No parque da cidade

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Bruna Guerreiro

No Parque da Cidade

1ª edição Editora WI 2017


Copyright 2017 – by Bruna Guerreiro Grafia segundo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida total ou parcialmente, por nenhuma forma e nenhum meio, seja mecânico, ou qualquer outro, sem autorização prévia escrita da Editora WI. Título No parque da cidade Capa Bruna Guerreiro Revisão Bruna Guerreiro Projeto Gráfico Equipe Editora WI

2017 Editora WI Rua Faustolo, 1861 cj 84 – Lapa CEP 05041-001 – São Paulo – SP Telefone: (11) 2158-0120


Bruna Guerreiro

No Parque da Cidade


Dedico a todos os viajantes no tempo.


Sumário

Prólogo

...................................................................................07

Capítulo 1 ............................................................................. *8 minutos* ...................................................................... *22 minutos* .................................................................... *2 horas* ................................................................................ Capítulo 2 ............................................................................. *1 dia* ......................................................................................

09 14 19 27

Capítulo 3 ............................................................................. *3 semanas*........................................................................

41 41

Capítulo 4 ............................................................................. *2 meses* ..........................................................................

46 46

Capítulo 5 ............................................................................. *4 meses* ..........................................................................

63 63

Capítulo 6 ............................................................................. *5 anos* ............................................................................ *49 minutos* .................................................................... *7 horas*............................................................................

72 72 74 77

Capítulo 7 *1 ano*

82 82

............................................................................. .............................................................................

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Bruna Guerreiro

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No Parque da Cidade

Prólogo Dizer que era preciso coragem para acionar a alavanca... Sim, era preciso coragem. Mas já me faltava todo o resto, toda a matéria de que se faz o medo. Tudo aquilo que toda gente teme perder. Então, sim, precisei de coragem para acionar aquela alavanca. Mas a coragem é uma criança inconsequente quando lhe falta o medo como companheiro. E por isso, como se não significasse coisa alguma, eu a acionei. A princípio tudo se passou exatamente como eu havia previsto. O giro lento das engrenagens, o cheiro de óleo, o calor crescente do motor à minha frente. Era hora de girar a manivela. Tudo ia rodar, toda a máquina, e eu próprio, dentro dela. Previ que sentiria fortes náuseas. Antes disso passei as pontas dos dedos sobre o encaixe perfeito do relógio-chave, abri a pequena tampa dourada e conferi o ano. Estava tudo certo. Fechei o relógio-chave. Respirei fundo e pus força nas duas mãos, girando a manivela. A náusea veio violenta, como eu nunca antes havia sentido, e me obrigou a fechar os olhos com toda a força. Os solavancos não ajudavam a apaziguar meu estômago que se revolvia, e os estalidos fortes que eu ouvia despertaram finalmente o medo de uma morte dolorosa. Porque tudo e qualquer coisa poderiam acontecer, e eu sabia bem disso. Sabia que punha em risco minha vida, e isso não me importava. Mas naquele momento tive medo da dor, de ser partido em pedaços numa dimensão entre mundos que eu nem fosse capaz de compreender. Nada disso aconteceu, nem mutilação, nem morte. Nem sequestro entre mundos ou, neste caso, entre séculos. Com uma batida pesada e surda, a máquina parou de repente. Mais forte do que nunca, a náusea tomou conta de mim, intensificada pelo forte cheiro de óleo queimado e grama carbonizada. Eu não conseguia respirar. Precisava agir rápido ou acabaria perdendo os sentidos. Encaixei a mão no relógio-chave e girei, removendo-o do encaixe. Então arremessei-me contra a pequena porta, empurrando-a em busca de ar. A lufada de ar, de cheiro forte, deixou-me tonto, mas 7


Bruna Guerreiro mesmo assim icei meu corpo para fora da cápsula. Algumas pessoas olharam de longe. Tentei disfarçar a situação, que seria estranha a qualquer tempo. E olhei em volta. Reconheci muito facilmente a paisagem verde que me cercava. Eu sabia perfeitamente onde estava. Só não sabia quando. *

