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CAPÍTULO IV - O JOGO E A SRA. CAREW

CAPÍTULO IV

O jogo e a Sra. Carew

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Boston, para Poliana, era uma experiência nova. E certamente, para Boston – pelo menos a parte que a havia conhecido – ela era uma experiência muito nova também.

Poliana disse que gostava de Boston, mas desejava que não fosse tão grande. – Veja só – ela explicou sinceramente para a Sra. Carew, no dia seguinte à sua chegada. – Eu quero ver e conhecer tudo, e não posso. É como os jantares da tia Poli. Há tanta coisa para comer – ou melhor, para ver –, que você não come, ou melhor, não vê, nada, porque está sempre tentando decidir o que comer – ou melhor, ver.

“É claro que você pode ficar feliz por ter tantas coisas – resumiu Poliana, depois de respirar –, porque muito de alguma coisa é bom –, isto é, boas coisas, não coisas como remédios e funerais, é claro! –, mas, ao mesmo tempo, não poderia deixar de querer que os jantares da tia Poli se estendessem por alguns dias quando não houvesse bolo nem torta, e sinto o mesmo em relação a Boston. Eu gostaria de poder levar parte dela comigo até Beldingsville, então eu teria algo novo no próximo verão. Mas é claro que não posso. As cidades não são como bolos congelados e, de qualquer forma, até mesmo o bolo não ficaria muito bom. Eu experimentei e ele secou, principalmente a cobertura. Eu acho que a hora de aproveitar a cobertura e os bons momentos é enquanto eles estão fresquinhos, então eu quero ver tudo o que conseguir enquanto estiver aqui.

Poliana, ao contrário das pessoas que pensam que, para ver o mundo, é preciso começar no ponto mais distante, começou a “ver Boston” através de uma exploração completa dos arredores próximos – a bela residência da avenida Commonwealth que agora era sua casa. Isso, junto com as atividades da escola, ocupou completamente seu tempo e atenção por alguns dias.

Havia tanta coisa para ver e tanto a aprender. E tudo era tão maravilhoso e tão bonito, desde os minúsculos botões na parede que inundavam os cômodos com luz, até o grande e silencioso salão de baile, repleto de espelhos e quadros. Também havia tantas pessoas agradáveis para conhecer, pois, além da própria senhora Carew, havia Mary, que espanava os cômodos, atendia a campainha e acompanhava Poliana na ida e volta da escola todos os dias; Bridget, que estava sempre na cozinha; Jennie, que servia a mesa, e Perkins, que dirigia o carro. E eles eram todos tão encantadores, mas tão diferentes!

Poliana tinha chegado numa segunda-feira, então faltava ainda quase uma semana para o primeiro domingo. Ela desceu as escadas naquela manhã com um semblante radiante. – Eu adoro domingo – suspirou feliz. – Você gosta? – a voz da Sra. Carew tinha o cansaço de quem não gosta de nenhum dia. – Sim, por causa da igreja, sabe, e da escola dominical. De qual a senhora mais gosta, da igreja ou da escola dominical? – Bem, na verdade, eu... – começou a Sra. Carew, que raramente ia à igreja e nunca frequentava a escola dominical. – É difícil saber, não é? – intrometeu-se Poliana, com olhos luminosos, mas sérios. – Eu gosto mais da igreja, por causa do meu pai. Ele era pastor, e, é claro, está no Céu com a mamãe e outras pessoas, mas eu tento imaginá-lo aqui, muitas vezes. E fica mais fácil na igreja, quando o pastor está falando. Eu fecho os olhos e imagino que seja o papai lá em cima, e isso ajuda muito. Fico tão feliz que podemos imaginar as coisas, a senhora não fica? – Não tenho tanta certeza, Poliana. – Ah, mas pense em como tudo o que imaginamos é mais legal do que as coisas reais. Quero dizer, é claro, as suas não, porque as

suas coisas verdadeiras são muito legais. Já irritada, a Sra. Carew começou a falar, mas Poliana continuava, apressada.

E, é claro, as minhas coisas verdadeiras são muito mais legais do que costumavam ser. Mas quando eu estava machucada, quando minhas pernas não estavam boas, eu ficava imaginando o tempo todo, o máximo que eu podia. Claro, ainda faço isso muitas vezes, como no caso do papai e tudo o mais. Hoje simplesmente vou imaginar que é o papai lá no púlpito. Que horas nós vamos? – Vamos? – Quero dizer, à igreja. – Mas, Poliana, eu não... quero dizer, eu prefiro não. – A Sra. Carew limpou a garganta e tentou novamente dizer que nunca ia à igreja, que ela quase havia ido. Mas, com o rostinho confiante de Poliana e os olhos felizes diante dela, não conseguiu. – Ora, suponho... são umas dez e quinze..., se caminharmos – ela disse então, quase zangada. – É rapidinho.

