Sol Noturno: poemas sob o signo do sol negro [ebook]

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sol noturno: poemas sob o signo do sol negro

livreto comemorativo dos 10 anos de atividade da Sol Negro Edições (2011-2021)

Organização de Márcio Simões

sol noturno:

poemas sob o signo do sol negro

livreto comemorativo dos 10 anos de atividade da Sol Negro Edições (2011-2021)

Organização de Márcio Simões

Sol Negro Edições | Natal | Brasil solnegroeditora.blogspot.com edsolnegro@hotmail.com @solnegroeditora 2022

ALGUMAS PALAVRAS RETROSPECTIVAS E

TEMPORÃS SOBRE COISAS QUE PASSAM...

Este livreto, reunindo poemas de tempos e lugares diversos, mas que têm em comum a imagem do Sol Negro, deveria ter saído no final de 2021, ano em que o selo completava 10 anos e quando a data redonda parecia convidar a parar um pouco, avaliar e celebrar o que foi feito durante esse tempo. Mas 2021 foi um ano atípico, quando, em meio a todo o caos e insegurança da pandemia de covid-19, a Sol Negro Edições passou temporariamente, graças aos incentivos da Lei Aldir Blanc, a maiores tiragens e circulação, com livros rodados em gráfica. Durante esse décimo ano foram 17 livros publicados (12 de autores vivos e apenas 4 artesanais), um recorde para o selo. E uma ampliação na linha editorial, normalmente voltada às pequenas tiragens artesanais de autores traduzidos e em domínio público.

Tudo isso, claro, era inimaginável em 2011, quando, junto a um pequeno grupo de amigos, editamos nosso primeiro livro, a Antologia Poética Sol Negro, sem qualquer pretensão senão publicar nossa própria poesia de forma independente. Todo o restante foi, por certo, fruto de muito trabalho e persistência (para não dizer teimosia), mas também, em grande medida, obra do acaso. Livros conectam pessoas. E cada livro foi trazendo, além de eventuais leitores, novos autores; cada autor, um novo livro. Já lia, traduzia e escre-

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via poesia há pelo menos 14 anos antes da Sol Negro, e tinha desde sempre o costume de organizar seletas e compilados, encadernados em espiral, com poemas de amigos e de poetas traduzidos para nossa leitura, além de formação em letras e experiência com revisão textual. Assim, foram surgindo oportunidades para novos títulos e, como dependia apenas de mim mesmo para fazer as edições artesanais, fui fazendo, sempre achando que alguma hora pararia – fosse porque não haveria mais demanda, ou porque as circunstâncias – sempre inconstantes – não mais permitiriam. Continuo fazendo os livros que aparecem ou invento de fazer enquanto esse dia não chega.

Além do olhar retrospectivo, a data redonda também era uma oportunidade de agradecer, não só pelo fato de ter podido fazer, mas a todos os que participaram diretamente do que se fez. Assim que gostaria de agradecer profundamente a todos os autores, tradutores, revisores, artistas, capistas, ensaístas e fotógrafos que já contribuíram para algum dos livros da Sol Negro – só quem trabalha com livros sabe o trabalho enorme que leva até que um livro fique pronto e a importância de cada etapa: Alain Mohammad Bisgodofu, Alberto Lacet, Alcebíades Diniz Miguel, Alexandre Alves, Alessandre de Lia (in memoriam), Alexis Peixoto, Ana de Santana, Anchieta Rolim, Ângelo Roncalli, Ângelo Girotto, Antônio Miranda, Avelino de Araujo, Cicero Cunha Bezerra, Chico Díaz, Claudio Willer, Cristiana Coeli Goldie, Christiane Pimenta Alves, Daniel Liberalino, Daniel Nec, Demétrio Diniz (in memoriam), Eclair Antônio Almeida Filho, Ector Dantas,

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Fernando Monteiro, Franklin Jorge, Isabela Coelho, Henrique Pimenta, Humberto Hermenegildo, Jesuino André de Oliveira, Joyce K. do Nascimento, José Wilson P. de Azevedo, Jota Medeiros, Júlia Pepper, Lau Siqueira, Leandro Durazzo, Lívio Oliveira, Luma Virgínia, Maíra Dal’Maz, Márcio Almeida, Márcio de Lima Dantas, Marcus Vinícius Batista Macêdo, Marize Castro, Michelle Ferret, Miguel Márquez, Muirakytan K. de Macêdo (in memoriam), Nan Watkins, Nelson Patriota (in memoriam), Nonato Gurgel (in memoriam), Oswin Loss, Renato Suttana, R. Leontino Filho, Robert Johnson, Sayonara Pinheiro, Sérgio de Castro Pinto, Sofia Buachwitz, Tarcísio Gurgel, Theo G. Alves, Thomas Rain Crowe, Viviane de Santana, Wagner Uarpêik, Vanina Sigrist, Volonté, William Elói.