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No Parque da Cidade

Capítulo 1 Um estrondo despertou-me subitamente e eu girei a cabeça na direção da origem do som. Mas logo percebi que eu nem sabia de onde vinha o barulho. De dentro do café? Do parque? Não vi nada além de várias outras cabeças nas mesas externas do café virando de um lado pro outro e procurando a origem do barulho, assim como eu. E não encontrando nada, assim como eu. Pouco a pouco, cada um foi voltando a atenção para o que estava fazendo antes e esqueceram do barulho. Intrigada, pisquei algumas vezes, dei de ombros e retornei ao livro que tinha nas mãos. Eu estava completamente absorta naquela leitura. O livro me capturou já nas primeiras páginas, e eu ali tentando lembrar o que me tinha feito escolhê-lo ontem na minha visita semanal à biblioteca. Passeando por uma estante pouco explorada da seção de Literatura Nacional, não havia nada naquela lombada comum, de couro marrom claro, que justificasse minha atração por aquele volume. Nada além do título, muito simples e direto: Relato de uma viagem ao futuro. Gravado em letras douradas, como o nome do autor, Ernesto Rodrigues. Eu nunca tinha ouvido falar daquele autor, mas como gosto demais do tema, acabei levando. Me pareceu interessante um livro sobre viagem no tempo escrito por um brasileiro, eu pelo menos nunca tinha lido nenhum! Então o resultado era que hoje, desde cedo, depois de ter terminado meu sagrado passeio de patins pelo parque, eu estava enfiada naquele livro com uma curiosidade insaciável, sentada do lado de fora no café do Parque da Cidade. Fui conferir se ainda tinha café na minha xícara e percebi que um dos rapazes da mesa ao lado estava olhando pra mim. Me encarando mesmo. Não era nada mau, ele. Era bonito, até. Um estilo malhado de academia, e eu tenho que confessar que gosto, e ainda por cima com uma barba morena muito interessante. Talvez eu devesse dar mole pra ele... Ou talvez não, reconsiderei com um suspiro preguiçoso. Naquele sábado eu definitivamente não tinha acordado disposta a me engajar na busca do amor. 9


Bruna Guerreiro Desviei os olhos lentamente, tentando dar aquela impressão de quem nem estava de fato olhando para o moço, só correndo os olhos pela paisagem como quem não quer nada. O parque então foi-se revelando iluminado diante de mim. Fiquei surpresa ao perceber o quanto a manhã já estava clara. Eu já devia estar há bem mais de uma hora ali. O sol tinha subido e varava os galhos folhosos das árvores mais altas em direção ao chão. Era uma bela cena. Só por hábito, tirei o celular do bolso do short jeans, fiz uma foto e postei. Uma família com três crianças passou pela alameda cimentada que serpenteava entre o gramado diante de mim. O Parque da Cidade não era um parque de muitas crianças. Era essencialmente um parque de caminhadas, idosos pegando sol, jovens praticando esportes, piqueniques meio estranhos e ultimamente alguns ensaios fotográficos de grávidas e casais. Havia esculturas de arte moderna, pertencentes ao Museu da Universidade da Cidade, o qual por acaso ficava dentro do Parque, assim como o prédio quadradão de estilo eclético que abrigava o campus de Direito da mesma universidade, onde eu estudava nas noites de segunda a sexta. Ou seja, aquele parque todo era meu velho conhecido. Uma segunda casa para mim. De dia ou de noite, de algum modo eu estava no Parque da Cidade todos os dias da semana, estudando, lendo ou patinando. – Vocês já pararam pra pensar que este parque tem exatamente a mesma paisagem desde que foi inaugurado? A pergunta de um dos jovens da mesa ao lado me surpreendeu e chamou minha atenção. Virei o rosto na hora, sem nem disfarçar. – É claro que não, seu burro. As árvores crescem, não sabia? – disse o carinha de barba que estava me encarando um minuto antes. – Sim, sim, claro. – concedeu o outro, que parecia ser o mais velho da turma. – Mas vejam o que eu quero dizer. Até este prédio pequeno aqui, onde fica o café, atrás de nós, isso é bem velho, é do tempo da inauguração do parque. Claro que não era um café, não sei o que era. As coisas foram mudando de função e envelheceram, mas não mudaram muito. Percebem? 10