Assim, a Sra. Carew, naquela manhã ensolarada de setembro, ocupou, pela primeira vez em meses, o banco da igreja reservado à sua família, na moderna e elegante igreja à qual havia ido quando menina, e que ainda ajudava generosamente, com o dinheiro que fosse preciso.

Para Poliana, aquele culto no domingo de manhã foi uma grande surpresa e deleite. A música maravilhosa do poderoso coro, os raios de sol coloridos que entravam pelos vitrais, a voz apaixonada do ministro e o silêncio reverente da multidão em adoração a encheram de um êxtase que a deixou sem palavras por um momento. Apenas quando estavam quase chegando em casa ela respirou fervorosamente: – Ah, Sra. Carew, fiquei pensando em como estou feliz porque podemos viver um dia de cada vez!

A Sra. Carew franziu a testa e olhou para baixo de forma penetrante. Ela não estava disposta a sermões. Tinha sido obrigada a suportar um vindo do púlpito, disse a si mesma com raiva, e agora não iria ouvi-lo de uma criança. Além disso, essa teoria de “viver um

dia de cada vez” era, particularmente, a doutrina preferida de Della. Sua irmã sempre dizia: “Mas você só precisa viver um minuto de cada vez, Ruth, e qualquer pessoa pode suportar qualquer coisa por um minuto de cada vez!”. – Bem? – disse a Sra. Carew, agora sucintamente. – Sim. Só pense no que eu faria se tivesse que viver ontem e hoje e amanhã de uma só vez – suspirou Poliana. – Um monte de coisas perfeitamente lindas, sabe. Mas eu tive ontem, e agora estou vivendo hoje, e ainda tenho amanhã, e o próximo domingo também. Honestamente, Sra. Carew, se não fosse pelo domingo e por esta rua tranquila e agradável, eu só deveria dançar, cantar e gritar. Eu não poderia evitar. Mas é domingo, então, terei que esperar até chegar em casa e então cantar um hino... o hino mais alegre que possa imaginar. Qual é o hino mais alegre? A senhora sabe, Sra. Carew? – Não, nem imagino – respondeu a Sra. Carew, vagamente, como se procurasse algo que tivesse perdido.

Para uma mulher que sempre esperou ouviu que as coisas são ruins, é desconcertante, para dizer o mínimo, ouvir que se deveria viver um dia de cada vez justamente porque as coisas são tão boas, afinal, ela tem sorte de viver um dia de cada vez!

Na manhã do dia seguinte, segunda-feira, Poliana foi para a escola sozinha pela primeira vez. Ela já sabia o caminho, e era apenas uma curta caminhada. A garota gostava muito da escola. Era uma escola particular para meninas e para ela uma experiência bastante nova, e Poliana gostava de novas experiências.

A Sra. Carew, no entanto, não gostava de novas experiências, e estava tendo muitas delas nos últimos dias. Para quem está cansada de tudo, ter a companhia tão íntima de uma pessoa para quem tudo é uma alegria nova e fascinante deve gerar aborrecimento, para dizer o mínimo. E a Sra. Carew estava mais que aborrecida. Ela estava irritada. No entanto, tinha que admitir que, se alguém perguntasse por que ela estava irritada, seu único motivo seria “Porque Poliana é muito feliz”... e até mesmo a Sra. Carew dificilmente conseguiria dizer isso.

Para Della, no entanto, a Sra. Carew escreveu que a palavra “feliz” lhe dava nos nervos, e que às vezes ela desejava nunca mais

ouvi-la. Ainda admitiu que Poliana não havia dado sermões, que sequer havia tentado fazê-la jogar o jogo uma única vez. O que fez, no entanto, foi encarar a “alegria” da Sra. Carew como algo natural, o que, para quem não tinha alegria, era ainda mais provocador.

Foi na segunda semana de estadia de Poliana que o aborrecimento da Sra. Carew transbordou em reclamações irritadas. A causa imediata foi a brilhante conclusão de Poliana a respeito de uma história sobre uma das mulheres da organização de caridade. – Ela estava jogando o jogo, Sra. Carew. Mas talvez você não saiba o que é o jogo. Eu vou te contar. É um jogo adorável.

