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BIANCA GONÇALVES

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MULHERES

VITOR GIANLUCA

“MULHER NUNCA PODE ERRAR. ELA TEM QUE SER PERFEITA EM TUDO!” Ano XXI  |  Número 109 Distribuição Gratuita

Beatriz Dias (foto) fala dos desafios de trabalhar numa profissão em que os homens ainda são maioria.

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da Universidade de Mogi das Cruzes paginaum@umc.br Fale conosco: /paginaumc LUIZ FERNANDO ANDRADE

CONHEÇA A

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Champions Ligay

CIDADANIA

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População em situação de rua cresce no AT SAMUEL CÂNDIDO

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HABITAÇÃO

ALTO TIETÊ TEM MAIS DE 900 MORADIAS INADEQUADAS HELDER NASCIMENTO

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INFRAESTRUTURA

Jean Carlos Schröder (esquerda) e Alexander Beltrão (direita) jogam no Futeboys FC, que participa da Ligay

Para fugir da discriminação e do preconceito, comunidade LGBTQ+ cria liga de futebol para fãs do esporte

EM BRÁS CUBAS, LINHA DO TREM SEPARA REALIDADES DISTINTAS


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OPINIÃO

2019 | Ano XXI | Nº 109

editorial

Um abismo entre nós

“B

rasil piora e já é o 9º do ranking global de desigualdade de renda”. Não. Você não leu errado. Esta informação foi manchete, recentemente, de um dos jornais brasileiros a partir da divulgação dos resultados de uma pesquisa internacional sobre a desigualdade social no mundo que refletem, aqui, o que a sociedade, ou uma parcela dela, teima em não enxergar. Há um abismo colossal entre nós. Os contrastes estão por toda parte, embora nem sempre as pessoas se deem conta. Os alunos de Jornalismo da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) foram a campo, coletaram os fragmentos de um mundo tão desigual e juntaram os pedaços para compor as histórias que permeiam as páginas desta edição do Página UM, jornal-laboratório do curso. Com isso, exercitaram na prática os conhecimentos obtidos em sala de aula, no laboratório que simula a vivência de redações, entre outros espaços importantes da faculdade, e materializaram em reportagens que contam histórias de gentes tão iguais, mas também tão diferentes. A desigualdade revela sua face perversa no abismo social em que 1% da população mais rica ganha quase 34 vezes mais do que a parte mais pobre dos brasileiros, segundo estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A desigualdade mostra os dentes quando se constata que 10% dos brasileiros abocanham 43% da renda de todo o País. O que sobra? Quer mais números? Porque, contra eles, dirão, não há argumentos. Desde 2014, a renda média dos mais ricos cresceu 9,4%, enquanto os 5% mais pobres perderam o poder aquisitivo em 39,3%, conforme dados de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O rico fica cada vez mais rico e o pobre... (complete a frase!). Vale a pena a reflexão proposta aqui pelos futuros jornalistas da UMC. Boa leitura a todos!

artigos

Abismo Social Taís Moreno

“V

ocê pode ter a melhor roupa, melhor bolsa, mas se você não tem acesso à cultura, à educação, na hora em que você se expressar as pessoas falam: não é do nosso meio.” Essa é declaração de Denise Andere, psicóloga e pedagoga, que atua no Alto Tietê, promovendo oficinas, cursos preparatórios para o vestibular, entre outras atividades voluntárias que sedia em sua casa. A fala de Denise corrobora o conceito do capital social. Muito se fala do papel do poder econômico e de sua capacidade de opressão, mas foi através dos estudos do sociólogo francês, Pierre Bordieu, que surgiu a discussão sobre o capital social. Para o sociólogo, os indivíduos se organizam em campos de acordo com o capital acumulado – que pode ser social, cultural, econômico e simbólico. O capital social corresponde à rede de relações que cada um constrói, baseada no interconhecimento e inter-reconhecimento mútuo. Esse processo se dá entre grupos que acumulam capital cultural desde a infância, que consiste na apropriação rápida e sólida de conhecimento e cultura. “A escola, os professores e os relacionamentos mudam a vida do aluno, tanto para o bem – se a escola tiver qualidade –, quanto para o mal”. O capital social age como ferramenta no reforço das posições sociais: privilegiados e desfavorecidos. É o mecanismo de perpetuação da desigualdade social.

É possível analisar como esse conceito é praticado nas relações diárias, no acesso à educação, cultura e lazer. A pesquisa “Cultura nas Capitais”, da consultoria J.Leiva Cultura & Esporte, realizada entre 2017 e 2018, entrevistou mais de 10 mil pessoas nas 12 principais capitais do país. O público respondeu uma série de perguntas que tinham como objetivo identificar os hábitos culturais na rotina dos brasileiros, levando-se em conta fatores como: idade, orientação sexual, escolaridade e renda. Por meio dos dados coletados, foi constatado que quanto maior o grau de instrução formal, mais as pessoas participavam de atividades culturais. Em média, metade destas pessoas disseram nunca terem frequentado museus, teatros, espetáculos de dança ou bibliotecas na vida. Apesar das prefeituras oferecerem atividades culturais e educativas, geralmente gratuitas ou que os ingressos sejam retirados através de doação de alimentos, os teatros e ambientes culturais da região carecem de público, de frequentadores assíduos. Não basta apenas implementar oficinas, peças de teatro, musicais, exposições e danças por valores mais acessíveis ou até mesmo que sejam gratuitos, é preciso gerar esse hábito nas pessoas, desde a educação básica. “Cultura dá lucro, o dinheiro retorna. O que se investe em cultura não só volta em dinheiro, mas também no enriquecimento das pessoas que se beneficiam desse acesso”, afirma Denise.

PRODUÇÃO Alunos regularmente matriculados nas turmas 5º A, 6º A e 6º B de Jornalismo da UMC DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Jornal-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) Ano XXI – Nº 109 Fechamento: 13/11/2019 O jornal-laboratório Página UM é uma produção de alunos do curso de Jornalismo da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), em conformidade com o Projeto Pedagógico do curso. Esta edição foi produzida por alunos do 5º e 6º períodos. *Os conteúdos refletem tão somente a opinião dos autores que os assinam, não correspondendo necessariamente à opinião da Universidade ou do Curso de Jornalismo.

Professores Orientadores: Prof. Elizeu Silva – MTb 21.072-SP (Orientação geral, Edição e Planejamento Gráfico) | Profª. Simone Leone – MTb 399.971-SP (Pautas e Edição de Textos) | Prof. Sérsi Bardari - MTb 20.256-SP (Pautas e Edição de Textos) | Prof. Fábio Aguiar (Fotografias) Projeto Gráfico: Alunos do curso de Design Gráfico da UMC, sob orientação do Prof. Fábio Bortoloto: Rafael Alves de Oliveira | Gilmar Amaral Lamberti Rafael Marques dos Santos | Daniel Miranda Ribeiro

Chanceler: Prof. Manoel Bezerra de Melo Reitora: Profª. Regina Coeli Bezerra de Melo Pró-Reitor Acadêmico: Prof. Cláudio José Freixeiro Alves de Brito Assessor Pedagógico Campus Sede: Prof. Hélio Martucci Neto Assessor Pedagógico Campus Fora da Sede: Prof. Wilson Pereira Dourado Diretor de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão: Prof. Cláudio José Freixeiro Alves de Brito Diretora de EaD: Profª. Andrea Lícia de Almeida Oliveira Diretor Administrativo: Luiz Carlos Jorge de Oliveira Leite Gestor dos Cursos de Design Gráfico e Jornalismo: Prof. Andre Luiz Dal Bello

Avenida Doutor Cândido Xavier de Almeida Souza, 200 – CEP: 08780-911 – Mogi das Cruzes – SP | Tel.: (11) 4798-7000 E-mail: paginaum@umc.br


EDUCAÇÃO

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Enem revela abismo entre ricos e pobres na educação Baixo investimento e condições de vida dos alunos comprometem desempenho das escolas públicas FOTOS: LUIZ KURPEL

Luiz Kurpel

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m 2015, último ano que o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) divulgou resultados por escola, das cem unidades com maiores notas, só três eram públicas. Em 2017, os resultados apontavam que a média das notas dos alunos de escolas privadas estava cerca de 90 pontos à frente dos alunos da rede pública na disciplina de Matemática. Esses resultados evidenciam a existência de um abismo entre o rendimento dos alunos das públicas e das particulares. Enquanto nas escolas privadas o número de alunos por sala é limitado e as aulas ocorrem em espaços adequados, os alunos da rede pública convivem com salas superlotadas, infraestrutura precária e ausência constante de professores - geralmente afastados por problemas de saúde. Para a professora Tatiana Platzer do Amaral, coordenadora do curso de Pedagogia e pesquisadora do Programa de Mestrado em Políticas Públicas da UMC, esse contraste na oferta de condições

Fachada da Escola Estadual Professora Dulce Maria Sampaio, em Itaquaquecetuba, e detalhes das instalações. A partir da esquerda, estacionamento de terra, quadra tomada pelo mato e móveis destruídos

para o estudo constitui um problema historicamente estruturado que garante acesso ao conhecimento apenas a um grupo privilegiado que dispõe de recursos para

pagar pelo ensino privado. “Existe um abismo social entre esses alunos”, diz a professora. Ela lembra que as escolas particulares filtram seu público pelo

alto valor das mensalidades. “Os alunos vêm de famílias com longo histórico de escolarização. Não é a primeira nem a segunda geração a ter acesso a boas escolas. É uma

tradição de acesso ao conhecimento semelhante a uma capitania hereditária”, completa a professora. Sobre o perfil dos alunos, o professor de Língua Portuguesa, com experiência nos dois sistemas educacionais, Igor Aparecido, relata: “Na rede pública, muitos estudantes não veem perspectiva de crescimento e por isso frequentam a escola apenas por obrigação ou para socializar com os amigos. Já nas escolas particulares, os alunos se preocupam, desde muito novos, com as possibilidades de realização profissional, e por isso se cobram bastante em exames e vestibulares”. Aparecido explica também que o aluno das escolas particulares geralmente conta com maior apoio da família, o que é essencial para obter bons resultados nos exames. Por outro lado, os alunos das escolas públicas geralmente precisam lidar com carências familiares e falta de apoio nos estudos. “Na escola pública, muitas vezes temos que assumir o papel pais, fazendo da sala de aula um refúgio para esses jovens”, afirma o professor.