Não poderia esquecer Ivan Júnior, da Offset Gráfica, que levou a sério como se fosse um velho conhecido esse magricela barbudo e descabelado que apareceu na sua frente completamente encharcado de suor depois de uma caminhada da Cidade até a Ribeira numa tarde tórrida dizendo que “queria fazer livros” e me colocou na trilha dos papéis e materiais que precisava e não tinha a menor ideia onde encontrar.

Nem deixar de agradecer ainda à “gangue” Sol Negro: Binho Duarte, Haroldo Sopa d’Osso, Márcio Magnus, Rodrigo Barbosa, Leo Costa, Alexandre Magno e Francisco Galego, sempre presentes nessa partilha de versos e autores e amigos da vida toda. E ao meu irmão Breno Xavier, que criou a logo do selo comigo e algumas capas incríveis – parceiro e professor da arte do design gráfico.

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Aos amigos e colaboradores dos últimos anos, que trouxeram novas trocas e vivências de onde alguns dos melhores títulos recentes nasceram: Elí de Araujo e João Antônio Bezerra Neto; o sangue novo e substancial da Munganga Edições: Ayrton Badriah, Maluz Maheros e Victor H. Azevedo, sem o trabalho dos quais os livros de 2021 não teriam sido possíveis nem ficado tão bons; e Eduardo Vinícius do Seburubu, casa informal da Sol Negro e farol das artes da cidade.

E, especialmente, a Floriano Martins (pelas traduções e livros preparados mas antes de tudo pela amizade), Camilo Prado (generoso professor da arte de manufaturar livros e inspiração há uma década) e Mariana Góis (única pessoa que nesses 10 anos botou a mão na massa para confeccionar os livros comigo e topou dividir essa existência sem garantias); sem vocês três esse labor jamais teria prosperado.

E, finalmente, a vocês, leitores, sem os quais nada disso seria possível.

Não sou particularmente sociável, prefiro fazer as coisas do meu jeito e no meu canto. Então só a boa fortuna pode explicar que tenha cruzado com tantos talentos e gente boa e contado com a confiança de tantos.

Um viva, pois, aos pequenos e desempoderados, a maior afronta a um estado e um sistema de Morte ainda é e sempre será a alegria e a potência da Vida, Mistério Maior a que me curvo e finalmente, com a mesura pobre da palavra, ainda uma vez, agradeço.

Márcio Simões (editor)

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A imagem de um sol negro ou escuro, muitas vezes associado ao eclipse, parece ter certa perenidade na imaginação humana. No Ocidente, teve amplo uso na Alquimia medieval, onde está associado ao nigredo, primeira etapa da transformação alquímica, de putrefação e decomposição da matéria densa e dos aspectos egoicos da psique. Seu uso na literatura e na psicologia persiste até hoje. Reunimos aqui, a título de epígrafes, algumas citações de diferentes fontes que dão uma ideia da riqueza e variedade de sentidos associados a essa imagem ancestral [MS].

“Olhei enquanto ele abria o sexto selo. Houve um grande terremoto. O sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue.” [Bíblia Sagrada, Apocalipse 6:12].

“Na alquimia, o Sol Negro simboliza a prima materia. Também nas artes plásticas e na literatura dos tempos modernos encontra-se eventualmente um sol negro, quase sempre como símbolo do medo metafísico ou da melancolia.” [Dicionário de Símbolos, Herder Lexikon, p. 185].

“O sol negro é o Sol em sua trajetória noturna, quando deixa este mundo para iluminar o outro mundo. [...] Aos olhos dos alquimistas, o sol negro é a matéria-prima, não trabalhada, ainda não colocada a caminho de uma evolução. Para o analista, o sol negro será o inconsciente, também no seu estado mais elementar”. [Dicionários de Símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheebrandt, p. 840].

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“Acima de tudo, a escuridão é o recinto da iniciação, [...] a experiência da escuridão iniciática. [...] O ‘Sol Negro’ do estágio alquímico do nigredo significa um eclipse do ponto de vista do ego devido a uma incursão do inconsciente. Embora representado como um encontro com a morte, testemunha a necessidade de um escurecimento provisório para chegar ao opus”. [O livro dos símbolos, Kathleen Martin, p. 102-103].