Mas a Sra. Carew levantou a mão. – Não quero saber, Poliana – ela relutou. – Conheço tudo sobre o jogo. Minha irmã me contou e... e devo dizer que eu... eu não me importo com isso. – Ora, claro que não, Sra. Carew! – exclamou Poliana, desculpando-se rapidamente. – Eu não quis dizer que o jogo era para a senhora. A senhora não poderia jogar, é claro. – Não poderia jogar? – disparou a Sra. Carew, que, embora não fosse jogar esse jogo bobo, não estava disposta a ouvir que não poderia jogar. – Ora, não, a senhora não entende? – riu Poliana, alegremente. – O jogo é encontrar algo para ser feliz em tudo, e a senhora não poderia nem começar a procurar, pois não há nenhum motivo pelo qual não poderia estar feliz. Não existiria nenhum sentido nesse jogo para a senhora! Entende?

A Sra. Carew ficou vermelha de raiva. Aborrecida, ela disse mais do que talvez quisesse. – Bem, não, Poliana, não posso dizer que não tenho – discordou friamente. – Na verdade, veja você, eu não consigo achar nada que possa me deixar feliz.

Por um momento, Poliana olhou fixamente. Então, ela caiu para trás, espantada. – Ora, Sra. Carew! – respirou. – Bem, o que há de bom para mim? – desafiou a mulher, esquecendo-se, por um momento, que nunca permitiria que Poliana desse “sermões”.

– Ora, há... há tudo – murmurou Poliana, ainda com aquela incredulidade aturdida. – Há... há esta bela casa. – É apenas um lugar onde comer e dormir... e eu não quero comer e dormir. – Mas há todas essas coisas perfeitamente lindas – hesitou Poliana. – Estou cansada delas. – E o seu carro que a leva a qualquer lugar. – Não quero ir a nenhum lugar.

Poliana ficou nitidamente ofegante. – Mas, pense nas pessoas e coisas que você pode ver, Sra. Carew. – Elas não me interessariam, Poliana.

Mais uma vez Poliana olhou espantada. A expressão preocupada no rosto dela se intensificou. – Mas, Sra. Carew, não entendo – insistiu ela. – Sempre, antes, aconteceram coisas ruins para que as pessoas jogassem o jogo, e, quanto piores fossem, mais engraçado seria se livrar delas, quer dizer, encontrar coisas pelas quais ser feliz. Mas onde não houvesse coisas ruins, eu sequer saberia jogar o jogo.

Por um momento, não houve resposta. A Sra. Carew estava sentada olhando pela janela. Aos poucos, a revolta de seu rosto mudou para um olhar de tristeza sem esperança. Muito vagarosamente, ela se virou e disse: – Poliana, achei que não fosse lhe dizer isso, mas vou. Vou contar por que nada me deixa... feliz. – E ela começou a contar a história de Jamie, o garotinho de quatro anos que, há oito longos anos, havia entrado em outro mundo, deixando a porta fechada entre os dois. – E a senhora nunca o viu desde então... em nenhum lugar? – hesitou Poliana, com os olhos cheios de lágrimas ao final da história. – Nunca. – Mas, nós vamos encontrá-lo, Sra. Carew, tenho certeza de que o encontraremos.

A Sra. Carew sacudiu a cabeça tristemente. – Mas eu não consigo. Eu o procurei em todos os lugares, mesmo em terras estrangeiras.

– Mas ele deve estar em algum lugar. – Ele pode estar... morto, Poliana.

Poliana deu um grito curto. – Ah, não, Sra. Carew. Por favor, não diga isso! Vamos pensar que ele está vivo. Nós podemos fazer isso, e isso vai ajudar. E quando o imaginamos vivo, podemos imaginar que vamos encontrá-lo. E isso vai ajudar ainda mais. – Mas eu receio que ele esteja... morto, Poliana – engasgou a Sra. Carew. – A senhora não tem certeza, tem? – suplicou a garotinha, ansiosa. – N-não. – Bem, então, a senhora está apenas imaginando – sustentou Poliana, triunfante. – E se pode imaginá-lo morto, também pode imaginá-lo vivo, e será muito melhor enquanto estiver fazendo isso. Percebe? E, um dia, tenho certeza de que vai encontrá-lo. Ora, Sra. Carew, agora a senhora pode jogar o jogo! Pode jogar sobre o Jamie. A senhora pode ficar feliz todos os dias, pois cada dia está só um dia mais perto da hora em que vai encontrá-lo. Entendeu?

Mas a Sra. Carew não “entendeu”. Ela se levantou triste e disse: – Não, não, criança! Você não entende... você não entende. Agora saia, por favor, leia ou faça algo que tiver vontade. Estou com dor de cabeça. Vou me deitar.

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