Creches públicas de Mogi não têm vagas suficientes Ana Fernandes Em Mogi das Cruzes há 2626 crianças na lista de espera por vagas em creches, segundo a Prefeitura. Em setembro foram inauguradas três unidades, mas para muitos pais a solução ainda vai demorar a chegar. É o caso da moradora da Vila Bela Flor, Ana Carolina Vieira Pazini, mãe de Bernardo, de 2 anos, que tenta vaga para o filho há um ano. Ana passa dificuldades no dia a dia. “Não posso pagar creche particular para meu filho e dependo da minha mãe para cuidar dele. Quando ela não pode, não tenho com quem deixá-lo”. Quando liga cobrando a vaga do filho, Ana

sempre ouve que Bernardo está na fila, mas não há previsão de quando ocorrerá a matrícula. As complicações e o desgaste gerados pela espera trazem dúvidas sobre o futuro. “Vejo essa situação como um descaso para com o cidadão. Como mãe e trabalhadora, fico num beco sem saída. Talvez até precise parar de trabalhar para cuidar do meu filho. Mas se eu parar, o sonho da nossa casa própria e o sustento da família serão comprometidos”. Também moradora de Mogi, na Vila Lavínia, Michelle Camargo Morais, mãe de Helena, de 6 anos, vive situação diferente desde o nascimento da filha. Ela deixou o emprego por um tempo para se

dedicar exclusivamente à filha nos primeiros anos. “Felizmente não precisei das creches públicas”, lembra. A pequena Helena estudou em colégios que contam com educação bilíngue e cardápio orientado por nutricionistas, entre outras comodidades. Na escola atual, o currículo inclui prática esportiva, recreação orientada e educação financeira. Em nota, a prefeitura informa que nove unidades estão em construção e outras duas estão em licitação. “Haverá uma reorganização das escolas para o próximo ano letivo, o que deve absorver parte desta demanda”, afirma a nota.

ANA FERNANDES

Ana Carolina espera por uma vaga para o filho Bernardo há mais de um ano


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EDUCAÇÃO

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Mais de 51% da população carcerária não tem ensino fundamental

FOTOS: FERNANDO BARRETO

Educação garante melhores condições de vida e previne criminalidade Fernando Barreto

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o sistema carcerário brasileiro, 51,35% dos detentos não concluíram sequer o Ensino Fundamental, informa o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), com data base de junho de 2017. Estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também de 2017, aponta que apenas 15,3% dos brasileiros têm acesso ao Ensino Superior. A relação entre nível de acesso ao ensino e características dos presos brasileiros foi explicada pelos professores universitários Irineu Ruiz Martins e Carlos Roberto Cardoso. Irineu é professor de Direito na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), especialista em Processo Penal. Ele explica que o Código Penal não estabelece distinção entre os infratores baseada na escolaridade. “O Código Penal não analisa a escolaridade das pessoas, mas

existe sim essa relação entre baixa escolaridade e presos. Se você analisar bairros onde existem pessoas com nível escolar alto, os crimes contra o patrimônio tendem a ser menores”, explicou Irineu. “Nas discussões sobre políticas públicas para evitar a ocorrência de crimes, o que sempre pedimos é o desenvolvimento educacional. Qualquer pessoa, se analisar a escolaridade dos detentos dos CDPs (Centros de Detenção Provisória) da região, vai constatar que a maiorias apresenta baixo grau de escolaridade”, afirma. Por outro lado, a pesquisa “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira”, realizada pelo IBGE, mostra que o salário de quem cursou o Ensino Superior é 2,5 vezes maior do que o de alguém com apenas Ensino Médio. O mestre em Sociologia e professor da UMC, Carlos Roberto, acredita que “mais acesso à educação diminuiria, sim, os números do sistema carcerário”.

Levantamento do Infopen informa que maioria dos presos não cursou nem o Ensino Fundamental

“Quando a pessoa tem mais acesso à educação, ela consequentemente tem mais conhecimento”, explica o sociólogo. Em 2009, foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o sistema carcerário brasileiro. A CPI utilizou, também, dados do Infopen e constatou que 44,76% dos presos não havia concluído o ensino fundamental. De acordo com os dados do Infopen de 2017, esse número cresceu para 51,35%. Em 2009, os presos com ensino superior completo e incompleto somavam 1,33% do total. Em 2017, a presença desse grupo nos presídios subiu para 1,53%.

Professor Carlos Roberto

Professor Irineu Ruiz Martins

Alunos com autismo sofrem com defasagem no ensino Fabiana Uchoas Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos 38,5 milhões de crianças brasileiras com idade entre 0 a 13 anos, 241 mil são autistas. Estima-se que devido à ausência de diagnóstico, o número de portadores de autismo pode chegar a 2 milhões de brasileiros. A maior dúvida na relação entre autismo e educação é a que envolve a inclusão das crianças em um ambiente escolar regular. Diante das dificuldades desses

alunos em acompanhar o ritmo de aprendizagem dos demais, e também, de uma possível resistência à adaptação numa rotina escolar. Há quem defenda que portadores de autismo devem frequentar classes especiais, entretanto, os discursos mais aceitos são os de que tais crianças, por sua condição, dadas as dificuldades de interação social, não deveriam ser impedidas de ter a oportunidade de interagir. Rosemeide Ferreira é professora em uma escola munici-

pal de Mogi das Cruzes, e segundo ela ter um aluno diagnosticado com autismo, é um desafio. “Ter um aluno autista é estar em um processo de exercício diário. Digo isso, pois dependendo do nível, o professor deve sempre buscar atender esse aluno, respeitando suas características e entendendo que o mundo deles é diferente do nosso”, conta. Em 2017, 77102 crianças e adolescentes com autismo estudavam em salas de aula regulares. Em 2018 eram 105842, segundo

o Censo Escolar divulgado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). São considerados tanto os estudantes de escolas públicas quanto de particulares. Para a professora Vanessa Pudo, ainda há muito para melhorar no atendimento aos portadores de autismo. A professora lembra que embora a Secretaria de Educação de Mogi tenha criado o Pró Escolar para oferecer profissionais capacitados para esses alunos, ainda há defasagem.

“O problema é que são muitos alunos e poucos profissionais. Muitas vezes as crianças são encaminhadas e não são atendidas e nem um laudo o professor consegue”, afirma. Conforme mostram os dados do Censo, o aumento das matrículas indica que as escolas deram um passo em direção à inclusão. No entanto, permanece um desafio: ir além da mera presença em sala de aula. É necessário assegurar que os alunos com autismo efetivamente tenham acesso ao aprendizado.


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MULHERES

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Maternidade afasta mulheres do mercado de trabalho Pesquisa revela que 21% das mulheres levam mais de três anos para retomar a carreira profissional FOTOS: FERNANDA CRISTINA

Fernanda Cristina

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sabella Alves de Lima é uma entre tantas mulheres afastadas do mercado de trabalho por causa da maternidade. Mãe de Serena, de um ano, Isabella começou a trabalhar em uma escola para crianças em janeiro de 2018. Durante o período de licença maternidade, não viu alternativa a não ser deixar a escola por não ter seu direito garantido. “Quando o médico disse que minha bebê não estava bem, decidi começar a licença-maternidade. Logo após o parto entrei em contato com a minha chefe para saberr se ela havia comunicado o afastamento ao INSS, para que eu pudesse receber o benefício. Ela disse que não tinha feito isso, que cabia a mim fazer”, conta. No INSS, Isabella foi informada de que a empresa poderia ter solicitado o pedido de licença. Caso contrário, os pagamentos só começariam a ser efetuados após nove meses. “Era muito tempo para quem estava com uma recém-nas-

Isabella foi demitida por whatsapp logo depois do parto

Lucas Gabriel, especialista em RH

cida em casa”, diz. “Entrei em contato com a minha superior e então ela disse que foi por isso que havia me registrado, para não ter essa dor de cabeça, alegando ser um problema meu. Nesse momento eu senti minha dignidade ir ao chão. Após a gravidez, ela me demitiu em uma conversa via WhatsApp. A

deixaram o mercado de trabalho por um tempo além da licença. Por outro lado, apenas 7% dos homens tiveram algum prejuízo por requerer licença-paternal. Além disso, 21% das mulheres levam mais de três anos para retornarem ao trabalho, em contrapartida, apenas 2% dos homens demoram

partir daí eu procurei o advogado e fui orientada a recorrer”, descreve. O caso de Isabella não é isolado. Um estudo feito pelo site de empregos Catho reforçou a informação de que há disparidade nas responsabilidades assumidas por homens e mulheres na criação dos filhos. De 13.161 mulheres, 30%

o mesmo tempo. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), a saída das mulheres do mercado de trabalho se dá por iniciativa do empregador, sem justa causa. Segundo o especialista em Recursos Humanos Lucas Gabriel Teles do Nascimento, após o período de gravidez, algumas empresas pensam nas desvantagens de manter a trabalhadora por causa das ausências em razão da amamentação e de problemas de saúde do bebê. “A maioria das empresas, eu diria que 85%, sempre dispensam a funcionária quando ela volta do período de licença-maternidade. As ausências para levar o filho ao médico e o pensamento de que elas fiquem menos produtivas são fatores que nem todas as empresas, mas a maioria leva em conta”, relata. Segundo o especialista, o empregador não fica atento aos benefícios que a mulher pode trazer à organização após o período de gravidez. “Nesse período as mulheres ficam mais criativas e mais ligadas às atividades da empresa”, conclui.