“Segundo o Rosarium, Hermes diz: ‘Ego lapis gigno lumen, tenebrae autem naturae meae sunt.’ (Eu gero a luz; no entanto, as trevas também pertencem à minha natureza). A alquimia conhece igualmente o ‘sol niger’ (sol negro)”. [Psicologia & Alquimia, C. G. Jung, p. 120].

“O sol negro é o sol exterior, cujo ‘fogo escuro e devorador’ destrói todas as coisas. Depois da queda de Adão, manchada pelo Pecado Original, o homem é feito ‘do fogo do sol negro’, segundo o Book of the Holy Trinity”. [Alquimia & Misticismo, Alexander Roob, p. 206].

“[...] a arte de uma paciente, sobre a qual Jung escreve em seu Alchemical Studies, na qual um sol negro aparece no seu plexo solar, uma área importante para muitas tradições sobre os corpos sutis. É neste lugar que, segundo Jung, os deuses se retiraram em nossa era moderna”. [The black sun: the alchemy and art of darkness, Stanton Marlan, p. 6].

“Os astecas associavam a passagem do Sol Negro, em sua jornada noturna pelo submundo, à imagem de uma borboleta. A borboleta, por sua vez, é um símbolo arquetípico da alma transcendente, da transformação e do renascimento místico, visto também na figura da assustadora deusa da terra Itzpapalotl, a ‘Borboleta de Obsidiana’, que devorava as pessoas durante os eclipses solares, enquanto o submundo asteca era a morada eterna das almas” [Black sun: mythology, EverybodyWiki].

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*Apenas durante as pesquisas para preparar esse libreto me deparei com o nome de Harry Crosby e sua The Black Sun Press, fundada em Paris em 1927, juntamente com sua esposa Caresse Crosby (a quem se atribui a invenção do sutiã moderno), e responsável por editar autores como Hart Crane, D. H. Lawrence e Ernest Hemingway, entre outros. É de Harry esse interessante poema visual avant la lettre intitulado Fotoheliografia, que aqui vertemos para o português [MS].

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EL DESDICHADO

Eu sou o Tenebroso – o Viúvo –, o Inconsolado,

O Senhor de Aquitânia à Torre da Abulia; Meu único Astro é morto, e o meu alaúde iriado Irradia o Sol negro da Melancolia.

Na noite Sepulcral, Tu que me hás consolado, O Posílipo e o mar Itálico me envia, A flor que tanto amava o meu ser desolado, E a treliça onde a Vinha à Roseira se alia.

Sou Biron, Lusignan?... Febo ou Amor? Na fronte

Ainda o beijo da Rainha rubro me incendeia; Eu sonhei na caverna onde nada a Sereia...

E duas vezes cruzei vencedor o Aqueronte; Modulando na cítara a Orfeu consagrada Os suspiros da Santa e os arquejos da Fada.

| 14 | [ GÉRARD
| 1808-1855 ]
DE NERVAL
Tradução de Alexei Bueno

TÉDIO

Vala comum de corpos que apodrecem, Esverdeada gangrena Cobrindo vastidões que fosforescem Sobre a esfera terrena.

Bocejo torvo de desejos turvos, Languescente bocejo De velhos diabos de chavelhos curvos Rugindo de desejo.

Sangue coalhado, congelado, frio, Espasmado nas veias...

Pesadelo sinistro de algum rio De sinistras sereias...

Alma sem rumo, a modorrar de sono, Mole, túrbida, lassa...

Monotonias lúbricas de um mono Dançando numa praça...

Mudas epilepsias, mudas, mudas, Mudas epilepsias, Masturbações mentais, fundas, agudas, Negras nevrostenias.

Flores sangrentas do soturno vício Que as almas queima e morde...

Música estranha de letal suplício, Vago, mórbido acorde...

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[ CRUZ E SOUZA | 1861-1898 ]

Noite cerrada para o Pensamento

Nebuloso degredo

Onde em cavo clangor surdo do vento Rouco pragueja o medo.

Plaga vencida por tremendas pragas, Devorada por pestes, Esboroada pelas rubras chagas Dos incêndios celestes.

Sabor de sangue, lágrimas e terra Revolvida de fresco, Guerra sombria dos sentidos, guerra, Tantalismo dantesco.

Silêncio carregado e fundo e denso Como um poço secreto, Dobre pesado, carrilhão imenso Do segredo inquieto...

