23 minute read
DO COVID-19 NO ÂMBITO DIGITAL: UMA NOVA ERA NO DIREITO PENAL
from Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Ciência e Profissões Jurídicas - Ed. 36
by ESA OAB SP
04
O Aumento dos Crimes Contra a Honra Durante a Pandemia do Covid-19 no Âmbito Digital: uma Nova Era no Direito Penal
Giovanna Aburad Delgado Sabbatini45 Iasmin Cortes Palotta46 Maria Júlia Calheiros Fontan47 Christiany Pegorari Conte48
RESUMO O presente artigo tem por objetivo estudar o aumento de Crimes Contra a Honra durante a pandemia do Covid-19 no ambiente virtual, relacionando-os à superexposição das pessoas na internet e nas redes sociais, e as suas possíveis consequências para as pessoas que se expõem à conteúdos sem medir a veracidade destes, principalmente em um ambiente em que se circula uma quantidade maior de fake news do que próprias informações verídicas. Ainda, o trabalho pretende trazer dados e estatísticas sobre o aumento desses crimes, além de dissertar sobre os limites da internet e se os mesmos existem. Por fim, pretende-se abordar as legislações acerca desse tema, bem como as dificuldades da investigação dos mesmos.
45 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
46 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
47 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
48 Advogada. Mestre em Direito da Sociedade da Informação pela FMU/SP. Doutoranda em Educação pela PUC Campinas. Professora de Direito Penal e Processual Penal da PUC Campinas. Coordenadora da Extensão em Crimes Digitais e da Especialização em Direito Digital da PUC Campinas. Vice-Presidente da Comissão de Direito Digital da OAB/SP, Membro do Núcleo temático sobre Direito, Inovação e Tecnologia da ESA/SP.
1. INTRODUÇÃO
Com o advento da internet e da sociedade da informação, as pessoas começaram a depender cada vez mais dos aparelhos tecnológicos e da vida online, chegando a um momento em que o mundo virtual representa uma verdadeira extensão do mundo físico, inclusive no que tange a utilização da internet para a prática de crimes. Nesse sentido, durante a discussão apresentada no texto, tem-se o recorte para os crimes contra a honra, os quais já possuem disposição nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal brasileiro, porém, quando falamos das redes sociais e da internet no geral, é evidente que a honra do indivíduo merece uma maior atenção, uma vez que, ela pode ser afetada a qualquer momento, e por isso, deve-se ter legislações específicas eficazes para a punição dos agentes. Além disso, mesmo que se tenham leis voltadas para esses crimes, a sensação de impunidade impera sobre a sociedade, visto que, ao serem cometidos na rede mundial de computadores, temse a exigência de uma inovação dos procedimentos investigatórios, os quais em muitos casos precisam chegar a perfis falsos ou que não possuem identificação, por exemplo. Ainda, pretende-se falar também sobre as consequências para as vítimas da prática desses crimes na rede, sejam elas físicas, patrimoniais ou psicológicas, e que podem ser causadas de forma permanente, sendo um dos motivos para isso a replicabilidade infinita desses delitos, os quais são impossível de mensurar quantas vezes serão vistos e compartilhados. Desse modo, o objetivo do presente trabalho consiste na análise do aumento dos crimes contra a honra no âmbito digital durante a pandemia do Covid-19, sendo isto, por fim, pretendese demonstrar os dados obtidos durante a pesquisa explicativa-exploratória, sendo esta realizada com base no método observacional-estatístico.
2. CONCEITOS
2.1 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
O atual modelo de organização social, apelidado por Bruno Bioni de sociedade da informação, consiste em uma estrutura societária que tem como elementos centrais a própria informação, a comunicação e o conhecimento compartilhado, sendo estes caracterizados por integrarem o alicerce do desenvolvimento econômico, como a terra o foi para sociedade agrícola e a eletricidade para a sociedade industrial49 .