“Mulher nunca pode errar. Ela tem que ser perfeita” Bianca Gonçalves

B

eatriz Dias, 40, de Mogi das Cruzes, trabalha há quatro anos como motorista de ônibus. Beatriz já enfrentou muita discriminação na carreira e relata se deparar com o machismo dos colegas de trabalho e também da sociedade. “A gente é muito mais cobrada pela perfeição do que os homens. A mulher nunca pode falhar”, afirma. Dados da Organização Mundial do Trabalho (OIT), divulgados em abril, mostram que em 27 anos, as contratações de mulheres no mercado de trabalho foram 26% inferiores às contratações de homens. Israel de Souza Feital, 36, mo-

torista há cinco anos, também em Mogi, diz não ter tido nenhuma dificuldade de oportunidades de trabalho. Israel afirma que nunca viveu situação de preconceito por parte dos passageiros. Um estudo da Universidade de Harvard concluiu que apenas uma mulher a cada três homens consegue ser recrutada nos processos seletivos. O estudo foi feito a partir de dois currículos – um de homem e o outro de uma mulher – ambos com as mesmas qualificações profissionais. O currículo masculino foi selecionado três vezes mais do que o feminino. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou estudo no qual revela que em 2018, as mulheres, mesmo sendo

51% da população, obtiveram uma representação política de apenas 10,5% e no ambiente corporativo ocupam apenas 37,8% das cadeiras gerenciais. Kátia Bonani, professora universitária, gerente e consultora de Recursos Humanos, graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, explica que apesar dos avanços expressivos das mulheres na luta por respeito e igualdade de gênero, vencer ainda está distante. “Do meu ponto de vista, a preferência pela contratação masculina em relação à feminina é cultural”. Ainda segundo Bonani, infelizmente, hoje, as mulheres ocupam apenas cerca de 47% das vagas formais de trabalho.

BIANCA GONÇALVES

Beatriz Dias, motorista de ônibus, enfrenta preconceito no trabalho


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MULHERES

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“Façam uma politica diferente da dos homens” HIGOR RAMOS

Inês Paz é ex-vereadora de Mogi das Cruzes. Ela ocupou o cargo por dois mandatos e sentiu na pele como é legislar em um ambiente machista. Dos 160 cargos de vereador existentes no Alto Tietê, apenas 11 são ocupados por mulheres. Inês é professora aposentada e atualmente milita na Apeosp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) Higor Ramos Página UM: O que te levou a se candidatar a vereadora naquela época? Inês Paz: Pensei em um projeto amplo e a função de um partido é lutar por uma visão de sociedade. Eu tenho uma concepção de sociedade na qual todos, inclusive mulheres e negros, têm direito a uma democracia de fato. E isso só se consegue com a luta partidária. Durante seus mandatos a senhora sofreu preconceito? IP: Eu não diria que foi preconceito, mas sim, assédio moral. Não quer dizer que é só em Mogi das Cruzes, mas em Mogi a Câmara até hoje é vista como um lugar para homens, onde não pode haver questionamentos. O meu mandato foi popular e isso foi visto como uma ofensa para alguns parlamentares e eles tentavam me desqualificar, mas eu nunca baixei a cabeça, porque os votos que eu recebi têm o mesmo valor dos votos que eles receberam. Eu avalio que o assédio não ocorreu apenas por eu ser mulher, porque hoje tem uma única vereadora em Mogi e tenho certeza de que ela não sofre,

porque acaba tendo uma atuação igual à dos homens. As Câmaras Municipais são ambientes machistas? IP: Com certeza. Não apenas a Câmara de Mogi, mas o parlamento, porque ele é organizado dentro de uma visão de sociedade capitalista, machista, patriarcal. Eu tenho uma companheira negra que foi eleita Deputada Federal no Rio de Janeiro e toda vez que ela ia entrar no elevador perguntavam onde ela ia, perguntando “quem é você?”, coisas que não fazem com homens. Existe sim, essa ideia de que política é lugar apenas para homens. Qual a importância de Santa Isabel ter uma mulher como prefeita? IP: Olha, eu não conheço a prefeita e nem sei qual o partido dela. Não basta ser mulher. Nós fazemos uma luta pelo protagonismo da mulher, mas com um corte de classe. Não adianta ser mulher se defende leis machistas ou pertencer à classe feminina e não lutar pelo protagonismo feminino na política. Agora, se ela atuar em defesa das mulheres trabalhadoras, as que são exploradas, então ela poderá fazer uma enorme diferença.

Ex-vereadora Inês Paz fala sobre seus mandatos na Câmara de Mogi e a necessidade da mulher assumir protagonismo na política

As mulheres são mais de 50% do eleitorado do Alto Tietê e ocupam menos de 10% dos cargos no Legislativo. Por quê? IP: Porque a gente ainda não rompeu com as amarras da sociedade contra a mulher. Por mais que ela tenha ajuda do companheiro em casa, ainda fica sobrecarregada. A mulher exerce uma tripla jornada e acaba ficando sem tempo para a política. Eu acredito que ainda devagar, estamos rompendo as amarras dessa sociedade machista, racista e homofóbica. Qual sua opinião sobre a Lei nº 9.504/1997 que determina que partidos coligações destine pelo menos 30% das vagas para mulheres? IP: É uma forma de você colocar em pauta a questão. Eu não defendo que a mulher deva estar em uma chapa apenas para cumprir cota, mas porque ela tem um espaço a conquistar, uma política a ser feita. Porém, se não houvesse cotas, esse assunto não teria visibilidade. Essa lei é importante nesse sentido. O que a senhora tem a dizer para às mulheres que desejam ingressar na política? IP: Eu digo a vocês que desejam entrar na política, que não baixem a cabeça para ninguém, não permitam que o reflexo de uma sociedade machista impeça vocês de exercerem o seu trabalho. Façam uma política diferente dessa que é feita pelos homens. Somente assim conquistaremos nosso espaço.

Mulheres estão sub-representadas na política Éllen Ávila Segundo Ângela Sanches, primeira mulher prefeita de Santa Isabel e atual vereadora (PSD), a maior dificuldade das mulheres quando ocupam um cargo político é vencer a barreira imposta pelos homens. “Eles se empenham em prejudicar a imagem de opositores, principalmente, quando mulheres”, relata. No Alto Tietê, existe um percentual muito pequeno de mulhe-

res atuantes na política. Os partidos preenchem a cota exigida pela Lei 9.504/97, mas não investem nas candidatas. “Faltam princípios dentro da própria política para elas participarem igualitariamente”, declara Ângela Sanches. De acordo com o vereador de Mogi das Cruzes, José Francimário Vieira de Macedo (PR), as mulheres enfrentam diversos obstáculos que as distanciam da esfera política, como os cuidados

com a casa e com os filhos. No Alto Tietê, Itaquaquecetuba lidera o ranking de mulheres nas Câmaras Municipais, com três vereadoras. Em Suzano, a vereadora Gerice Lione (PL) ocupa a presidência do Legislativo. Poá não tem nenhuma mulher como vereadora. Enquanto Santa Isabel é o único município da região com uma prefeita, Fábia Porto (Republicanos). Na opinião do vereador de Mogi das Cruzes, Rodrigo Firmino

Romão (PCdoB), “as mulheres politizadas são julgadas negativamente pela sociedade, pois o machismo ainda é predominante”. Fernanda Moreno da Silva (PV) é a única mulher entre os 23 vereadores de Mogi. Para ela, mesmo conquistando a independência, as mulheres ainda precisam dar importância à presença no parlamento. Mogi das Cruzes nunca elegeu uma prefeita. Segundo a vereado-

ra, colocar mulheres como vice-prefeita nas chapas pode mudar esse cenário. “É difícil vermos uma menina brincando de ser política, ao contrário dos meninos, o que acaba tornando comum o pensamento que é ‘coisa de homem’. Os pais já criam os filhos para serem os sucessores de seus negócios ou carreiras, e as meninas não, e isso só vai mudar com a movimentação da sociedade”, afirma.


MULHERES

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“Tem que ser guerreira até nas horas de dor” Mulheres superam estereótipo da fragilidade e disputam espaços tradicionalmente masculinos FOTOS: JOZILEIDE A. CARNEIRO

Diferença salarial entre gêneros prejudica economia NATÁLIA SIQUEIRA

Treino feminino de artes marciais. “Já vi meninas lutando sem unhas. Homens lascam o dente e já param”

Jozileide A. Carneiro

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a primeira edição dos Jogos Olímpicos modernos, em 1896, as mulheres foram proibidas de participar. Muito tempo se passou, mas até hoje o preconceito contra a mulher continua enraizado no esporte. Todos os dias, em todo o mundo, elas enfrentam obstáculos pelo simples fato de serem mulheres. A participação das brasileiras em atividades esportivas resulta da conquista de direitos. Em 1941 a lei impedia que as mulheres praticassem esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”. Já em 1965, no início do regime militar, elas foram proibidas de praticar lutas de qualquer natureza, além de futebol e outros esportes. Essas restrições só foram revogadas em 1979. Desde então ocorreu um significativo ingresso de mulheres nos esportes. Apesar disso, ainda há diferenças alarmantes entre as condições oferecidas aos homens para a prática esportiva e as oferecidas às mulheres. Além disso, os esportes mais relacionados ao uso da força seguem majoritariamente associados ao universo masculino, assim como posições de liderança e funções técnicas.