Florescência do Mal, hediondo parto

Tenebroso do crime, Pandemonium feral de ventre farto

Do Nirvana sublime.

Delírio contorcido, convulsivo

De felinas serpentes, No silamento e no mover lascivo

Das caudas e dos dentes.

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Porco lúgubre, lúbrico, trevoso

Do tábido pecado, Fuçando colossal, formidoloso Nos lodos do passado.

Ritmos de forças e de graças mortas, Melancólico exílio, Difusão de um mistério que abre portas Para um secreto idílio...

Ócio das almas ou requinte delas, Quintessências, velhices

De luas de nevroses amarelas, Venenosas meiguices.

Insônia morna e doente dos Espaços, Letargia funérea, Vermes, abutres a correr pedaços Da carne deletéria.

Um misto de saudade e de tortura, De lama, de ódio e de asco, Carnaval infernal da Sepultura, Risada do carrasco.

Ó tédio amargo, ó tédio dos suspiros, Ó tédio de ansiedades!

Quanta vez eu não subo nos teus giros Fundas eternidades!

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Quanta vez envolvido do teu luto

Nos sudários profundos

Eu, calado, a tremer, ao longe, escuto Desmoronarem mundos!

Os teus soluços, todo o grande pranto, Taciturnos gemidos, Fazem gerar flores de amargo encanto Nos corações doridos.

Tédio! que pões nas almas olvidadas Ondulações de abismo

E sombras vesgas, lívidas, paradas, No mais feroz mutismo!

Tédio do Réquiem do Universo inteiro, Morbus negro, nefando, Sentimento fatal e derradeiro Das estrelas gelando...

Ó Tédio! Rei da Morte! Rei boêmio!

Ó Fantasma enfadonho!

És o sol negro, o criador, o gêmeo, Velho irmão do meu sonho!

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“É SONO? É SONHO? É VER?...”

É sono? É sonho? É ver?

Não sei, nem sei saber...

Há um sol negro no fundo

Do que me sinto ser

E em torno gira o mundo.

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[ FERNANDO PESSOA | 1888-1935 ]

“NÃO AFIRMO...”

Não afirmo que minha pena alcance enfim

O escrever bem que a Idade crendo vão deplora Que eu ache a marca de Montaigne um dia em mim

E o altivo umbral cruzado por Malherbe outrora.

Agrada-me porém seguir o seu exemplo

Pois na falta de graça anônima de um muro

Que se finge de simples reconheço o templo

Do sol negro invocado em vosso claro-escuro.

Se bem que siga o dogma de vossos rituais

Eu reservando-me um direito oracular

Respeito sem do escrever bem esperar mais Seus sacerdotes entre os quais tenho lugar.

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[ JEAN COCTEAU | 1889-1963 ]

SOL NEGRO*

Esta noite não tem cura; no teu lar há luz, porém. Ante os portões, o sol negro ergueu-se em Jerusalém.

Mais atroz é o amarelo e, no templo iluminado, – nana, neném – minha mãe por judeus era velada.

Sem a bem-aventurança nem sacerdotes sequer, hebreus cantavam, no claro templo, um réquiem à mulher.

A voz dos hebreus tinia sobre minha mãe e, imerso no fulgor do negro sol, eu despertei no meu berço.

Tradução de Nelson Ascher e Bóris Schnaiderman

* O sol negro surge no lendário de muitos povos. Os aztecas representavam-no levado nas costas pelo deus dos infernos.

No Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ele é definido como “o absoluto maléfico e devorador, ligado à morte” [Nota dos tradutores].

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[ OSIP MANDELSTAM | 1891-1938 ]

TUTUGURI – O RITO DO SOL NEGRO

E lá embaixo, no pé da encosta amarga, cruelmente desesperada do coração, abre-se o círculo das seis cruzes bem lá embaixo como se incrustada na terra amarga desincrustada do imundo abraço da mãe que baba.

A terra do carvão negro é o único lugar úmido dessa fenda de rocha.

O Rito é o novo sol passar através de sete pontos antes de explodir no orifício da terra.

Há seis homens, um para cada sol e um sétimo homem que é o sol cru vestido de negro e carne viva.

Mas este sétimo homem é um cavalo, um cavalo com um homem conduzindo-o.

Mas é o cavalo que é o sol e não o homem.

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[
| 1896-1948 ]
ANTONIN ARTAUD

No dilaceramento de um tambor e de uma trombeta longa estranha, os seis homens que estavam deitados tombados no rés do chão, brotaram um a um como girassóis, não sóis porém solos que giram, lótus d’água, e a cada um que brota corresponde, cada vez mais sombria e refreada a batida do tambor até que de repente chega a galope, a toda velocidade o último sol o primeiro homem, o cavalo negro com um homem nu, absolutamente nu e virgem em cima.