O advento da referida organização se deu com a revolução digital, concebida em meados de 1960 e também conhecida
49 BIONI, 2020, página 4.
como quarta revolução industrial50 , sendo fundamentada precipuamente pela popularização dos computadores em um primeiro momento51, e, atualmente, pela conectividade, o uso incessante da internet e a ininterrupta evolução da tecnologia como um todo. Com efeito, a humanidade atingiu um patamar em que já não se é possível imaginar uma sociedade inteiramente analógica e desconectada, isto é, sem a interferência da tecnologia digital e o uso contínuo da internet, muito pelo contrário, as atividades analógicas tendem a diminuir cada vez mais conforme a evolução das máquinas, sendo restritas ao que for substancialmente humano, e a conectividade aumentará conforme o crescimento e aprimoramento do fluxo informacional.
Um exemplo é o surgimento da geração C, assim denominada pela Google52, formada por pessoas que estão constantemente conectadas com a internet e interagem com esta diariamente. Embora 65% de sua composição seja de pessoas com menos de 35 anos, a geração C não possui uma divisão por faixa etária, como observamos nas gerações X, Y e Z, haja vista que basta a conectividade e a constante interação com a internet
50 SCHWAB, 2016, página 16.
51 SYDOW, 2020, página 21.
52 THINK WITH GOOGLE, 2013, disponível em: https:// www.thinkwithgoogle.com/consumer-insights/consumertrends/meet-gen-c-youtube-generation-in-own-words/ para que uma pessoa seja considerada integrante da referida geração. Isto posto, podemos verificar que o ambiente virtual, conhecido também como virtualidade53, paulatinamente se tornou uma extensão do ambiente físico, sendo isto resultado de uma evolução concomitante da sociedade, tecnologia e internet, gerando a gradual transição das atividades para o âmbito digital, como, por exemplo, o comércio, que atualmente já está tão difundido virtualmente que existem lojas que não possuem um estabelecimento físico, realizando somente vendas virtuais.
No entanto, o referido avanço não pode ser resumido somente em benefícios, tendo em vista que a tecnologia pode ser utilizada tanto para o bem quanto para o mal54, sendo eventualmente manipulada por alguns usuários para possibilitar a prática de infrações penais dentro do ambiente virtual, como ocorre com os crimes contra honra e diversos outros.
2.2 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL
A sociedade da informação e a virtualidade55 como uma extensão do ambiente físico tornaram necessária a atualização da compreensão de diversos
53 SYDOW, 2020, página 52.
54 SYDOW, 2020, página 22.
55 SYDOW, 2020w, página 52.
institutos do Direito Penal e Processual Penal como um todo, uma vez que estes foram demasiadamente afetados pela referida expansão. O impacto em tais áreas pode ser considerado mais intenso e brusco, visto que o Direito Penal e o Direito Processual Penal são caracterizados por serem regidos pelo princípio da subsidiariedade, também conhecido como princípio da intervenção mínima, sendo assim, só devem ser aplicados quando for estritamente necessário56 , pois servem como a ultima ratio, já que são responsáveis pela proteção dos bens jurídicos mais relevantes, tais como a vida, o patrimônio, a honra, entre outros. Destarte, a utilização subsidiária do Direito Penal e Processual Penal, juntamente com o processo legislativo brasileiro e a adoção, pelo Brasil, do sistema jurídico da civil law, acarretam na existência de um ordenamento jurídico muitas vezes arcaico, uma vez que o legislador não é capaz de acompanhar simultaneamente todas as mudanças, e, ainda que o fosse, a aprovação das leis depende de um processo legislativo burocrático, sendo consequentemente moroso. Em vista disso, temos como exemplo o Código Penal e o Código de Processo Penal, que não sofrem uma reforma integral desde 1940 e 1941, respectivamente, embora existam
56 CUNHA, 2020, página 81. diversos projetos de lei nesse sentido, como o Projeto de Lei 236/201257 . A solução encontrada para suprir o desfasamento entre a realidade e o ordenamento jurídico foi a maior utilização da doutrina e da jurisprudência, servindo estas como apoio para a compreensão da nova realidade e sua interpretação com base no arcabouço de leis já existentes. Dessa maneira, surge o Direito Penal Informático, responsável por estudar a aplicação do Direito Penal inserido em um contexto de tecnologia e imaterialidade.58
2.3 DIREITO PENAL INFORMÁTICO
O Direito Penal Informático surge a partir da necessidade de se compreender o Direito Penal, o Direito Processual Penal e a Criminologia à luz do contexto da virtualidade, uma vez que esta exige a reinterpretação de institutos clássicos e a concepção de novos institutos, como explica Spencer Toth Sydow:59 O Direito Penal Informático é o ramo do Direito Penal que estuda os valores sociais juridicamente relevantes que estão inseridos em e/ou modificados por um contexto informático, sejam eles valores já existentes submetidos à uma nova ótica da virtualidade,
57 PLS 236/2012, 2012, disponível em: https://www25. senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404
58 SYDOW, 2020, página 76.
59 SYDOW, 2020, página 76.
sejam eles novos valores criados a partir de uma nova sociedade influenciada pela tecnologia.