No Parque da Cidade – E?? – inquiriu com pouca paciência um terceiro rapaz, franzindo a testa e achando o assunto tremendamente desinteressante. – E... não sei. – admitiu o homem que tinha puxado o assunto. – Peraí. Deixa ver se eu entendi. Você quer dizer que se uma pessoa de 1900, quando foi inaugurado o parque, passasse por aqui agora, não estranharia nada, é isso? – falou a única moça da mesa, uma morena bonita de cabelos pretos volumosos e brilhantes. – Sim, talvez seja isso que eu quero dizer! – ele exclamou. – Claro que, observando melhor, ela estranharia as roupas, as coisas que as pessoas carregam nas mãos e talvez aqueles sacos azuis nas lixeiras. Mas até as lixeiras são originais, de ferro! Nesse momento, todos na mesa fizeram silêncio e olharam para a alameda principal, procurando as lixeiras pretas. Sem perceber, eu fiz o mesmo. Ele tinha razão. Até as lixeiras eram originais. De ferro preto, com certeza pintadas e repintadas infinitas vezes, resistentes e impossíveis de mover, já tão afundadas nos sulcos criados por camadas e camadas de cimento nas alamedas por onde caminhavam os pedestres. Tão enraizadas quanto as árvores do parque. Todo o parque tinha uma natureza de perenidade, uma sensação de imutável. Nós apenas passávamos por ali, com chapéus e bengalas ou tênis e celulares. Mas o Parque da Cidade permanecia atemporal, da vegetação à arquitetura. – Pena que viagem no tempo não exista, né? – falou o mais impaciente, em tom de gozação, dando uma mordida num salgado. – Não exista ou não seja possível? – perguntou o barbudo. – Não é a mesma coisa? – disse o outro, de boca cheia. – Não é, não. – observou o primeiro. – Não dá pra afirmar que não é possível. – disse a moça, com um sorriso enigmático. – Mas é como dizem: a maior prova que temos de que nunca ninguém fez uma viagem no tempo é o fato de que nunca ninguém viu um viajante do tempo. – E se um deles estiver por aí, andando escondido? Vivendo entre nós? – o primeiro perguntou, rindo e mexendo com a garota, 11


Bruna Guerreiro que riu também. Que coincidência que começassem a falar de viagem no tempo justamente quando eu lia um romance sobre o tema... Não é? Quer dizer, não é que fosse assim um tema mega incomum, mas ainda assim era uma coincidência. Com receio de que percebessem que eu estava ouvindo a conversa deles, virei a cabeça pra frente de novo, observando o parque e focando meu olhar com atenção deliberada num determinado grupo fechado de árvores esguias. Foi quando algo chamou a minha atenção, saindo de trás daquelas árvores. Um senhor de bigode, vestindo terno cinza claro, cambaleava segurando um chapéu. Ele tentou se endireitar e olhar em volta, mas isso só pareceu piorar sua situação e ele teve de se apoiar numa árvore. Quando começou a tremer violentamente, o corpo precariamente apoiado contra o tronco fino de uma das árvores foi sacudido por espasmos, eu me levantei num pulo e disparei na sua direção para ajudá-lo. – O senhor está bem? – perguntei, quando o alcancei. Ele me olhou assustado, como se estivesse vendo um fantasma. Estava muito pálido. Pude perceber que ele não era um senhor, não exatamente. Ele era um homem jovem, mais velho que eu, sim, mas não um senhor. Devia ser o bigode que, de longe, me dava a impressão de que ele era mais velho. Ainda sem dizer uma palavra, ele enxugou a testa suada com a mesma mão que segurava o chapéu. Com um gesto, me ofereci para segurar o chapéu, mas ele recusou, recuando um pouco e dando um passo pra trás. Ele se desequilibrou e só não caiu porque eu segurei sua mão. – Você não parece nada bem. É melhor vir sentar aqui no... Ele olhou pra mim de um jeito diferente, estreitando os olhos. E me olhou de cima a baixo, com os olhos abertos demais. E a boca também, pra falar a verdade. Demorou-se constrangedoramente nas minhas pernas. Ora, vamos lá, amigo, você está passando mal, não é hora pra isto, não é mesmo? E então, de repente, ele não se controlou mais e, inclinando o corpo pra frente, vomitou. 12


No Parque da Cidade – Merda! – gritei, pulando pra trás. Ele se apoiou na árvore com as duas mãos, respirando fundo para recuperar o fôlego. Eu tinha conseguido escapar do jato de vômito quase ilesa, só a ponta do meu tênis tinha sido atingida. Com isso, ele aparentou estar ligeiramente melhor, a cor voltou um pouco para o seu rosto. O chapéu, porém, estava arruinado no chão, todo vomitado. – Acho que o seu chapéu já era. – falei suavemente. Ele se ergueu, de pé, mais rápido do que deveria. Olhava pra mim cambaleando e piscando muito. – Olha, você não tem que ter medo de mim. – falei, tentando soar tranquilizadora. Eu não sabia por que ele estava com medo de mim, mas era o que parecia. – Deixa eu te ajudar. Aconteceu alguma coisa? Ele se afastou um pouco, andando de costas, sem tirar os olhos de mim. Meteu a mão em um dos bolsinhos do... colete. Ele usava um colete por baixo do paletó. De onde vinha aquele homem? Devia estar morrendo de calor, e com certeza isso não colaborava para ele se sentir melhor. Do bolso estreito ele tirou um relógio de ouro preso a uma corrente. Lindo, brilhante, muito bem polido. E meio esquisito. Tinha uns desenhos gravados na tampinha, que ele abriu com um clique. Ele olhou pro mostrador do relógio com atenção, e por um instante até achei que fosse sorrir. Seus lábios se curvaram e tremeram, numa fração de segundo iluminando seu rosto terrivelmente pálido e doentio. Mas, naquele exato momento, um homem de camiseta vermelha passou por nós como um raio, agarrou o relógio de ouro e saiu correndo, arrebentando a corrente. – Não!! – ele gritou. – Não!! Meu relógio!! Ele tentou ir atrás do ladrão, mas ainda estava meio tonto e desabou no chão pesadamente. De repente um monte de gente estava gritando “ladrão! pega!”, e até o grupo de jovens daquela mesa ao lado da minha tinha se levantado e vindo ajudar. Dois dos rapazes correram atrás do ladrão, que ninguém alcançou, é claro. Rodeado de gente e com o pavor estampado no rosto sem cor, que 13