Depois de saltar, eles avançam em círculos crescentes e o cavalo em carne viva empina-se e corcoveia sem parar na crista da rocha até os seis homens terem cercado completamente as seis cruzes.

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Ora, o tom maior do Rito é precisamente

A ABOLIÇÃO

DA CRUZ

Quando terminam de girar

arrancam as cruzes do chão e o homem nu a cavalo ergue uma enorme ferradura banhada no sangue de uma punhalada.

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Tradução de Cláudio Willer

SOL NEGRO

Sol negro.

De um mar, de um mar morto, a empurrou um vento mau.

Caravela negra, carregada, naufragada de ossos.

Mar negro.

Tradução de Márcio Simões

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[ RAFAEL ALBERTI | 1902-1999 ]

A FOLHA, COMO LUGAR DE SUBVERSÃO DA

PALAVRA E DA BRANCURA

Subversiva é a folha onde a palavra crê tomar pé; subversiva é a palavra onde a folha se abre à sua brancura.

Um passo na neve basta para abalar a montanha.

A neve ignora a areia. O deserto, entretanto, está nelas.

Glacial é a brancura em seus ápices.

Negro é o sol da palavra.

A aliança do papel e do vocábulo – do branco e do negro – é o acasalamento de duas subversões erguidas uma contra a outra, no coração mesmo de sua união, e com cujos custos o escritor arca.

O que se concede em aparência é, sobretudo, o que se dilacera interiormente. O olho percebe apenas o que emerge.

A evidência é o terreno ideal onde opera a subversão.

Tu escreves. Tu ignoras todos os conflitos que tua pluma levanta à sua passagem e dos quais o livro é a cartada.

O livro subversivo, talvez, seja aquele que denuncia, confundindo-as, a subversão da palavra face a face com a folha e da folha, face a face com a palavra, na esteira de um pensamento agredido.

Fazer o livro, nesse sentido, seria, no passo a passo de suas retomadas, apoiar essas forças subversi-

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[ EDMOND JABÈS | 1912-1991 ]

vas pelas quais a linguagem, assim como o silêncio, seriam atravessados.

A subversão é tanto a arma favorita do inabitual quanto do diário.

“A relação com Deus, dissera ele, é relação indireta com a subversão.”

Toda palavra pronunciada é subversiva em relação à palavra calada. A subversão passa, às vezes, pela escolha; pelo arbitrário de uma escolha que, talvez, seja uma necessidade ainda obscura.

Subversivo, como Deus pôde pensar que o homem não o seria de nenhum modo face a face com Ele?

Deus criou o homem à imagem de Sua subversão.

E se a subversão fosse apenas o afastamento entre a coisa criada e a coisa escrita?

Um mesmo abismo separaria, então, o homem do homem e o livro do livro.

(“Divino ou humano – ‘EU’ – dissera ele – é o teatro de todas as subversões.”

“Uma arte de viver – dissera ele também – arte avançada da subversão! Lá, talvez, esteja o começo da sabedoria.”)

Tradução de Eclair Antônio Almeida Filho

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SOL NEGRO

Acordar é voltar a ser, re-acender num escuro cúbico; e os primeiros passos que dou em meu re-ser são inseguros.

Re-ser em tal escuridão é como navegar sem bússola. Eu a tenho, ali, a meu lado, num sol negro de massa escura: que é a de tua cabeleira, farol às avessas, sem luz, e que me orienta a consciência com a luz cigana que reluz.

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[ JOÃO CABRAL DE MELO NETO | 1920-1999 ]

Na minha voz trago a noite e o mar

O canto é a luz de um sol negro e dor É o amor que morreu na noite do mar

Valha Nossa Senhora

Há quanto tempo ele foi-se embora

Para bem longe, pra além do mar

Para além dos braços de Iemanjá

Adeus, adeus...

* Esta canção aparece no primeiro disco de Maria Bethânia, de 1965, cantada por ela e Gal Costa.

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SOL NEGRO*
[ CAETANO VELOSO | 1942 ]

MELANCOLIA

o que há de verdade no mundo? algo mesmo a ser dito?

o que dou ao meu ofício além do meu rosto aflito?

o que encontro além da porta fechada e do silêncio que nidifica no grito?