No tocante a classificação dos delitos, Direito Penal Informático se divide em crimes digitais próprios, caracterizados por atentarem contra a segurança da informação, softwares ou hardwares, e crimes digitais impróprios, que são as infrações penais já previstas pelo ordenamento jurídico, mas que ganharam uma nova forma de execução, como os crimes contra a honra.
Ademais, vale ressaltar que diversas particularidades do Direito Penal, do Direito Processual Penal e da Criminologia acabam se reinventando com a tecnologia e a virtualidade, sendo isto também englobado pelo Direito Penal Informático, como por exemplo a produção probatória em crimes digitais.
3. ASPECTOS LEGAIS E GERAIS DOS CRIMES CONTRA A HONRA NO ÂMBITO VIRTUAL
Embora existam leis que versem sobre os crimes contra a honra no Código Penal brasileiro, com o fenômeno da internet e da sociedade da informação, surgiu-se a necessidade da criação de leis específicas, as quais regulamentassem as relações virtuais e versassem sobre os crimes contra a honra no âmbito virtual.
A primeira delas a ser citada foi o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014), o qual estabelece direitos, deveres e princípios na utilização da Internet no Brasil. No que tange os crimes contra a honra na internet, tem-se o artigo 10, o qual dispõe sobre a proteção a honra e o artigo 15, que define a responsabilidade dos provedores de internet.
Art. 10, Lei nº 12.965: A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
Art. 15, Lei nº 12.965: O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.
Há também o Projeto de Lei nº 1.589/2015, o qual pretende tornar mais rigorosa a punição dos crimes contra a honra praticados na internet, responsabilizando os agentes com pena mais altas e buscando agilizar o processo de retirada de conteúdos da internet. No entanto, tal projeto ainda permanece em tramitação no Congresso Nacional.
Por fim, tem-se o Pacote Anticrime (Lei nº 13.964 de 2019), que possui disposto a triplicação da pena dos crimes contra a honra cometidos na rede mundial de computadores. Como consta no Art. 121, § 2º “Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena.” Inicialmente, essa parte foi vetada pelo Presidente da República, entretanto, esse veto foi derrubado pelo Congresso Nacional.
Dessa forma, é válido ressaltar a importância de leis que regulem os crimes contra a honra cometidos na internet, uma vez que, elas são fundamentais na garantia dos direitos das vítimas, à medida que também possuem a função de certificar que o agente seja responsabilizado.
3.1 PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO E A RESPONSABILIZAÇÃO DO AGENTE
No tocante a responsabilização do agente, tem-se que evidenciar a dificuldade das investigações dos crimes cibernéticos, visto que, na maioria das vezes são cometidos por perfis falsos ou por perfis de difícil identificação, além de serem facilmente replicados, causando uma sensação de impunidade nas pessoas. Como demonstra um estudo feito pelo MIT60, o qual constatou que uma notícia falsa, no Twitter, é mais
60 https://news.mit.edu/2018/study-twitter-false-newstravels-faster-true-stories-0308 compartilhada do que uma verdadeira, chegando a ser 70% mais replicada. Essas fake news constantemente imputam falsas atitudes às suas vítimas, quando não ofendem a honra dessas pessoas. Desse modo, é fato que os crimes no âmbito digital alteraram o Direito Penal e Direito Processual Penal em vários aspectos, principalmente no que se refere a comprovação da prática desses delitos, já que, o direito digital exigiu que novas formas de investigações fossem feitas. De acordo com Pinheiro Walber (2018) “O trabalho dos peritos que atuam na investigação de cybercrimes é dividido nas seguintes etapas: Coleta e preservação de informações; Extração de informações; Análise de Informações; Produção do laudo pericial;”61 No entanto, para que ocorra a quebra de sigilo de dados, por exemplo, é necessário uma autorização judicial, além de que, quando se tratam dos perfis falsos já citados anteriormente, é exigido uma busca ainda mais profunda aos provedores de acesso, colocando em xeque o trabalho dos profissionais que atuam na investigação, já que, na maioria das vezes eles se encontram despreparados e sem os equipamentos essenciais para esta ocorra.