“As pessoas acreditam que mulher tem que ser menininha, tem que usar maquiagem, tem que estar de unha feita, não pode ter hematomas no corpo”, afirma Karolyne Valle, que começou a praticar muay-thai aos 15 anos. “As pessoas mais velhas tendem a ser menos tolerantes sobre o assunto. Minha mãe sempre falava que artes marciais não para menina, que eu tinha que fazer jazz ou balé ao invés de ficar me atracando com homens”, conta. Em 2011, Dana White, presidente do Ultimate Fighting Championship (UFC), declarou que nunca haveria mulheres no evento. Segundo ele, não havia número suficiente de lutadoras para as diferentes categorias de peso. No entanto, em menos de dois anos, as grandes atuações da judoca (e campeã olímpica) Ronda Rousey no Strikeforce, atrelado à sua beleza física e popularidade, fizeram o dirigente mudar de ideia. Ela conquistou seu espaço na organização e abriu as portas para as mulheres de uma vez por todas, entre elas Jéssica “Bate-Estaca” Andrade, a primeira brasileira a pisar no octógono do UFC e uma das melhores em sua categoria. Apesar das conquistas, a discriminação contra as mulheres

Karen descobriu que ganhava menos que colegas homens para exercer a mesma função

Natália Siqueira

Sarah Silva, lutadora de judô

ainda não foi totalmente superada. Enquanto no sumô amador, a presença feminina deixou de ser proibida em 1999; no profissional, apenas homens são permitidos. O boxe feminino, por sua vez, só se tornou esporte olímpico em 2012. Para Sarah Silva, atleta do judô e do sumô, até mesmo as dores do cotidiano feminino, como cólicas menstruais, são vistas como motivo de fraqueza se a mulher não se considerar apta para a prática do esporte naquele momento específico. “Eu já vi mulheres lutando sem unha. Sem unha nenhuma. Homem lasca o dente e já para. Mulher não. A gente tem que ser guerreira até nas horas de dor”, ela afirma.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres ganham, em média, 20,5% menos que os homens no Brasil. O país ocupa o 132º lugar no ranking do Fórum Econômico Mundial, de uma lista de 149 nações, sobre desigualdade salarial entre gêneros. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garante a igualdade salarial entre homens e mulheres desde 1943. No texto, a determinação de que “salários devem ser iguais sem distinção de sexo” aparece em pelo menos quatro artigos: no 5º, no 46, no 373-A e no 461. Mas na prática, não é bem assim que acontece. Karen Candido, 28, formada em Rádio e TV, no penúltimo emprego, como produtora, notava o tratamento machista do patrão em diversas atitudes, mas só descobriu que ganhava menos depois de três meses de trabalho. “Quando fiz a entrevista e recebi a proposta da empresa logo

aceitei, pois para a minha situação atual estava ok, mas depois descobri que um funcionário que desenvolvia as mesmas funções que eu naquela época, ganhava 15% a mais, apenas por ser homem. Me senti frustrada, mas nesses momentos a gente não pensa em procurar nossos direitos, primeiro porque precisamos do emprego e também pela dificuldade que é enfrentar uma briga na justiça hoje”, afirmou Karen. Segundo o economista Wiliam Retamiro, o fato de a mulher ter um rendimento inferior, inibe a atividade econômica. “Considerando que a maioria da população brasileira é constituida de mulheres e que elas ocupam boa parte do mercado de trabalho e também do empreendedorismo. Se elas recebessem mais, elas também consumiriam mais. É possível reduzir essa desigualdade com a implementação de políticas que, primeiramente, façam com que o espaço da mulher seja mais seguro, tanto nas empresas, quanto no empreendedorismo”, ressalta o especialista.


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INFRAESTRUTURA

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Alto Tietê tem mais de 900 moradias inadequadas Quase 5 mil moradores da região não têm acesso a serviços como saneamento básico e coleta de lixo FOTOS: CAROLINA ROCHA

Carolina Rocha

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aniel Silva tem 24 anos e é morador do distrito de Jundiapeba, em Mogi das Cruzes. Ele é um dos muitos moradores da região que vivem em condições adversas. Daniel diz que apesar do bairro ter melhorado nos últimos anos, ainda é necessário aprimorar a infraestrutura da região: “Em alguns pontos do bairro, inclusive em lugares movimentados, como áreas escolares, ainda temos esgoto a céu aberto. Falta iluminação pública em algumas ruas, não sei se por falta da solicitação dos moradores ou pela prefeitura não atender o local”. O morador ainda fala sobre o transporte público e a demora dos ônibus na região, além da falta de pavimentação em algumas ruas: “Em horário de pico, o ônibus demora muito a passar, atrapalha os trabalhadores e estudantes que necessitam ir ao centro. Algumas ruas também não são asfaltadas e ficam tomadas pelo barro em época de chuva”. Segundo dados divulgados pelo IBGE, no Alto Tietê há 922 domicílios inadequados e 170.564 semi-inadequados. A pesquisa traz informações sobre saneamento básico, esgoto e coleta de lixo na região. Das nove cidades que compõem o Alto Tietê, apenas em Arujá não há registro de moradias inadequadas. Só em Mogi das Cruzes, o número de moradias nesta condição é de 322, seguida por Itaquaquecetuba com 196, Suzano com 148, Santa Isabel com 95, Ferraz de Vasconcelos com 68, Biritiba Mirim com 25, Poá com 23 e Guararema e Salesópolis com 22. No total, quase 5 mil moradores não têm acesso a serviços básicos. Já Gabriel dos Santos Oliveira, 19, vive uma realidade oposta à de Daniel. Morador do distrito de César de Souza, também em Mogi das Cruzes, Gabriel diz não ter problemas com o bairro: “Com ex-

30,8 mil famílias vivem em extrema pobreza na região FOTOS: SAMUEL CÂNDIDO

“Para muitos, a gente que é pobre não tem valor”, diz Jeane, de Salesópolis

Samuel Cândido

Esgoto a céu aberto causa doenças e desconforto a moradores do distrito de Jundiapeba, em Mogi das Cruzes

O retrato de duas realidades: Daniel (esq) espera por melhorias em seu bairro e Gabriel (dir) se diz satisfeito com o bairro em que reside

ceção do transporte público que acaba atrasando um pouco no dia-a-dia, a infraestrutura do bairro é boa. Nunca faltou manutenção, sempre foi muito tranquilo nessa questão. Nunca me senti prejudicado por morar aqui, muito pelo contrário, acredito que me proporcionou um desenvolvimento pessoal adequado”. Para Ricardo Sartorello, professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UMC, a chave para so-

lucionar ou diminuir problemas como esse na cidade é o planejamento urbano: “A cidade tem que abrigar diferentes tipos de populações, com diferentes rendas. Essas pessoas precisam de uma infraestrutura. Planejamento dos bairros e programas de habitação viáveis e que estejam integrados com a cidade, na mobilidade urbana, saneamento e serviços são soluções a médio e longo prazo. Tem que existir uma preocupação quanto a isso, senão a coisas não mudam”.

Um relatório do Programa Bolsa Família (PBF), divulgado em 2017, mostra que, no Alto Tietê, entre as 80,3 mil famílias com perfil para participar do programa, pelo menos 30,8 mil vivem em situação de extrema pobreza. Nos últimos anos, o número cresceu. Jeane e seu companheiro fazem parte do grupo. O casal mora numa pequena casa em Salesópolis juntamente com seis filhos. Eles batalham diariamente contra as dificuldades do dia-a-dia. Ela trabalha em casa e o esposo extrai madeira para lenha. O salário dele, de aproximadamente mil reais por mês, é a única renda da familia. “Às vezes ele precisa trabalhar de domingo a domingo para conseguir ganhar esse valor. Ele trabalha há 20 anos com lenha e o salário é o mesmo desde que ele começou. Tudo aumenta, menos o salário”, reclama. O economista Wiliam Retamiro explica que essa situação é comum para muitas familias, e que a relação de salário e custo de vida estão interligadas. “A renda pode até aumentar relativamente em alguns pontos, mas o processo infla-

Economista William Retamiro

cionário e a baixa oferta de emprego traz uma situação contrária ao esperado”. A família recebe ajuda de doações e de programas do governo. “A gente ganha apenas R$ 205 reais do Bolsa Família, então as doações ajudam muito também”. Retamiro diz que a distribuição de renda no país está ruim. Programas de políticas públicas, como Bolsa Família, Bolsa Atleta, e outros de transferência de renda para desenvolvimento econômico e social amenizam esse problema. “Esses benefícios não são apenas projeto assistencialista, mas sim um projeto desenvolvimentista, pois a renda se torna uma demanda de produtos e serviços para o atendimento das famílias, tendo impacto direto na economia do município”, explica o economista.


INFRAESTRUTURA

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Um distrito, duas realidades Em Brás Cubas, distrito de Mogi das Cruzes, divisão provocada pela linha do trem realça desigualdade social

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Pesquisa do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública avalia cidades do AT Mogi das Cruzes figura com os melhores índices de qualidade de vida, Itaquá é a pior da lista GUSTAVO PEREIRA

Recanto Mônica em Itaquá: bairro tem problemas de infraestrutura

Gustavo Pereira

De um lado da linha, um bairro com comércio movimentado e infraestrutura adequada; do outro lado, habitações precárias e pavimentação precária

Helder Nascimento

U

m dos melhores jeitos de se enxergar o crescimento da desigualdade é observar a habitação das pessoas. Por mais óbvio que possa parecer, os dias atuais estão sendo os mais difíceis para provar a existência da injustiça social e traçar uma solução para o problema, já que qualquer proposta é taxada de comunismo e seus propositores são considerados fanáticos da benevolência. De certo, a desqualificação da luta contra as desigualdades, causada pelo extremismo político, prejudica o combate a um problema que está ligado à formação histórica do país. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Segundo dados do recente estudo “A Escalada da Desigualdade”, da FGV, o problema tem aumentado há mais de cinco anos, tornando-se o período mais longo de concentração de renda já contabilizado. Braz Cubas, um dos distritos de Mogi das Cruzes, é um caso

emblemático de desigualdade nas condições de habitação. Quem conhece o bairro, provavelmente tem lembra dos restaurantes, do comércio movimentado, dos bancos em cada esquina, da praça monitorada pela polícia, dos supermercados sempre lotados. Diante desse cenário, poucas pessoas se lembram que o outro lado da linha do trem também pertence ao distrito. Na parte mais humilde do bairro, especialmente nas ruas Santa Virgínia e Projetada, a vida é bem diferente. A Vila Estação, como é conhecido o local, é marcada por casas simples, barracos e ruas com pavimentação precária. Os moradores contam com uma igreja, um mercadinho e uma creche. Quem mora no “lado próspero” do Distrito tem medo de passar por lá. “É uma vila comum, com gente do bem, mas evito passar de noite por lá”, conta a aposentada Regina Vieira, 63 anos. Luísa de Souza, 37, mora há mais ou menos 25 anos na comunidade, e confirma o preconceito:

“Sei de pessoas que foram descartadas na entrevista de emprego porque moravam aqui na Vila”. A estudante Clara Macedo, 16, também moradora, confirma. “As pessoas costumam olhar torto pra gente. Eles acham que somos ‘favelados’”. Do outro lado do trilho há quem perceba a forma desigual como são tratados os moradores da Vila Estação. “Eles são claramente discriminados”, constata Sidney Maguila, 66, dono da “Nossa Quitanda”, que aproveita para cobrar ações do poder público: “Falta assistência e um olhar mais humano por parte dos governantes”. Apesar do preconceito de que são alvo, os moradores da Vila Estação gostam do local. Luísa garante que não se muda de lá por nada. “A gente está perto de tudo e conhece todo mundo.” Clara, a vizinha, completa: “Mesmo com os problemas, somos, em maioria, uma comunidade que quer condições melhores de vida e, principalmente, respeito!”

Alto Tietê, região da grande São Paulo com cerca de 1.511.000 habitantes, concentra uma das áreas mais ricas do estado, com potencial econômico e industrial. Porém, o que se vê entre as dez cidades que compõem a região é um abismo de desigualdade social, seja na área de oportunidade de mercado de trabalho, nos índices de criminalidade, seja no número de pessoas que se encontram abaixo da linha da pobreza. É o caso das cidades de Mogi das Cruzes e Itaquaquecetuba, regiões apontadas pelo relatório Atlas da Violência 2018, de autoria do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) como os municípios com o melhor e pior índice de qualidade de vida, respectivamente. De acordo com os dados apresentados, Mogi apresenta os menores índices de mortes violentas, menor índice de incidência de gravidez na adolescência, além da melhor renda per capita entre as pessoas mais pobres. Embora Itaquá tenha o segundo maior índice de mortes por violência (em primeiro lugar está a cidade de Poá), ela apresenta os piores índices em renda e qualidade de vida. O reflexo da desigualdade é perceptível na qualidade de vida dos moradores das duas cidades.

Para o estagiário Nicollas Monteiro, 18 anos, que se mudou para Mogi há pouco tempo, a cidade foi uma boa escolha para estudar: “Me mudei recentemente pra Mogi para estudar Publicidade. A qualidade de vida aqui é muito boa, as oportunidades de emprego, a infraestrutura e o acesso a saúde, transporte e entre outras coisas, fazem o município ser uma das melhores escolhas para quem quer estudar, ou até mesmo morar”, completa. O cenário é completamente diferente para a operadora de telemarketing Nathani Martins, 23 anos, que vive em Itaquá. Para ela, a cidade parou no tempo, e seus moradores enfrentam dificuldades em todas as áreas: “O poder público daqui praticamente abandonou a cidade. Temos dificuldades com transporte, saúde e, principalmente, emprego. As ofertas de trabalho por aqui são poucas e fazem com que a gente se desloque para a capital ou até mesmo para as cidades vizinhas, como no meu caso”, lamenta. A reportagem procurou as secretarias de desenvolvimento de Mogi das Cruzes e de Itaquaquecetuba para falar sobre o relatório divulgado, mas ambas, até a conclusão desta edição, não retornaram. A prefeitura de Poá também foi procurada, para se manifestar sobre o fato da cidade ter o maior índice de mortes violentas na região, porém não houve resposta.


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INFRAESTRUTURA

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Moradias refletem contraste social em Mogi Moradores contam como é viver em bairros bem estruturados e em bairros carentes de investimento Poliana Nunes

FOTOS: POLIANA NUNES

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airros completamente diferentes a poucos metros de distância. A riqueza mal distribuída acarreta diversos contrastes na sociedade, como bairros bem estruturados e bairros sem infraestrutura e carentes de investimentos que contribuam para a qualidade de vida dos moradores. Estudos revelam que o local onde se reside influencia o futuro dos moradores e diz muito sobre eles. Os contrastes de locais próximos e com classes sociais diferentes podem ser observados, por exemplo, na nobre Vila Oliveira, que faz divisa com a simples Vila União, ambas em Mogi das Cruzes. Luciene Araújo Matos Gura morava em um bairro rural da cidade e há dois meses se mudou para a Vila Oliveira, para ficar mais próxima dos filhos e netos. A mudança trouxe novas experiências “Na zona rural tudo é mais longe. Ir a uma padaria ou mandar os filhos para a escola exige planejamento. Aqui é tudo mais fácil, porque tem tudo perto.” Na Vila Oliveira, o policiamen-

Acima, bairro Vila União, com habitações minúsculas e precárias em ruas íngrimes e mal cuidadas. Perto dali, na Vila Oliveira (embaixo), as residências são amplas e as ruas são arborizadas e bem cuidadas

to é regular e o acesso a diversos serviços também é facilitado. As ruas são pavimentadas e arborizadas, e as casas contam com saneamento. É um lugar agradável e sem poluição sonora, com diversos condomínios e casas espaçosas de alto padrão. No condomínio em que mora, Luciene tem infraestrutura e serviços que garantem o bem estar da família. “Morar aqui é ter qualidade de vida. Tem academia, piscina, salões de festa. Posso passear tranquila com meus netos aqui dentro. Quando eles crescerem, terão acesso fácil a cursos e trabalho, por ser um bairro onde tem tudo”. A poucos metros de distância, ruas íngremes, com água escorrendo e mato nas calçadas, compõem um cenário bem diferente do bairro de Luciene. Ao invés de casas de luxo, o que se vê são moradias minúsculas e precárias. Na Vila União, que faz divisa com a Vila Oliveira, nem todas as ruas são pavimentadas e, para pegar ônibus, os moradores precisam caminhar até perto dos bairros ricos. “A gente tem que subir para a Vila Oliveira e pegar o ônibus

em frente aos condomínios, ou ir para a Vila Natal e pegar ônibus lá”, conta Luís Santos. Os moradores se sentem esquecidos e inferiorizados por não receberem investimentos. Eles não têm sequer acesso a saneamento básico. Em alguns pontos do bairro ocorrem alagamentos. “A gente sofre para conseguir as coisas e de repente perde tudo quando chove”, conta Pedro Silva, também morador. A ligação mais forte entre as duas localidades ocorre através das oportunidades que um bairro pode oferecer ao outro: “Minha filha trabalha como empregada em um prédio aqui perto e o marido dela trabalha no supermercado. Muitas pessoas daqui trabalham na Vila Oliveira”. Apesar da dificuldade de acesso a serviços e a oportunidades melhores, Luís gosta do bairro simples. “Aqui os moradores são unidos e temos total liberdade. Não ficamos presos dentro de muros porque todo mundo se conhece, conversa, as crianças brincam na rua e não têm que ficar presas dentro de casa. É um lugar gostoso de viver”.

69% das ruas de Itaquá estão em más condições FRANCISCO JUNIOR

Francisco Junior Itaquaquecetuba aparece como umas das cidades com pior desenvolvimento de infraestrutura em todo o Alto Tiete. Um levantamento feito pela Firjan coloca o município na 7º posição do ranking reginal de desenvolvimento dos setores essenciais como saúde, educação, emprego e renda entre os anos de 2015/2016. Essa realidade quando levada para uma dimensão menor, pode ser abordada em um único bairro, o Jardim Miray. A desigualdade presente no bairro, reflete em duas ruas, Tubulação e Cambará Orli. Laerte Muniz, estudante de 16 anos e

Rua da Tubulação localizada no bairro Jardim Miray, em Itaquaquecetuba, apresenta problemas na infraestrutura

morador do município relata: “A rua da Tubulação, desde que eu era pequeno, tem problemas no asfalto e problemas na infraestrutura, isso atrapalha demais na rotina dos trabalhadores e estudantes, que muitas vezes tem a preocupação de não se sujar para chegar limpo ao seu destino”. Tubulação ele afirma: “É um empurra-empurra fora do normal, o município de Itaquaquecetuba empurra para São Paulo e vice-versa, o maior prejudicado sempre vai ser os moradores”. Ao ser perguntado sobre a questão o Sociólogo Carlos Roberto Cardoso afirma: “É importante oferecer uma infraestrutura

adequada aos moradores, pois aas carências nessa área comprometem a qualidade de vida da população”. Segundos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE), apenas 31,1 % das ruas do município estão em boas condições de urbanização (equipadas com bueiros, calçadas, pavimentação e meio-fio). Em 28 de março desse ano, a prefeitura firmou parceria com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), com objetivo de realizar recuperação asfáltica das pistas que ficaram deterioradas após chuvas e alagamentos.