– a pena é o castigo?

a vela latina abre em agonia como hemorragia e o tempo lento, lento, lento desembrulha o vento

ao contrário só há o imediato a terra, a água, o céu e um fogo queimando o pão e o futuro

o que não há, juro são joelhos, seios, bocas

o animal trigueiro

mas existe o escuro

mundo sem mundo

mundo sem lua

você sente que flutua como a náusea, o enjoo

o breu cobre tudo

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[ ELÍ
| 1959 ]
DE ARAUJO

a corda do violino a luz, o destino o amado a amada se fazem tão negros

e espessos que se perdem um do outro e nas cidades nos cemitérios cai obtuso um fogo negro fogo impuro existe, sem fim, o escuro

ele me sopra ele me molda ele me diz a palavra não existe é uma mentira pouco mais, pouco menos verdade infeliz

dentro da pedra escuridão se cria espanto imóvel repele o vento que mal se arrasta em meu tormento

em outro mundo haverá luz

aqui entre nós vento ao contrário

vela latina

esquecimento

: queima um sol negro

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APÓS VER “THE ECLIPSE OF THE SUNFLOWER”, DE PAUL NASH

Cruel é o sol negro — flamejante cabeça de flor de cabelos fulvos —

— que descortina o púrpura da bruma e eclipsa sobre os escombros do lírio — lírio imóvel, que ainda gira, descrente de sua própria morte.

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[ VICTOR H. AZEVEDO | 1995 ]

BIBLIOGRAFIA

alberti, Rafael. Marinero en tierra. Barcelona: Lumen, 1980.

araujo, Elí de. Um sol de sal. Natal: Sol Negro, 2022.

artaud, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983.

ascher, Nelson. Poesia alheia. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

bíblia Sagrada. Edição contemporânea de Almeida. São Paulo: Vida, 2000.

bueno, Alexei. Cinco séculos de poesia. Rio de Janeiro: Record, 2013.

chevalier, Jean; gheebrandt, Alain. Dicionários de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

everybodywiki. Black sun: mythology. Disponível em: <https:// en.everybodywiki.com/Black_Sun_(mythology)>.Acesso em: 03 dez. 2022.

jabès, Edmond. O livro dos limites. Lumme, 2017.

jung, C. G. Psicologia & alquimia. Petrópolis: Vozes, 1991.

kristeva, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

lexikon, Herder. Dicionário de símbolos. São Paulo: Pensamento, 2004.

marlan, Stanton. The black sun: the alchemy and art of darkness. Austin: Texas University Press, 2005.

martin, Kathleen. O livro dos símbolos. Cologne: Taschen, 2012.

neto, João Cabral de Melo. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

pessoa, Fernando. Poesia 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

roob, Alexander. Alquimia & misticismo. Cologne: Taschen, 2015.

souza, Cruz e. Poesias completas. São Paulo: Publifolha, 1997.

veloso, Caetano. Sol Negro. LP: Maria Bethânia. RCA, 1965.

wolff, Geoffrey. Black sun: the brief transit and violent eclipse of Harry Crosby. New York: New York Review of Books, 2003.

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SOL NEGRO EDIÇÕES | CRONOLOGIA

[2011]

• Sol negro: antologia poética | Barbosa da Silva; Márcio Magnus; M. Simões; sopa d’osso | 100p. | 20ex. 1ª tir.; 30ex. 2ª tir.

• Flâmulas hidras & coquetéis | Barbosa da Silva | 56p. | 30ex. 1ª tir.; 30ex. 2ª tir. 2014

• Mar, silêncio e poesia: leituras de Walflan de Queiroz | João A. B. Neto e Márcio Simões | 24p. | 40ex.

• A escritura da eternidade dourada | Jack Kerouac | 40p. | 20ex. | trad. Márcio Simões [fora de comércio]

[2012]

• Abismanto | Floriano Martins e Viviane de S. Paulo | 116p. | 60ex.

• Apologia & prazer de Jhenifer Heloizy |Camilo Prado | 40p. | 50ex. [plaquete]

• Aorigem diágora | Jota Medeiros | 48p. | 60ex.

• Canções da inocência e Canções da experiência | William Blake | 128p. | 60ex 1ª tir; 60ex. 2ªtir. | Trad. Renato Suttana

• Conversa de espantalhos | Renato Suttana | 128p. | 60ex.

• Iubilate Deo | Jota Medeiros | 88p. | 300ex.

• Mattinata | Fernando Monteiro | 92p. | 80ex. 1ª tir.; 30ex 2ª tir.; 60ex. 2 ed. 2017 | Coedição Nephelibata

• O tempo da solidão & O livro de Tânia | Walflan de Queiroz | 116p. | 60ex.