Como expõem Sílvio de Castro Cerqueira e Claudionor Rocha (2013):62
61 PINHEIRO, Walber. Crimes contra honra na internet. Ipog. 2018. Disponível em: https://blog.ipog.edu.br/ tecnologia/crimes-contra-a-honra-na-internet/.
62 CERQUEIRA, Sílvio Castro; ROCHA, Claudinor. Crimes cibernéticos: desafios da investigação. Cadernos Aslegis, p. 155, 2013.
As instituições responsáveis pelas investigações criminais não podem se dar ao luxo de parar no tempo e esperar que os acontecimentos ditem suas respostas à sociedade. Atendendo aos princípios gerais do Direito Administrativo, elas precisam, sob pena de ingressar na esfera de ineficiência, se adiantar ao crime e construir estruturas que lhes permitam efetivamente cumprir suas missões constitucionais dentro dos preceitos afetos às ações do administrador público. Deixar de buscar a evolução propiciada pelo mundo da tecnologia equivale a negar o emprego de novos e eficientes instrumentos de combate ao crime moderno, que é executado sem aviso, sem violência, sem contato pessoal, onde o criminoso busca refúgio no anonimato do universo cibernético e restará impune se não houver o devido preparo da força repressora. (p. 155)
Nessa perspectiva, faz-se cada vez mais imprescindível a especialização de um serviço que combata tais crimes, seja a implementação de delegacias especializadas em crimes digitais, como já vem sendo feito aos poucos, ou então o investimento em profissionais de tecnologia, os quais podem ajudar na busca pelos agentes, para que dessa forma, as instituições consigam acompanhar a evolução do Direito Penal e Processual Penal.
3.2. CARACTERÍSTICAS GERAIS
Existem ainda, algumas características dos crimes contra a honra no âmbito virtual importantes a serem elencadas. A primeira relaciona-se ao momento da consumação, a qual segundo Cleber Rogério Masson (2020) será em um tempo diferente para as três espécies de crimes contra a honra: para a Difamação, o crime se consuma no momento em que o terceiro toma conhecimento do fato; na Calúnia, a consumação se dá no momento em que o crime, de fato, se consumou; já na Injúria, se dá no momento em que a vítima toma conhecimento do fato.
Já com relação ao local do crime, geralmente, tem-se como critério para definição de competência, o local em que supostamente o crime tenha sido realizado e a ação fora concluída, como demonstra o julgado a seguir:
EMENTA: CRIME CONTRA A HONRA PRATICADO PELA INTERNET. NATUREZA FORMAL. CONSUMAÇÃO NO LOCAL DA PUBLICAÇÃO DO CONTEÚDO OFENSIVO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITANTE PARA O CONHECIMENTO E JULGAMENTO DO FEITO.
1. Crimes contra a honra praticados pela internet são formais, consumando-se no momento da disponibilização do conteúdo ofensivo no espaço virtual, por força da imediata potencialidade de visualização por terceiros.
2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo suscitante para o conhecimento e julgamento do feito. (CC 173.458/SC, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/11/2020, DJe 27/11/2020)
No entanto, há divergências com relação a essa posição adotada pela doutrina majoritária, uma vez que, a noção de espaço no ambiente virtual pode não ser a mesma no espaço físico, esse é o entendimento do doutrinador espanhol Ramón J. Moles:63 físicos de espaço provocam um conflito entre estados soberanos em virtude das diferentes espécies normativas e formas de investigação de cada lugar, sendo esse mais um ponto a ser analisado e que possivelmente pode alterar o Direito Penal e Processual Penal.
O ciberespaço não dispõe de fronteiras territoriais, mas de normas ou técnicas, que regulam sistemas de acesso e que não pertencem ao mundo jurídico. Assim, não vigora o conceito de soberania e nem de competência territorial.
