Revista Estilo Zaffari - Edição 92

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O sabor e o saber F E R N A N D O

LO K S C H I N

O POLVO, UM MOLUSCO DA “I’d like to be under the sea / in an Octopus’s Garden in the shade.” Ao ouvir o verso que Ringo Star havia composto, George Harrison sugeriu a mudança para Shiva’s Garden, mas Ringo fechou questão. A ideia de viver submerso, protegido em um Jardim de Polvo, era o fundamento da canção. Ringo soube que polvos cultivam jardins num cruzeiro pelo Mar da Sardenha. O capitão do iate lhe contou que os polvos recolhiam conchas, pedregulhos e latas no leito do mar para edificar jardins em torno de suas tocas. Ringo ficou impressionado. Tendo de conviver com os talentos e exigências de John Lennon e Paul McCartney, imaginou um jardim de polvo como o lugar ideal para relaxar. Os polvos modificam seu território para maximizar seus recursos de camuflagem e criar um sistema de vigilância que sinaliza a presença de intrusos. Como anexo, constroem cercados onde confinam caranguejos para consumo futuro. O cuidado com o jardim é tal que os polvos faxinam o local, borrifam jatos d´água para remover detritos. Há quem chame o polvo de Gênio do Mar. Um molusco invertebrado – “da mais alta estirpe”, diz Alexandre Dumas –, dotado de inteligência, o polvo é capaz de aprender, memorizar, resolver problemas, planejar e brincar. Usa ferramentas, inclusive armas – a primeira delas: o polvo de manto retira os tentáculos venenosos das caravelas e emprega como espadas para defesa. Já é espantoso o polvo aprender por si a desenroscar uma tampa, que tal a ação inversa? Há documentação de polvos abrindo embalagens, empreendendo fugas espetaculares, abraçando pessoas e, inclusive, assistindo televisão. Um organismo bizarro, que parece desafiar as leis da física, e dotado de raciocínio dá ao polvo uma aura alienígena. Sem as limitações de ossos, juntas e tendões, o polvo é capaz de alongar ou encolher várias vezes de tamanho, se esgueirar por frestas ínfimas ou se alojar em cavidades exíguas. Um polvo de 12 kg pode passar por um encanamento de 6 cm de diâmetro. Linneu classificou o polvo como cefalopede (cefas, ‘cabeça; pous, ‘pés’); oito extremidades ligadas radialmente à cabeça. Os gregos usavam os termos polipous (‘muitos pés’) e oktopous (‘oito pés’), e destes ‘pés’ (G. pous) saiu polvo. Curioso que ‘polvo’, um molusco, migrou ao sentido de pólipo, 68

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enquanto caranguejo, um crustáceo, denominou câncer (L. cancer, ‘caranguejo’) e carcinoma (G. karkinos, ‘caranguejo’). Os antigos teriam botado os pés pelas mãos; os tentáculos dos polvos são mais afins a braços. A musculatura é poderosa, fibras longitudinais intermeadas por circulares e oblíquas conferem resistência, tração e todo o tipo de movimento. Capazes de exercer força 100 vezes maior que seu peso, há registros de polvos brincando de cabo de guerra e vencendo uma pessoa quatro vezes mais pesada. A boca fica na face ventral, o centro da ‘axila circular’ dos 8 braços. O cérebro é descentralizado e plural, 2/5 em torno do esôfago e o restante distribuído por cada tentáculo. Um tentáculo separado do corpo opera normalmente por horas e logo é substituído por um novo, que, diferentemente da cauda do lagarto, é idêntico ao original. Oito braços que decidem e agem por si facilitam tanto a captura da presa como a fuga do predador. A face interna do tentáculo é recoberta por duas centenas de ventosas, cada uma com comando individual e independente. Capazes de sucção, pinçamento, corte, degustação, olfato e de secretar neurotoxinas, as ventosas são críticas no movimento, percepção e caça. No ambiente aquático, de baixo atrito de contato, a sucção das ventosas facilita a apreensão. É intrigante que um ser de hábitos noturnos e tão distanciado na escala evolutiva tenha o olho tão semelhante ao nosso: pálpebra, pupila, cristalino, íris, córnea e retina – só falta sobrancelha. Como o camaleão, os olhos têm movimentos independentes, a visão é mononuclear e panorâmica. O olho do polvo embasou a ótica das minicâmaras de filmagem: lentes que curvam os raios luminosos por superposição de películas de densidades diferentes podem ser pequenas sem deformação das imagens periféricas. Vivendo na água, que conduz o som quatro vezes mais depressa que o ar, o polvo é um animal silencioso, nem produz ruído nem tem audição. São três corações a bombear sangue azul, pois a hemocianina (G. kianus, ‘azul’) faz o transporte de oxigênio. Recoberto por camadas de células fotorreatoras, o polvo é capaz de mudar cor, brilho e padronagem a todo instante: manchas, listras, pontilhados, nuvens, inclusive fingir movimento quan-


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