morte. Na tristeza do momento, abraçada aos irmãos, e chorando aos soluços, Maria não ouviu o primeiro relincho de Inácio. Somente ao segundo sinal, despediu-se. No terceiro chegou à porta, de onde viu a partida do cavalo. Imediatamente pôs-se a correr atrás dele, até o limite de suas forças, quando caiu. Foi surpre-
endida pelo retorno do animal. Ouviu do amigo que, se não tivesse corrido e se esforçado para alcançá-lo, ele voltaria, mas para matá-la, a coices.
No tempo que seguiu, os dias eram preenchidos por longas conversas entre os dois amigos. De noite, após jantar, Maria tocava violino, até o sono chegar para eles.
Certo dia, Maria Gomes, sentada à sombra de um flamboyant, ouviu de Inácio: — Até aqui fomos parceiros quase perfeitos. É chegada a hora de ajudar-te, e de completar minha sina. Amanhã deverás cortar os cabelos, e vestir-se de homem, partindo, montada em mim. Sairemos e deverás buscar um emprego, sem jamais afastar-se do amigo que vos fala, está entendido? — Por que precisarei usar vestes masculinas?
A resposta veio, de supetão: — O mundo é machista, Maria… por demais. Fingir-te homem facilitará tua vida, e deverás cuidar, também, de tua postura, para convencer as pessoas, e assim te proteger.
Na manhã seguinte, José — que era Maria —, encheu os bolsos de dinheiro, e cavalgou, até deparar-se com um sítio, onde por conta de sua de boa apresentação e desembaraço, logo se empregou como jardineiro. Era a propriedade de uma família rica. Ali moravam uma viúva e seu filho único, mestre em Botânica. Todas as manhãs, ele ia ao jardim, agora bem cuidado por "José Gomes", e assim ficaram amigos.
Em confidência à sua mãe, o rapaz falou do encantamento pelos olhos do empregado, que mais pareciam ser de uma mulher, não d'um homem. Nascia ali uma paixão.
Temerosa pelo sofrimento do filho, a experiente senhora sugeriu:
— Leve Gomes para caçar, e de noite arme as redes sob o jasmineiro encantado. O vento e o orvalho fazem as folhas recaírem sobre homens; e as flores, sobre as mulheres. Ao raiar do dia, atente para onde caíram as flores.
Assim procedeu, mas ao nascer do sol, um relinchar de Inácio, que permaneceu por perto, inverteu as coisas, e José foi visto coberto de folhas. Decepcionado, o rapaz voltou para casa, e ouviu da mãe uma segunda proposta: — Convide José para um banho no rio. A nudez revelará a verdade.
Convite aceito, e chegando lá, o rapaz logo se despiu, e caiu na água, chamando pelo amigo, que se despia de costas, devagar. Antes que se livrasse das ceroulas, o jardineiro novamente foi salvo pelo cavalo, que relinchando chamou violento temporal, e rapidamente os dois retornaram para casa.
Depois de duas tentativas fracassadas, a mãe aconselhou: — Precisam dormir uma noite no mesmo quarto. Chame o jardineiro para organizar sua biblioteca.
Eram muitas as estantes, do chão ao teto. O empregado acabou dormindo nos aposentos do amigo, que no meio da noite levantou, foi até o adormecido, e passou levemente as mãos em seu peito, sentindo a saliência dos seios. Despertou a moça, declarou sua paixão e a pediu em casamento.
De manhã, bem cedo, José correu e contou ao cavalo da grave situação, e escutou dele a confissão: — Não temos saída. Se aproxima o tempo da Liberdade. Em poucos dias chegaremos a 13 de junho, Dia de Santo Antônio, meu poderoso padrinho. Vá até a dona da casa, e sugira uma cavalhada festiva, com toda a gente da região. Eu te resgatarei, pois teu noivo, Maria, sou eu!
Sugestão aceita. No dia, o comparecimento dos convidados superou as expectativas: eram muitos os cavaleiros e cavalos, lindamente paramentados. Inácio e José foram vitoriosos, e após reverenciarem a anfitriã, dispararam em galope mágico, não sendo alcançados por ninguém. O botânico viu sua amada sumir na poeira do vento.
Maria segurou firme e fechou os olhos, abrindo-os somente ao sentir o cavalo parar.
Apeou, e com os dois pés no chão, em frente à caverna em que moraram, a moça ouviu um estrondo, e das pedras surgiu um verdadeiro palacete, com luxos e luzes. Maria Gomes sentiu suas mãos entrelaçadas às de um cavaleiro. Inácio, o cavalo encantado, agora transformado em belo rapaz.
Os dois se casaram, e ainda hoje vivem felizes, no mesmo lugar. Se alguém tiver dúvida, confira! Adentre a mata do Parque da Pedra Branca, procure, e os encontrará.