Sendo assim, o caráter transnacional dos crimes cibernéticos, o qual como mostrado acima, altera os conceitos
63 Ramón J. MOLES, Territorio, tiempo y estrutura del ciberespacio p.25-26. 4. CONSEQUÊNCIA DOS CRIMES CONTRA A HONRA NA INTERNET
Nos últimos anos, e principalmente durante a pandemia, o número de pessoas conectadas aumentou muito. A internet se tornou meio e fim para diversas atividades, sendo elas lazer, trabalho, educação, entre outros. No entanto, parece ser essencial a adoção de comportamentos para se inserir no meio digital. Torna-se inevitável ver sem ser visto. A visibilidade se tornou base primordial para a sociedade virtual. Todos estão conectados, observam e são observados.
O crime contra a honra, naturalmente, causa o adoecimento físico e psíquico, além de danos à integridade, personalidade e dignidade, desestabilizando emocionalmente, proporcionando consequências gravíssimas como doenças mentais e até mesmo a morte. No meio digital, com as proporções que uma notícia ou comentário tomam, as consequências dessa enorme visibilidade são infinitamente maiores e mais severas.
4.1. A SUPEREXPOSIÇÃO NO AMBIENTE VIRTUAL
É inegável que vivemos em um mundo cada vez mais digitalizado. Com a pandemia do COVID-19 os números apenas aumentaram. A migração para o meio foi gigantesca, e as lacunas na legislação para regular suas relações se multiplicam a cada dia. As redes oferecem oportunidades diversas e, com isso, a quantidade de informação aumenta a cada dia. Esse excesso de informação vem acompanhado do excesso de exposição. Assim que criamos nossa conta em uma rede social, e começamos a nos expor, criamos um pressuposto para que qualquer um possa entrar nela e falar o que quiser. Além disso, criamos novas relações e vínculos nesse ambiente, migramos laços para o mundo digital. É de se entender, portanto, que essas relações deveriam acontecer da mesma forma que sempre aconteceram no “mundo real”. Esse é o ideal, mas infelizmente algumas pessoas se aproveitam das vantagens da internet para ultrapassar limites.
4.2. OS LIMITES DIGITAIS
O rápido desenvolvimento da tecnologia e o estabelecimento das redes sociais como meio de comunicação acabou trazendo consequências nocivas e prejudiciais à sociedade que não foram previstas. A internet teve, e ainda tem, o poder de desmanchar barreiras erguidas no passado que serviam como censura informal (Bauman). Limites que foram estabelecidos na sociedade, por meio do costume e do hábito, começam a ser ultrapassados e desafiados. É como se essas barreiras repetidas e exigidas por tanto tempo fossem ignoradas, esquecidas e desaprendidas dentro das fronteiras do mundo digital. A internet deu o poder de fala para muitas pessoas para expressar opiniões, ideias, descontentamentos, reflexões, entre outros, e muitas vezes os limites cercando o direito de fala é ultrapassado. É muito comum o uso da liberdade de expressão para justificar um comentário ofensivo. A internet evoluiu drasticamente nos últimos anos. Novas plataformas surgiram, novas formas de comunicação e interação social, novos comportamentos diante da tecnologia e a mudança veloz fez com que os usuários das redes se tornassem confortáveis no ambiente digital. É ainda muito nova a maneira como as coisas funcionam nesse mundo virtual, e, para muitos, existe uma sensação de vazio.
Quando estamos conectados de um lado da tela, sem ver quem está do outro lado, ou no caso das redes sociais, o número de pessoas que podemos alcançar, criase uma falsa impressão de impunidade. Esse “vazio” e o uso de anonimato, acaba incentivando a conduta ilícita. A ideia de “ninguém pode me ver, meu usuário não é meu nome, portanto ninguém pode descobrir que sou eu.”. Cria-se assim uma falsa sensação de segurança e poder.
4.3. ATÉ ONDE VAI A LIBERDADE DE EXPRESSÃO?
É inevitável que quando abordado o tópico das redes sociais seja levantado também os limites da liberdade de expressão. São diversos os discursos de ódio encontrados que apresentam como defesa os pontos “liberdade de expressão” e “é minha opinião”. Parece que quando tratamos de redes sociais, qualquer opinião é válida, mesmo que esta lese direito alheio ou denigra a imagem de outro. A linha entre a liberdade de expressão e a ofensa é extremamente tênue.