• O livro invisível de William Burroughs | Floriano Martins | 68p. | 60ex.

• O espelho | Machado de Assis | 32p. | 50ex. [plaquete]

• O mundo eterno | Clark Ashton Smith | 44p. | 50ex. [plaquete]

• Três novelas exemplares | V. Huidobro e H. Harp | 96p. | 60ex. | Trad. Floriano Martins | Coed. Nephelibata

• Ypý-opá | sopa d’osso | 56p. | 40ex. 1ª tir; 20ex. 2ª tir; 30ex. 3ª tir. [2013]

• Bichos imaginários | Renato Suttana | 48p. | 115ex. [plaquete]

• Construção da destruição | Aldo Pellegrini | 116p. | 60ex. | trad. Rodrigo Barbosa

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• Livro das odes | Nelson Patriota | 64p. | 70ex. 1ª tir.; 30ex. 2ª tir.

• Metapoesia de João Cabral de Melo Neto | Antônio Miranda | 92ex. | 70ex.

• O fruto de saturno | Yvan Goll | 96p. | 100ex. | trad. Márcio

Simões

• Postais do Peru | Thomas Rain Crowe | 128p. | 100ex.

• Sobre Surrealismo | Aldo Pellegrini | 128p. | 80ex. | trad. Floriano Martins

• Sonetos | Petrarca | 128p. | 70ex. | trad. Renato Suttana

[2014]

• Ars poética | Jota Medeiros | 128p. | 400ex.

• Bronze no fundo do rio | Miguel Márquez | 136p. | 150ex.?

• César Vallejo: sete poemas & um ensaio sobre o autor | Antônio Miranda | 84p. | 60ex.

• Naturezamorfa | Avelino de Araújo | 70p. | 400ex

• Muro/deriva | Elí de Araujo | 128p. | 120ex.

• O homem do haxixe & outras histórias | Org. Camilo Prado | 128p. | 80ex.

• Paisagens apocalípticas | H. G. Wells | 120p. | 50ex. | trad. Alcebíades Diniz

[2015]

• A cidade da chama cantante | Clark Ashton Smith | 88p. | 80ex. | trad. Renato Suttana

• Imagens fosforescentes | Dolfi Trost | 112p. | 60ex. | trad. Alcebíades Diniz Miguel

• Ronda crônica | Ângelo Girotto | 108p. | 30ex. [fora de comércio]

• Tremor de céu | Vicente Huidobro | 120p. | 80ex. | trad.

Floriano Martins

[2016]

• Costumes errantes ou a redondeza da terra | Enrique Molina | 128p. | 80ex. | trad. Floriano Martins

• Lírica erótica | e. e. cummings | 136p. | 40ex. 1ªtir.; 30ex. 2ªtir. | trad. Eclair A. A. Filho [fora de comércio]

• )poema|rio( | Elí de Araujo | 532p. | 300ex.

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[2017]

• Livro sem título | e. e. cummings | 136p. | 60ex. | trad. Eclair A. A. Filho [fora de comércio]

• Libertália | Wagner Uarpêik | 40p. | 50ex. [plaquete]

• [2018]

• Algumas imagens & desenhos de crianças | Pedro Rammos | 100p. | 90ex. 1ª tir.; 30ex. 2ª tir. [fora de comércio]

• Branco & nanquim: obra poética | Myriam Coeli | 424p. | 500ex.

• Daimon | Márcio de Lima Dantas | 100p. | 400ex.

• Girassóis de saturno & O jardim ancestral | Barbosa da Silva | 64p. | 10ex.

• Harpa negra | Barbosa da Silva | 84p. | 30ex.

• Hotel los toros | José Pinto Júnior | 72p. | 80ex.

• Hum lanço de dádos jamais não abolirá o acaso | Stéphane Mallarmé | 27p. | 50ex. | trad. Eclair A. Filho

[2019]

• A vertigem seguida da náusea | William Elói | 108p. | 70ex. 1ª tir.; 50ex. 2ª tir.

• As últimas palavras do poeta & outros escritos | René Daumal | 120p. | 70ex. | Trad. Márcio Simões

• Livro de apagar | Muirakytan Macêdo | 76p. | 30ex. 1ª tir.; 20ex. 2ª tir.

• Tratado dos patagramas | René Daumal | 72p. | 75ex. | Trad. Eclair A. Filho

• Traduções do universo | Vicente Huidobro | 104p. | 70ex.