Bruna Guerreiro agora trazia um machucado feio no nariz provocado pela queda, o homem de bigode e terno cinza finalmente desmaiou. *8 minutos* – Oi. – eu disse, falando baixo, quando ele começou a piscar os olhos. – Você está melhor? – Quem é você? – ele me perguntou, com a voz engrolada. Estávamos sentados nos degraus que levavam ao pátio do café. Eu tinha pedido ajuda para carregá-lo até lá e já tinha conseguido um pano molhado para limpar sua mão e seu rosto, que ele tinha arranhado na queda. Ele estava meio recostado sobre... Bom, sobre mim. – Meu nome é Jade. Eu ajudei você quando... – Isso é um nome? E não é que você é meio grosso, meu caro? – É claro que é. – respondi, secamente. Os dois rapazes da mesa ao lado, o barbudo e o impaciente, que tinham ido atrás do ladrão chegaram naquele momento, correndo esbaforidos. – Não conseguimos alcançar o ladrão. – disse o barbudo, tentando disfarçar o quanto estava sem fôlego, mas apoiando as mãos nos quadris e respirando rápido. – Mas avisamos a polícia, tem um postinho ali na entrada da rua do Comércio, demos a descrição dele e tudo. Mas eles precisam de um contato seu, para darem retorno caso encontrem algo. – Precisam de... o quê? – ele balbuciou, confuso. – Por favor, será que vocês poderiam entregar este cartão ao policial? – pedi, metendo a mão desajeitadamente no bolso e pescando um cartão da loja do papai. – Meu pai é dono dessa loja, fica na própria rua do Comércio. – Ah, eu conheço essa loja! – exclamou o outro rapaz. – Pode deixar, vamos até lá. – Era valioso? – perguntou o de barba, antes de partirem. – O seu relógio? 14


No Parque da Cidade O homem de terno cinza sentou-se de repente, fechando os olhos com uma careta de dor e desespero. – Você tá sentindo alguma coisa? – perguntei, pousando a mão sobre o braço dele. – Muito valioso! – ele gemeu, ainda apertando os olhos. – Estou perdido sem aquele relógio! Completamente perdido! – exclamou, rouco, agarrando o próprio rosto. – Calma. – pedi, colocando as mãos nos ombros dele. – Fica calmo, você pode passar mal de novo. Como é o seu nome? – perguntei, enquanto os rapazes se afastavam com seus amigos, ainda olhando de esguelha pra nós dois ali nos degraus. – Ernesto Rodrigues. – Calma, Ernesto... Olha, a gente pode... De repente, uma conexão se fez entre o que meus ouvidos ouviram e o que meus olhos leram minutos antes. – Peraí. O que foi que você disse? – quiquei, ficando de pé. Ele levantou os olhos pra mim. – O que eu disse? – Seu nome... – Ernesto Rodrigues. – ele repetiu, franzindo as sobrancelhas e me olhando desconfiado. Foi minha vez de cambalear. E você não deve dar passos pra trás se estiver numa escada. Quase caí de costas, mas me amparei a tempo no corrimão. Corri até a mesa onde eu estava sentada minutos antes e onde eu tinha largado todas as minhas coisas. Estava tudo lá. Minha mochila, meus patins. Tudo. Exceto o livro. – Tinha um livro aqui! – gritei, para quem quisesse ouvir. Uma garçonete olhou pra mim e então me dirigi a ela. – Tinha um livro aqui nesta mesa! – apontei para o espaço entre a xícara que eu tinha usado e ainda estava ali no mesmo lugar, vazia e suja, e minha mochila laranja de tactel. – Bem aqui! Um livro de capa marrom, um livro velho! – gesticulei nervosamente. – Não vi nenhum livro. – ela disse, confusa. – Você me atendeu! Como é que você não viu? – gritei, me controlando para não bater os pés como uma criança contrariada. 15


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