Considerando, ainda, as proporções da internet, é possível encontrar comunidades que apoiem esses discursos de ódio e que criem uma base de defesa. Dessa forma, o racismo, homofobia, xenofobia, entre muitos outros, passam despercebidos. De certa forma, a importância desses crimes se torna fútil, perde força, pois não se aplicam consequências à altura, e, novamente, se possibilita a repetição.
A liberdade de expressão tornouse uma rede de proteção que justifica comentários, opiniões e piadas ofensivas. Com isso, diversas condutas ilícitas ganharam força e se tornaram mais frequentes. 4.4. A NORMALIZAÇÃO DE CONDUTAS ANORMAIS
Atualmente, com a popularização das redes sociais e de seus influenciadores, uma nova ordem parece ser erguida junto a uma nova hierarquia de poder. As regras do jogo mudaram. Condutas ilícitas são vistas como meros erros que não se sujeitam a qualquer penalidade, e a omissão, perante crimes no ambiente digital, é vista como autopreservação e liberdade de escolha. Essas ações ilícitas acabam se tornando condutas normais e recorrentes no meio digital, como se existisse uma legislação própria que é seguida naturalmente, pelo costume. Como se os usuários das redes julgassem os réus independentemente de órgãos oficiais e, assim, fizessem justiça com as próprias mãos. No caso dos crimes contra a honra, essas ofensas ilícitas são muitas vezes vistas como opinião ou simples comentário e quando causam grande repercussão ou desagrado social, vemos um pedido de desculpas e o caso é encerrado. Com esse tratamento, as ações ilícitas acabam se tornando condutas normais e recorrentes.
A calúnia, difamação e injúria, especialmente, não são consideradas infrações e cometidas no mundo digital, elas alcançam proporções inimagináveis. Na internet, um comentário ofensivo compartilhado mil vezes e visto dez mil vezes acaba incentivando aqueles que também tem algo semelhante a dizer.
Falamos aqui do efeito manada, uma teoria da psicologia que descreve a tendência humana de repetir ações feitas por outras pessoas. Assim, se um fala e não tem consequências, eu posso falar também.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante o exposto em todo o trabalho, é visível que os crimes contra a honra ganharam uma nova forma, a digital, a qual junto com os outros crimes cibernéticos inauguram uma nova era tanto para o Direito Penal, quanto para o Direito Processual Penal. Alguns crimes como calúnia, injúria e difamação, além de exigirem novas técnicas de investigação por serem cometidos na internet, mesmo que já tivessem previsão no Código Penal, precisaram também ganhar novas disposições na legislação brasileira, visto que, quando cometidos no âmbito virtual podem possuir danos irreparáveis, sejam eles físicos, patrimoniais ou psicológicos. Com a expansão da vida “real” para a virtual, passou-se a ter uma grande superexposição da vida das pessoas, as quais não podem medir as consequências dessa exposição, que muitas vezes podem ser indevidas. Em virtude disso, por exemplo, surgiu uma nova profissão, que são remunerados por mostrarem o seu dia a dia.
Ademais, pode-se notar um aumento crítico do número de pessoas que estiveram conectadas nas redes sociais durante a pandemia do Covid-19, tendo como desfecho os aumento dos crimes contra a honra durante esse período. Como demonstram os gráficos a seguir, dos quais os dados foram retirados do site Safernet64, uma sociedade civil de direito privado, apoiada por vários órgãos do governo, que possui o intuito de transformar a internet, mostrando dados para as pessoas e facilitando a forma de fazer denúncias.
Figura 1- Gráfico que mostra o aumento de denúncias do crime de racismo entre os anos de 2016 e 2020.
Fonte: gráfico feito pelas autoras a partir dos dados do Safernet.
64 https://indicadores.safernet.org.br/index.html
Figura 2- Gráfico que mostra o aumento de denúncias do crime de neonazismo entre os anos de 2016 e 2020.
Fonte: gráfico feito pelas autoras a partir dos dados do Safernet.