RACISMO

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Desigualdade racial compromete IDHM de Mogi Pesquisa mostra que negros têm escolaridade mais baixa e ganham quase 50% menos que brancos FOTOS: GEOVANE GOMES

Geovane Gomes

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o ano de 2013, foi realizada pela terceira vez a pesquisa Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), realizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O estudo, que já havia sido realizado nos anos de 1998 e 2003, tem como objetivo medir o índice de desenvolvimento humano de determinada região. Ao destrinchar um pouco o IDHM de Mogi das Cruzes – segunda maior cidade em área territorial da Grande São Paulo, perdendo apenas para a capital – foi possível perceber que, mesmo com um IDHM alto (0,783), a desigualdade entre negros e brancos ainda se mostra presente. A cidade evoluiu 0,217 ponto em relação à primeira pesquisa. Ainda assim, existem dados que insistem em apresentar grande diferença entre as condições socioeconômicas de mogianos negros e brancos. Falando em educação, apenas 57,29% dos jovens negros de Mogi das Cruzes possuem o ensino fundamental completo, en-

Lais Vieira (à esquerda), estudante em busca do primeiro emprego.

quanto 70,67% dos mogianos brancos com mais de 18 anos concluíram o ensino fundamental. Tratando-se de ensino superior, 20,2% dos brancos da cidade concluíram um bacharelado, contra

apenas 6,2% da população negra. O professor Gilson Santos, 53, atua em uma escola estadual do Alto Tietê e fala um pouco sobre a questão da desigualdade racial nas escolas. “Quem conhece por den-

Professor Gilson Santos

tro uma escola estadual e convive com alunos de todas as classes, percebe como é notável a diferença entre o cotidiano dos brancos e dos negros. Aqui você vê tanto o aluno que é trazido para a escola pela

mãe num carrão, quanto aquele que enfrenta grandes dificuldades para conseguir estudar. Em 99,9% dos casos, o aluno negro se encaixa na segunda situação”. Outro dado refere-se à renda per capta dos mogianos. Pessoas negras ganham, em média, R$557,80, enquanto os brancos quase o dobro, R$1080,21 mensais. A estudante Laís Vieira, que está em busca do primeiro emprego, destaca: “A segregaçaõ do negro na sociedade não é segredo para ninguém. Sou negra, vivo o dia a dia do mercado de trabalho e já vi inúmeras vezes pessoas brancas conseguindo empregos exclusivamente pela sua cor, mesmo havendo pessoas negras mais qualificadas para os cargos”. Apesar da desigualdade ainda existente, a série histórica de 1998 a 2013 mostra evolução não apenas do IDHM mogiano, mas também uma diminuição das diferenças entre negros e brancos. A tendência é que, aplicando-se políticas de igualdade de oportunidades e encarando o racismo como algo intolerável, a diferença diminua ainda mais, contribuindo para o crescimento do IDHM da cidade.

Brasil tem mais negros desempregados do que brancos LUANA SOUZA

Luana Souza Abda Melo Jovem negro de 21 anos, Guilherme Augusto Soares de Juazeiro, morador de Salesópolis, está à procura do primeiro emprego. Matriculado no curso de Sistemas de Informação, Guilherme quer começar a atuar na profissão que escolheu. Ele chegou a participar de alguns processos seletivos para estágio, mas não conseguiu ser contratado. Os cargos exigem domínio em inglês e informática, o que ele ainda não tem. “Além disso eles pedem experiência, mas como vou ter experiência se não me dão oportunidade?”, questiona.

Guilherme Soares busca o primeiro emprego na área em que estuda

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgados em novembro de 2017 pelo Institu-

to Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que naquele ano havia 14,5% de negros desempregados, contra 9,9% de brancos.

O caso de Guilherme mostra que a realidade não mudou. Ainda de acordo com os dados do IBGE, os índices educacionais da população negra também são inferiores aos da população branca. Apenas 8,8% dos autodeclarados negros acima de 25 anos frequentou uma faculdade. Entre os brancos, 22,2% têm curso superior. O economista e professor da UMC, Luiz Edmundo de Oliveira Morais, defende que a cor da pele não tem influência sobre a contratação dos trabalhadores, pois o mercado visa o lucro. “A diferença étnica pouco significa para os mercados, que visam acima de tudo a lucratividade”, afirma, destacando que deve-se levar em conta

o grau de escolaridade e as qualificações dos candidatos negros e brancas - sem mencionar a disparidade de oportunidades relacionadas à cor da pele. O que fazer para reduzir a desigualdade? Para o também professor de Economia da UMC, Wiliam Retamiro, é necessário ser implementar uma educação de qualidade que alcance todas as etnias e classes, seguida de medidas inclusivas como as cotas raciais. “São políticas que têm que ser temporárias, mas ainda assim são fundamentais para a redução da desigualdade social e econômica dessa população. As políticas de cotas, de valorização, de empoderamento cultural da população negra são fundamentais”.


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LGBTQ+

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Comunidade LGBTQ+ cria liga de futebol “Ligay” Objetivo é que a prática esportiva seja acessível a todos, num ambiente livre de homofobia FOTOS: VITOR GIANLUCA

Família mogiana desafia o preconceito contra LGBTQ+ MARIA CAROLIA NRONHA

Maria Carolina Noronha

Jean Carlos Schröder e Alexander Beltrão, atletas do Futeboys FC, participante da Champions Ligay

Vitor Gianluca

“A

lém do ambiente de afeto e acolhimento, ele também é de resistência, pois o futebol parte de uma construção simbólica da masculinidade viril. A partir do momento que a gente começa a se organizar por redes e uma delas é o futebol, nós nos sentimos empoderados”. É o que diz o advogado Alexander Beltrão, 23, jogador do Futeboys FC, time amador de futebol para a comunidade LGBTQ+. Para evitar a discriminação, homossexuais praticantes de futebol decidiram criar ligas alternativas. Em San Francisco, nos Estados Unidos, foi criada a Copa do Mundo Gay, em 1982. Além dela, surgiram outras ligas, como a GFSN (Rede Nacional de Apoiadores de Futebol Gay), na Inglaterra, em 2002, e a Paris Foot Gay, na França, criada em 2007. No Brasil, foi criada em 2017 a Champions Ligay, liga amadora de futebol totalmente voltada para a comunidade LGBTQ+. Organizada de maneira irreverente, ela já

conta com 29 equipes inscritas para a próxima edição. Segundo Jean Carlos Schröder, 25, atleta do Futeboys, mais de 50 times confederados aguardam vaga no campeonato. “Se tornou algo de grandes proporções, então é difícil organizar”, disse. “Os times são variados, temos mulheres lésbicas, trans, gays, etc. Não existe uma concepção uniforme, cada um aceita quem quiser jogar. O único pressuposto é ser legal, fraterno e ter bom coração”, completa. O jornalista e ativista LGBTQ+, Randal Savino, 23, diz que conhece muitos homossexuais que gostam de futebol. “Acho que se um time abrisse a porta para um jogador homossexual, sem se colocar como algo especial e que não fizesse esse jogador esconder a sua orientação sexual, haveria muito interesse. Esta é uma forma de incluir as pessoas no esporte”. As páginas da liga já contam com mais de 10 mil seguidores. No Instagram são 7.412 e no Facebook são 3.016 curtidas. Apesar do crescimento da liga, o Futeboys sofre com o preconceito no Facebook. “Na última Ligay, o Esporte

Randal Savino, ativista LGBTQ+

Interativo postou uma foto do nosso time com uniforme cor de rosa e os comentários estavam repletos de ódio. O mais triste desses comentários é ver que um comentário homofóbico teve mais de quatro mil curtidas. Triste de quem se posiciona contra, porque essa pessoa não se posiciona contra uma ideia, mas sim contra a opção da vida de uma alguém”, lamenta Jean Carlos.

No dia 21 de outubro é comemorado o Dia Nacional de Valorização da Família. Assim, no singular, como se “família” definisse uma só estrutura: “matrimonializado, patriarcal, patrimonial, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual”, como destaca Maria Berenice Dias, fundadora do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias. Para ela, foi a criação do termo “homoafetividade”, que ressalta mais a natureza afetiva do que sexual do relacionamento, que levou a justiça a reconhecer as uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Apenas em 2011 relacionamentos homoafetivos passaram a ser considerados união estável. No mesmo ano, Elisangela Abreu, 46, e Adoranda Santos, 45, se conheceram. Casaram-se em 2015, num ato que consideram a reafirmação de seus direitos. Além delas, compõem a família, Estella, 18, e Wendel, 26. Mas parte da sociedade ainda não vê com naturalidade uma família de duas mães: quando uma professora de Estella pediu que ela desenhasse sua família e observou duas mulheres, questionou a menina. “Na mesma hora ela ligou para a gente e falou: ‘Vem aqui que a professora está falando que vocês não são minha família’. Fomos lá e a professora falou que família só poderia ser pai, mãe e irmãos – e nós ensinamos que não era assim”, lembra Elisangela. Ela sempre quis ser mãe e, aos 18, realizou o sonho “por vias naturais mesmo, porque inseminação era muito caro”. Wendel tinha 8 anos quando se mudaram do Rio de Janeiro para Mogi das Cruzes, cidade que considerou muito preconceituosa, conta. Amedrontada,

Elisangela e Adoranda juntamente com os filhos Wendel e Estella

se envolveu em um relacionamento heterossexual, o que considera a pior experiencia de sua vida. Dessa relação nasceu Estella. Hoje Adoranda cumpre o papel de mãe dos jovens, mas nem sempre foi assim. “Eu sempre tive muita vontade de ser mãe, mas fui criada com tanto preconceito que tinha medo de ter filho. Tive coragem de assumir minha sexualidade e enfrentar a minha família, mas tinha medo de colocar filhos nisso. Eu dou a minha cara pra bater, mas não gostaria de ver meu filho passando o que eu passei”, declara. Quando assumiu a sexualidade, aos 27 anos, ela sentiu a rejeição da família, que se intensificou após o casamento. Para o casal, o que afasta a família de Adoranda é a ideia de que a homossexualidade é promíscua. Esta associação ainda povoa o imaginário social, sustentando muitas formas de preconceito. Mas para quem acha que a família é ilegítima, eles mandam o recado: amor e respeito são a base de tudo.