• Poesia marginal da esquina atlântica | Alexandre Alves | 68p. | 70ex.

• Você dorme, senhor presidente? | Caupolicán Ovalles | 68p. | 100ex.

• Visões da névoa: surrealismo no Brasil | Floriano Martins | 76p. | 70ex.

[2020]

• Calendario Pataphysico Perpetuo | Collège de ‘Pataphysiqye | 16p. | ebook | Trad. Eclair Filho | Coed. Nephelibata

• Do buriti ao sangue | João Antônio B. Neto | 48p. | 70ex.

• Ossos da urbe | Alexandre Alves | 60p. | 70ex.

| 37 |

[2021]

• A tartaruga equestre | César Moro | 136p. | 100ex. | trad. Floriano Martins

• As visões das filhas de Álbion | William Blake | 56p. | 80ex. | trad. Márcio Simões

• A morte sem bússola | Antônio Pinto de Medeiros | 140p. | 400ex.

• Os vivos (?) e os mortos | Fernando Monteiro | 60p. | 300ex.

• Catábase | Elí de Araujo | 72p. | 80ex.

• Os últimos cavalos renasciam sem a tristeza dos campanários | Alain M. Bisgodofú | 132p. | 70ex.

• Caderno de anotações breves e memórias tardias | Theo G. Alves | 116p. | 400ex.

• Correspondência invertebrada | Victor H. Azevedo | 142p. | 400ex.

• Explicações do fogo | Alberto Lacet | 92p | 200ex.

• Nonada. Mônada. Miasma | Daniel Nec | 120p. | 500ex.

• Desfile selvagem | Luma Virgínia | 64p. | 500ex.

• Cantigas | Márcio de Lima Dantas | 32p. | 200ex.

• Lugar de passagem | Márcio de Lima Dantas | 76p. | 200ex.

• Bicicletas para descer ladeiras à noite | Ana de Santana | 116p. | 400ex.

• As faxineiras sabem de tudo | Ana de Santana | 160p. | 500ex.

• Rústicos cabedais | Muirakytan Macêdo | 340p. | 300ex., 2ª ed.

• Deserto.trilhas.mar | Sofia Buachwitz | 26p. | 500ex. [2022]

• Abominário | Elí de Araujo | 532p. | ebook

• Um sol de sal | Elí de Araujo | 96p. | 80ex.

• Ilhas, labirintos: poemas escolhidos | Elí de Araujo | 132p. | 300ex.

• Poemas do quarto 248 | João Antônio Bezerra Neto | 56p. | 150ex.

• Poetas do sítio Pitimbu: antologia | vários autores | 120p. | 83ex.

• Sutra de Smokey, o urso | Gary Snyder | 28p. | 100ex. [plaquete] | trad. Leandro Durazzo

| 38 |

Apresentação, por Márcio Simões 05

Citações & epígrafes 09

1898-1929 | Harry Crosby | Fotoheliografia 13

1808-1855 | Gérard de Nerval | El desdichado 14

1861-1898 | Cruz e Souza | Tédio 15

1888-1935 | Fernando Pessoa | “É sono? É sonho? É ver?” 19

1889-1963 | Jean Cocteau | “Não afirmo...” 20

1891-1938 | Osip Mandelstam | Sol negro 21

1896-1948 | Antonin Artaud | Tutuguri – o rito do sol negro 22

1902-1999 | Rafael Alberti | Sol negro 25

1912-1991 | Edmond Jabès | A folha, como lugar de subversão da palavra e da brancura 26

1920-1999 | João Cabral de Melo Neto | Sol negro 28

1942 | Caetano veloso | Sol negro 29

1959 | Elí de Araujo | Melancolia 30

1995 | Victor H. Azevedo | Após ver “The eclipse of the sunflower”, de Paul Nash 32

Bibliografia 34

Sol Negro Edições | Cronologia 35

ÍNDICE

título

organização, revisão e diagramação imagem da capa formato

nº páginas edição

tiragem

ano de publicação

fonte

papel capa

papel miolo

Sol noturno: poemas sob o signo do sol negro

Márcio Simões

Ângelo Roncalli

13,5 x 20 cm

40

50 exemplares

2022

Book antiqua

Ecografitte areia 180g/m2

Avena 90g/m2

[1ª edição | 1ª tiragem]

Este livro foi impresso nas Oficinas Gráficas da Sol Negro Edições, na cidade do Natal, na primavera de 2022, e teve uma tiragem de 50 exemplares, confeccionados artesanalmente e numerados de 1 a 50.

Exemplar Nº:

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