Figura 3- Gráfico que mostra o aumento de denúncias do crime de homofobia entre os anos de 2016 e 2020.
Fonte: gráfico feito pelas autoras a partir dos dados do Safernet Esses dados, os quais mostram o aumento de denúncias de crimes que podem se encaixar na classificação dos crimes contra a honra no âmbito virtual, ilustram que, de fato, tem-se o aumento dos crimes contra a honra na internet, e esse se dá devido a diversos fatores, sejam eles o aumento de pessoas conectadas, a superexposição indevida ou até mesmo a sensação de impunidade que se tem pela dificuldade em punir os agentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Maria. Ensaio sobre a relação da Geração Z e o mercado de identidades. Ufba.br, 2019. Disponível em: <https://repositorio. ufba.br/ri/handle/ri/30002>. Acesso em: 30 Apr. 2021.
ANDRADE, Pedro Victor. Tutela da Honra nas Redes Sociais: a contribuição possível da teoria da impolidez. Repositório UFMG. Disponível em: <http://hdl.handle.net/1843/32323>. Acesso em 27 de abril de 2021.
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: A Função e os Limites do Consentimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 4.
CERQUEIRA, Sílvio Castro; ROCHA, Claudinor. Crimes cibernéticos: desafios da investigação. Cadernos Aslegis, p. 155, 2013. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/crimes_ciberneticos_ cerqueira_rocha%20(2).pdf. Acesso em: 15 abr. 2021.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral (Arts. 1º ao 120). 8. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020. p. 56-82.
MASSON, Cleber Rogerio. Crimes contra a honra. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Penal. Christiano Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2020. Disponível em: https:// enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/429/edicao-1/crimescontra-a-honra. Acesso em 20 abr. 2021.
MESQUITA, M. et al. A DESINFORMAÇÃO - CONTEXTO EUROPEU E NACIONAL. Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Europa, v. 1, n. 1, p. 35-40, abr./2019. Disponível em: https:// www.parlamento.pt/Documents/2019/abril/desinformacao_ contextoeuroeunacional-ERC-abril2019.pdf. Acesso em: 15 abr. 2021.
MIGUEL REALE JÚNIOR. Limites à liberdade de expressão. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 11, n. 2, p. 374–401, 2011. Disponível em: <https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/ view/1954>. Acesso em: 30 Apr. 2021.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ. Informativo 326 - Crimes na Internet - Competência. Disponível em: https://criminal.mppr.mp.br/pagina-1474. html. Acesso em: 15 jun. 2021.
MIT NEWS. Study: On Twitter, false news travels faster than true stories. Disponível em: https://news.mit.edu/2018/study-twitter-false-newstravels-faster-true-stories-0308. Acesso em: 20 abr. 2021.
MOLES, Ramón J. Territorio, tiempo y estructura del ciberespacio. In: derecho y control en Internet. España: Ariel Derecho, 2000.
PINHEIRO, Walber. Crimes contra honra na internet. Ipog. 2018. Disponível em: https://blog.ipog.edu.br/tecnologia/crimes-contra-a-honra-nainternet/. Acesso em 15 set. 2021
RIUNI. Crimes contra a honra na internet. Disponível em: http://www.riuni. unisul.br/handle/12345/11320. Acesso em: 20 abr. 2021.
SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. 1. ed. São Paulo: Edipro, 2016. p. 16.
SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404. Acesso em 12 de mai. 2021.
SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático: Parte Geral e Especial. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. p. 21-76.
THATYANE GAMA CARVALHO; MUNIZ, Bruna ; SILVA. Elementos,
Finalidades E Consequências Da Superexposição De Usuários Nas Redes
Sociais. e-Com, v. 10, n. 2, p. 16–30, 2017. Disponível em: <https://revistas. unibh.br/ecom/article/view/2279>. Acesso em: 30 Apr. 2021.
THINK WITH GOOGLE. Meet Gen C: The YouTube Generation. Disponível em: https://www.thinkwithgoogle.com/consumer-insights/consumertrends/meet-gen-c-youtube-generation-in-own-words/. Acesso em: 25 abr. 2021.
ZANIOLO, Pedro Augusto. Crimes Modernos: O Impacto da Tecnologia no Direito. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. p. 60-70.