ESPORTES

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Discriminação enfraquece futebol feminino

bastante, principalmente na escola porque não era comum na década de 1980 ver meninas se interessando por futebol”. Para que as meninas se interessem pelo futebol, Rogério dos Anjos, de 39 anos, fundou, em Mogi das Cruzes, a Associação Nova Esperança (ANE), que garante às meninas o acesso ao esporte. O projeto criado em 2000 tem como principal meta garantir às garotas o direito de jogar sem discriminação. O treinador diz que se sente realizado ao ver o tamanho que o projeto tomou. “Hoje, por meio do futebol, as meninas têm uma meta, a ideia foi boa, as pessoas aceitaram e está dando certo”. A Associação Nova Esperança está presente em vários bairros da cidade, como Conjunto Jeferson, Jardim Camila, Vila Industrial, e futuramente será inaugurada uma nova filial em César de Souza. Além de garantir

Mulheres treinam e jogam em condições precárias. Baixos salários também prejudicam o desempenho Mateus Costa

E

nquanto a brasileira Marta, meio-campista do time norte-americano Orlando Pride, recebe 1,4 milhão de dólares por temporada, o também brasileiro Kaká meio-campista do Orlando City, que jogava pelo mesmo clube de Marta, mas no time masculino, recebia 7 milhões de dólares. A desigualdade salarial e de tratamento é uma realidade no futebol feminino desde seu surgimento em 1913. A modalidade com mulheres

em campo não é reconhecida como profissional pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Além disso, a estrutura disponibilizada para elas é muito inferior. Enquanto os homens têm um centro de treinamento, as jogadoras da CBF sequer contam com local para treinar. Thais Picarti, ex-goleira do Santos e da Seleção Brasileira, lembra dos efeitos da desigualdade. “Eu sofria

Jaqueline atleta da Associação Nova Esperança (ANE) Thais

que as meninas possam jogar bola, a ANE trabalha também para afastar as atletas do mundo das drogas. A campanha “Droga diga nunca” faz parte do projeto da ANE e procura conscientizar as garotas quanto aos riscos de usar drogas. Atualmente a prefeitura de Mogi das Cruzes apoia o projeto e cada atleta da ANE recebe uma bolsa para representar a cidade nos torneios regionais. Para o jornalista Fernando Fernandes, da Rede Bandeirantes, a CBF deveria aumentar o investimento no futebol feminino. “É preciso ações mais enérgicas para a profissionalização do futebol feminino”. Algumas equipes nacionais têm tradição no futebol feminino. Santos, Corinthians e Ferroviária se destacam no cenário nacional. Nessas equipes as jogadoras contam com uma boa estrutura. Em entrevista ao Página UM,o assessor de imprensa da equipe do Santos, Vitor dos Anjos, disse que hoje as “Sereias da Vila” têm alojamento na própria Vila Belmiro, além de campo de treinamento exclusivo para elas.

Atletas paralímpicas buscam visibilidade no esporte VICTOR FABIANO

Victor Fabiano As cadeirantes Gilvania Maria e Alini de Oliveira fazem parte de um seleto grupo em Mogi das Cruzes, o de portadores de necessidades especiais que praticam esporte. Atletas do projeto social realizado pela Associação Mogiana de Esporte e Educação Solidária (Amees), elas enfrentam suas limitações com o boxe paralímpico. Todo dia de treino, elas pegam dois ônibus e levam quase duas horas para chegar até a quadra localizada em Jundiapeba. As atletas sentem a falta de estrutura e patrocínio. “Precisamos de luvas especiais e cadeiras de rodas manuais para praticarmos, já que a cadeira automática que possuo não é a adequada”, disse Gilvania.

Alini, 30, trabalha no Rodeio e leva duas horas para chegar ao treino na quadra localizada no outro extremo da cidade, em Jundiapeba

O Programa Bolsa-atleta, que incentiva cerca de 4000 atletas, publicou em abril, através do Minis-

tério da Cidadania, a relação dos contemplados. Dos 3142 patrocinados entre as categorias olímpi-

cas/paralímpicas, atleta internacional, nacional, estudantil e de base, somente um atleta paralímpico recebeu o benefício, que prevê o pagamento de 12 parcelas. Com 18 medalhas em diversas modalidades paralímpicas, Alini lamenta a falta de visibilidade apesar da carreira vitoriosa. “As medalhas que tenho são dos Jogos Abertos, Regionais e da Loteria Caixa. Ainda não tive a oportunidade de participar de nenhum Estadual ou Brasileiro”, conta. Formado em Educação Física, o professor Carlos Lucarefski diz que não é necessário ir tão a fundo para notar que a disparidade entre as modalidades olímpicas e paralímpicas é grande. “Não existe nem muitas informações sobre boxe paralimpíco. Com isso já é

possível entender que a modalidade não é divulgada e tampouco patrocinada para quem quer se manter no esporte”. Apesar das dificuldades encontradas por esses atletas, segundo a Secretaria de Esportes de Mogi das Cruzes, a cidade dispõe de programas que buscam incentivar o paradesporto. Esportes como o futebol de amputados, vôlei adaptado, basquete em cadeira de rodas (modalidade em que as seleções masculinas e femininas usaram Mogi como sede de treinamento para competições internacionais), entre outros, recebem a atenção da Secretaria de Esportes mogiana. Destaca-se também que Dirceu Pinto, campeão olímpico de bocha adaptada, treina no Ginásio Hugo Ramos.


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RELIGIÃO

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Agressões por intolerância religiosa disparam no país Entre 2011 e 2015, notificações saltaram de 15 para 223, segundo Secretaria de Direitos Humanos FOTOS: DIVULGAÇÃO

IMIGRAÇÃO

“O imigrante escolhe o país. Já o refugiado é um fugitivo” AMANDA MIWA

THAMY NAKAYAMA

Acima e ao lado, ato religioso conhecido como Sabejé, relizado na praça da Marisa, em Mogi das Cruzes

Ingrid Leone

A

s denúncias de discriminação por motivos religiosos cresceram exponencialmente em cinco anos no Brasil. Entre 2011 e 2015, a quantidade de denúncias saltou de 15 para 223. Os números são do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, e constam no Relatório de Intolerância e Violência Religiosa. No período, 27% das denúncias eram de praticantes de religiões de matriz africana, seguido de evangélicos, católicos e de espíritas. No mesmo relatório, foram identificados oito homicídios por motivos religiosos, sendo quatro de lideranças do candomblé e quatro de evangélicos. Segundo Danilo de Oxalá, babalorixá ativista dos direitos religiosos, casos em que a discriminação ultrapassa a intolerância verbal são frequentes. O babalorixá qualifica a situação como arrasadora. “Muitos pais de santo constroem seus templos ao longo da vida e de repente tudo é destruído por ataques criminosos, como aconteceu no Rio de Janeiro e em Campinas”. Em um dos casos, o sacerdote perdeu também a mo-

radia que era no mesmo local do templo. Esses crimes no Rio de Janeiro que Danilo de Oxalá comentou, como a onda de ataques em terreiros de Candomblé e Umbanda, fazem parte de um estudo mais recente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), que alerta sobre um aumento de denúncias em 2019. Neste ano, elas praticamente dobraram. Por enquanto, até julho, 200 casos foram registrados, sendo 35% só na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. A Constituição de 1988, com o intuito de ir contra a repressão do direito à liberdade, consagrou, como um norma constitucional, na parte dos direitos fundamentais, a liberdade de expressão, direito adquirido após a ditadura militar. A advogada da área criminal, Amanda Ferreira Campos, destaca que é de suma importância ressaltar que o discurso de ódio e a intolerância religiosa recai em discriminação. “É tipificada como crime pela Lei 9.459, de 1997. O crime de discriminação religiosa é inafiançável, além de ser imprescritível, ou seja, o acusado pode

Larry Taylor, 38, jogador de basquete, e Tareq Ashour, 36, refugiado

Amanda Miwa

ser punido a qualquer tempo”. A pena prevista para este crime é de reclusão por um a três anos, e multa. Para assegurar a liberdade religiosa a Secretaria de Estado de Direitos Humanos lançou o Disque Combate ao Preconceito, para facilitar as denúncias. Por meio do Disque 100 qualquer cidadão pode denunciar atos de discriminação motivado por crença religiosa.

Recomeçar é muito difícil, principalmente quando não há mais escolha. Atualmente, o mundo está vivendo eras difíceis em vários países, forçando sua população recomeçar. São guerras civis, condições políticas e sociais de um governo que está forçando várias pessoas a saírem do país, entre outras coisas. O Comitê Nacional para Refugiados (Conare) divulgou em relatório que o Brasil recebeu 1.086 refugiados em 2018. Mas, além de refugiados, o país também recebe imigrantes. Segundo o Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais, entraram mais de 700 mil imigrantes no país entre 2010 e 2018. Apesar do Brasil ser um país de fácil acesso, o cotidiano é muito complicado. Para um imigrante, talvez não, como foi no caso do jogador Larry Taylor James Junior de 38 anos, norte-americano e jogador de basquete profissional. Ele veio 2008 para jogar em um time local, com emprego garantido,

moradia definida e pessoas para ajudá-lo. A realidade dos refugiados é muito diferente. Eles partem do lugar de origem sem saber o que os aguarda no destino, tendo como principal esperança se manter vivos. O palestino Tareq Ashour, 36, teve que sair do Egito, onde morava, por conta da guerra civil. Ficaram para trás a esposa e quatro filhos. Ao chegar em São Paulo, Ashour não sabia o que fazer, onde ir, a quem pedir ajuda. Estava sozinho e não conseguia se comunicar, o que tornou tudo mais difícil. Durante os primeiros meses ele tentou trabalhar no comércio, mas o desconhecimento do idioma foi uma barreira instransponível. No seu país de origem, Ashour levava uma vida confortável com a família. No Brasil, teve que recomeçar do nada. O diretor da Ong Refúgio Brasil, Everton Lopes, fez uma reflexão sobre a diferença do imigrante e do refugiado. “O imigrante escolhe ir ao país, trabalhar. O refugiado não, ele foge, ele entra onde a porta estiver aberta, ele só não quer morrer”.


CIDADANIA

Nº 109 | Ano XXI | 2019 FOTOS: LUIZ FERNANDO ANDRADE

Cresce o número de pessoas em condição de rua

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Exigências das famílias dificultam adoções AMANDA SOUZA

Gabriel e Angelina , gêmeos de 11 anos, aguardam adoção

Amanda Souza

Pesquisas mapearam menos de 50% da população de rua Luiz Fernando Andrade

J

éssica tem 18 anos, vive na rua desde os 12, quando saiu com a irmã da casa dos pais em Osasco. Hoje ela está grávida de 5 semanas e foge do companheiro usuário de drogas que tentou agredi-la. Pedro tem 57 anos, foi parar na rua por vontade própria, e é onde prefere estar. Ele tem vários amigos com os quais divide as doações que recebe. Nunca se adaptou aos albergues e para ele a rua, apesar de dura, significa liberdade. Cícero vive há 24 anos pelas ruas de São Paulo. Hoje com 50, “mangueia”, ou seja, pede esmolas, além também de vender papelão para sobreviver. Vladimir adora a natureza e fica muito feliz quando recebe a visita de pássaros e borboletas em sua barraca, armada em um terreno baldio no centro da cidade. Ele sobrevive cuidando de carros na região. Entre a lucidez e a solidão, esses personagens e mais de 102 mil pessoas sobrevivem pelas ruas do país, invisíveis até nas estatísticas. O último levantamento sobre pessoas em condição de rua ocorrido

Vladimir Nunes, 53, vive nas ruas há mais de 10 anos

em 2016, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), estima-se que apenas 47% dessas pessoas tenha participado do senso. O senador Flávio Arns (Rede-PR), em discurso no Senado Federal em defesa de políticas públicas para esta população, disse que teme o caminho que essas pessoas podem tomar: “Esse número vai aumentar, ainda mais depois da reforma da Previdência. A grande preocupação é que essas pessoas desesperadas

caiam no tráfico”, pontuou. O coordenador nacional do Movimento da População em Situação de Rua (MNPR), Leonildo Monteiro Filho, critica a necessidade de fiscalização no cumprimento de leis para esse publico: “Ainda temos o desafio de garantir o apoio e adesão dos gestores. Além disso, com o aumento de pessoas nessa situação, devido à situação econômica e social do país, a violência e o preconceito contra eles também vêm crescendo”, lamenta.

“Eu quero uma família”. Essa é uma das frases mais ditas pelas crianças e adolescentes que residem na instituição Lar de Nice. Até o dia 16 de outubro, no Brasil, 9.590 crianças aguardavam adoção. Por outro lado, havia 46.112 famílias brasileiras e 213 estrangeiras inscritas no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) à espera de realizar o sonho de serem pais. Se o número de pretendentes cadastrados é quase cinco vezes maior que o número de crianças disponíveis, por que ainda existem tantas crianças em abrigos e orfanatos? A resposta está na seleção desigual e exigências dos adotantes. “Embora o número de pessoas que procuram adotar seja bastante superior ao número de crianças e adolescentes que esperam por uma família, as barreiras surgem nas exigências que feitas pelas famílias”, explica a assistente social Anna Paula Lima. No CNA, as crianças que aguardam adoção são classificadas em cinco categorias: gênero, raça e cor, irmãos, condição de saúde e idade. Do total de crianças, 6.423 não são brancas, 5.272 possuem pelo menos um irmão, 2.467 apresenta problemas de saúde,

5.089 são meninos e 7.285 têm mais de 5 anos. A responsável pelo cadastro das famílias que pretendem adotar, na Vara da Infância e Juventude do Fórum do Brás, conta que na maioria das vezes as pessoas já têm um perfil definido da criança desejado. “Geralmente é branca, menina, com até quatro anos, que não seja portadora de nenhuma moléstia nem pertença a grupos de irmãos. Por isso, o número de pretendentes é bem maior”. “É ruim saber que ainda não fui adotado porque não sou branca e tenho uma irmãzinha especial”, desabafa uma das adolescentes moradora do Lar de Nice. Por que as famílias optam por este perfil? A professora Luiza Costa, recém mãe da pequena Maitê, conta que escolheu uma menina recém nascida por acreditar que será mais fácil educá-la, pois terão uma ligação desde o princípio da vida da criança. Adriano foi adotado aos sete anos de idade. “Foi amor à primeira vista. É com toda certeza meu filho”, declara o pai. “É uma situação muito triste, pois são tantas crianças com perfis diferentes e todas merecem a chance de ter uma família, merecem ser felizes”, lamenta Beatriz Gonçalves, diretora do Lar de Nice.


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CULTURA

2019 | Ano XXI | Nº 109

Falta de políticas culturais Nos trilhos da vida prejudica teatro do Alto Tietê

LAYANE STEFANI

Apenas Mogi conta com Lei de Incentivo à Cultura FOTOS: DENNIS MACIEL

Dennis Maciel

P

or meio das leis de fomento à cultura, grupos de teatro do Alto Tietê tentam aprimorar suas produções e pesquisas estéticas, para possibilitar uma maior aproximação do público em relação às artes cênicas. Com muita dificuldade, as pequenas companhias estão aos poucos conquistando uma verdadeira afluência a espaços teatrais, dito não convencionais com consequente formação de um público mais crítico. A falta de uma cultura teatral por parte do público e a escassez de apoio governamental fazem com que estas produções regio-

Ambulante divulga mercadorias nos vagões do “shopping trem”

Layane Stefani

Grupo Filosofia da Coxia se apresentando durante o Festival de Teatro Estudantil de Mogi das Cruzes

nais tenham dificuldades para se viabilizarem. Mesmo com qualidade e reconhecimento por parte da crítica, o teatro do Alto Tietê sofre com a constante escassez de público, falta de recursos e estrutura. O professor Renan da Silva, representante da companhia de teatro estudantil “Filosofia da Coxia”, explica que o maior problema para montar uma produção artística independente é a falta de recursos. Ele também destaca que políticas culturais mais abrangentes poderiam impulsionar as pequenas produções regionais. O ator e diretor Fernandes Junior, o Cidão, que está à frente do

grupo Teatro da Neura, explica a falta de política cultural na região. “Em Mogi, a política ainda embrionária de fomento aos grupos artísticos possibilita um respiro, mas tudo é muito incipiente, são poucos os grupos contemplados. Nas outras cidades da região o incentivo é quase inexistente”, afirma. Na capital paulista, as peças contempladas pela Lei de Incentivo à Cultura atraem vasto público, especialmente pelo barateamento do preço do ingresso, e contribuem para o desenvolvimento econômico do país. No último ano, apenas o teatro musical em

São Paulo movimentou mais de 1 bilhão de reais, gerou 12.824 empregos e arrecadou cerca de 131,3 milhões de reais em impostos, de acordo com dados da Sociedade Brasileira de Teatro Musical. Para o ator Dagoberto Feliz, algumas companhias teatrais sobrevivem anualmente com míseras frações do orçamento de um espetáculo de grande porte, seja ele musical ou não. “As próprias leis de incentivo nascem com essa finalidade, porém, acabam sendo distorcidas, por critérios não artísticos nem tampouco sociais”, explica.

Segunda-feira, mais uma semana se inicia. O relógio marca 4h15min. Para muitos, ainda é madrugada, mas para a moradora do Jardim Leblon, em Suzano, Beatriz Vieira, é apenas o começo de um longo dia. Com 20 anos de idade, Bia se concluiu o ensino médio, cursa o ensino superior e trabalha na área de Recursos Humanos. Há mais de ano acorda neste horário. Ela se arruma, toma café e sai para mais um dia de luta. Pega a van e meia hora depois desce na estação de trem da cidade. Bia passa a maior parte do trajeto dentro do trem, pois desce na estação Brás. Ali algumas pessoas ocupam os assentos, outras pessoas se sentam no chão, outras seguem em pé, dividindo o espaço com os ambulantes que trabalham em um constante vai e vem. Essa grande lata de sardinha é o martírio diário de Beatriz, que se submete ao transporte público em horário de pico para trabalhar na Vila Guilherme, em São Paulo, e assim, poder desfrutar do seu próprio dinheirinho. Agora, resta apenas o ônibus, e Bia estará pronta para pegar no batente. O trajeto ao todo dura mais ou menos duas horas. Depois do expediente, Beatriz volta ao trem, agora com destino à faculdade localizada no Tatuapé, também em São Paulo. Já na sala de aula, são mais três horas até que possa ir para casa. Encarar o transporte público novamente é cansativo, ainda mais

às 23h00 da noite. Quando o relógio marca 0h30 ela finalmente está pronta para dormir. O relógio volta para as 7h00 da manhã, agora no bairro Boa Vista, em Suzano, onde quem acorda para mais um dia de trabalho é Miriã Siqueira. Seguindo o padrão, ela se arruma, toma café e sai para pegar a van. Após vinte minutos, chega ao seu ambiente de trabalho: a estação de trem, mais especificamente dentro dos vagões. Miriã é ambulante. Antes de recorrer a este trabalho, ela entregou, sem êxito, muitos currículos. Aos 21 anos, também já concluiu o ensino médio e, assim como Beatriz, almeja o próprio sustento. A moça já chegou a atuar como cabeleireira, mas agora raramente faz as madeixas de alguém. Nos trens, ela já perdeu muita mercadoria para os seguranças, mas agora os reconhece até quando estão “à paisana”. Foi por isso que às 17h40, quando eles entraram no vagão, Miriã se sentou e fingiu conversar com alguém ao celular. O dia foi produtivo e a garota conseguiu vender toda a mercadoria sem perder nada para os guardas. Às 20h00 Miriã encerra o expediente e volta para casa. Às 23h40 dorme tranquila. Onze quilômetros separam as casas de Beatriz e Miriã, duas mulheres batalhadoras, que apesar da pouca idade e com tantas diferenças, sabem bem o que querem: conquistar a independência financeira.


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